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Religião e medicina:contRovéRsias à paRte

Miniatura de uma crónica francesa que descreve administração de medicamentos a um rei doente. Datada do século XIV

A religião e a medicina têm relações estreitas e milenares, à exceção dos dois últimos séculos com a medicina ocidental biomecanicista. Para isso

muito contribuiu a conflitualidade crescente en-tre a ciência e a religião e a separação progressiva entre as duas, a partir do século xvi; as filosofias da morte de Deus e ideologias antirreligiosas; o paradigma científico centrado no observável e na experimentação como único acesso ao conhe-cimento; o otimismo científico que, numa visão evolucionista, apontou a ciência como última eta-

pa da evolução da humanidade; e a psicanálise com o seu reducionismo explicativo dos fenóme-nos psíquicos e subjetivos da alma humana.

Segundo Freud1, a ideia de Deus e as crenças não passavam de fenómenos neuróticos. A sua promoção e propagação era prejudicial à saúde e ao bem da humanidade, mas estava em seu ocaso com a aurora da etapa científica. Também a psiquiatria francesa do século xix e princípio do século xx classificou a religião como patolo-gia delirante, nomeadamente Janet e outros2. A religião foi parar às classificações psiquiátricas.

Nas múltiplas dimensões do ser humano, a relação da dimensão espiritual com a saúde tem vindo a ganhar cada vez mais adeptos e reconhecimento dentro da comunidade científica. Mas nem sempre foi assim, em particular no mundo ocidental.

Texto de Fernando sampaio [CoordeNador dioCesaNo dos CaPelÃes HosPiTalares e CaPelÃo do HosPiTal de saNTa Maria.

CoordeNador NaCioNal das CaPelaNias HosPiTalares e ColaBorador da irMaNdade

da MiseriCÓrdia e de sÃo roQUe de lisBoa]

1. Cf. obras de S. Freud sobre a religião, nomeadamente: O futuro de uma ilusão, Mal-estar na civilização e Totem e tabu.2. Cf A. Ávila, Para conocer la psicología de la religión. Navarra: Editorial Verbo Divino, 2003; David, M. WULFF, Psychology of Religion: Classic and Contemporary. John Wiley & Sons, inc., 1997 (2.ª ed.).

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Foi retirada recentemente, ironia do destino, pela mão da ciência. Muitos estudos científicos têm evidenciado os benefícios que a religião aporta à saúde física e mental.

Contrariando a ideia de Freud sobre a religião, Francis e colegas (2005)3 verificaram, numa in-vestigação confirmada por estudos internacio-nais e transculturais, que não há correlação entre religião e neuroticidade e por isso a prática reli-giosa não depende da neuroticidade do sujeito. Os mesmos autores também testaram as hipó-teses da psiquiatria francesa e chegaram à con-clusão de que existe uma correlação negativa entre psicoticismo e prática religiosa cristã, isto é, quanto maior é o psicoticismo, menor é a dis-posição para uma vivência e prática religiosa coe-rente e estruturada e vice-versa. Parece, portanto, não haver bases científicas para as afirmações de Freud e da psiquiatria francesa, posições que tan-

ta influência têm tido no discurso antirreligioso do século xx e início do século xxi.

Os psiquiatras franceses não estudaram a ex-periência religiosa em si mesma, como fizeram William James e outros psicólogos ou sociólogos, como R. Otto. Janet, por exemplo, partiu dos de-lírios místicos de doentes psicóticos para estudar a religiosidade de Santa Teresa, São João da Cruz e outros místicos. Ribot, seu colega, identificava o misticismo com algumas formas de patologia, nomeadamente com estados de depressão e me-lancolia ou mania4. Como se verifica, eles partiram da patologia e de uma perspetiva enviesada da religião. A conclusão não poderia ser outra senão uma generalização abusiva que a experiência re-ligiosa é uma patologia. Freud, na psicanálise, fez o mesmo. Não se descarta, no entanto, o facto de algumas manifestações de religiosidade poderem ser perturbadas e fomentarem comportamentos patológicos, individuais ou coletivos, mas revela-se ideológica e abusiva uma patologização da religião.

Contra essas posições negativas, Jung defendia ainda no tempo de Freud os benefícios da religião na estruturação e individuação do sujeito. Depois da Grande Guerra, diversos autores das correntes da fenomenologia existencial e humanista interes-saram-se também pela religião. Alguns tiveram--na em conta em suas teorias e práticas terapêu-ticas, sendo V. Frankl, com a logoterapia, o mais expressivo. Nos nossos dias, Benson, professor da Faculdade de Medicina de Harvard, vai ainda mais longe. Sustenta que as crenças têm repercussões físicas e possuem um papel importante na preven-ção e tratamento de enfermidades.

Para este autor a tendência dos seres huma-nos para a religião e a experiência espiritual está inscrita nos genes. O homem foi desenhado para crer5 e por isso a apetência religiosa parece ser

Da iMportâNcia Da religião e Da espiritualiDaDe Na saúDe Dão testeMuNho Muitos profissioNais De saúDe e a solicituDe Das igrejas pelos seus DoeNtes, beM coMo o testeMuNho Da Diversas religiões. essa Relevância está consensualizada no decReto-lei n.º 253/2009, que Regula a assistência espiRitual e Religiosa nos hospitais públicos”

3. Cf. FRANCIS et al., Faith and Psychology: Personality, Religion and the Individual, Darton: Longman and Todd Ltd, 2005.4. Cf A. ÁVILA, Para conocer la psicología de la religión. Navarra: Editorial Verbo Divino, 2003; David M. WULFF, Psychology of Religion: Classic and Contemporary. John Wiley & Sons, inc., 1997 (2.ª ed.).5. Cf. J. FERRER, Medicina y Espiritualidad: redescubriendo una antigua alianza. In Bioética: um diálogo plural (Home-naje a Javier Gafo Fernández). Madrid: Ed. Univ. Pontificia Camillas, 2002:891-917. Herbert BENSON, M.D., Timeless Healing: The Power and Biology of Belief. New York: Simon & Schuster, 1997.

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Pintura do êxtase de Santa Teresa de Ávila, Museu de São Roque, SCML

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instintual: todo o homem é religioso por natu-reza. No entanto, o autor defende que afirmar Deus ou negá-lo, ser crente ou ateu, são posições religiosas bem diferentes.

Contrariando as posições negativas expostas, estão os benefícios da religião na saúde física e mental, abundantemente descritos na literatu-ra. H.P. Guimarães e A. Avezum (2007)6, numa revisão bibliográfica na MEDLINE, verificaram a existência de 35 828 artigos associados ao bi-nómio Religion and Health e 4434 relacionados com spirituality and health entre 1982 e 2007.

A qualidade de vida, o bem-estar, sentido para a vida, para não falar da socialização e do suporte social, são benefícios inerentes à prática religiosa. O psicólogo e estudioso da espiritualidade e da religião, Harold Koenig (2008), diz que investiga-ções empíricas sistemáticas feitas em vários pa-íses têm demonstrado que “as pessoas (…) com fé religiosa profunda pareciam lidar melhor com stresses da vida, recuperar mais rapidamente da depressão e apresentar menos ansiedade e ou-tras emoções negativas que as pessoas menos religiosas” (…) e que (…) “as crenças e práticas

Basilica di Santa Caterina, Galatina, Puglia.Fresco no claustro, por Fr. Giuseppe de Gravina de Puglia em 1696.

6. Cf. H. Guimarães e A. Avezum. O impacte da espiritualidade na saúde física. In Revista de Psiquiatria Clínica, 2007, 34, supl 1; 88-94, 2007.

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religiosas estão associadas a um maior bem-estar e a melhor saúde mental”7. Por sua vez J.T. Chib-nall et al. (2002), bem como R. McCoubrie et al. (2003), citados por A. Payás et al. (2008)8, afir-mam que o sofrimento espiritual está associado a mal-estar generalizado, desânimo, revolta, provo-cando um aumento de tensão, estados confusio-nais, ansiedade e depressão, ausência de sentido, desesperança, desejo de morte, comportamentos suicidas. Por último, D. Oman & C.E. Thoresen (2005)9 defendem a existência de cinco fatores genuinamente religiosos que promovem a saúde. Para eles, a religião: a) desafia o crente a adotar comportamentos saudáveis, através das suas propostas ético-morais e dos valores, e censura os comportamentos de risco, nomeadamente sexuais, abuso de substâncias, etc.; b) promove estados psicológicos emocionais positivos — alegria, esperança, compaixão, amor, admiração, agradecimento, empatia — e censura os negati-vos — tristeza, ódio, vingança, inveja; c) apresen-ta estratégias de coping específicas para enfrentar eventos negativos da vida; d) constitui um impor-tante fator de socialização e suporte social e afe-tivo de apoio; e) permite o desenvolvimento de mecanismos semelhantes a mecanismos psico-lógicos que promovem o empowerment da pessoa — oração, meditação, perdão/reconciliação, vir-tudes, oração de terceiros. Estes fatores merecem ser valorizados e estudados pelos agentes pasto-

rais para deles tirar todo o proveito e potencializar de uma forma mais consciente e convincente a experiência de fé pessoal e comunitária.

Em conclusão, a relevância da religião para a saúde apontada pela investigação científica é inegável e evidente. Verifica-se, com efeito, um retorno do espiritual e do religioso pela via cien-tífica. Da importância da religião e da espiritua-lidade na saúde dão testemunho muitos profis-sionais de saúde e a solicitude das igrejas pelos seus doentes, bem como o testemunho de di-versas religiões. Essa relevância está consensua- lizada no Decreto-Lei n.º 253/2009, que regula a assistência espiritual e religiosa nos hospitais públicos. É tempo de abandonar trincheiras ideo-lógicas e impedimentos práticos em muitas ins-tituições de saúde porque o que está em causa é o bem do doente, particularmente do doente crente; é tempo de valorizar e respeitar a pessoa em todas as suas dimensões, nomeadamente a dimensão espiritual.

Desvalorizar, impedir ou negar aos doentes a sa-tisfação das suas necessidades espirituais é ser in-tolerante e antidemocrático, insensível e violento, insensato e desumano. Mas é tempo também de a Igreja valorizar a assistência espiritual e religio-sa nos hospitais, empenhando-se em não deixar vagas as capelanias, em nomear capelães compe-tentes e que ocupem efetivamente o seu lugar, em formar e profissionalizar os seus agentes.

7. Harold Koenig. Religião, espiritualidade e psiquiatria: uma nova era na atenção à saúde espiritual. In Revista de Psiquiatria Clínica, 2008, http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol34/s1/5.html; Saturday, 29 de September @ 13:48:44 CDT.8. Cf. Payás, A., Barbero, J., Bayés, R.Benito, et al. Cómo perciben los profesionales de paliativos las necesidades espirituales del paciente al final de la vida?. In Medicina Paliativa, 2008, 15, 4: 225-237.9. Cf. D. Oman & C.E. Thoresen, Do religion and spirituality influence health?. In Handbook of the Psycholoy of Religion and Spirituality. Ed. By Paloutzian, Raymond F. & Park, Crystal L. NY/London: The Guilford Press;2005, pp. 435-459.