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JONATHAN STRANGE & Mr. NORRELL Susanna Clarke Tradução José Antonio Arantes COMPANHIA DAS LETRAS, 2004 Ebook formatado por: Projeto Democratização da Leitura

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  • JONATHAN STRANGE & Mr. NORRELL

    Susanna Clarke

    Traduo Jos Antonio Arantes

    COMPANHIA DAS LETRAS, 2004

    Ebook formatado por:

    Projeto Democratizao da Leitura

  • Sumrio

    VOLUME 1: Mr. Norrell, 11

    1. A biblioteca de Hurtfew, 13

    2. A estalagem Old Starre, 27

    3. As pedras de York, 39

    4. Os amigos da magia inglesa, 49

    5. Drawlight,60

    6. "Meu senhor, a magia no respeitvel", 75

    7. Uma oportunidade pouco provvel de se repetir, 87

    8. Um cavalheiro de cabelos de algodo, 94

    9. Lady Pole, 104

    10. A dificuldade de encontrar emprego para um mago, 109

    11. Brest, 113

    12. O esprito da magia inglesa leva Mr. Norrell a apoiar

    a Gr-Bretanha, 119

    13. O mago da Rua Threadneedle, 130

    14. A fazenda Desgosto, 139

    15. "Como vai Lady Pole?", 148

    16. Esperana Perdida, 157

    17. A inexplicvel apario de vinte e cinco guinus, 166

    18. Sir Walter consulta cavalheiros de vrias profisses, 174

    19. O clube dos Peep-O'Day-Boys, 182

    20. O chapeleiro inverossmil, 189

    21. O baralho de Marselha, 197

    22. O cavaleiro de paus, 206

    VOLUME 2: Jonathan Strange, 221

  • 23. A Casa da Sombra, 223

    24. Um outro mago, 239

    25. O ensino de um mago, 249

    26. Orbe, coroa e cetro, 262

    27. A esposa do mago, 273

    28. A biblioteca do Duque de Roxburghe, 288

    29. Na casa de Jos Estoril, 301

    30. O livro de Robert Findhelm, 324

    31. Dezessete napolitanos mortos, 335

    32. O rei, 359

    33. Ponha-me nos olhos a lua, 377

    34. beira do deserto, 387

    35. O Cavalheiro do condado de Nottingham, 393

    36. Todos os espelhos do mundo, 406

    37. O Cinque Dragownes, 420

    38. DA Revista de Edimburgo, 432

    39. Os dois magos, 436

    40. "Pode estar certo: Waterloo no existe! , 452

    41. Starecross, 474

    42. Strange resolve escrever um livro, 485

    43. A curiosa aventura de Mr. Hyde, 496

    44. Arabella, 515

    VOLUME 3: John Uskglass, 519

    45. Prefcio a Histria e prtica da magia inglesa, 521

    46. "O cu falou comigo...", 526

    47. "Um moo preto e um sujeito azul, isso deve significar alguma coisa... 540

    48. As gravuras, 555

    49. Impetuosidade e loucura, 571

    50. Histria e prtica da magia inglesa, 578

  • 51. Uma famlia de nome Greysteel, 597

    52. A velha dama de Cannaregio, 607

    53. Um pequeno camundongo cinzento morto, 615

    54. Uma caixinha da cor da tristeza, 628

    55. O segundo ver o seu mais caro bem nas mos do inimigo, 643

    56. A Torre Negra, 656

    57. As Cartas Negras, 670

    58. Henry Woodhope faz uma visita, 675

    59. Leucrocuta, o Lobo da Noite, 684

    60. Tempestade e mentiras, 704

    61. rvore fala com pedra; pedra fala com gua, 716

    62. Fui at eles com um grito que quebrou o silncio de uma

    floresta invernal, 727

    63. O primeiro enterrar o prprio corao numa escura floresta

    sob a neve e, ainda assim, sentir a prpria dor, 733

    64. Duas verses de Lady Pole, 751

    65. As cinzas, as prolas, a colcha e o beijo, 762

    66. Jonathan Strange e Mr. Norrell, 772

    67. O pilriteiro, 785

    68. "Sim.", 792

    69. Strangitas e norrellitas, 806

  • VOLUME 1

    Mr. NORRELL

    Ele quase nunca falava de magia; quando falava, era como uma aula de histria, e

    ningum tinha pacincia para ouvi-lo.

    1. A Biblioteca de Hurtfew

    Outono de 1806 - Janeiro de 1807

    Alguns anos atrs na cidade de York existia uma sociedade de magos. Eles se reuniam

    na terceira quarta-feira de cada ms e liam ensaios longos e enfadonhos sobre a histria da

    magia inglesa.

    Eram magos cavalheiros. Ou seja, nunca fizeram mal a ningum por meio da magia,

    nem por meio dela jamais fizeram algum bem. De fato, para falar a verdade, nenhum deles

    nunca recorreu ao menor encantamento, nem por meio da magia jamais fez uma folha de

    rvore tremular, nunca alterou o curso de uma partcula de p ou mudou um s fio de cabelo

    na cabea de algum. Porm, feita essa pequena ressalva, os magos tinham a reputao de

    ser os cavalheiros mais sbios e mais mgicos do condado de York.

    Referindo-se profisso, um grande mago afirmou que os que a exercem devem se

    esforar e dar tratos bola para aprender alguma coisa, mas entre eles a desavena

    sempre muito natural", e os magos de York comprovaram a verdade disso ao longo de muitos

    anos.

    No outono de 1806, acolheram um novo membro, um cavalheiro de nome John

    Segundus. Na primeira reunio de que participou, Mr. Segundus se levantou e proferiu um

    discurso ante a sociedade. Comeou por congratular os cavalheiros Pela histria notvel que

    tinham; enumerou os muitos magos e historiadores renomados que em diferentes perodos

    pertenceram Sociedade de York. Deu a entender que saber da existncia de tal sociedade

    fora um grande estmulo para ir at York. Os magos do Norte, lembrou ele ao pblico, sempre

    haviam sido mais respeitados do que os do Sul. Mr. Segundus disse que estudara

    magia durante anos a fio e conhecia a histria de todos os grandes magos do passado.

  • Lera as novas publicaes sobre o assunto e at fizera uma modesta contribuio para

    a proliferao delas, mas recentemente comeara a se perguntar por que os grandes feitos de

    magia sobre os quais lera permaneciam nas pginas do livro que escrevera e j no eram

    vistos nas ruas nem noticiados nos jornais. Mr. Segundus disse que gostaria de saber por que

    os magos modernos no eram ca pazes de praticar a magia sobre a qual escreviam. Em

    resumo, desejava saber por que no se fazia mais magia na Inglaterra.

    Era a pergunta mais banal do mundo. Era a pergunta que, cedo ou tarde, qualquer

    criana no reino faria governanta, ao professor ou aos pais. Entretanto, os cultos integrantes

    da Sociedade de York no gostaram nem um pouco de ouvi-la, porque estavam to

    incapacitados para respond-la quanto qualquer outra pessoa.

    O presidente da Sociedade de York (cujo nome era Dr. Foxcastle) dirigiu se a John

    Segundus e explicou que aquela era uma pergunta equivocada.

    - Ela pressupe que o mago tem uma espcie de dever de praticar a magia, o que,

    claro, um disparate. Creio que o senhor no sugeriria que a tarefa do botnico fosse criar

    mais flores. Ou que o astrnomo devesse reorganizar as estrelas. O mago, meu senhor,

    estuda a magia praticada muito tempo atrs. Por que esperar dele mais do que isso?

    Um cavalheiro idoso de olhos azuis apagados e roupas de cores tambm apagadas

    (chamado Hart ou Hunt, Mr. Segundus no entendeu bem o nome) disse apagadamente que

    no tinha a menor importncia a expectativa em torno do que um mago deve fazer. Um

    cavalheiro no devia praticar magia. Magia era o que os magos de rua simulavam fazer para

    tirar os centavos das crianas. A magia (no sentido prtico) estava degradada. Tinha

    associaes vulgares. Era amiga ntima de rostos barbudos, ciganos e ladres de domiclios;

    do freqentador de lugares imundos com cortinas amarelas encardidas. No, no! Um

    cavalheiro no tinha de praticar magia. Um cavalheiro podia estudar a histria da magia (nada

    mais nobre), mas no tinha de praticar magia alguma. O cavalheiro idoso olhou para Mr.

    Segundus com olhos apagados e paternais e disse que esperava que Mr. Segundus no

    tivesse recorrido a encantamentos.

    Mr. Segundus corou.

    Mas a clebre mxima dos magos se revelou verdadeira: dois magos - no caso o Dr.

    Foxcastle e Mr. Hunt, ou Hart - no conseguiam conciliar os argumentos opostos de dois

    outros magos. Vrios cavalheiros comearam a perceber que tinham a mesma opinio que

  • Mr. Segundus e que nenhuma outra pergunta concernente a todo o conhecimento da magia

    teria maior importncia. Entre os partidrios de Mr. Segundus, o principal era um cavalheiro

    de nome Honeyfoot, um sujeito cordial e simptico de cinqenta e cinco anos, faces rosadas e

    cabelo grisalho. Dado que a discusso ficou mais acalorada e o Dr. Foxcastle falava com Mr.

    Segundus com mais sarcasmo, Mr. Honeyfoot dirigiu-se a Mr. Segundus vrias vezes,

    sussurrando frases confortadoras como: "Senhor, no lhes d ateno. Sou da mesma

    opinio", "O senhor tem toda a razo, no se deixe esmorecer" e "Tocou no ponto! Sim,

    senhor, tocou mesmo! A falta da pergunta certa que antes nos tolhia. Agora que est aqui,

    faremos grandes coisas".

    Palavras to gentis assim no deixaram de encontrar um ouvinte agradecido em John

    Segundus, cujo abalo lhe transparecia na fisionomia.

    - Creio ter sido desagradvel - sussurrou para Mr. Honeyfoot. - No era minha inteno.

    Esperava a opinio favorvel destes cavalheiros.

    A princpio Mr. Segundus se sentiu inclinado ao desnimo, mas uma exploso

    particularmente maldosa do Dr. Foxcastle despertou nele uma leve indignao.

    - Este cavalheiro - disse o Dr. Foxcastle, cravando os olhos frios em Mr. Segundus -

    parece convencido de que devemos compartilhar o destino infeliz da Sociedade dos Magos de

    Manchester!

    Mr. Segundus baixou a cabea na direo de Mr. Honeyfoot e disse:

    - No pensei que os magos do condado de York fossem to obstinados. Se no

    existirem amigos da magia no condado de York, onde os encontrarei?

    A gentileza de Mr. Honeyfoot com Mr. Segundus no terminou nessa noite. Ele

    convidou Mr. Segundus a ir casa da famlia em High-Petergate para um bom jantar em

    companhia de Mrs. Honeyfoot e das trs lindas filhas, o que Mr. Segundus, um cavalheiro

    solteiro e no rico, aceitou com prazer. Aps o jantar, Miss Honeyfoot tocou o pianoforte e

    Miss Jane cantou em italiano. No dia seguinte, Mrs. Honeyfoot disse ao marido que John

    Segundus era precisamente como um cavalheiro deveria ser, mas receava que no se

    beneficiaria com isso, pois no estava na moda ser modesto, comedido e bondoso.

    Os dois cavalheiros logo ficaram ntimos. Em pouco tempo Mr. Segundus comeou a

    passar duas ou trs de cada sete noites na casa de High-Petergate. Numa ocasio, a

    presena de um grande grupo de jovens levou naturalmente realizao de um baile. Tudo

  • era agradabilssimo, mas quase sempre Mr. Honeyfoot e Mr. Segundus escapuliam para

    conversar sobre o que de fato lhes interessava: por que no se fazia mais magia na

    Inglaterra? Contudo, por mais que conversassem (com freqncia at as duas ou trs da

    manh), estavam bem longe de uma resposta. Isso, porm, talvez no importasse, pois todos

    os tipos de magos, antiqurios e estudiosos vinham fazendo a mesma pergunta havia bem

    mais de duzentos anos.

    Mr. Honeyfoot era um cavalheiro alto, sorridente, alegre e cheio de energia que gostava

    de estar sempre fazendo ou planejando alguma coisa, raras vezes se perguntando se a coisa

    tinha propsito. A atual tarefa lembrou-lhe os grandes magos medievais, que, sempre que

    tinham um problema aparentemente difcil para resolver, viajavam a cavalo por um ano e um

    dia, tendo como guias um ou dois criados mgicos, e ao fim desse perodo nunca deixavam

    de encontrar a soluo. Mr. Honeyfoot disse a Mr. Segundus que, em sua opinio, o melhor

    que poderiam fazer era seguir o exemplo desses grandes homens, alguns dos quais tinham

    ido s regies mais remotas da Inglaterra, Esccia e Irlanda (onde a magia era mais forte),

    enquanto outros haviam se retirado completamente deste mundo e hoje em dia ningum sabia

    ao certo onde foram parar ou o que fizeram quando l chegaram. Mr. Honeyfoot no propunha

    irem to longe; com efeito, no desejava ir longe de modo algum, porque era inverno e as

    estradas estavam pssimas. Entretanto, estava persuadido de que deveriam ir a algum lugar

    e consultar algum. Disse a Mr. Segundus que achava que ambos estavam ficando ranosos;

    a vantagem de uma opinio diferente seria imensa. Nenhum destino, porm, nenhum objetivo

    se apresentava. Mr. Honeyfoot estava desesperanado. Foi ento que se lembrou de outro

    mago.

    Alguns anos antes, a Sociedade de York ouvira boatos de que existia um outro mago

    no condado de York. Esse cavalheiro vivia numa regio bastante remota do interior, onde

    (dizia-se) passava os dias e as noites estudando textos de magia raros em sua excelente

    biblioteca particular. Tendo descoberto o nome de mais um mago e onde encontr-lo, o Dr.

    Foxcastle escreveu-lhe uma carta corts na qual o convidava a participar da Sociedade de

    York. O outro mago respondeu que se sentia muito honrado, mas que lamentava muito:

    estava impossibilitado, por causa da longa distncia entre York e Hurtfew Abbey, das estradas

    ruins, do trabalho que de modo algum poderia abandonar, e assim por diante.

  • Todos os magos de York examinaram a carta e manifestaram dvida de que algum

    com uma caligrafia to mida fosse um mago razovel. Depois, sentin do um ligeiro pesar

    pela excelente biblioteca que jamais veriam, afastaram o mago do pensamento. Mas Mr.

    Honeyfoot disse a Mr. Segundus que, diante da importncia da pergunta "Por que no se faz

    mais magia na Inglaterra?", seria um grande erro da parte deles desconsiderar qualquer

    oportunidade. Como saber? Talvez valesse a pena ouvir a opinio do outro mago. Foi ento

    que Mr. Honeyfoot escreveu uma carta em que sugeria que ele e Mr. Segundus teriam prazer

    em visitar o outro mago na terceira tera-feira depois do Natal, s duas e meia da tarde.,

    Pronto chegou uma resposta. Mr. Honeyfoot, com a afabilidade e a camaradagem habituais,

    mandou chamar sem demora Mr. Segundus e lhe mostrou a carta. Com sua caligrafia mida,

    o outro mago escrevera que teria grande prazer em conhec-los. Isso bastou. Mr. Honeyfoot

    ficou satisfeitssimo e foi correndo informar Waters, o cocheiro, de quando ele seria

    necessrio.

    Mr. Segundus ficou sozinho na sala com a carta na mo: "Confesso que me sinto um

    tanto incapaz de entender o motivo de uma honra assim to sbita. quase inconcebvel que

    os magos de York, com toda a boa sorte da companhia mtua e o incalculvel benefcio da

    sabedoria comum, tenham a necessidade de consultar um estudioso solitrio como eu".

    Havia um toque de sarcasmo sutil na carta; o missivista parecia zombar de Mr.

    Honeyfoot a cada palavra. Mr. Segundus ficou satisfeito ao concluir que Mr. Honeyfoot mal o

    percebera, do contrrio no teria ido falar com Waters com tanta euforia. Era uma carta to

    hostil que Mr. Segundus sentiu se dissipar todo o desejo de visitar o outro mago. Bem, no

    obstante, pensou, devo ir, porque Mr. Holleyfoot o deseja, e o que afinal poder suceder de

    pior? Vamos visit-lo, ficar desapontados, e pronto.

    Uma tempestade precedeu o dia da visita; a chuva criara poas compridas e irregulares

    nos campos castanhos e sem vegetao; telhados molhados pareciam espelhos de pedra; e a

    diligncia de Mr. Honeyfoot percorreu um mundo que continha uma poro muito maior de

    cu cinza-glido e uma poro muito menor de cho firme confortador do que o habitual.

    Desde a primeira noite Mr. Segundus tinha a inteno de perguntar a Mr. Honeyfoot a

    respeito da Sociedade Culta dos Magos de Manchester, que o Dr. Foxcastle mencionara.

    Perguntava agora.

  • - Essa sociedade foi fundada no muito tempo atrs - disse Mr. Honeyfoot. - Seus

    membros eram clrigos da classe mais pobre, ex-comerciantes respeitveis, boticrios,

    advogados, donos de moinhos aposentados com alguma noo de latim e assim por adiante,

    pessoas que se poderiam qualificar de quase-cavalheiros, Creio que o doutor Foxcastle ficou

    satisfeito quando se dispersaram... Ele no acha que pessoas dessa classe devam se tornar

    magos. Mas saiba que entre eles havia vrios homens inteligentes. Comearam, assim como

    o senhor, com o objetivo de trazer a prtica da magia de volta ao mundo. Eram homens

    prticos e pretendiam aplicar magia os princpios da razo e da cincia, como o fizeram com

    as artes manufatureiras. Denominaram-na "taumaturgia racional. Como no deu resultados,

    desanimaram. Bem, no se pode culp-los por isso. Mas deixaram que a desiluso os

    metesse em todo tipo de dificuldades. Comearam a achar que no mundo no existe e jamais

    existiu magia. Afirmaram que os magos ureos eram todos impostores ou se tinham deixado

    enganar. E que o Rei Corvo uma inveno dos ingleses do Norte para proteg-los da tirania

    do Sul (sendo eles mesmos do Norte, tinham uma certa afinidade com isso). Ah, os

    argumentos que apresentavam eram muito engenhosos. Esqueceu-me, agora, como

    explicavam a existncia do Reino Encantado. Dispersaram-se, como lhe disse, e um deles,

    que se no me engano se chamava Aubrey, pretendia escrever sobre tudo isso e publicar.

    Mas, quando chegou o momento, uma espcie de melancolia permanente se apoderou dele e

    no foi capaz de encontrar estmulo suficiente para comear.

    - Pobre cavalheiro - disse Mr. Segundus. - Talvez seja a poca. No vivemos uma

    poca para magia ou conhecimento, no mesmo? Comerciantes prosperam, marinheiros,

    polticos, mas no magos. Nosso tempo passou. - Refletiu um pouco. - Trs anos atrs,

    quando estive em Londres, conheci um mago de rua, um andarilho de carter duvidoso com

    uma estranha deformao. O homem me persuadiu a pagar uma elevada soma de dinheiro

    em troca da promessa de que me revelaria um grande segredo. Quando lhe entreguei o

    dinheiro, disse-me que um dia dois magos restituiriam a magia Inglaterra. Embora eu no

    acredite nem um pouco em profecias, foi pensando no que ele disse que resolvi descobrir a

    verdade sobre o nosso declnio... No estranho?

    - Tem toda a razo, profecias so uma grande tolice - ponderou Mr. Honeyfoot, rindo.

    Em seguida, como se assaltado por um pensamento, acrescentou: - Somos dois magos.

  • Honeyfoot e Segundus - disse, testando as palavras, como se imaginasse de que forma

    apareceriam nos jornais e nos livros de histria. - Honeyfoot e Segundus... Soa muito bem.

    Mr. Segundus meneou a cabea.

    - O sujeito conhecia a minha profisso e era de esperar que quisesse me fazer crer que

    eu era um dos dois homens. Mas no fim me falou, muito francamente, que no seria eu. No

    incio tive a impresso de que no estava seguro disso. Havia algo a ver comigo... Ele me

    pediu que escrevesse meu nome e o examinou durante um bom tempo.

    - Creio que percebeu que no teria como arrancar mais dinheiro do senhor - comentou

    Mr. Honeyfoot.

    Hurtfew Abbey ficava a uns vinte quilmetros a noroeste de York. A antiguidade estava

    s no nome. L existira uma abadia, mas muito tempo atrs. A casa atual fora construda na

    poca da rainha Ana. Era muito bonita, quadrada, de aparncia slida, num belo parque cheio

    de rvores midas e de aspecto fantasmagrico (o dia estava ficando um tanto enevoado).

    Um rio (chamado Hurt) atravessava o parque, e uma bela ponte de aparncia clssica

    passava sobre ele.

    O outro mago (chamado Norrell) estava no vestbulo para receber os visitantes. Era

    mido, tal como sua caligrafia, e a voz, ao lhes dar as boas-vindas a Hurtfew, soou muito

    suave, como se ele no tivesse o hbito de expressar os pensamentos em voz alta. Mr.

    Honeyfoot, que era um pouco surdo, no ouviu o que ele disse.

    - Meu senhor, estou ficando velho. Seja paciente comigo.

    Mr. Norrell conduziu as visitas a uma elegante sala em cuja lareira ardia um fogo

    confortador. No havia uma s vela acesa; duas janelas magnficas deixavam entrar luz

    suficiente, se bem que uma luz cinzenta e nada animadora. Contudo, ocorreu a Mr. Segundus

    que haveria uma segunda lareira acesa, ou velas, em algum lugar da sala, de forma que ele

    no parava de se virar na cadeira para olhar em volta e ver onde estavam. Mas nada

    semelhante havia, talvez s um espelho ou um relgio antigo.

    Mr. Norrell disse que lera o relato de Mr. Segundus sobre os xitos dos cria dos

    mgicos de Martin Pale.

    - Uma obra louvvel, mas o senhor esqueceu o mestre Fallowthought. Um esprito

    menor, claro, cuja utilidade para o Doutor Pale era questionvel (Dr. Martin Pale (1485-1567),

    filho de um curtidor de couro do condado de Warwick, no centro da Inglaterra. ltimo dos

  • magos ureos, ou da Idade de Ouro. Outros o sucederam, embora de reputao discutvel.

    Pale foi, sem dvida, o ltimo mago ingls a se aventurar no Reino Encantado). Mas sem

    Fallowthought a breve histria dele ficaria incompleta.

    Seguiu-se um silncio.

    - Refere-se a um esprito encantado chamado Fallowthought? - perguntou Mr.

    Segundus. - Quero dizer... Quero dizer, nunca ouvi falar dessa criatura, neste ou em qualquer

    outro mundo.

    Mr. Norrell sorriu pela primeira vez, mas uma espcie de sorriso interior.

    - Claro - replicou. - Esqueceu-me. Est tudo na histria de Holgarth e Pickle, de como

    eles lidaram com o mestre Fallowthought, obra que o senhor provavelmente no leu. Eu o

    felicito, porque formavam uma dupla detestvel... Mais criminosos do que magos. Quanto

    menos soubermos sobre eles, melhor.

    - Ah, meu senhor! - exclamou Mr. Honeyfoot, achando que Mr. Norrell se referia um

    dos livros que possua. - Ouvimos coisas inacreditveis sobre sua biblioteca. Todos os magos

    do condado de York foram vitimados pela inveja quando souberam da quantidade de livros

    que o senhor possui!

    - No diga! - exclamou Mr. Norrell, impassvel. - O senhor me surpreende. No fazia

    idia de que meus interesses fossem to conhecidos... Deve ter sido Thoroughgood - disse

    pensativo, mencionando o nome de um homem que vendia livros e objetos raros no pequeno

    mercado de York. - Childermass me avisou vrias vezes que Thoroughgood indiscreto.

    Mr. Honeyfoot no entendeu bem. Se ele tivesse uma tal quantidade de livros sobre

    magia, adoraria falar deles, adoraria que o elogiassem por eles, que o admirassem. No

    acreditava que Mr. Norrell no fosse assim. Portanto, com a inteno de ser gentil e deixar Mr.

    Norrell vontade (porque achava que o cavalheiro era tmido), persistiu:

    - O senhor se importaria se eu expressasse o desejo de vermos sua excelente

    biblioteca?

    Mr. Segundus estava certo de que Norrell se recusaria, mas, em vez disso, Mr. Norrell

    os fitou um pouco (tinha olhos azuis pequenos e parecia espreitar os visitantes de algum lugar

    secreto dentro de si) e, em seguida, quase com cortesia, cedeu ao pedido de Mr. Honeyfoot.

    Mr. Honeyfoot foi todo gratido, feliz ao se convencer de que satisfizera Mr. Norrell tanto como

    a si mesmo.

  • Mr. Norrell conduziu os dois cavalheiros por um corredor, um corredor bastante comum,

    pensou Mr. Segundus, as paredes e o piso revestidos de madeira de carvalho bem polida

    cheirando a cera de abelha. Depois havia uma escada, ou talvez s trs ou quatro degraus, e

    adiante outro corredor onde o ar era um pouco mais frio e o piso feito da boa pedra de York:

    tudo sem caractersticas especiais. (Ou ser que o segundo corredor vinha antes da escada

    ou dos degraus? Ou ser que nem existia uma escada?). Mr. Segundus era o tipo de

    cavalheiro que sempre consegue dizer se est diante do norte ou do sul, do leste ou do oeste.

    No se tratava de um talento do qual sentisse um orgulho especial - para ele era to natural

    quanto saber que a cabea ainda estava no pescoo -, mas na casa de Mr. Norrell esse dom

    desapareceu. Mais tarde, jamais conseguiria reproduzir a seqncia de corredores e cmodos

    pelos quais foram conduzidos, nem sequer calcular quanto tempo demoraram para chegar

    biblioteca. Tampouco seria capaz de distinguir a direo. Parecia-lhe que Mr. Norrell descobri-

    ra algum tipo de quinto ponto da bssola - nem leste, nem sul, nem oeste, nem norte, mas

    algo bem diferente, e essa era a direo para a qual os conduzia. Mr. Honeyfoot, de sua

    parte, no parecia notar nada estranho.

    A biblioteca era talvez um pouco menor do que a sala de visitas que tinham acabado de

    deixar. Havia um excelente fogo na lareira e tudo era conforto e quietude. Contudo, tambm

    ali, a luz parecia no se harmonizar com as trs janelas altas de doze vidraas, de sorte que,

    mais uma vez, Mr. Segundus se viu perturbado pela persistente sensao de que haveria

    outras velas, outras janelas ou outra lareira que proporcionassem luz. As janelas existentes

    davam vista para uma enorme vastido de sombria chuva inglesa, de forma que Mr.

    Segundus no conseguia ver a paisagem nem perceber em que parte da casa se achavam, O

    cmodo no estava vazio; sentado a uma mesa estava um homem, que w levantou quando

    eles entraram e a quem Mr. Norrell brevemente apresentou como Childermass, seu

    procurador.

    No era necessrio algum dizer a magos como Mr. Honeyfoot e Mr. Segundus que o

    proprietrio prezava a biblioteca de Hurtfew Abbey acima de todos os seus outros bens; e no

    se surpreenderam ao descobrir que Mr. Norrell concebera um lindo porta-jias para abrigar

    sua menina-dos-olhos. As estantes de livros que forravam as paredes do cmodo eram de

    madeira inglesa e se assemelhavam a arcos gticos entalhados, Havia entalhes de folhas

    (folhas secas e torcidas, como se o artista tivesse pretendido representar o outono), entalhes

  • de razes e ramos entrelaados, entalhes de bagas e heras, tudo muito bem-feito. Mas a

    maravilha das estantes nada significava perto da maravilha dos livros.

    A primeira coisa que um estudante de magia aprende que existem livros sobre magia

    e livros de magia. A segunda coisa que num bom livreiro se pode adquirir um exemplar

    perfeitamente respeitvel dos primeiros livros mencionados por dois ou trs guinus,

    enquanto o preo dos segundos livros superior ao dos rubis. Considerava-se muito boa,

    quase extraordinria, a biblioteca da sociedade de York; entre os muitos volumes, havia cinco

    obras escritas entre 1550 e 1700 que se poderia justamente afirmar serem livros de magia

    (embora um deles no passasse de duas pginas rasgadas). Livros de magia eram raros e

    nem Mr. Segundus nem Mr. Honeyfoot tinham visto mais do que dois ou trs numa biblioteca

    particular. Em Hurtfew, todas as paredes estavam forradas de estantes de livros e todas as

    prateleiras estavam abarrotadas de livros. E os livros eram todos, ou quase todos, antigos;

    livros de magia. Bem, decerto muitos tinham encadernaes modernas impecveis, mas sem

    dvida eram volumes que Mr. Norrell reencadernara (parecia dar preferncia a couro de

    bezerro sem adornos, com ttulos impressos em elegantes letras maisculas prateadas).

    Inmeros deles, porm, tinham encadernaes antigas, muito antigas, com lombadas e

    cantos pudos.

    Mr. Segundus olhou de relance para as lombadas dos livros numa estante prxima; o

    primeiro ttulo que leu foi Como indagar a escurido e entender suas respostas.

    - Um livro descabido - observou Mr. Norrell. Mr. Segundus se sobressaltou: no

    percebera que o anfitrio estava to perto. Mr. Norrell prosseguiu: Eu o aconselho a no

    refletir um s instante sobre ele.

    Mr. Segundus olhou ento para o livro seguinte, As instrues, de Belasis.

    - Desculpe-me, conhece Belasis? - indagou Mr. Norrell.

    - De nome, senhor - respondeu Mr. Segundus. - Sempre ouvi dizer que tinha a chave

    para um monte de coisas boas, mas tambm ouvi dizer, e os especialistas concordam, que

    todos os exemplares de As instrues foram destrudos h muito tempo. Mas aqui est um! E

    isto, meu senhor, extraordinrio! maravilhoso!

    - O senhor espera muito de Belasis - comentou Norrell-, e no passado tambm pensei

    assim. Lembro-me de que durante meses dediquei oito de vinte e quatro horas ao estudo de

    sua obra; ateno que, devo dizer, nunca dei a outro autor. Mas, em concluso, uma

  • decepo. esotrico quando deveria ser inteligvel; inteligvel quando deveria ser obscuro.

    H coisas que no se deveriam incluir em livros para todo mundo ler. Quanto a mim, j no

    tenho Belasis em grande conta.

    - Eis um livro de que nunca ouvi falar - disse Mr. Segundus. - As superioridades da

    magia judaico-crist. O que me diz dele?

    - Ah! - exclamou Mr. Norrell. - do sculo dezessete, mas tambm no o tenho em

    grande conta. O autor era mentiroso, bbado, adltero e tratante. Ainda bem que caiu no

    esquecimento.

    Ao que parecia, Mr. Norrell no menosprezava s magos vivos. Avaliara tambm a

    capacidade de todos os mortos e conclura que eram medocres.

    Enquanto isso, Mr. Honeyfoot, as mos no ar como um metodista que reza a Deus,

    passava com rapidez de estante em estante. Mal se detinha tempo suficiente para ler o ttulo

    de um livro e seus olhos eram atrados por outro no lado oposto da biblioteca.

    - Ah, Mister Norrell! - exclamou. - So tantos livros! Decerto encontraremos as

    respostas para todas as nossas perguntas!

    - Duvido meu senhor - foi a reao seca de Mr. Norrell.

    O procurador soltou uma risada breve, um riso sem dvida dirigido a Mr. Honeyfoot.

    Apesar disso, Mr. Norrell no o repreendeu, nem com o olhar nem com palavras, e Mr.

    Segundus se perguntou que tipo de tarefa Mr. Norrell confiaria quela pessoa. De cabelos

    compridos revoltos como chuva e pretos como trovo, estaria bem vontade num pntano

    varrido pelo vento, ou de emboscada num beco escuro como breu, ou talvez num romance de

    Mrs. Radcliffe.

    Mr. Segundus tirou da estante As instrues de Jacques Belasis e, no obstante; a

    opinio desfavorvel de Mr. Norrell, logo deu com dois trechos extraordinrios. Em seguida,

    ciente da passagem do tempo e dos olhos escuros e estranhos do procurador sobre ele, abriu

    As superioridades da magia judaico-crist.

    *** O primeiro trecho que Mr. Segundus leu se referia Inglaterra, ao Reino Encantado

    (que os magos s vezes chamam de "as Outras Terras") e a um estranho pas supostamente

    situado no lado extremo do Inferno. Mr. Segundus ouvira falar do vnculo simblico e mgico

  • que liga esses trs pases, mas nunca lera uma explicao to clara deles como a que o texto

    oferecia.

    O segundo trecho concernia a um dos maiores magos da Inglaterra, Martin Pale. Em A

    rvore do conhecimento, de Gregory Absalom, h um clebre trecho que relata a visita que o

    ltimo dos grandes magos ureos, Martin Pale, fez ao prncipe dos seres mgicos enquanto

    viajava pelo Reino Encantado. Assim como outros da linhagem, o prncipe dos seres mgicos

    tinha vrios nomes, expresses honorficas, ttulos, pseudnimos; mas era, em geral, conheci-

    do como Cold Henry. Cold Henry fez um longo e respeitoso discurso para o hspede. O dis-

    curso, apesar de recheado de metforas e aluses obscuras, parecia dizer que os seres

    mgicos eram criaturas naturalmente malvadas, nem sempre cientes de que faziam o mal. Ao

    que Martin Pale retrucou com brevidade e um tanto enigmtico que nem todos os ps dos

    ingleses tinham o mesmo tamanho.

    Durante sculos ningum fez a menor idia do que isso poderia significar, embora

    vrias teorias tivessem sido apresentadas, e John Segundus conhecia todas elas. A mais

    comum era a que William Pantler desenvolvera no incio do sculo XVIII. Pantler afirmou que

    Cold Henry e Pale se referiam teologia. Os seres mgicos (como todo mundo sabe)

    escapam ao alcance da Igreja; nenhum Cristo os viu nem jamais os ver - e ningum sabe o

    que lhes suceder no Dia do Juzo Final. De acordo com Pantler, Cold Henry perguntara a

    Pale se haveria alguma esperana de que os seres mgicos, assim como os homens,

    recebessem a Salvao Eterna. A resposta de Pale - de que os ps dos ingleses tm

    tamanhos diferentes - foi o jeito que encontrou de dizer que nem todos os ingleses sero

    salvos. Baseando-se nisso, Pantler atribuiu a Pale a crena bastante estranha de que o

    Paraso suficientemente grande para conter apenas um nmero limitado de abenoados;

    para cada ingls condenado, surge um Lugar no Paraso para um ser mgico. A reputao de

    Pantler como terico da magia reside inteiramente no livro que ele escreveu sobre o assunto.

    Em As instrues, de Jacques Belasis, Mr. Segundus leu uma explicao

    completamente diferente. Trs sculos antes de Martin Pale haver pisado no castelo de Cold

    Henry, este recebera uma outra visita humana, um mago ingls ainda maior do que Pale:

    Ralph Stokesey, que ao partir deixara um par de bolas. As botas, afirmou Belasis, eram

    velhas, razo pela qual Stokesey provavelmente no as levou consigo, mas a presena elas

    botas no castelo causou enorme preocupao aos seres mgicos que veneravam os magos

  • ingleses. Cold Henry, em especial, viu-se numa posio embaraosa, receando que de uma

    forma tortuosa e incompreensvel a moralidade crist lhe atribusse a responsabilidade pela

    perda das botas. Por isso tentou se livrar dos terrveis objetos oferecendo-os a Pale, que os

    rejeitou.

    No era (como esperara) um livro impresso, mas um manuscrito rabiscado s pressas

    no verso de todos os tipos de pedaos de papel, muitos deles velhos recibos de cervejarias.

    Nele Mr. Segundus leu sobre aventuras maravilhosas. O l11ago do sculo XVII usara a magia

    incipiente para combater inimigos hbeis e poderosos: combates a que nenhum mago

    humano deveria se entregar. Escrevera a colcha de retalhos da histria de suas vitrias

    exatamente no momento em que os inimigos o cercavam. O autor sabia muito bem que,

    enquanto escrevia, restava-lhe pouco tempo e que a morte era o melhor que poderia esperar.

    O cmodo foi ficando mais escuro; os antigos rabiscos se tornavam indistintos na

    pgina. Dois criados entraram e, observados pelo procurador negligente, acenderam velas,

    fecharam as cortinas da janela e puseram mais carvo na lareira. Mr. Segundus achou

    conveniente lembrar Mr. Honeyfoot de que ainda no tinham explicado a Mr. Norrell o

    propsito da visita.

    No momento em que saam da biblioteca, Mr. Segundus estranhou algo. Uma cadeira

    havia sido colocada perto da lareira e ao lado dela havia uma mesinha. Na mesa estavam as

    pranchas e a encadernao em couro de um livro bastante antigo, duas tesouras e uma faca

    robusta de aspecto cruel, coisas que um jardineiro usaria para poda. As pginas do livro,

    porm, no estavam visveis, talvez, pensou Mr. Segundus, ele o tivesse mandado

    encadernar de novo. Mas, a antiga encadernao ainda parecia forte; por que ento Mr.

    Norrell teria se dado ao trabalho de tirar as pginas, arriscando-se a danific-las? Um

    encadernador hbil seria a pessoa indicada para esse tipo de trabalho.

    Quando voltaram a se sentar na sala de visitas, Mr. Honeyfoot se dirigiu a Mr. Norrell.

    - O que acabo de ver aqui me convence de que o senhor a pessoa ideal para nos

    ajudar. Mister Segundus e eu somos da opinio de que os magos modernos seguem pelo

    caminho errado; desperdiam energia com tolices. O senhor concorda?

    - Ah, sim, concordo - respondeu Mr. Norrell.

  • - Nossa pergunta - continuou Mr. Honeyfoot - : por que a magia decaiu de um estado

    outrora grandioso na nossa grande nao? Nossa pergunta, senhor, : por que no se faz

    mais magia na Inglaterra?

    Os olhinhos azuis de Mr. Norrell ficaram mais firmes e mais brilhantes, e os lbios se

    comprimiram, como se ele procurasse reprimir um enorme e secreto prazer interior. Como se

    tivesse esperado muito tempo, pensou Mr. Segundus, por essa pergunta e durante anos

    tivesse a resposta na ponta da lngua. Mr. Norrell respondeu:

    - No posso ajud-lo quanto a essa pergunta, senhor, porque no a entendo. uma

    pergunta equivocada. A magia no acabou na Inglaterra. Eu mesmo sou um prtico razovel

    dela.

    2. A estalagem Old Starre

    Janeiro - Fevereiro de 1807

    Quando a carruagem saiu pelo porto majestoso de Mr. Norrell, Mr. Honeyfoot

    exclamou:

    - Um prtico da magia na Inglaterra! E no condado de York! Mas que sorte a nossa! Ah,

    Mister Segundus, devemos agradecer-lhe por isso. O senhor estava alerta enquanto ns,

    magos de York, dormamos. No fosse o seu incentivo, talvez jamais tivssemos descoberto

    Mister Norrell. E estou quase certo de que ele jamais nos teria procurado. muito reservado.

    No nos deu uma s informao sobre o que realizou na prtica da magia, nada alm do

    simples fato de que obteve xito. Creio ser um sinal de modstia. Mister Segundus suponho

    que concorda que nossa tarefa clara. Cabe-nos vencer a timidez natural e a averso ao

    elogio de Mister Norrell e apresent-lo com triunfo a um pblico mais amplo!

    - Talvez - retrucou Mr. Segundus sem convico.

    - No digo que ser fcil - acrescentou Mr. Honeyfoot. - Ele muito discreto e no

    gosta de companhia. Mas haver de se dar conta de que o conhecimento que possui deve ser

    compartilhado com outros para o bem da nao. um cavalheiro: sabe do dever que tem e

    com certeza haver de cumpri-lo, Ah, Mister Segundus! O senhor merece que todos os magos

    do pas lhe faam os melhores agradecimentos por isso.

  • Por mais que Mr. Segundus merecesse reconhecimento, porm, o triste fato que os

    magos da Inglaterra formam um grupo de homens curiosamente mal-agradecidos. Mr.

    Honeyfoot e Mr. Segundus at poderiam ter feito a mais importante descoberta no

    conhecimento da magia dos ltimos trs sculos, mas e da? No houve praticamente

    ningum na Sociedade de York que, ao saber disso, no tenha tido certeza absoluta de que

    teria conseguido mais; e na tera-feira seguinte, quando se realizou uma reunio

    extraordinria da Sociedade Culta dos Magos de York, a maioria de seus membros estava

    disposta a expressar isso.

    s dezenove horas da tera-feira, o salo do segundo andar da estalagem Old Starre,

    em Stonegate, estava abarrotado. Aparentemente, a notcia levada por Mr. Honeyfoot e Mr.

    Segundus atrara todos os cavalheiros da cidade que j tivessem ao menos passado os olhos

    num livro de magia, embora York ainda fosse uma das cidades mais mgicas da Inglaterra.

    Talvez s a cidade de Newcastle do rei pudesse se vangloriar de ter mais magos.

    Havia um ajuntamento de magos to grande no salo da estalagem que por momentos

    muitos se viram obrigados a ficar de p, a despeito de os criados no pararem de levar

    cadeiras para cima. O Dr. Foxcastle conseguiu uma cadeira excelente, alta, preta e com

    entalhes singulares. E a cadeira (que lembrava muito um trono), as vastas cortinas de veludo

    vermelho atrs dele e o jeito de ele se sentar com as mos cruzadas sobre a barriga, tudo

    combinado lhe dava um ar bastante autoritrio.

    Os criados da estalagem Old Starre tinham preparado um excelente fogo na lareira

    para afastar o frio da noite de janeiro, e em torno dela estavam sentados magos dos mais

    ancies - ao que parece da poca do reinado de Jorge II, ou perto disso -, todos envoltos em

    mantas escocesas, rostos amarelentos encarquilhados como teias, e em companhia de

    lacaios igualmente ancies com frascos de remdio nos bolsos. Mr. Honeyfoot os saudou

    desta forma:

    - Como vai, Mister Aptree? Como vai, Mister Greyshippe? Vai bem de sade, Mister

    Tunstall? Cavalheiros, que satisfao v-los aqui! Espero que tenham vindo festejar conosco!

    Todos os anos que passamos no limbo j se foram. Ah, ningum melhor do que o senhor,

    Mister Aptree, e do que o senhor, Mister Greyshippe, sabe como foram aqueles anos, porque

    viveram muitos deles. Mas agora veremos a magia voltar Gr-Bretanha como conselheira e

  • patronal E os franceses, Mister Tunstall! Como reagiro quando souberem? Ora, eu no fica-

    ria surpreso se isso resultasse numa rendio imediata.

    Mr. Honeyfoot tinha algo mais a dizer no mesmo teor. Preparara um discurso com o

    qual pretendia levar ao conhecimento de todos os admirveis benefcios que essa descoberta

    produziria para a Gr-Bretanha. Mas no teve a oportunidade de pronunciar mais do que

    umas poucas frases, porque parecia que todos os cavalheiros no salo, sem exceo, no

    conseguiam mais conter suas opinies, precisavam comunic-las com urgncia. O Dr.

    Foxcastle foi o primeiro a interromper Mr. Honeyfoot. De seu enorme trono negro, ele assim

    se dirigiu a Mr. Honeyfoot:

    - Lamento muitssimo que o senhor desacredite a magia, que sei tem em grande

    considerao, com histrias inconcebveis e invenes extravagantes. Mister Segundus -

    disse, virando-se para o cavalheiro que ele julgava ser o causador de todo o problema -, no

    sei qual o costume no lugar de onde vem, mas aqui no condado de York no nos

    interessamos por quem faz a fama s custas da tranqilidade alheia.

    Nesse ponto, o Dr. Foxcastle foi interrompido pelas exclamaes estridentes e

    zangadas dos defensores de Mr. Honeyfoot e Mr. Segundus. O prximo cavalheiro que se fez

    ouvir perguntou por que Mr. Segundus e Mr. Honeyfoot haviam se deixado iludir tanto. Sem

    dvida Mr. Norrell era um louco, em nada diferente de algum desmiolado de olhos arregalados

    parado numa esquina berrando que era o Rei Corvo.

    Um cavalheiro ruivo, em estado de arrebatamento, opinou que Mr. Honeyfoot. Mr.

    Segundus deveriam ter insistido que Mr. Norrell deixasse logo a casa e rumasse sem demora

    para York, em triunfo, numa carruagem aberta (embora fosse janeiro invernal), para que o

    cavalheiro ruivo pudesse jogar folhas de era em seu caminho; e um dos homens mais idosos,

    sentado ao lado da lareira, falou com paixo acerca de uma coisa e outra, mas, como era

    demasiado velho e sua voz bastante fraca, ningum teve tempo para atentar ao que ele dizia.

    Havia no salo um homem alto e sensato chamado Thorpe, um cavalheiro com

    pouqussimos conhecimentos de magia, mas, tratando-se de um mago, com raro grau de bom

    senso. Achava que Mr. Segundus merecia incentivo em sua busca por descobrir onde se

    perdera a prtica da magia inglesa, embora, como os demais, Mr. Thorpe no esperasse que

    Mr. Segundus fosse encontrar a resposta to cedo. Porm, agora que tinham uma resposta,

    Mr. Thorpe achava que no deveriam simplesmente rejeit-la:

  • - Cavalheiros, Mister Norrell disse que capaz de fazer magia. Muito bem. Sabemos

    um pouco sobre Norrell, todos ns ouvimos dizer dos textos raros que ele supostamente

    coleciona, e s por esse motivo estaramos errados em rejeitar as afirmaes dele sem uma

    cuidadosa reflexo. Contudo, os argumentos mais fortes em favor de Mister Norrell so que

    dois de nossos membros, ambos estudiosos sensatos, visitaram Norrell e voltaram

    persuadidos. Dirigiu-se a Mr. Honeyfoot: - o senhor acredita nesse homem... Qualquer um

    pode ver em seu rosto que sim. Viu algo que o persuadiu... No vai nos contar o que foi?

    A reao de Mr. Honeyfoot pergunta foi, talvez, um tanto estranha. Primeiro, lanou a

    Mr. Thorpe um sorriso de agradecimento, como se tivesse desejado exatamente isto: uma

    oportunidade para expor os excelentes motivos que tinha para crer que Mr. Norrell sabia fazer

    magia; e abriu a boca para comear. Em seguida, se deteve; fez uma pausa. Olhou em volta,

    como se todos os excelentes motivos que lhe pareceram to slidos um instante atrs

    tivessem se desmanchado na boca, e sua lngua e dentes no conseguissem se apoderar de

    um deles sequer para formul-lo numa frase racional. Murmurou algo sobre a fisionomia

    honesta de Mr. Norrell.

    A Sociedade de York achou isso pouco satisfatrio (se os membros da sociedade

    tivessem tido o privilgio de ver a fisionomia de Mr. Norrell, provavelmente o teriam achado

    ainda menos satisfatrio). Mr. Thorpe se virou para Mr. Segundus e disse:

    - Mister Segundus, o senhor tambm viu Norrell. Qual a sua opinio?

    Pela primeira vez a Sociedade de York notou a palidez de Mr. Segundus, e ocorreu a

    alguns cavalheiros que ele no lhes respondera quando o cumprimentaram, como se incapaz

    de recompor os pensamentos para ento responder.

    - Sente-se indisposto? - perguntou Mr. Thorpe cortesmente.

    - No, no - murmurou Mr. Segundus. - No nada. Obrigado.

    Mas parecia to aturdido que um cavalheiro lhe ofereceu a cadeira, outro foi buscar

    uma taa de vinho das Canrias e o cavalheiro ruivo arrebatado que desejava jogar folhas de

    hera no caminho de Mr. Norrell alimentou a esperana de que Mr. Segundus estivesse

    encantado e todos veriam algo extraordinrio! Mr. Segundus suspirou e disse:

    - Obrigado. No estou indisposto, mas na semana passada me senti bastante cansado

    e lento de raciocnio. Mrs. Pleasance me deu araruta e preparados quentes de raiz de

    alcauz, que no ajudaram. O que no me surpreende, pois creio que a confuso est na

  • minha cabea. No me sinto to mal quanto antes. Se me perguntassem agora, cavalheiros,

    por que acredito que a magia voltou Inglaterra, responderia que porque vi magia sendo

    feita. A impresso de ter visto magia est muito viva em mim aqui e aqui... - Apontou com o

    dedo para a testa e para o corao. - Entretanto, sei que no vi magia alguma. Norrell no fez

    magia enquanto estivemos com ele. Por isso suponho ter sonhado com ela.

    Os cavalheiros da Sociedade de York explodiram mais uma vez. O cavalheiro apagado

    sorriu apagadamente e perguntou se algum via algum sentido naquilo. Ento Mr. Thorpe

    exclamou:

    - Ora! ridculo ficarmos aqui tentando concluir se Norrell sabe ou no fazer isto ou

    aquilo. Somos todos criaturas racionais e a resposta , sem dvida, muito simples: vamos lhe

    pedir que nos faa magia, como prova do que afirma.

    A idia fez tanto sentido que por um momento todos se calaram, o que no significava,

    de modo algum, que tivessem acolhido a proposta. Vrios magos (entre eles o Dr. Foxcastle)

    no gostaram. Se pedissem a Norrell que fizesse magia, haveria o risco de que de fato a

    fizesse. No queriam ver a magia praticada; desejavam to-s ler sobre ela nos livros. Outros

    opinaram que o papel da sociedade de York era ridculo por realizar to pouco. No fim, a

    maioria dos magos concordou com Mr. Thorpe no seguinte:

    - Como estudiosos, cavalheiros, o mnimo que podemos fazer dar a Mister Norrell a

    oportunidade de nos convencer.

    Resolveu-se, assim, que escreveriam outra carta para Mr. Norrell.

    Estava bastante claro para os magos que Mr. Honeyfoot e Mr. Segundus haviam

    tratado muito mal o assunto e que, ao menos em relao a um aspecto, o da maravilhosa

    biblioteca de Mr. Norrell agiram de uma forma extremamente tola, porque no foram capazes

    de apresentar um relato compreensvel sobre ela. O que viram? Ah, livros, muitos livros. Um

    nmero extraordinrio de livros?

    Sim, acreditavam que na ocasio acharam extraordinrio. Livros raros? Ah, pro-

    vavelmente. Tiveram permisso para peg-los e abri-los? Ah, no! Mr. Norrell no chegara a

    ponto de convid-los a tanto. Mas tinham lido os ttulos? Sim, claro. Pois ento que ttulos de

    livros viram? No sabiam; no se lembravam. Mr. Segundus disse que o ttulo de um livro

    comeava com "B", mas esse foi o princpio e o fim da informao. Era muito estranho.

  • Mr. Thorpe tencionava ele mesmo escrever a carta, mas, como havia no salo um

    grande nmero de magos cuja idia principal era ofender Mr. Norrell por insolncia, esses

    cavalheiros concluram que a melhor forma de insultar Norrell seria justamente permitir que o

    Dr. Foxcastle a escrevesse. E assim foi feito. No devido tempo, ele recebeu uma carta irada.

    Hurtfew Abbey, condado de York,

    1. de fevereiro de 1807

    Caro senhor,

    Nos ltimos anos, fui honrado com duas cartas dos cavalheiros da Sociedade Culta dos

    Magos de York nas quais solicitavam conhecer-me. Recebo agora uma terceira, informando-

    me do desagrado da sociedade. A opinio favorvel da sociedade de York parece to

    facilmente perdida quanto achada, e ningum talvez jamais saber como chegou a tanto. Em

    resposta acusao especfica contida na carta, de que exagerei minhas capacidades e

    reivindiquei poderes que evidentemente no posso ter, limito-me a afirmar o seguinte: h

    quem prefira atribuir sua falta de xito a uma falha do mundo em vez de ao conhecimento

    mediano que tenha, mas a verdade que a magia to exeqvel nesta era quanto o foi em

    qualquer outra, como comprovei inmeras vezes nos ltimos vinte anos, para minha plena

    satisfao. E qual a minha recompensa por amar minha arte mais do que qualquer outro?

    Por estudar com mais afinco para aperfeio-la? Tacham-me de fabulista. Menosprezam

    minhas capacidades profissionais e duvidam de minha palavra. Creio que o senhor no ficar

    surpreso ao saber que, nestas circunstncias, no me sinto inclinado a agradar a sociedade

    no que quer que seja, quanto mais no pedido de demonstrao de magia. A Sociedade Culta

    dos Magos de York reunir-se- na prxima quarta-feira, e at l o informarei sobre minhas

    intenes.

    Seu criado,

    Gilbert Norrell

    Era tudo desagradavelmente misterioso. Um pouco nervosos, os tericos da magia

    esperaram, ento, para ver o que o prtico da magia lhes enviaria. O que Mr. Norrell lhes

    enviou foi nada menos alarmante do que um advogado, um advogado sorridente, corts e

  • reverente, um advogado bem comum chamado Robinson, que trajava uma fina roupa preta e

    finas luvas de pelica, com um documento que os cavalheiros da Sociedade de York nunca

    tinham visto igual: o texto de um contrato, redigido em conformidade com os cdigos da lei, da

    magia inglesa havia muito esquecidos.

    Mr. Robinson adentrou o salo superior da estalagem Old Starre s oito em ponto,

    parecendo supor que o aguardavam. Mr. Robinson tinha um escritrio com dois funcionrios

    na Rua Coney. Inmeros cavalheiros o conheciam de vista.

    - Senhores - disse Mr. Robinson, sorrindo -, confesso que este documento em grande

    parte obra do meu representado, Mister Norrell. No sou especialista em lei taumatrgica.

    Quem o hoje em dia? Mas creio que se cometer um erro os senhores faro a gentileza de

    me corrigir.

    Vrios magos de York concordaram compreensivamente com um sinal de cabea.

    Mr. Robinson era uma pessoa polida. De to asseado, saudvel e satisfeito com tudo,

    brilhava visivelmente, coisa que se esperava em seres mgicos ou anjos, mas que era um

    tanto desconcertante num advogado. Mostrou-se muito respeitoso com os cavalheiros da

    Sociedade de York porque, embora nada soubesse de magia, achava que magia devia ser

    algo difcil, que exigia grande concentrao mental. Contudo, humildade profissional e

    autntica admirao pela Sociedade de York, Mr. Robinson acrescentou a vaidosa satisfao

    de constatar que aqueles crebros monumentais deveriam agora interromper por um

    momento suas reflexes sobre assuntos esotricos e escut-lo. Ps uns culos de ouro sobre

    o nariz, acrescentando outro pequeno fulgor sua pessoa reluzente.

    Mr. Robinson disse que Mr. Norrell se comprometia a fazer uma demonstrao de

    magia num determinado lugar e numa determinada hora.

    - Cavalheiros, espero que no se oponham exigncia do meu representado de marcar

    uma hora e um lugar.

    Os cavalheiros no se opuseram.

    - Ser ento na catedral, na sexta-feira daqui a duas semanas.

    Mr. Robinson disse que, caso no conseguisse fazer magia, Mr. Norrell retiraria

    publicamente a afirmao de que era um prtico da magia, ou um mago de fato, prometendo

    jamais voltar a fazer tal afirmao.

  • No necessrio ir to longe - observou Mr. Thorpe. - No queremos puni-lo.

    Desejvamos apenas pr prova sua afirmao.

    O sorriso brilhante de Mr. Robinson se ofuscou um pouco, como se ele tivesse algo

    muito desagradvel a transmitir e no soubesse bem como comear.

    Um momento - disse Mr. Segundus. - Ainda no fomos inteirados do outro lado do

    contrato. No fomos inteirados do que ele espera de ns.

    Mr. Robinson assentiu com a cabea. Aparentemente, Mr. Norrell pretendia que todos

    os magos da sociedade de York assumissem o mesmo compromisso que ele. Em outras

    palavras, se tivesse xito, eles deveriam sem mais cerimnias desfazer a Sociedade Culta

    dos Magos de York e jamais voltar a utilizar o ttulo de mago. Afinal, disse Mr. Robinson, nada

    mais justo, pois Mr. Norrell teria comprovado ser o nico mago no condado de York.

    - E teremos uma terceira pessoa, uma representao independente para avaliar se a

    magia foi feita? - perguntou Mr. Thorpe.

    Mr. Robinson pareceu intrigado com a pergunta. Esperava que o desculpassem caso

    tivesse passado uma idia equivocada, no desejava ofender quem quer que fosse por nada

    neste mundo, mas julgava que todos os cavalheiros ali presentes fossem magos.

    Ah, sim, assentiu a Sociedade de York, todos eles eram magos.

    Portanto, afirmou Mr. Robinson, decerto saberiam reconhecer magia quando a vissem.

    Decerto ningum ali estaria mais bem qualificado para tal.

    *** A notvel igreja de York tanto uma catedral (no sentido de igreja que abriga o

    trono do bispo ou do arcebispo) como um mosteiro (no sentido de igreja fundada por um

    missionrio na Antiguidade). Recebeu essas denominaes em diferentes perodos. Nos

    primeiros sculos, chamavam-na mais comumente de mosteiro, mas hoje os moradores de

    York preferem o termo catedral, que eleva a igreja acima das existentes nas cidades vizinhas

    de Ripon e Beverley. Essas cidades tm mosteiros, mas no catedrais.

    Um cavalheiro quis saber que tipo de magia Norrell pretendia fazer. Mr. Robinson foi

    todo desculpas polidas e explicaes rebuscadas. No poderia esclarecer, no sabia.

    O caro leitor se aborreceria com a enumerao dos vrios e tortuosos motivos pelos

    quais os cavalheiros da sociedade de York acabaram por assinar o contrato de Mr. Norrell.

  • Muitos o fizeram por vaidade; tinham declarado publicamente no acreditar que Norrell fosse

    capaz de fazer magia, tinham-no desafiado tambm publicamente a faz-la, portanto, em tais

    circunstncias, teria sido tolice mudar de idia, ou ao menos assim pensaram.

    Mr. Honeyfoot, de sua parte, assinou precisamente por acreditar na magia de Mr.

    Norrell. Mr. Honeyfoot esperava que Mr. Norrell ganhasse reconhecimento pblico com a

    demonstrao de poderes e continuasse a empregar a magia para o bem da nao.

    Alguns cavalheiros viram-se impelidos a assinar diante da sugesto (originada de

    Norrell e de algum modo transmitida por Robinson) de que no provariam ser magos

    verdadeiros se no o fizessem.

    E ento cada um dos magos de York assinou o documento que Mr. Robinson levara. O

    ltimo foi Mr. Segundus.

    - No assino - disse. - A magia a minha vida; embora Mister Norrell tenha razo em

    dizer que sou um pobre estudioso, o que farei quando a tirarem de mim?

    Silncio.

    - Ah! - exclamou Mr. Robinson. - Bem, quer dizer... O senhor tem certeza de que no

    quer assinar o documento? No v que todos os seus colegas o assinaram? Vai ficar muito

    isolado.

    - Tenho certeza - respondeu Mr. Segundus. - Obrigado.

    - Bem - disse Mr. Robinson -, neste caso admito que no sei ao certo como proceder.

    Meu representado no me instruiu quanto ao que fazer se apenas alguns cavalheiros

    assinassem. Consultarei o meu representado amanh cedo.

    Ouviu-se o Dr. Foxcastle comentar com Mr. Hart, ou Hunt, que mais uma vez o recm-

    chegado criara um mundo de problemas para todos.

    Dois dias depois, porm, Mr. Robinson visitou o Dr. Foxcastle com uma mensagem que

    dizia que, nessa ocasio em especial, Mr. Norrell no se importaria de fechar os olhos

    recusa de Mr. Segundus em assinar; levaria em conta que o contrato fora firmado por todos

    os membros da Sociedade de York, exceto Mr. Segundus.

    Na noite anterior que Mr. Norrell faria a magia, nevou em York, e pela manh a sujeira

    e a lama da cidade haviam sumido, substitudas por um branco imaculado. O som ele cascos

    e passos era abafado, as prprias vozes dos cidados de York estavam alteradas por um

    silncio branco que absorvia todos os sons. Mr. Norrell marcara de manh bem cedo. Os

  • magos de York, sozinhos em suas casas, tomavam o caf-da-manh. Observavam em

    silncio o criado servir o caf, cortar os pezinhos quentes, trazer a manteiga. A mulher, a

    irm, a filha, a nora ou a sobrinha, que em geral se ocupavam dessas pequenas tarefas, ainda

    dormiam; e as agradveis conversas domsticas das mulheres, que os cavalheiros da Socie-

    dade de York fingiam menosprezar tanto e na verdade constituam um suave e ameno refro

    da msica diria, estavam ausentes. E as salas em que esses cavalheiros tomavam o caf-

    da-manh estavam diferentes do dia anterior. A escurido do inverno se fora, substituda por

    uma luz temvel, o sol de inverno refletido inmeras vezes pela neve que cobria o cho. Havia

    um ofuscamento de luz na toalha de linho da mesa. Os botes de rosa que decoravam as

    lindas xcaras de caf da filha pareciam quase danar na superfcie. Raios de sol irradiavam

    da cafeteira de prata da sobrinha e as pequeninas pastoras sorridentes da porcelana da nora

    se transformavam em anjos reluzentes. Era como se a mesa tivesse sido posta com prata e

    cristal encantados.

    Mr. Segundus, espiando pela janela do terceiro andar no ptio da hospedaria Lady-

    Peckitt, pensou que talvez Mr. Norrell j tivesse feito a magia e pronto, Um estrondo

    ameaador soou no alto e ele recolheu a cabea rapidamente, escapando da neve que de

    sbito desabou do telhado. Mr. Segundus no tinha criados, assim como no tinha esposa,

    irm, filha, nora ou sobrinha, mas Mrs. Pleasance, a senhoria, era madrugadora. Nas ltimas

    duas semanas, muitas vezes ela o ouvira suspirar debruado sobre livros e esperava anim-lo

    com um caf-da-manh que consistia em dois arenques grelhados na hora, ch e leite fresco,

    po branco e manteiga num prato de porcelana azul e branca. Com a mesma inteno

    generosa, sentou-se para conversar. Ao notar que ele parecia muito desanimado, exclamou:

    - Ah, no suporto esse velho!

    Mr. Segundus no dissera a Mrs. Pleasance que Mr. Norrell era velho, todavia ela

    assim o imaginava. Baseando-se no que Mr. Segundus lhe contara, achava-o uma espcie de

    avarento que acumulava magia em vez de ouro; mas medida que a narrativa avanar

    deixarei que o leitor julgue a legitimidade desse retrato do carter Mr. Norrell. Assim como

    Mrs. Pleasance, sempre achei que avarentos fossem velhos. No sei dizer por que assim

    deveria ser, uma vez que decerto existem avarentos jovens como velhos. Quanto questo

    de Mr. Norrell ser ou no ser velho, ele era o tipo de homem que j velho aos dezesseis

    anos:

  • Mrs. Pleasance continuou:

    - Quando vivo, Mister Pleasance costumava dizer que ningum em York, homem ou

    mulher, sabia assar um po que se igualasse ao meu, e outras pessoas tambm foram

    bastante gentis a ponto de dizer que nunca na vida tinham comido um po to bom. Mas

    sempre mantive mesa farta por amor coisa bem-feita e, se um desses estranhos espritos

    das fbulas da Arbia sasse deste bule de ch agora e me oferecesse trs desejos, creio que

    no seria muito maldosa se tentasse impedir que outras pessoas assassem po. Se o po

    delas fosse to bom quanto o meu, eu no me magoaria, at daria parabns. Vamos,

    experimente um pedao - disse, empurrando na direo do hspede um prato cheio do po

    renomado. - No me agrada ver o senhor assim to magro. Vo dizer que a Hettie Pleasance

    perdeu seus dons domsticos. Meu senhor, gostaria que no ficasse assim to abatido. No

    assinou o documento prfido e, quando os outros cavalheiros forem obrigados a ceder, o

    senhor ainda vai persistir e tenho uma grande esperana, Mister Segundus, de que vai fazer

    descobertas importantes, e ento talvez esse tal de Mister Norrell, que se acha to esperto,

    fique feliz de aceit-lo como parceiro e assim acabe por se arrepender de seu tolo orgulho.

    Mr. Segundus sorriu e agradeceu.

    - Mas no acredito que isso acontea. Minha principal dificuldade ser a falta de

    petrechos. Tenho poucos e, quando a sociedade se dissolver... Bem, no sei que destino

    daro aos livros, mas duvido que me sejam doados.

    Mr. Segundus comeu o po (bom como o falecido Mr. Pleasance e os amigos dele

    afirmavam) e os arenques, e tomou o ch. A capacidade da refeio de apaziguar um corao

    conturbado fora maior do que de imaginara, pois percebeu que se sentia um pouco melhor;

    estando assim fortificado, vestiu o sobretudo, ps o chapu, o cachecol, as luvas, e saiu pelas

    ruas triturando a neve sob os ps, em direo ao lugar que Mr. Norrell designara para os

    prodgios do dia a catedral de York.

    Espero que o leitor esteja familiarizado com uma antiga catedral inglesa, caso contrrio

    creio que a importncia da escolha de Mr. Norrell por esse lugar em especial lhe passar

    despercebida. importante entender que, numa cidade antiga com catedral, a antiga igreja

    no um edifcio construdo entre muitos outros; o edifcio, diferente de todos em

    proporo, beleza e solenidade. Mesmo nos tempos modernos, quando uma cidade antiga

    est suprida de todos os acessrios das edificaes urbanas, sales de assemblia e reunio

  • (e York tinha um bom sortimento deles), a catedral se sobrepe, testemunha da devoo dos

    antepassados. como se a cidade contivesse algo maior do que a si mesma. Quando as

    pessoas esto envolvidas em suas tarefas, na confuso das ruas estreitas, por certo perdem

    de vista a catedral, mas depois a cidade se abre e de repente ali est ela, muitas vezes mais

    alta e mais ampla do que qualquer outro edifcio, e as pessoas ento se do conta de que

    chegaram ao corao da cidade e de que todas as ruas e ruelas de algum modo levam at l,

    a um lugar de mistrios mais profundos do que qualquer Mr. Norrell poderia conhecer. Eram

    esses os pensamentos de Mr. Segundus ao entrar no trio e parar diante da enorme e

    taciturna sombra azul da face oeste da catedral. Pouco depois chegou o Dr. Foxcastle,

    deslizando com autoridade ao contornar a esquina como um navio negro e portentoso. Ao

    avistar Mr. Segundus, seguiu rumo ao cavalheiro e o cumprimentou com um bom-dia.

    - O senhor - disse o Dr. Foxcastle - faria a gentileza de me apresentar a Mister Norrell?

    um cavalheiro que eu desejaria muito conhecer.

    - Com toda a satisfao, senhor - respondeu Mr. Segundus, olhando em volta. O tempo

    fizera as pessoas ficarem em casa e apenas uns poucos vultos escuros andavam apressados

    no campo branco que se estendia defronte enorme catedral cinza. Eram cavalheiros da

    Sociedade de York, ou padres e assistentes da catedral, sacristos e bedis, subchantres,

    prebostes, varredores do transepto e afins que receberam ordens dos superiores para

    enfrentar a neve e cuidar dos servios da igreja. - Nada me agradaria mais, senhor - disse Mr.

    Segundus - do que lhe fazer esse favor, mas no estou vendo Mister Norrell.

    Entretanto, havia uma pessoa.

    Uma pessoa estava parada na neve, sozinha, diante da baslica. Algum moreno, no

    exatamente digno de respeito, que observava Mr. Segundus e o Dr. Foxcastle com ar de

    grande interesse. Os cabelos desgrenhados caam sobre os ombros como uma queda-d'gua

    negra; tinha um rosto forte e magro ligeiramente torcido, como a raiz de uma rvore, um nariz

    comprido e fino. Embora a pele fosse bastante plida, algo tornava seu rosto moreno, talvez a

    negrura dos olhos ou a proximidade dos cabelos pretos, oleosos e compridos. Pouco depois,

    a pessoa caminhou em direo aos dois magos, esboou uma reverncia e, pedindo que o

    desculpassem pela intromisso, disse-lhes ter sido informado de que eram cavalheiros que ali

    se encontravam com o mesmo propsito que ele. Disse se chamar John Childermass e ser o

    procurador de Mr. Norrell em certos assuntos (no revelou quais).

  • - Tenho a impresso - disse Mr. Segundus pensativamente - de que o conheo. Creio

    que o vi antes.

    Algo mudou no rosto escuro de Childermass, mas esvaneceu num segundo, e teria sido

    impossvel dizer se fora uma carranca ou um riso.

    - Venho com freqncia a York para tratar de assuntos de Mister Norrell, senhor. Talvez

    tenha me visto em alguma livraria da cidade.

    - No - retrucou Mr. Segundus -, eu o vi, imagino... Onde? No importa, vou lembrar

    daqui a pouco!

    Childermass ergueu uma sobrancelha, como a dizer que duvidava muito.

    - Mas Mister Norrell por certo vir no? perguntou o Dr. Foxcastle.

    Pedindo desculpas ao Dr. Foxcastle, Childermass respondeu que acreditava que Mr.

    Norrell no viria; no acreditava que Mr. Norrell tivesse algum motivo para vir.

    - Ah! - exclamou o Dr. Foxcastle -, ento ele admite, no ? Ora, muito bem. Pobre

    cavalheiro. Imagino que se sinta fazendo papel de tolo. Pois muito bem. Em todo caso, foi

    uma tentativa digna. No guardamos rancor algum por ele ter tentado. - O Dr. Foxcastle sentia

    um grande alvio por no ter de presenciar magia, e isso o tornava generoso.

    Childermass pediu desculpas novamente ao Dr. Foxcastle; receava ter sido mal

    entendido. Mr. Norrell decerto faria magia. Faria em Hurtfew Abbey e os resultados seriam

    vistos em York.

    - Cavalheiros no apreciam - disse Childermass ao Dr. Foxcastle - afastar-se do

    conforto da lareira, a no ser quando necessrio. Atrevo-me a dizer que se o senhor pudesse

    ver parte do evento de sua prpria sala de estar no estaria aqui no frio e na umidade.

    O Dr. Foxcastle respirou fundo e lanou a John Childermass um olhar que dizia que o

    considerava muito insolente.

    Childermass no pareceu se intimidar com a opinio que o Dr. Foxcastle tinha dele. At

    pareceu se divertir com ela. Disse:

    - Senhores, chegou a hora. Tomem seus lugares na igreja. Estou certo de

    que lamentariam perder alguma coisa, quando h tanta expectativa em torno dela.

    Vinte minutos haviam se passado e os cavalheiros da Sociedade de York j entravam

    em fila na catedral pela porta do transepto sul. Vrios deles olhavam em volta antes de entrar,

    como se dando um afetuoso adeus a um mundo que no sabiam ao certo se tornariam a ver.

  • 3. As pedras de York

    Fevereiro de 1807

    Uma igreja antiga e magnificente em pleno inverno um lugar desalentador mesmo nas

    melhores ocasies; o frio de centenas de invernos parece ter sido preservado nas pedras e

    transpirar delas. No interior frio, mido e crepuscular da catedral, os cavalheiros da Sociedade

    de York viram-se obrigados a ficar de p, esperando ser surpreendidos, sem certeza alguma

    de que a surpresa seria agradvel.

    Mr. Honeyfoot sorriu com alegria para os colegas, mas, para um cavalheiro to

    experiente na arte de um sorriso cordial, fora uma tentativa insatisfatria.

    Nesse momento, os sinos comearam a tocar. Os sinos da St. Miguel-le-Belfrey apenas

    assinalavam a passagem de meia hora, mas, no interior da catedral, soava um estranho e

    remoto som de sinos de um outro mundo. No era um som alegre. Os cavalheiros da

    Sociedade de York sabiam muito bem que quase sempre os sinos soavam com magia, em

    particular com a magia dos seres sobrenaturais, os seres mgicos de um outro reino; sabiam

    que, outrora, sinos de praia quase sempre soavam quando um ingls ou uma inglesa de

    virtude ou beleza especial estava para ser raptado por seres mgicos e levado para viver

    eternamente em terras estranhas e fantasmagricas. At o Rei Corvo, que no era um ser

    sobrenatural, mas um ingls tinha o costume um tanto lastimvel de seqestrar homens e

    mulheres e lev-los para viver com ele no castelo nas Outras Terras.

    Agora, se o leitor e eu tivssemos o poder de capturar pela magia um ser humano que

    nos atrasse e o poder de conservar essa pessoa ao nosso lado por toda a eternidade, e se

    tivssemos o mundo inteiro disposio, creio que escolheramos algum um pouco mais

    cativante do que um membro da Sociedade Culta dos Magos de York. Acontece que esse

    pensamento confortador no ocorreu aos cavalheiros no interior da catedral de York; vrios

    deles puseram-se a imaginar que a carta do Dr. Foxcastle irritara muitssimo Mr. Norrell e

    comearam a ficar assustados.

    Quando os sons dos sinos se extinguiram, uma voz comeou a falar do alto das

    sombras lgubres que pairavam acima deles. Os magos aguaram os ouvidos para escut-la.

    Muitos se encontravam num estado de nervosismo to grande que imaginaram que lhes eram

  • dadas instrues tal qual num conto de fadas. Pensaram que misteriosas proibies estavam

    relacionadas a elas. Tais instrues e proibies, os magos sabiam pelos contos de fadas,

    costumam ser um tanto estranhas, mas no to difcil adaptar-se a elas, ou assim parece

    primeira vista. Em geral seguem este estilo: "No coma a ltima ameixa em calda do pote azul

    no canto do armrio", ou "No sove a sua senhora com uma vara de losna". Contudo, como

    narram os contos de fadas, as circunstncias sempre conspiram contra a pessoa que recebe

    as instrues e ela acaba fazendo a coisa proibida, da que um destino terrvel se abate sobre

    ela.

    No mnimo, os magos supuseram que lhes pronunciavam pouco a pouco a

    condenao. Mas no era muito claro o idioma em que a voz falava. Num momento, Mr.

    Segundus achou ter ouvido uma palavra que soava como "malfico", noutro momento,

    "interficere", palavra do latim antigo que significa "matar". A voz mesma no era fcil de

    entender; no tinha a menor semelhana com uma voz humana, o que s serviu para

    aumentar o receio dos cavalheiros de que era iminente a apario de seres mgicos. A voz

    era de uma estridncia extraordinria, profunda e spera, como duas pedras brutas raspando

    uma contra a outra, mas os sons que produziam pretendiam claramente ser falas - e de fato

    eram falas. Os cavalheiros olhavam para dentro da penumbra com uma expectativa cheia de

    temor, mas tudo o que conseguiam ver era o pequeno e indistinto contorno de uma escultura

    de pedra que se ressaltava num dos eixos de um enorme pilar e se projetava no vazio

    sombrio. medida que se acostumavam ao estranho som, reconheciam mais palavras;

    palavras inglesas antigas misturavam-se com palavras latinas antigas, como se o locutor no

    tivesse a menor noo de que eram dois idiomas diferentes. Por sorte, essa abominvel

    confuso apresentava poucas dificuldades para os magos, muitos dos quais afeitos a

    deslindar as divagaes de estudiosos de outrora. Traduzida para um idioma claro e

    compreensvel, era algo assim: H muito, muito tempo (dizia a voz), h quinhentos anos ou

    mais, no crepsculo de um dia de inverno, um jovem entrou na igreja com uma jovem que

    tinha folhas de hera no cabelo. No havia ningum ali, a no ser as pedras. Ningum que o

    visse estrangul-la, a no ser as pedras. Ele a deixou cair morta sobre as pedras e ningum

    viu a no ser as pedras. Ele nunca foi punido por seu pecado, porque no houve

    testemunhas, a no ser as pedras. Os anos passaram e toda vez que o jovem entrava na

    igreja e se misturava aos fiis as pedras diziam que aquele era o jovem que assassinara a

  • moa com folhas de hera no cabelo, entretanto ningum jamais nos ouviu. Mas nunca tarde

    demais! Sabemos onde ele est enterrado! No canto do transepto sul! Apressem-se!

    Apressem-se! Tragam picaretas! Tragam Ps! Arranquem as pedras do calamento.

    Desenterrem os ossos! Que sejam despedaados pelas ps! Lancem o crnio contra os

    pilares e quebrem-no! Que as pedras tambm se vinguem! Nunca tarde! Nunca tarde

    demais!

    Mal os magos tiveram tempo de compreender isso e continuar se perguntando quem

    falava, outra voz de pedra comeou a soar. Dessa vez parecia sada do santurio e falava

    apenas em ingls, mas um ingls estranho, cheio de palavras antigas e esquecidas. A voz se

    queixava de soldados que invadiram a igreja e quebraram janelas. Cem anos depois, voltaram

    e destroaram o anteparo da cruz, rasparam o rosto dos santos, roubaram o contedo de um

    prato de coleta. Numa ocasio, afiaram a ponta das flechas na borda da pia batismal;

    trezentos anos mais tarde, dispararam as pistolas na casa do cabido. A segunda voz no

    parecia entender que, enquanto uma igreja grandiosa pode permanecer de p por milnios, os

    homens no vivem tanto tempo. "Tm prazer na destruio", dizia. E eles s merecem ser

    mortos! Como o primeiro esse locutor parecia ter estado na igreja anos incontveis e

    provavelmente escutado uma enorme quantidade de sermes, mas desconhecia as mais

    cativantes virtudes do cristianismo: misericrdia, amor, humildade. E o tempo todo, a primeira

    voz continuava a lamentar a morte da jovem com folhas de hera no cabelo, e as duas vozes

    enrgicas se chocavam de forma bastante desagradvel.

    Mr. Thorpe, que era um cavalheiro corajoso, foi sozinho dar uma espiada no santurio,

    para descobrir quem estava falando.

    - uma esttua disse.

    Em seguida, os cavalheiros da Sociedade de York olharam mais uma vez na penumbra

    acima deles, na direo da primeira voz espectral. E dessa vez pouqussimos deles tiveram

    dvida de que quem falava era uma estatuazinha de pedra, porque, enquanto olhavam,

    notaram os braos de pedra rgidos agitando-se em aflio.

    Ento, todas as outras esttuas e monumentos da catedral comearam a falar e a

    relatar com vozes petrificadas tudo o que haviam presenciado em suas vidas petrificadas, e a

    algazarra foi, como mais tarde Mr. Segundus contou a Mrs. Pleasance, indescritvel. Porque

  • na catedral de York havia muitas pessoas pequeninas esculpidas e muitos animais estranhos

    que batiam asas.

    Muitos se queixavam dos vizinhos, o que talvez no surpreenda, uma vez que se viram

    obrigados a ficar juntos durante centenas de anos. Num enorme anteparo de pedra havia

    quinze reis de pedra sobre um pedestal tambm de pedra. Tinham cabelos rigidamente

    cacheados, como se tivessem sido enrolados em papelotes e jamais penteados; toda vez que

    Mrs. Honeyfoot os via ela dizia que tinha vontade de pentear cada uma daquelas cabeas da

    realeza. Desde o primeiro momento em que foram capazes de falar, os reis comearam a

    discutir e a ralhar uns com os outros, porque os pedestais eram todos altos, e reis, mesmo os

    de pedra, detestam estar mesma altura de outros. Ademais, havia um pequeno grupo de

    estranhas esculturas de braos dados que olhavam com olhos de pedra do alto de uma antiga

    coluna. Assim que o encantamento teve efeito, cada uma delas procurou afastar de si as

    demais, como se mesmo braos de pedra comeassem a doer depois de cerca de um sculo

    e as figuras de pedra comeassem a se cansar de estar encadeadas umas s outras.

    Uma esttua falou aparentemente em italiano. Ningum entendeu porqu, mas Mr.

    Segundus descobriu mais tarde que se tratava da cpia de uma obra de Michelangelo. Ela

    descrevia uma igreja diferente, em que sombras negras vvidas contrastavam nitidamente

    com uma luz brilhante. Em outras palavras, descrevia o que a esttua original em Roma era

    capaz de ver.

    Mr. Segundus ficou satisfeito de perceber que os magos, embora muito assustados,

    permaneceram confinados s quatro paredes da igreja. Alguns, to maravilhados com o que

    viam, logo esqueceram completamente o medo e comearam a correr de l para c, a fim de

    descobrir mais e mais milagres, tecendo comentrios, fazendo anotaes a lpis em

    pequenos livros de apontamentos, como se esquecidos do documento prfido que a partir

    daquele dia os impediria de estudar magia. Durante muito tempo, os magos de York (que

    logo, ai! Deixariam de ser magos) andaram a esmo pelas naves laterais e presenciaram

    maravilhas. E a cada instante seus ouvidos eram assaltados pela medonha dissonncia de mil

    vozes de pedra a falarem ao mesmo tempo.

    Na casa do cabido havia sobrecus de pedra com muitas cabecinhas de pedra

    estranhamente adornadas tagarelando entre si. Viam-se ali assombrosos entalhes de

    centenas de rvores inglesas: pilriteiros, carvalhos, abrunheiros, losnas, cerejeiras e brinias.

  • Mr. Segundus encontrou dois drages de pedra no maiores do que seu antebrao, que se

    moviam furtivamente um atrs do outro, sobre, sob e entre os galhos do pilriteiro de pedra,

    das folhas do pilriteiro de pedra, das razes do pilriteiro de pedra e das gavinhas do pilriteiro

    de pedra. Moviam-se, parecia, com a mesma facilidade de qualquer outra criatura, porm o

    som de tantos msculos de pedra em movimento sob uma pele de pedra, que raspavam cos-

    telas de pedra, que se batiam contra um corao de pedra, e o som de garras de pedra

    estrepitando sobre galhos de pedra, era por demais insuportvel, e Mr. Segundus se

    perguntava como conseguiam agentar. Observou nuvenzinhas de p granulado,

    semelhantes s presentes no trabalho de um escultor, que envolviam as criaturas e se

    erguiam no ar, e achou que, se o encantamento as fizesse continuar em movimento por um

    tempo indefinido, elas se reduziriam a uma lasca de calcrio.

    Folhas e ervas de pedra vibravam e tremulavam, como se agitadas pela brisa, e

    algumas imitavam suas contrapartes vegetais a ponto de tambm crescer. Mais tarde,

    quebrado o encantamento, fragmentos de hera de pedra e saras de pedra seriam

    encontrados enrolados em cadeiras, estantes e livros de oraes, onde nem heras nem

    saras de pedra jamais estiveram.

    Entretanto, nem s os magos da Sociedade de York viram maravilhas nesse dia.

    Tivesse Mr. Norrell pretendido ou no, a magia se estendera do confinamento da catedral

    para a cidade. Trs esttuas da frente ocidental da catedral haviam sido levadas para as

    oficinas de Mr. Taylor para restaurao. Sculos de chuva no condado de York corroeram

    essas imagens e ningum mais sabia que personagens grandiosas representavam. s dez e

    meia, um dos alvanis de Mr. Taylor tinha acabado de erguer o cinzel na direo do rosto de

    uma dessas esttuas, com a inteno de talhar as feies de uma bela santa, quando a

    esttua emitiu um grito e levantou o brao para afastar o cinzel, fazendo o pobre arteso cair

    desmaiado. Mais tarde, as esttuas foram levadas de volta ao exterior da catedral, intactas, os

    rostos desgastados lisos como biscoitos, suaves como manteiga.

    Ento, de sbito, o som pareceu se alterar e as vozes cessaram uma aps outra, at

    que os magos ouviram os sinos da So Miguel-le-Belfrey assinalarem meia hora novamente.

    A primeira voz (a voz da pequena figura nas alturas da escurido) continuou por um tempo

    aps as demais terem se calado, discorrendo sobre o antigo tema do assassino no

    descoberto (Nunca tarde! Nunca tarde demais), at tambm se calar.

  • O mundo se transformara durante a permanncia dos magos na igreja. A magia voltara

    Inglaterra, quisessem ou no os magos. Outras mudanas de natureza mais prosaica

    tambm haviam ocorrido: o cu se enchera de nuvens pesadas e carregadas de neve. No

    eram nuvens de modo algum cinzentas, mas uma estranha mistura de azul-cinza e verde-mar.

    Essa curiosa colorao criava uma espcie de crepsculo que, se imagina, seja a iluminao

    habitual em reinos lendrios do fundo do mar.

    A aventura fatigou Mr. Segundus. Outros cavalheiros haviam sentido mais medo do que

    ele; ele vira a magia e a julgara mais maravilhosa do que qualquer coisa que imaginara.

    Contudo, agora que chegara ao fim, sua mente estava agitada e ele desejava muitssimo

    voltar tranqilamente para casa sem falar com ningum. Enquanto se achava nesse estado

    suscetvel, foi interpelado pelo procurador de Mr. Norrell.

    - Meu senhor - disse Mr. Childermass -, creio que agora a Sociedade deve se dissolver.

    Sinto muito.

    Bem que isto poderia ser posto na conta do desnimo que Mr. Segundus sentia, mas

    ele suspeitou que, apesar da atitude bastante respeitosa de Mr. Childermass, no ntimo o

    procurador estava ridicularizando os magos de York. Childermass era o tipo inquietante de

    homem nascido em bero humilde e destinado a passar a vida servindo seus superiores, mas

    cuja inteligncia e habilidades astuciosas o fazem almejar reconhecimento e recompensas

    que vo muito alm do que pode alcanar. s vezes, por uma estranha combinao de

    circunstncias felizes, esse tipo de homem encontra o prprio caminho para a grandeza, mas

    quase sempre o pensamento do que poderia ter sido o amarga; ele se transforma num servo

    relutante e executa as tarefas nem melhor nem pior do que um colega menos capacitado.

    Torna-se insolente, perde o lugar e termina ma1.

    - Desculpe-me, senhor - disse Childermass -, mas gostaria de lhe perguntar uma coisa.

    Espero que no me julgue impertinente, mas gostaria de saber se o senhor l algum jornal

    londrino.

    Mr. Segundus respondeu que sim.

    - Mesmo? Muito interessante. Tambm aprecio jornais. Mas me sobra pouco tempo

    para ler, a no ser os livros com que entro em contato no cumprimento de meus deveres com

    Mister Norrell. E que tipo de coisas se encontram num jornal londrino hoje em dia? O senhor

  • me desculpe perguntar, mas que Mister Norrell, que nunca l jornal, fez-me essa pergunta

    ainda ontem e no me achei em condies de respond-la.

    - Bem - respondeu Mr. Segundus, um tanto intrigado -, h todo tipo de coisas. O que o

    senhor deseja saber? H relatos das aes da Marinha de Guerra Real contra os franceses,

    discursos do governo, notcias de escndalos e divrcios. isso o que senhor tem em mente?

    - Ah, sim! - exclamou Childermass. - Foi uma boa explicao, senhor. Eu me

    perguntava - continuou mais meditativo - se os jornais londrinos veiculam notcias

    provincianas, se, por exemplo, os extraordinrios acontecimentos de hoje mereceriam um

    pargrafo.

    - No sei - replicou Mr. Segundus. - Parece-me bastante possvel, mas, veja o senhor, o

    condado de York fica to longe de Londres que talvez os editores londrinos jamais saibam o

    que aconteceu.

    - Ah - fez Mr. Childermass, e se calou.

    A neve comeou a cair. Primeiro poucos flocos, depois muitos mais, at que milhes de

    pequenos flocos desabaram carregados pelo vento de um cu cinza-esverdeado fofo e

    pesado. Todas as construes de York tornaram-se um pouco mais indistintas, um pouco

    mais cinzentas na neve; as pessoas pareciam um pouco menores; os berros e os gritos, os

    sons dos passos humanos e dos cascos dos cavalos, o ranger das carruagens e o bater de

    portas ficaram mais distantes. E todas essas coisas se tornaram de algum modo menos

    importantes, at que tudo que o mundo continha era a neve que caa, o cu verde-mar, o

    turvo e cinzento espectro da catedral de York - e Childermass.

    E por todo esse tempo Childermass permaneceu calado. Mr. Segundus se perguntava

    o que mais ele queria, pois respondera a todas as perguntas. Mas Childermass aguardou e

    observou Mr. Segundus com seus estranhos olhos pretos, como se esperasse que Mr.

    Segundus dissesse algo mais, como se realmente aguardasse isso de Mr. Segundus - como

    se nada no mundo fosse mais certo.

    - Se desejar - disse Mr. Segundus, tirando neve da capa -, posso dirimir todas as

    dvidas quanto ao assunto. Posso escrever uma carta ao editor do Times e inform-lo das

    extraordinrias proezas de Mister Norrell.

    - Ah! mesmo muito generoso de sua parte! - disse Childermass. - Acredite, senhor,

    sei perfeitamente que nem todo cavalheiro to magnnimo na derrota. Mas era isso mesmo

  • que eu esperava. Eu disse a Mister Norrell que acreditava no existir cavalheiro mais

    obsequioso do que Mister Segundus.

    - No h de qu - retrucou Mr. Segundus -, no nada.

    A Sociedade Culta dos Magos de York se dissolveu e seus membros viram-se

    obrigados a abandonar a magia (todos menos Mr. Segundus). Mas, ainda que alguns deles

    fossem tolos e nem todos fossem totalmente afveis, no creio que mereciam tal destino.

    Pois, de acordo com o pernicioso contrato, o que pode fazer um mago sem permisso para

    estudar magia? Ele fica toa pela casa dia aps dia, interrompe a sobrinha (ou a esposa, ou

    a filha) no trabalho de bordado e incomoda os criados com perguntas sobre assuntos pelos

    quais nunca se interessou - tudo para ter algum com quem conversar, at que os criados

    acabam por se queixar dele com a patroa. Ele pega um livro para ler, mas no presta ateno

    no que l e s ao chegar pgina 22 se d conta de que um romance, o tipo de obra que

    despreza acima de tudo e, desgostoso, o pe de lado. Pergunta as horas sobrinha (ou

    esposa, ou filha) dez vezes por dia, porque no acredita que o tempo passe to lentamente,

    e se irrita com o relgio de bolso pelo mesmo motivo.

    Mr. Honeyfoot, alegra-me dizer, saiu-se um pouco melhor do que os outros. Ele, uma

    boa alma, impressionara-se com a histria contada pela pequena escultura de pedra nas

    alturas das sombras. Durante sculos ela guardara o conhecimento daquele crime hediondo

    em seu pequeno corao de pedra, lembrava-se da jovem morta com folhas de hera no

    cabelo, quando j no havia pessoa alguma para se lembrar, e Mr. Honeyfoot achava que sua

    lealdade deveria ser recompensada. Por isso escreveu ao decano, aos cnegos e ao

    arcebispo, e foi bastante persistente at essas importantes personalidades o autorizarem a

    arrancar as pedras de calamento do transepto sul. Quando isso foi feito, Mr. Honeyfoot e os

    trabalhadores que ele empregara descobriram ossos dentro de um caixo de chumbo,

    precisamente como a pequena escultura de pedra afirmara que encontrariam. Mas ento o

    decano disse que no poderia autorizar a remoo dos ossos da catedral (era o que Mr.

    Honeyfoot pretendia) com base no testemunho da pequena esttua de pedra; no havia

    precedente para tal coisa. Ah! Exclamou Mr. Honeyfoot, pois saiba que h. A discusso se

    estendeu acalorada por vrios anos e, como conseqncia disso, Mr. Honeyfoot no teve nem

    oportunidade de se arrepender de haver assinado o documento de Mr. Norrell.

  • *** O exemplo citado por Mr. Honeyfoot referia-se a um crime ocorrido em 1279 na

    sombria cidade de Alston, nas charnecas. O corpo de um jovem foi