[ΜΕΤΑΞΥ ΕΙΝΑΙ ΣΟΦΟΥ ΚΑΙ ΑΜΑΘΟΥΣ - sócrates- arauto da ignorância ou...

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“[...] ΜΕΤΑΞ Υ ΕΙΝΑΙ ΣΟΦΟ Υ ΚΑΙ ΑΜΑΘΟ ΥΣ [...]” Sócrates: arauto da ignorância ou mestre do erotismo? * ADRIEL AKÁRIO LOPES CÁMARA [[email protected]] A efígie de Sócrates, propugnada pelos diálogos de Platão, corresponde a uma concepção da práxis filosófica que enfatiza mais o desejo de saber, que a sua posse real e efetiva. A consciência da precariedade e da falta, a problematização dessa exiguidade, o reconhecimento do não- saber e a disposição permanente ao exame das próprias opiniões em vistas da libertação da empáfia e da falsa presunção de saber, são características que o Sócrates platônico encarna e valoriza mormente, sobretudo por colocarem em marcha o processo de investigação no qual consiste a filosofia, tal como os antigos a concebiam. Essa concepção, refletida tanto nos primeiros diálogos como na célebre imagem de Sócrates como μαιευτικός, ou parteiro espiritual, no Teeteto 1 , também está presente no Simpósio, em cuja caracterização de Ἔρως 2 parece evocar a Sócrates em corpo e alma. Certos expedientes, tradicionalmente associados à práxis socrática da filosofia, surgem no Simpósio, entretanto, sob uma nova perspectiva, que revela aspectos (à primeira vista, paradoxais) até então inexplorados, de uma imagem socrática dissonante, em certo modo, da formulada em outros diálogos. Reportamo-nos aqui, à 1 * Artigo apresentado no curso de graduação em Filosofia – Bacharelado, na Universidade Federal de Pernambuco, como argumento avaliativo único do componente curricular eletivo Tópicos de Filosofia Antiga I, ministrado pelo professor Dr. Anastácio Borges de Araújo. cf. Teeteto 157C-D. 2 cf. Banquete 203C-E. 1

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sócrates

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[...] [...]Scrates: arauto da ignorncia ou mestre do erotismo?*

ADRIEL AKRIO LOPES CMARA[[email protected]]

A efgie de Scrates, propugnada pelos dilogos de Plato, corresponde a uma concepo da prxis filosfica que enfatiza mais o desejo de saber, que a sua posse real e efetiva. A conscincia da precariedade e da falta, a problematizao dessa exiguidade, o reconhecimento do no-saber e a disposio permanente ao exame das prprias opinies em vistas da libertao da empfia e da falsa presuno de saber, so caractersticas que o Scrates platnico encarna e valoriza mormente, sobretudo por colocarem em marcha o processo de investigao no qual consiste a filosofia, tal como os antigos a concebiam. Essa concepo, refletida tanto nos primeiros dilogos como na clebre imagem de Scrates como , ou parteiro espiritual, no Teeteto[footnoteRef:1], tambm est presente no Simpsio, em cuja caracterizao de [footnoteRef:2] parece evocar a Scrates em corpo e alma. Certos expedientes, tradicionalmente associados prxis socrtica da filosofia, surgem no Simpsio, entretanto, sob uma nova perspectiva, que revela aspectos ( primeira vista, paradoxais) at ento inexplorados, de uma imagem socrtica dissonante, em certo modo, da formulada em outros dilogos. Reportamo-nos aqui, sua perptua profisso de ignorncia, sua veemente recusa a ser considerado como mestre e sua concepo particular da natureza do conhecimento e do modo de transmisso da verdade[footnoteRef:3]. Coligimos, pois, que h, no Simpsio, ao menos trs ocasies, em princpio, categoricamente divergentes com as caractersticas supramencionadas: ao admitir ter conhecimento sobre as coisas do amor ( )[footnoteRef:4], Scrates, aparentemente, contraria seu ofcio habitual de ignorncia; ao passo que, ao anunciar que dir a verdade sobre [footnoteRef:5], contradiz sua clssica rejeio em transmitir uma verdade com pretenso docente; por fim, o conhecimento de que Scrates reivindica, procede da mulher de Mantineia[footnoteRef:6], Diotima, algo que primeira vista contrasta frontalmente com suas caractersticas ressalvas acerca da possibilidade de transmisso direta de conhecimento de um indivduo para outro. [1: * Artigo apresentado no curso de graduao em Filosofia Bacharelado, na Universidade Federal de Pernambuco, como argumento avaliativo nico do componente curricular eletivo Tpicos de Filosofia Antiga I, ministrado pelo professor Dr. Anastcio Borges de Arajo. cf. Teeteto 157C-D.] [2: cf. Banquete 203C-E.] [3: cf. Sobre tais aspectos, veja-se: FORSTER, M. Socrates profession of ignorance, 2007.] [4: cf. Banquete 177D.] [5: cf. Banquete 199A-B.] [6: cf. Banquete 201D.]

A fora motriz da presente arguio , pois, examinar o conhecimento ertico que Scrates admite possuir e, com base nisso, dissipar as tenses mencionadas: intumos que a despeito de uma questionvel univocidade teortica do corpus platnico a inconteste maestria de Plato em harmonizar suas ideias em dilogos particulares, o permitiria, no Simpsio, ao discorrer sobre , falar indiretamente de Scrates, enquanto filsofo, apresentando, assim, positivamente, como conhecimento ertico, tanto a conscincia da ausncia, como o tradicional ofcio de ignorncia que do sentido sua prtica refutativa. O Simpsio, neste sentido, pode, legitimamente, ser interpretado como uma nova Apologia, um verdadeiro panegrico a Scrates, encarnao mxima do filosfico, capaz de conduzir o homem verdadeira virtude[footnoteRef:7]. Inferimos, pois, que o conhecimento ertico no , para Plato, um saber que se possa encontrar e capturar, seno o prprio mpeto pela busca constante, oriundo do apetite por conhecimento que habita a alma do filsofo, ou seja, ao reconhecer os limites do prprio saber valida-se a posse da verdade acerca de , e mesmo no detendo a segurana e severidade da plena certeza, manifesta-se enquanto forma de um saber provisrio que, no caso do incansvel Scrates, o impulsiona ao exame permanente. Destarte, por um lado, no haveria, portanto, qualquer exceo ao ofcio de ignorncia socrtico, e por outro, de acordo com a descrio da instruo recebida de Diotima uma vez que o ponto de partida deste conhecimento no outro seno uma opinio correta ( ), a meio caminho entre a sabedoria e a ignorncia , tratar-se-ia, no contexto do Simpsio, de um conhecimento que pode, genuinamente, ser transmitido de um indivduo para outro, e cuja eficcia, em termos prticos, sempre fora reconhecida por Plato. Diante do exposto, acreditamos ser possvel assumir que, ao reivindicar este tipo de conhecimento, Scrates permaneceria, como de costume, fiel ao seu ofcio de ignorncia, consoante ao apotegma dlfico do conhecimento de si ( ), em permanente diligncia a uma busca infatigvel que redunda, outrossim, em auto-aperfeioamento. [7: Sobre tal hiptese hermenutica, veja-se: OLIVEIRA, R. R. Eros, natureza humana e filosofia no Banquete de Plato, 2015 (no prelo).]

***

Para elucidar o modo como Plato compatibiliza a ignorncia constante professada por Scrates, com a sua confisso sobre saber das coisas do amor ( ), faz-se necessrio destacar que a ignorncia socrtica no a maior de todas as ignorncias prpria de quem acredita saber aquilo que de fato no sabe, privando-se, assim, de toda e qualquer busca[footnoteRef:8] , seno a de quem reconhece no saber e se dispe a perscrutar a verdade: a ignorncia socrtica envolve, pois, um saber do no-saber, i.e., um saber da precariedade e dos limites de seu prprio conhecimento, apangio este, distintivo daquele que sustenta um firme e persistente desejo pelo conhecimento. Embora sua formulao mais famosa seja fornecida nas passagens da Apologia[footnoteRef:9], onde Scrates declara-se no possuidor de conhecimento algum, tampouco crendo-se sbio, podemos considerar como anlogas as formulaes oferecidas no Mnon[footnoteRef:10], onde Scrates enfatiza que seu saber, ainda que conjectural, no de uma coisa s, levando a cabo, assim como no Simpsio[footnoteRef:11], o reconhecimento de que a opinio correta ( ) e o conhecimento, no sentido de cincia (), so coisas dspares e assimtricas. [8: cf. Repblica II 382B e Banquete 204A.] [9: cf. Apologia 21D, 22E, etc.] [10: cf. Mnon 98B.] [11: cf. Banquete 202A.]

Reconhecer que a opinio correta no se constitui como fundamento precpuo da cincia, ou que a sabedoria humana reside em no acreditar saber o que no se sabe, so formulaes negativas que apontam para a precariedade do conhecimento e do sentido, como dissemos, prtica refutativa de Scrates, cujo cerne consiste em submeter prova toda e qualquer opinio, minando, assim, a confiana ilusria da posse de conhecimento. Dito isso, inferimos que, no Simpsio, h claros indcios de que o conhecimento ertico que Scrates declara possuir, no outra coisa seno um saber essencialmente negativo, solo frtil onde germinada sua prxis obsttrico-filosfica.Assim, por exemplo, quando Scrates diz no saber de nada mais, alm das coisas do amor ( )[footnoteRef:12], fica claro que se trata de um conhecimento singular, nico, que contrasta com a vastido de sua ignorncia. A reteno de tal conhecimento, como sugere nossa argumentao precedente, no s no contradiz seu tpico ofcio de ignorncia, seno que tambm se apresenta como fator intrnseco e indissocivel do reconhecimento dos limites do prprio conhecimento. esta mesma questo, alude Scrates ao anunciar o relato acerca de que um dia ele ouvira dos lbios de Diotima, a mulher de Mantinea, sbia nesta e em muitas outras coisas ( )[footnoteRef:13], explicitando a disparidade entre as poucas coisas que admite saber e a amplitude do conhecimento da sbia que o instruiu nas coisas do amor note-se que longe de estar em desacordo com a sua conscincia de no saber, a afirmao socrtica de que detm conhecimento ertico, enfatiza a natureza limitada do quanto lhe fora acessvel conhecer. Assim, ao sublinhar que , por carecer de coisas boas e belas, deseja precisamente isso mesmo que lhe falta[footnoteRef:14], Plato torna patente que o conhecimento ertico refere-se a certo bem, do qual se carece e que se institui como objeto de desejo: enquanto conscincia da carncia, trata-se, pois, de um conhecimento atravessado por uma radical negatividade. Por conseguinte, a alegao posterior de que , necessariamente, filsofo, ou seja, amante da sabedoria, situando-se entre o sbio e o ignorante ( , )[footnoteRef:15], mostra que o bem que constitui seu objeto, no outro seno a prpria sabedoria designa, neste sentido, o impulso ao filosofar, vigente naqueles que, como Scrates, dedicam-se busca do conhecimento que no possuem, mas cuja posse anseiam. [12: cf. Banquete 177D.] [13: cf. Banquete 201D.] [14: cf. Banquete 202D.] [15: cf. Banquete 204B.]

Ao atentarmos para o modo como Plato expressa, em termos positivos enquanto conhecimento das coisas do amor uma espcie particular de conhecimento, muito semelhante, a que geralmente atribuda ao seu mestre e parteiro intelectual, torna-se, ento, significativo o jogo de palavras, presente no Simpsio[footnoteRef:16], entre o verbo (vertido para o vernculo como questionar), e o substantivo : vnculo apontado tambm no Crtilo[footnoteRef:17], mediante o qual se expressaria que tanto a arte de questionar como a arte ertica. Se a isso acrescentarmos que o progresso ertico , ao mesmo tempo, o progresso na filosofia, no surpreende que, no Simpsio, Plato apresente Scrates como algum que domina ambas as artes, a julgar pelo fato de que quando este declara honrar as coisas do amor exercendo-as sobremaneira e instigando, dentro de suas possibilidades, os demais homens a, agora e sempre, tambm prestarem louvores ao poder e a coragem de [footnoteRef:18] , poderamos, legitimamente, entender que neste momento est referindo-se, em particular, sua habitual prxis filosfica. Em todo caso, se at o momento Plato soubera enfatizar o lado negativo, ou refutativo, do questionamento socrtico, orientado libertao da empfia gestada pela falsa presuno de saber, agora parece esgrimir seu aspecto seminal, ou construtivo, condensado e cristalizado em uma prtica filosfica que resulta, como dissemos, num aperfeioamento dlfico de si mesmo. , pois, no Simpsio, a partir da ignorncia socrtica, condio precpua de qualquer busca, que a ateno platnica se concentra na busca mesma em que consiste a filosofia e no papel ativo que assume quem a empreende, sendo, assim, neste contexto, que Plato descreve a prtica socrtica em termos de arte ertica. [16: cf. Banquete 199B-C e 199B-E.] [17: cf. Crtilo 398C-E.] [18: cf. Banquete 212B.]

Em conformidade com seu ofcio de ignorncia, Scrates, como mencionamos, geralmente se recusa a descrever a si mesmo como um mestre capaz de transmitir conhecimento, insistindo impetuosamente que nada capaz de ensinar. Entretanto, no Simpsio, como vimos, anuncia que dir a verdade[footnoteRef:19], porm sua maneira sem tentar competir com os discursos proferidos at o presente momento e fazendo uso das palavras e sentenas que, naturalmente, mais lhe apetecerem , havendo, de sua parte, uma clara vontade de expor, ante seus interlocutores, no um elogio, mas sim um discurso verdadeiro. Aqui, poder-se-ia alegar que Scrates, ao apresentar-se como porta-voz da verdade, conjuntamente sua prvia admisso de saber sobre as coisas do amor, estaria, outra vez, a destoar de suas tradicionais ressalvas quanto a sua capacidade de transmitir algum conhecimento positivo: tal equvoco interpretativo , peremptoriamente, dirimido ao observarmos que nem o usual reconhecimento socrtico da prpria ignorncia, nem sua rejeio de toda pretenso docente so incompatveis com a posse de opinies verdadeiras, mas, to somente, com a severa segurana de estar em meio certezas, imerso em irrefragveis verdades. No obstante, nem Scrates nem seus interlocutores, de modo algum, parecem estar privados de opinies, seno que, ao contrrio, de fato a prtica refutativa ilustrada nos primeiros dilogos platnicos conhecidos por seu carter aportico e pela predominncia do socrtico parte, predominantemente, das dos interlocutores, pondo-as prova: assim sendo, o que singulariza a busca socrtica no , por fim, a falta de opinies, mas a constante disposio a submet-las a exame, de modo que se o conhecimento de envolve a posse de verdades sobre , Scrates pode reivindicar este saber sem por isso trair sua profisso de ignorncia. Neste sentido, fica explcito que o conhecimento ertico tem carter de , a partir da explicao que oferece Scrates de sua origem, enquanto saber que lhe fora transmitido por outra pessoa, Diotima assim, ao empreender o deslocamento temporal do discurso para um passado remoto, Plato faz com que Scrates passe de temido e enervante inquiridor a ingnuo examinado, que diz o que diz no como resultado de uma sabedoria sobranceira ao resto dos homens, mas como uma revelao da sacerdotisa de Mantineia. Scrates, concebido por Plato como receptor privilegiado da verdade sobre , , portanto, capaz de transmiti-la a seus pares sem abandonar em nenhum momento sua posio de indagador, e tampouco sua profisso de ignorncia, recorrendo Diotima, por ter perfeita conscincia de que necessita de um mestre ( )[footnoteRef:20], beneficiando-se de sua sabedoria, mas com inocultvel dificuldade para acompanhar sua explicao[footnoteRef:21]. Deste modo, Scrates pode apresentar-se como um especialista, ou grande sabedor ()[footnoteRef:22], e como porta-voz de verdades acerca das coisas do amor sem, ao menos, desviar-se em sua busca incansvel; ou, dito de outro modo, Scrates , sem deixar de ser um aprendiz, um verdadeiro mestre nas coisas do amor. [19: cf. Banquete 199A-B.] [20: cf. Banquete 207C.] [21: cf., por exemplo, Banquete 209E-210A.] [22: cf. Banquete 207C.]

Se compreendermos o saber ertico, enquanto conscincia da carncia, implicando o reconhecimento dos limites e da precariedade do que se conhece, cujo contedo chega aos tmpanos de Scrates, sob os auspcios da , na forma de um conhecimento de segunda-mo, i.e., por ouvir dizer, a maior parte das dificuldades, e possveis contradies, apontadas no incio sero esmaecidas. Ao leitor mais exigente e atento, contudo, caberia inquirir de que modo as ressalvas de Plato, quanto a possibilidade de que o conhecimento possa ser transmitido de um indivduo para outro, compatibilizam-se com a imunidade do saber ertico, situado metade do caminho entre a ignorncia e a sabedoria, ante s crticas que costumam ser objeto da . Faz-se, pois, necessrio, notar que longe de conceber o conhecimento como algo passvel de ser capturado, ou como algo com o qual se depara para que dele se possa apropriar, Plato, de fato, o apresenta como um bem, revelado com muito esforo e empenho, atravs de um exerccio constante, quase devocional. Este , talvez, o princpio bsico da educao socrtica, manifesto tambm como noo nuclear da tese platnica de que conhecer recordar ()[footnoteRef:23]. Tal perspectiva contrasta com a de Agato, que endossando uma concepo maquinal do ensino, como transmisso direta, quase que automtica, de conhecimento , no Simpsio[footnoteRef:24], sugere que Scrates recline-se ao seu lado para, atravs deste contato (), poder se beneficiar do pensamento excelso () que lhe ocorrera no prtico retardando sua entrada, por presumir que este o tenha encontrado, havendo-o agarrado com firmeza. A sabedoria , pois, entendida pelo tragedigrafo como um objeto fsico e como um bem de troca passvel de acumulao e atribuio a outrem, de modo que, haurindo a inspirao de seu discurso da imagem gorgnica do terrvel Grgias[footnoteRef:25], nesta passagem, torna-se patente a referncia ao modelo de ensino preconizado pelos sofistas, que petrifica o saber como um tipo de mercadoria, comercializada entre mestre e discpulo, contrapondo a noo platnica que concebe o conhecimento como produto de um processo de busca rduo e de conquistas pessoais. A resposta que Scrates oferece ao convite irnica tanto em seu propsito como na inverso do benefcio que insinuara o poeta , ao sugerir que seria bom que a sabedoria fosse de tal natureza que, pela simples ao de contato, flusse do mais cheio ao mais vazio de ns, caso este, em que seria o prprio Scrates quem apreciaria reclinar-se ao lado de Agato, posto que assim, saturar-se-ia s custas de to abundante e excelente sabedoria haja vista que, enquanto a sua fraquinha e duvidosa como os sonhos ( , ), a sabedoria de Agato brilhante e promissora[footnoteRef:26]. [23: cf. Mnon 81D.] [24: cf. Banquete 175C-D.] [25: cf. Banquete 198C.] [26: cf. Banquete 175D-E.]

A despeito da ironia socrtica, a caracterizao articulada por este, no que se refere ao dbil conhecimento que possui, evoca a afirmao propugnada no Mnon de que as opinies i.e., as opinies verdadeiras ( ) alcanadas pelo escravo de Mnon graas ao interrogatrio socrtico , so como um sonho ( ), querendo expressar com isso que, de fato, em sendo efmeras e instveis, no estamos aptos a dar conta delas at que alcancemos a compreenso do porqu, i.e, de sua natureza. Alm disso, com base no que fora dito no convide de Agato, Scrates serve-se de uma representao metfora esta retomada e reformulada no Simpsio[footnoteRef:27] do conhecimento como algo lquido, malevel e fluido onde o vasto oceano da beleza ( ) expressaria a vastido e a incomensurabilidade liquefeita da ideia da beleza, oceano inesgotvel que nenhuma espcie de recipiente poderia aambarcar, contrapondo a posio de Agato, em cujo discurso, como destacamos, o aluno um tipo de receptculo que abastecido pelo conhecimento procedente de outrem, convertendo-se deste modo de ignorante em sbio. [27: cf. Banquete 196A e 210D.]

Ainda no Simpsio[footnoteRef:28], Agato, ao tratar da sabedoria de , fundamenta sua constatao de que deve ser este um poeta dotado de extraordinria virtude, capaz de, com um simples toque, tornar poeta a qualquer homem, amparando-se na pressuposio de que aquilo que no se tem, ou no se sabe, no se pode dar ou ensinar a outro. Esta hiptese, no entanto, falsa luz da figura do filsofo Scrates que, como verdadeiro mestre, ensina sem deixar de professar ignorncia e estimular aqueles que o procuram a buscarem e encontrem por si mesmos: sua existncia, como obstetra/educador, constitui a prova de que no s possvel dar ou ensinar o que no se possui ou no se conhece, seno que , to somente, aquilo que se no possui, mas que se deseja possuir, o objeto da busca conjunta na qual, exclusivamente, o ensino levado cabo. [28: cf. Banquete 196E-197A.]

Para esclarecer o motivo pelo qual a transmisso do conhecimento ertico oriundo das palavras da sacerdotisa de Mantineia , mesmo constituindo-se de verdades qualificadas como meras , revela-se isento das crticas que Plato costuma dirigir a esse tipo de saber, devemos nos limitar opinio correta ( ), situada a meio caminho entre a sabedoria e a ignorncia. Noo esta, que Diotima traz baila no Simpsio[footnoteRef:29], cuja diferena com o conhecimento , significativamente, uma das poucas coisas que Scrates admitira conhecer na passagem do Mnon[footnoteRef:30] anteriormente mencionada. Neste sentido, a partir da concepo de , um tipo de saber cuja eficcia prtica Plato sempre reconhecera, coerente que Scrates apresente como verdadeiro um discurso que no capaz analisar, ou aclarar, sob o crivo da razo, haja vista que ainda assim este mostra-se como merecedor de total credibilidade pelas consequncias proveitosas ocasionadas ao conceb-lo como verdade. [29: cf. Banquete 202A.] [30: cf. Mnon 98B, cf. nota 10.]

Um exemplo interessante, anlogo, em certo sentido, ao que tratamos aqui, encontra-se no Mnon[footnoteRef:31], quando, em resposta a aporia sofstica que pe em questo a busca pelo conhecimento, Scrates, remontando o relato de origem rfico-pitagrica que afirma a imortalidade da alma, diz t-lo ouvido de homens e mulheres sbios em coisas divinas ( )[footnoteRef:32] e declara que confia em sua verdade porque esta nos faz diligentes e inquisidores[footnoteRef:33], ou seja, conceb-la como verdadeira, direciona a alma para a adoo de um curso de ao prefervel ao que se seguiria se se tivesse por verdade o argumento endossado por Mnon. Diante do exposto poderamos, legitimamente, inferir que aquilo que outorga credibilidade a este relato , portanto, seu valor prtico, sua influncia sobre nossa conduta, uma vez que, ao agir sobre essa crena, tornamo-nos melhores. [31: cf. Mnon 81B-D.] [32: cf. Mnon 81A.] [33: cf. Mnon 81E.]

Neste sentido, o relato de exposto por Scrates, o qual ouvira certa vez dos lbios da sbia sacerdotisa de Mantineia, detm um estatuto similar, pois trata-se de uma histria que tambm se inscreve no passado, que procede de algum cuja sabedoria excede a perspectiva mortal, relacionando filosofia e imortalidade. Atente-se para o fato de que a sabedoria que ostenta Diotima, a de uma especialista religiosa, cuja palavra persuade antes mesmo que seu sentido ltimo torne-se compreensvel, do mesmo modo como a palavra do orculo de Delfos[footnoteRef:34], ou como os versos que sustenta a tese da na, j referida, passagem do Mnon. Em ambos os casos, evidencia-se a, peculiar, confiana que Plato nutre pela tradio religiosa, expressa aqui como fonte da verdade para a filosofia, que finda por encontrar, na tradio, fundamento e sentido, na medida em que esta se expressa atravs de um relato cuja verdade encontra-se acima de qualquer dvida e que digno de credibilidade porque semeia em ns a virtude. [34: cf. Apologia 20E-ss.]

A dimenso fundamentalmente prtica do conhecimento ertico , portanto, inegvel. Acima de tudo, no nos esqueamos que os discursos sobre que integram o Simpsio no so meramente sobre , mas em louvor de [footnoteRef:35], e como tais devem no s apresentar uma concepo do mesmo, mas um conceito de bem nos termos do qual elogiado. E assim como a sabedoria de Diotima se traduz em inquestionveis benefcios no plano prtico e.g., mesmo sendo estrangeira, a sacerdotisa haveria prestado um servio inestimvel para a cidade, ilustra Scrates, salvando Atenas de uma peste epidmica[footnoteRef:36] , de maneira semelhante, dispor de verdades sobre conduz a alma humana a uma prtica filosfica que, como sugerimos desde o princpio, resulta no aperfeioamento de si mesma. A dimenso prtica do conhecimento ertico subjaz a pergunta elaborada por Scrates, uma vez que Diotima expe qual a natureza de , acerca de sua utilidade ()[footnoteRef:37] para os homens, assim como evidencia-se na resposta a esta questo, quando, depois de descrever o ltimo passo da scala amoris, Diotima detalha o destino do filsofo que consegue elevar-se contemplao do Belo, revelando que quele que contempl-lo lhe ser dado gerar, no simulacros da virtude, por no estar em contato com imagens, seno virtudes verdadeiras, j que est em contato com a verdade: de amante do saber passar, por haver gerado e nutrido uma virtude verdadeira ( ), a ser querido pelos deuses () e, se que algum homem possa s-lo, chegar tambm a ser imortal ()[footnoteRef:38]. [35: cf. Banquete 177A-ss.] [36: cf. Banquete 201D.] [37: cf. Banquete 204C.] [38: cf. Banquete 212A.]

Scrates, persuadido da verdade do que lhe fora dito por Diotima, tenta, por sua vez, convencer os demais de que para o propsito de tornar-se virtuoso, no h melhor colaborador do que ocasio em que declara honrar as coisas do amor e pratic-las sobremaneira, agora e para sempre, em evidente aluso sua atividade filosfica. No podemos, contudo, convencer-nos racionalmente se, desta maneira, a Scrates fora dado completar a subida e gerar a verdadeira virtude, o que em certa medida o colocaria acima dos homens, ou se a sua prtica ertico-filosfica o confinara a uma busca infatigvel, impulsionada por um desejo que nunca ser saciado: trata-se de um dos muitos enigmas que Plato deixara em aberto.

REFERNCIAS

PLATO. A Repblica [ou Sobre a justia, dilogo poltico]. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. So Paulo: Martins Fontes, 2006.______. Apologia. Trad. Andr Malta. Porto Alegre: L&PM, 2008.______. Crtilo: ou sobre a correo dos nomes. Trad. Celso de Oliveira Vieira. So Paulo: Paulus Editora, 2014.______. Mnon. Trad. Ernesto Rodrigues Gomes. Lisboa: Colibri, 1993.______. O Banquete. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belm: ed.ufpa, 2011.______. Teeteto. Trad. Adriana Freire Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2005.

BRICKHOUSE, T. C. SMITH, N. D. The Paradox of Socratic Ignorance. In: TAYLOR, R. C. (ed.) History of Philosophy Quarterly. Champaign: University of Illinois Press, 1984. Vol. 1 / N. 2. pp. 125-131.FORSTER, M. Socrates profession of ignorance. In: SEDLEY, D. (ed.) Oxford Studies in Ancient Philosophy. New York: Oxford University Press, 2007. vol. XXXII. pp. 1-35.OLIVEIRA, R. R. Eros, natureza humana e filosofia no Banquete de Plato. No prelo, 2015.10