versões e ficções - o seqüestro da história

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texto sobre as ações da guerrilha brasileira e crítica do livro de Fernando Gabeira O que é isso companheiro?

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VERSÕES E FICÇÕES:

O SEQÜESTRO DA HISTÓRIA

Ponto de Partida

Page 6: Versões e Ficções - O Seqüestro da história

ISBN 85-86469-03-3

Copyright © 1997 by Editora Fundação Perseu Abramo

Leia também da Coleção Ponto de Partida

Orçamento participativo:A experiência de Porto AlegreTarso Genro e Ubiratan de Souza

Outros lançamentos da Editora Fundação Perseu Abramo

Um trabalhador da notíciaTextos de Perseu AbramoOrganização de Bia Abramo

R e m e m ó r i aEntrevistas sobre o Brasil do século XXColetânea (no prelo)

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DANIEL AARÃO REIS Fº — ELIO GASPARICÉSAR BENJAMIN — FRANKLIN MARTINS

VERA SÍLVIA MAGALHÃES — HELENA SALEMPAULO MOREIRA LEITE — JORGE NAHAS

MARCELO RIDENTI — ALIPIO FREIRECELSO HORTA — EMIR SADER

IZAÍAS ALMADA — CONSUELO LINSIDIBAL PIVETA — DULCE MUNIZ

RENATO TAPAJÓS

VERSÕES E FICÇÕES:O SEQÜESTRO DA HISTÓRIA

Page 8: Versões e Ficções - O Seqüestro da história

Fundação Perseu Abramo

DiretoriaLuiz Dulci (Presidente)

Zilah Wendel Abramo (Vice-presidente)Hamilton Pereira

Ricardo de Azevedo

Editora Fundação Perseu Abramo

Coordenação editorialFlamarion Maués

RevisãoDenise Dognini

Sandra BrazilValter Pomar

Capa e Projeto GráficoEliana Kestenbaum

Fotos da capaIconografia

Fotomontagem da capaEnrique Pablo Grande

Editoração EletrônicaAugusto Gomes

1ª edição: julho de 1997Todos os direitos reservados à

Editora Fundação Perseu AbramoAv. Dr. Arnaldo, 128

São Paulo - SP01246-000

Fone: (011) 259-8024 / 214-0594Fax: (011) 214-5026

e-mail: [email protected]

Page 9: Versões e Ficções - O Seqüestro da história

ÍNDICE

APRESENTAÇÃO..................................................9

QUE HISTÓRIA É ESSA?

Marcelo Ridenti....................................................11

UM PASSADO IMPREVISÍVEL: A CONSTRUÇÃO

DA MEMÓRIA DA ESQUERDA NOS ANOS 60Daniel Aarão Reis Fº ............................................31

FILME FICA EM DÉBITO

COM A VERDADE HISTÓRICA

Helena Salem.......................................................47

O QUE FOI AQUILO, COMPANHEIRO

Paulo Moreira Leite...............................................51

EX-MILITANTE INSPIRA

PERSONAGENS FEMININAS:

ENTREVISTA COM VERA SÍLVIA MAGALHÃES

Helena Salem.......................................................61

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FICÇÃO É JULGADA

SOB AS LENTES DA HISTÓRIA:

ENTREVISTA COM DANIEL AARÃO REIS Fº

Helena Salem.......................................................71

CINEMA NA ERA DO MARKETING

César Benjamin.....................................................93

VERSÕES E FICÇÕES: A LUTA PELA

APROPRIAÇÃO DA MEMÓRIA

Daniel Aarão Reis Fº .........................................101

LEÕES E CAÇADORES

Emir Sader.........................................................107

O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?:

O OPERÁRIO SE DEU MAL

Elio Gaspari.......................................................111

AS DUAS MORTES DE JONAS

Franklin Martins.................................................117

JONAS, UM BRASILEIRO

Celso Horta.......................................................125

BREVE BIOGRAFIA DE VIRGÍLIO GOMES DA SILVA

Dulce Muniz.......................................................131

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SOBRE JONAS, O DO FILME, NÃO O DA BALEIA

Idibal Piveta (César Vieira)....................................133

O QUE FOI AQUILO, COMPANHEIROS? (2)

Jorge Nahas.......................................................137

HISTÓRIA: FICÇÃO, REALIDADE E HIPOCRISIA

Izaías Almada.....................................................141

O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?:

A FICÇÃO RESISTE SEM A HISTÓRIA?

Consuelo Lins....................................................151

PELA PORTA DOS FUNDOS

Alipio Freire......................................................155

QUAL É A TUA, COMPANHEIRO?

Renato Tapajós...................................................169

À MANEIRA DE UM BALANÇO:

EPÍLOGO OU PRÓLOGO?

Daniel Aarão Reis Fº..........................................181

APÊNDICE - O FILME CONFUNDE

INTENCIONALMENTE A REALIDADE:

ENTREVISTA COM CLÁUDIO TORRES

Hamilton Octavio de Souza...................................187

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QUE HISTÓRIA É ESSA?

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CONTRAPONTO - O DESLOCAMENTO

DO NARRADOR EM O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?

Eugênio Bucci....................................................209

ANEXO

Manifesto da ALN e MR-8.....................................227

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MARCELO RIDENTI

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APRESENTAÇÃO

As artes e as chamadas ciências humanas se caracte-rizam por explicarem a incrível variedade e as in-

úmeras possibilidades de interpretação que um mesmofato pode receber. O modo de ver muda conforme aposição (social, ideológica, geográfica etc.) em que seencontra aquele que interpreta.

Este livro surgiu da necessidade que diversas pessoassentiram de expressar o seu ponto de vista e questionaroutros, num saudável confronto de posições e idéias.

É justamente por aceitarem — e defenderem — amanifestação dos mais variados pontos de vista que elasvêm a público para demonstrar suas discordâncias e oserros, manipulações e deturpações que algumas interpre-tações trazem consigo. Estas, por sinal, também são car-acterísticas da natureza humana.

Dos textos reunidos em Versões e ficções: o seqüestro dahistória, apenas os de Marcelo Ridenti, Celso Horta e doque fecha o volume, de Daniel Aarão Reis Fº, foram

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QUE HISTÓRIA É ESSA?

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escritos especialmente especialmente para este livro. Osdemais surgiram de forma espontânea e sem ligação umcom o outro. Não foram encomendados para o livro nempensados como parte de um conjunto maior. Ascircunstâncias e a premência os reuniram. Eles são umamanifestação de idéias e ideais que acreditamos devamser defendidos, respeitados e valorizados.

Dentro desta perspectiva, a coletânea procurou ser omais plural possível. Não se deve esperar apenas con-cordâncias e convergências entre os diversos autores.Estas existem, mas marcam presença inúmeras diferençase discordâncias, o que apenas enriquece o trabalho. É oque esperamos.

Talvez o que mais tenha motivado todos os que es-creveram os textos aqui reunidos seja a esperança de es-tes que possam servir às pessoas que não viveram a épocaem que os fatos abordados ocorreram — o final dos anos60 e o início dos 70, tempos de “medo e coragem, ternu-ra e brutalidade, ânsia de vida e morte e de glória”, comoregistrou Jorge Nahas. De maneira que elas possam teroutra visão sobre este período que não seja somente aquelaproduzida pelos caçadores — como tão bem caracterizouEmir Sader — e, certamente, muito além daquela que sepretende “isenta” e “desideologizada”.

O editor

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MARCELO RIDENTI

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Este artigo tem o propósito de introduzir o leitor nahistória social e política brasileira do final dos anos

60, particularmente no estudo da oposição armada aoregime civil-militar. Destina-se em especial àqueles que,como eu, não viveram essa época em idade adulta e es-tão interessados em “descobrir a complexidade da históriarecente do país”, que vai muito além do que se vê emversões como a do filme de Bruno Barreto, O que é isso,companheiro?. É claro que se trata apenas de umaintrodução ao tema, por isso faço questão de citar, emnotas ao longo do texto, vários livros importantes jápublicados, nos quais os leitores poderão encontrar maisinformações e análises sobre o período.

MARCELO RIDENTI

QUE HISTÓRIAÉ ESSA?

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QUE HISTÓRIA É ESSA?

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O espírito da época no pós-1964

Um erro em que muitas vezes se incorre ao pensaras esquerdas nos anos 60 é tomá-las separadamente docontexto da época que as produziu e que tentaram trans-formar. De fato, fora daquelas circunstâncias específi-cas, parece um despropósito a opção de armar-se parainiciar a guerrilha, supostamente o primeiro passo pararealizar a revolução brasileira.

Por isso, vale a pena recordar as circunstâncias his-tóricas daquele tempo. Em termos internacionais, fo-ram vitoriosas ou estavam em curso inúmeras revoluçõesde libertação nacional, por exemplo, a Revolução Cuba-na (1959), a independência da Argélia (1962) e a guerraantiimperialista em desenvolvimento no Vietnã. O êxitomilitar dessas revoluções é fundamental para secompreender as lutas e o ideário contestador nos anos60: havia povos subdesenvolvidos que se rebelavam con-tra as grandes potências, para criar um sonhado mundonovo. Em especial, a Revolução Cubana era uma espe-rança para os revolucionários latino-americanos, inclu-sive no Brasil.

Ao mesmo tempo, questionava-se o modelo so-viético de socialismo, considerado burocrático e aco-modado à ordem internacional estabelecida pelaGuerra Fria, incapaz de levar às transformações so-ciais, políticas e econômicas necessárias para se che-gar ao comunismo. Esse modelo — que só ruiria devez com a desagregação da União Soviética, em 1989— era contestado na época, por exemplo, no interior

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do Partido Comunista da Checoslováquia, cuja cha-mada Primavera de Praga foi destruída pela invasãodos tanques de guerra soviéticos, em 1968. Tambémo processo de “revolução cultural proletária”, em cursona China a partir de 1966 — que mais tarde viria arevelar seu lado trágico —, parecia a setores jovens domundo todo uma resposta ao burocrat ismo deinspiração soviética.

Movimentos de protesto e mobilização política sur-giram por toda parte, especialmente no ano de 1968: dasmanifestações nos Estados Unidos contra a guerra noVietnã à Primavera de Praga; do maio libertário dosestudantes e trabalhadores franceses ao massacre deestudantes no México; da alternativa pacifista dos hippies,passando pelo desafio existencial da contracultura, atéos grupos de luta armada, espalhados mundo afora. Ossentimentos e as práticas de rebeldia contra a ordem ede revolução por uma nova ordem fundiam-se criativa-mente.

Além dos fatores internacionais, foram principal-mente aspectos da política nacional que marcaram aslutas das esquerdas brasileiras nos anos 60. O processode democratização política e social, com a mobilizaçãopopular pelas chamadas “reformas de base” — agrária,educacional, tributária e outras que permitissem melhordistribuição da riqueza e de direitos —, foi interrompidopelo golpe de 1964. Ele deu fim às crescentes reivindi-cações de operários, camponeses, estudantes e militaresde baixa patente, cuja politização ameaçava a ordem es-tabelecida.

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A falta de resistência ao golpe gerou surpresa, jus-tamente pela mobilização em busca das reformas es-truturais no pré-64, com a presença marcante das es-querdas, notadamente do Part ido ComunistaBrasileiro (PCB) — entidade ilegal, mas cuja atuaçãoera consentida pelo governo Goulart. A derrota foiatribuída por muitos aos erros dos dirigentes dos parti-dos de esquerda, que não se prepararam para resistir,caso do hegemônico e pró-soviético PCB, da AçãoPopular (AP), do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)e da Política Operária (Polop), além de outros gruposmenores. Sem contar a inação das l iderançastrabalhistas e nacionalistas, como a do presidentedeposto, João Goulart1. Ia-se constituindo uma cor-rente de opinião difusa em vários segmentos da es-querda, que colocava a necessidade de criar uma van-guarda realmente revolucionária, que rompesse como imobilismo e opusesse uma resistência armada àforça bruta do governo, não só para restabelecer a de-mocracia, mas especialmente para avançar em direçãoà superação do capitalismo.

A partir de outubro de 1965, por imposição doregime, passaram a exist ir apenas dois part idosreconhecidos institucionalmente: a situacionistaAliança Renovadora Nacional (Arena), e a oposição“construtiva” e moderada do Movimento Democrá-tico Brasileiro (MDB), que viria a ser calada com

1. No exílio uruguaio, o nacionalista Leonel Brizola tentou articular aresistência armada, mas o projeto frustrou-se. Ver: REBELLO, Gilson.A guerrilha de Caparaó. São Paulo, Alfa-Omega, 1980.

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cassações de políticos e outros mecanismos, sempreque se excedesse aos olhos dos governantes2.

Fora do campo institucional, vários grupos pro-cura-vam combater a ditadura e organizar os movimentospopulares: da Ação Popular (AP), nascida do cristianis-mo católico, depois convertida ao maoísmo, passandopelo moderado e cada vez mais dividido PCB, que apoiavao MDB, e estava cindido pelo guevarismo de diversasdissidências, as quais valorizavam a necessidade de iniciara revolução pela guerrilha rural — caso típico da AçãoLibertadora Nacional (ALN) e do MovimentoRevolucionário 8 de Outubro (MR-8), que promoveramo seqüestro do embaixador norte-americano; até outrasorganizações que pegaram em armas na resistência àditadura, como a Vanguarda Popular Revolucionária(VPR), dentre tantas que enfatizavam a necessidade daação revolucionária imediata3.

2. Consultar sobre o tema: ALVES. M. Helena Moreira. Estado e oposiçãono Brasil. Petrópolis, Vozes, 1984; KINZO, M. Dalva Gil. Oposição eautoritarismo: gênese e trajetória do MDB, 1966/1979. São Paulo, Sumaré,1990. Sobre “a dinâmica militar das crises políticas da ditadura” entre1964 e 1969, ver: MARTINS FILHO, João Roberto. O palácio e a caserna.São Carlos, Ed. da UFSCar, 1995.3. Para uma reconstrução histórica detalhada dos fatos e dos gruposde esquerda no período, ver: GORENDER, Jacob. Combate nas trevas - Aesquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo,Ática, 1987. Outra interpretação das organizações comunistas, vistascomo grupos revolucionários de elite, está em REIS FILHO, DanielAarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo, Brasiliense, 1989.Minha visão sobre o tema — com destaque para a agitação cultural doperíodo, a composição e as raízes sociais diferenciadas das organizações,além de seu progressivo isolamento e perda de representatividade —

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A contestação radical à ordem estabelecida no pós-64 não se restringia às organizações de esquerda; difun-dia-se socialmente na música popular, no cinema, noteatro, nas artes plásticas e na literatura. O romanceQuarup, de Antonio Callado4 , talvez seja o exemplo maisrepresentativo da utopia revolucionária do período, noqual se valorizava acima de tudo a ação organizada daspessoas para mudar a história.

Filmes como Terra em transe, de Glauber Rocha, eOs fuzis, de Ruy Guerra, dentre outros do Cinema Novo;peças encenadas pelo Teatro de Arena e pelo Oficina;canções como Terra plana e Para não dizer que não faleidas flores (Caminhando), de Geraldo Vandré, Roda e Pro-cissão, de Gilberto Gil, Viola enluarada, dos irmãos Valle,Soy loco por ti, América, de Capinam e Gil, e outras decompositores como Sérgio Ricardo, Chico Buarque, EduLobo, Milton Nascimento e seus parceiros; as exposiçõesde artes plásticas, como a Nova Objetividade Brasileira,no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; enfim,inúmeras manifestações culturais, diferenciadamente,entre 1964 e 1968, cantavam em verso e prosa a espe-rada “revolução brasileira” — com base principalmentena ação das massas populares, em cujas lutas a

4. CALLADO, Antonio. Quarup. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1967. O próprio Callado chegou a ter vinculação orgânica com oesquema guerrilheiro de Brizola, como ele me declarou em entrevistarealizada em julho de 1996, para a pesquisa que venho realizando, comapoio do CNPq, sobre a participação política dos artistas brasileiros, apartir de 1964.

está desenvolvida em RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revoluçãobrasileira. São Paulo, Ed. Unesp, 1ª reimpressão, 1996.

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intelectualidade de esquerda estaria organicamente en-gajada5 . Na década de 1960, a utopia que ganhavacorações e mentes era a revolução (não a democracia oua cidadania, como hoje), tanto que o próprio golpe de-signou-se como “revolução de 1964”.

Uma série de grupos guerrilheiros surgiria a partir de1964, em meio ao refluxo dos movimentos populares,desmantelados pela repressão — que também golpeavaduramente as organizações de esquerda, as quais se en-contravam em pleno processo de “autocrítica”, como sedizia na época. Sua principal fonte de recrutamento demilitantes estava no meio estudantil, berço do únicomovimento de massas que se rearticulou nacionalmentenos primeiros anos do pós-64, lançando-se em significa-tivos protestos de rua, especialmente em 19686.

As organizações guerrilheiras tinham divergênciasentre si: acerca do caráter da revolução brasileira (paraalgumas, a revolução seria nacional e democrática, numaprimeira etapa; para outras, ela já teria caráter imediata-mente socialista); sobre as formas de luta revolucionáriamais adequadas para chegar ao poder (a via guerrilheiramais ou menos nos moldes cubanos; o cerco das cidadespelo campo, de inspiração maoísta; a insurreição popu-lar etc.); bem como sobre o tipo de organização política

5. Roberto Schwarz trata do tema no artigo “Cultura e política, 1964-1969” (In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro, Paz e Terra,1978); ver também: HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões de viagem:CPC, vanguarda e desbunde. São Paulo, Brasiliense, 1981; dentre outros.6. Ver MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento estudantil e ditaduramilitar, 1964-1968. Campinas, Papirus, 1987.

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a ser construída — discutia-se muito a necessidade ounão de um partido nos moldes leninistas da III Interna-cional.

Por outro lado, as organizações armadas tambémapresentavam aspectos em comum, tais como: a prio-ridade revolucionária da ação armada, contra o supostoimobilismo de partidos como o PCB; a interpretação daeconomia brasileira como vivendo um processo ir-reversível de estagnação — o desenvolvimento das forçasprodutivas estaria bloqueado sob o capitalismo, que alia-ria indissoluvelmente os interesses dos imperialistas, doslatifundiários e da burguesia brasileira, garantidos pelasforças militares. Só um governo popular, ou mesmosocialista, possibilitaria a retomada do desenvolvimen-to. Como decorrência desse tipo de análise, estariam dadasas condições objetivas para a revolução, faltando apenasas subjetivas, que seriam forjadas por uma vanguardarevolucionária decidida a agir de armas na mão, criandocondições para deflagrar a guerrilha a partir do campo —local mais adequado para as atividades revolucionárias,por sofrer a fundo a espoliação e a miséria e por apresentarmaiores dificuldades para os órgãos repressivos.

A fim de iniciar a guerrilha rural, seria necessárioconseguir armamentos e dinheiro. Daí vários gruposterem empreendido ações urbanas, por exemplo, assal-tos a bancos e roubos de armas. Como a ditadura iaaperfeiçoando seu aparelho repressivo, efetuando prisões,seguidas de infindáveis torturas, algumas organizaçõesresolveram promover seqüestros de diplomatas — oprimeiro deles foi o do embaixador norte-americano —

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para forçar a libertação de presos políticos e divulgar aluta armada. Assim, em 1970, foram realizados com êxitooutros três seqüestros: em março, com a ajuda de doisgrupos menores, a VPR seqüestrou o cônsul japonês emSão Paulo, logrando libertar cinco presos; em junho foia vez do embaixador da Alemanha Ocidental, que a VPR

e a ALN trocaram por 40 detidos; finalmente, emdezembro, a VPR capturou o embaixador suíço,conseguindo livrar 70 prisioneiros, após cerca de 40 diasde tensas negociações, com o veto da ditadura a váriosnomes da lista inicialmente apresentada. O desgaste dessaação, associado à fraqueza orgânica do que restava daesquerda armada, destroçada pela repressão, colocou umponto final nos seqüestros.

Apesar de uma ou outra operação guerrilheira bem-sucedida, os militares desmantelaram rapidamente as or-ganizações armadas, especialmente entre 1969 e 1971, nãohesitando em assassinar e torturar seus inimigos, que nãoconseguiram deflagrar a guerrilha rural. Apenas o PCdoB,crítico das ações urbanas, conseguiu lançar a guerrilha, naregião do Araguaia, no sul do Pará. De 1972 a 1974, houveencarniçada luta, que culminou com a derrota dos guerri-lheiros, quase todos mortos em combate ou assassinadosdepois de capturados, sem que se tenha notícia oficial, atéhoje, do paradeiro de seus corpos7 .

A ditadura civil-militar manteria o poder durante

7. Ver, sobre a “guerrilha do Araguaia”: POMAR, Wladimir. Araguaia:o Partido e a guerrilha. São Paulo, Brasil Debates, 1980; PORTELA,Fernando. Guerra de guerrilhas no Brasil. São Paulo, Global, 1979.

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20 anos. As esquerdas enganaram-se ao supor que o golpeimplicaria a estagnação econômica. Ao contrário, repre-sentando as classes dominantes e setores das classesmédias, os governos autoritários promoveram a chama-da “modernização conservadora”. Houve crescimentorápido das forças produtivas, acompanhado da concen-tração de riquezas, do aumento da distância entre os maisricos e os mais pobres, bem como do cerceamento àsliberdades democráticas. O regime buscava sualegitimação política com base nos êxitos econômicos,sustentados por maciços empréstimos internacionais,geradores da imensa dívida externa na qual estamos ato-lados até os dias de hoje.

1969: mergulho no pesadelo

O ano de 1969 — quando ocorre o seqüestro do em-baixador norte-americano — teve início sob o signo darepressão: em 13 de dezembro de 1968, o regime civil-militar baixara o Ato Institucional número 5 (AI-5), co-nhecido como “o golpe dentro do golpe”. Com ele, ossetores militares mais direitistas — que haviam patroci-nado uma série de atentados com autoria oculta, sobre-tudo em 1968 — lograram oficializar o terrorismo deEstado, que passaria a deixar de lado quaisquer pruridosliberais, até meados dos anos 70. Agravava-se o caráterditatorial do governo, que colocou em recesso o Con-gresso Nacional e as Assembléias Legislativas estaduais,passando a ter plenos poderes para: cassar mandatoseletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir

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ou aposentar juízes e outros funcionários públicos,suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurançanacional, legislar por decreto, julgar crimes políticos emtribunais militares, dentre outras medidas autoritárias.Paralelamente, nos porões do regime, generalizava-se ouso da tortura, do assassinato e de outros desmandos.Tudo em nome da “segurança nacional”, indispensávelpara o “desenvolvimento” da economia, doposteriormente denominado “milagre brasileiro”.

Com o AI-5 foram presos, cassados, torturados ouforçados ao exílio inúmeros estudantes, intelectuais,políticos e outros oposicionistas. O regime instituiu rígidacensura a todos os meios de comunicação, colocandoum fim à agitação política e cultural do período. Poralgum tempo, não seria tolerada qualquer oposição aogoverno, sequer a do moderado MDB. Era a época doslogan oficial “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

Nessas circunstâncias, as organizações que já vin-ham realizando algumas ações armadas ao longo de 1968— como a ALN e a VPR — concluíram que estavam nocaminho certo, e intensificaram suas atividades em 1969.Outros grupos também passaram a não ver outro modode combater a ditadura, a não ser pela via das armas.Com exceção do PCB, do PCdoB, da AP e dos pequenosagrupamentos trotskistas, ocorreu o que Jacob Goren-der chamou de “imersão geral na luta armada”, promo-vida por mais de uma dezena de organizações, como aAla Vermelha, o Partido Comunista BrasileiroRevolucionário (PCBR), o Partido Revolucionário dosTrabalhadores (PRT), a Vanguarda Armada Revolu-

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cionária-Palmares (VAR), o Partido Operário Comunis-ta (POC), dentre tantas outras.

Paralelamente à escalada das ações armadas, a dita-dura ia aperfeiçoando seu aparelho repressivo: além dosjá existentes Departamentos Estaduais de Ordem Políti-ca e Social (DEOPS), criou em junho de 1969, extra-ofi-cialmente, a Operação Bandeirante (Oban), organismoespecializado no “combate à subversão” por todos osmeios, inclusive a tortura sistemática. Em setembro de1970, a Oban integrou-se ao organismo oficial, recém-criado pelo Exército, conhecido como DOI-CODI (Desta-camento de Operações de Informações-Centro deOperações de Defesa Interna). A Marinha tinha seu órgãode “inteligência” e repressão política, o Centro deInformações da Marinha (Cenimar), correspondente aoCentro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA),e ao Centro de Informações do Exército (CIE)8.

Em agosto de 1969, o presidente-general Costa e Silvasofreu uma trombose — da qual viria a morrer — e precisouser afastado da presidência. A ditadura estava diante denovo impasse: dar ou não posse ao vice, Pedro Aleixo,moderado e civil. Com o Congresso ainda fechado (só rea-briria, depois de devidamente expurgado, para “eleger” o

8. Sobre os aspectos repressivos do período, veja-se: ARNS, D. PauloEvaristo. Prefácio. In: Brasil: nunca mais. Petrópolis, Vozes, 1985. Esselivro é um resumo dos 12 volumes publicados em tiragem limitada pelaArquidiocese de São Paulo, dando um quadro completo da repressão,com base nos processos movidos pelo regime militar contra seusopositores; ver também: ARAÚJO, Maria do Amparo et alii. Dossiê dosmortos e desaparecidos políticos a partir de 1964. Recife, Cia. Editora dePernambuco, 1995.

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presidente Médici, que governaria a partir de 1970, nospiores tempos da repressão), os militares resolveram queCosta e Silva seria substituído por uma Junta, compostapelos três ministros militares em exercício: Lyra Tavares,Augusto Rademaker Grünewald e Márcio de Souza eMello. Enquanto isso, intensificavam-se as prisões e tortu-ras de militantes de esquerda.

O quadro era esse quando a direção do MR-8 — novasigla assumida pela até então Dissidência Estudantil doPCB na Guanabara (DI-GB), que liderara os concorridosprotestos e passeatas de 1968 no Rio de Janeiro — re-solveu seqüestrar o embaixador norte-americano, paradenunciar publicamente a ditadura e libertar presospolíticos. Pediu e recebeu ajuda da ALN paulista, grupocom mais experiência militar. Em 4 de setembro, dataescolhida a dedo, em plena Semana da Pátria, o embai-xador foi seqüestrado por um comando composto porVirgílio Gomes da Silva (o Jonas, comandante daoperação), Manoel Cyrillo de Oliveira, Paulo de TarsoVenceslau — todos da ALN —, além dos membros doMR-8: Franklin Martins (idealizador do seqüestro e au-tor da carta-manifesto divulgada pelos guerrilheiros),Cláudio Torres, Cid Benjamim, João Lopes Salgado,Sérgio Torres, Sebastião Rios e Vera Sílvia Magalhães9.Os integrantes da operação — com exceção de Paulode Tarso, Sérgio Torres, Sebastião Rios e Vera Sílvia— ficaram escondidos com o embaixador numa casa da

9. Vera Sílvia descobriu o esquema falho de proteção ao embaixador,mas jamais se sujeitou a dormir com o chefe da segurança, comoaparece no filme O que é isso, companheiro? de Bruno Barreto. O diretor

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rua Barão de Petrópolis, no bairro do Rio Comprido,onde também estavam Fernando Gabeira, jornalista liga-do ao segundo escalão do MR-8, que alugara a casa, eJoaquim Câmara Ferreira, o Toledo, principal dirigenteda ALN, depois de Carlos Marighella.

Pressionada pelo governo norte-americano, a juntamilitar liberou 15 prisioneiros políticos, que receberiama pena de banimento do território nacional. Em troca, oembaixador foi solto, em 7 de setembro de 1969, acontragosto de bolsões militares de extrema direita, quechegaram a tomar uma rádio, para divulgar seu incon-formismo com a escalada “terrorista”.

Imediatamente, o regime colocou em vigor nova Leide Segurança Nacional, ainda mais dura. Também impôsuma Constituição, em outubro, que “emendava” a de 1967,legalizando as arbitrariedades da ditadura. A maioria dosintegrantes do seqüestro foi presa em seguida, passandopor suplícios inimagináveis nas mãos dos torturadores.

Numa emboscada em São Paulo, em novembro de

assume essa “liberdade poética”, para dar mais dramaticidade à história,e mostra depois a menina frágil ligando para o pai, em busca de conforto,sem poder contar-lhe o ocorrido. O cineasta é livre para fazer o quequiser, mas sua versão ficcional é uma injustiça não só com a verdadeiraVera Sílvia, mas principalmente com as mulheres guerrilheiras,precursoras do feminismo no Brasil. Ver a respeito: PATARRA, Judith.Yara — reportagem biográfica. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1992;COSTA, Albertina Oliveira et alii. Memórias das mulheres do exílio. Riode Janeiro, Paz e Terra, 1980; RIDENTI, Marcelo. As mulheres napolítica brasileira: os anos de chumbo. Tempo Social, Revista deSociologia, USP, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 313-28, 2º sem., 1990. Para umestudo das mulheres que apoiaram o golpe, ver: SIMÕES, Solange. Deus,pátria e família. Petrópolis, Vozes, 1985.

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1969, foi assassinado Carlos Marighella — o principallíder da guerrilha, depois de ter rompido com o PartidoComunista, pelo qual havia sido deputado constituinteem 1946. Era o início do fim da esquerda armada. Fecha-va-se tragicamente para os guerrilheiros o ano em que opaís mergulhou nas trevas do obscurantismo político,cuja sobrevivência seria garantida nos anos seguintes pelaforça e pelo “milagre econômico”.

A história e o filme

O filme O que é isso, companheiro?, lançado em 1997,baseia-se no controvertido livro autobiográfico de Fer-nando Gabeira, sobre sua militância na esquerda arma-da10 . O filme é uma ficção a partir de fatos reais, envol-vendo o seqüestro do embaixador norte-americano noBrasil, Charles Elbrick, em 1969; segundo seus produ-tores, não pretende ser uma reconstituição histórica fiel,sequer ao conteúdo do livro em que se inspira, embora o

10. GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro,Codecri, 1979. Há vários outros livros de memórias de ex-guerrilheiros,todos interessantes pelas experiências relatadas, mas geralmente muitocentrados na vivência dos autores, devendo por isso ser vistos comcuidado por quem deseje reconstituir a história política do períodocomo um todo. Destacam-se: SIRKIS, Alfredo. Os carbonários. São Paulo,Global, 1980; CALDAS, Álvaro. Tirando o capuz. Rio de Janeiro, Codecri,1981; VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro,Codecri, 1981; BETTO, Frei. Batismo de sangue. Rio de Janeiro, CivilizaçãoBrasileira, 1982; DANIEL, Herbert. Passagem para o próximo sonho. Riode Janeiro, Codecri, 1982; POLARI, Alex. Em busca do tesouro. Rio deJaneiro, Codecri, 1982; GUARANY, Reynaldo. A fuga. São Paulo,Brasiliense, 1984; SÁ, Glênio de. Araguaia, relato de um guerrilheiro. São

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trailer anuncie o filme como “uma história verdadeira”.Bruno Barreto tem todo o direito de produzir uma

obra sobre o período, assim como já o fizeram, dentreoutros: Sérgio Rezende, no filme Lamarca11 , e MuriloSalles, em Nunca fomos tão felizes — ambos interessantes,mas sem o mesmo investimento e apelo comercial dofilme de Barreto (esperemos que outros venham por aí,inclusive documentários — talvez alguém se disponha afinanciar a transposição para a tela do romance Em câ-

11. Esse filme baseia-se em Lamarca, o capitão da guerrilha, livro-reportagem de Oldack Miranda e Emiliano José (São Paulo, Global,1984). Outros livros importantes sobre as esquerdas na época, aindanão mencionados, são: QUARTIM, João. Dictatorship and armed strugglein Brazil. London, New Left, 1971; REBELO, Aldo e LIMA, Haroldo.História da Ação Popular, da JUC ao PCdoB. São Paulo, Alfa-Omega, 1984;VENTURA, Zuenir. 1968 — o ano que não terminou. Rio de Janeiro,Nova Fronteira, 1988; WRIGHT, Delora. O coronel tem um segredo -Paulo Wright não está em Cuba. Petrópolis, Vozes, 1994; BERQUÓ,Alberto. O seqüestro dia a dia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997. Eisas coletâneas de documentos da esquerda do período, organizadaspor: REIS, Daniel A. e SÁ, Jair Ferreira. Imagens da revolução. Rio deJaneiro, Marco Zero, 1985; FREDERICO, Celso. A esquerda e o movimentooperário, 1964-1984. Vol. I. São Paulo, Novos Rumos, 1987. Vols. II eIII, Belo Horizonte, Oficina de Livros; CARONE, Edgar. Movimentooperário no Brasil, 1964-1984. São Paulo, DIFEL, 1984.

Paulo, Anita Garibaldi, 1990; dentre outros. Vale mencionar tambémas coletâneas de depoimentos organizadas por: RAMOS, Jovelino et alii.Memórias do exílio. São Paulo, Livramento, 1978; MORAES, Denis de. Aesquerda e o golpe de 64. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1989; REIS,Daniel Aarão. 1968, a paixão de uma utopia. Rio de Janeiro, Espaço eTempo, 1988. Em contraposição, ver os depoimentos de militares em:D’ARAÚJO, M. Celina et alii. Os anos de chumbo — a memória militarsobre a repressão. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994.

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mara lenta, do ex-guerrilheiro e cineasta Renato Tapa-jós, publicado em 1977 pela editora Alfa-Omega, e logocensurado pelos militares). Nem mesmo a minissérie daTV Globo sobre a esquerda estudantil nos anos 60, AnosRebeldes, gerou tanta polêmica como O que é isso, compa-nheiro?.

O problema é que o filme trata de fatos e persona-gens reais, de uma época sobre a qual há muita curiosi-dade e também muito desconhecimento. Como disse aatriz Fernanda Torres ao jornal O Estado de S. Paulo (1º/05/97, p. D-7): “Precisamos atingir os jovens, eu nãoaprendi nada disso na escola, o cinema tem de ajudar obrasileiro a descobrir a complexidade da história recentedo país.”

Com essas palavras, ela pretendeu defender aprodução, mas paradoxalmente revela a questão de fun-do da polêmica: será que os jovens e outros que nãoaprenderam “nada disso na escola” conseguirão, com ofilme, “descobrir a complexidade da história recente dopaís”? Infelizmente, a resposta é não, como bem demons-tram os artigos e entrevistas desta coletânea. Nesse as-pecto, o mérito do filme é apenas o de tocar num assun-to que parecia esquecido ou ignorado pelo público.

Antes de ver o filme, li algumas entrevistas de seudiretor, que expressava algumas intenções pertinentes,sobretudo as de fugir de estereótipos e de evitar o ma-niqueísmo de apresentar uma história de mocinhos (guer-rilheiros) contra bandidos (a ditadura). Também pareciacoerente, cinematograficamente, a postura de nãoreproduzir na tela, ao pé da letra, as memórias de Gabei-

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ra. E ainda anunciava que seriam explorados aspectosdos conflitos internos das organizações de esquerda, entreos militantes intelectualizados de classe média e os deextração mais pobre.

Ora, a questão é que o filme — mesmo enquantoficção, independentemente de sua correspondência comos fatos históricos — contém vários clichês usuais nocinema norte-americano: um velho sábio que conheceas mazelas do mundo, mas não deixa de sofrer suas con-seqüências (o embaixador seqüestrado); um supermoci-nho idealista e ingênuo, o jornalista revolucionário ins-pirado em Gabeira; um supervilão baseado no militanteJonas, que tem todos os defeitos dos bandidos russos dosfilmes da época da Guerra Fria: calculista, insensível,traiçoeiro, ressentido com o mocinho, para quem armasórdidas arapucas; cenas complementares de sexo e cor-ridas de automóvel. Mas faltam algumas das virtudesdos bons filmes de aventura, especialmente a verossimil-hança na condução da trama — como aponta o artigo deCésar Benjamin nesta coletânea.

A intenção anunciada de romper com maniqueís-mos foi por terra, e mais ainda a de trabalhar com osconflitos internos das organizações clandestinas, ao es-tereotipar como bandido o operário Jonas, tomandoabertamente partido do mocinho intelectual de classemédia, Gabeira. Quanto ao personagem do oficial tor-turador, nada a objetar que ele tenha drama deconsciência, embora isso crie um contraste com o “san-guinário” Jonas — que na vida real era um digno e valentemilitante, morto sob tortura logo após o seqüestro, e

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que nada tem a ver com o personagem do filme, comoexpõe os artigos aqui reproduzidos.

Consta que um torturador, certa feita, procurou D.Paulo Evaristo Arns — arcebispo de São Paulo, defensordos direitos humanos — para pedir perdão. Por outrolado, também é conhecida a história contada peloargentino Perez Esquivel, ganhador do prêmio Nobelda Paz. Ele supunha que seus torturadores, passada aditadura, deveriam estar arrependidos. Qual não foi suasurpresa, quando encontrou na rua com um oficial tor-turador, que lhe disse mais ou menos o seguinte: “Judeuf.d.p., eu devia ter acabado com você naquela época.”

Tenho dúvidas de que a maioria dos torturadoresapresente dramas de consciência. Muitos deles talvezcontinuem a torturar até hoje, agora tendo bandidoscomuns como vítimas. Isso não os impede de terfamília, amigos e outras relações, como qualquer pes-soa. Tam-bém havia homens honrados a apoiar a di-tadura, caso do brigadeiro Eduardo Gomes. Em 1978,ele escreveu uma carta ao presidente Ernesto Geisel,em favor do capitão-aviador Sérgio Miranda de Car-valho. Este, em 1968, recusara-se a obedecer ordemsuperior para executar operações terroristas, que seri-am atribuídas à esquerda, dando pretexto a setores dogoverno para eliminar fisicamente seus adversários.O capitão perdeu o posto, mas evitou que “fosse oPARA-SAR convertido, por um paranóico, em esquadrãoda morte” nas palavras do fundador da Força AéreaBrasileira12. Por sua vez, as organizações de esquerdatinham aspectos autoritár ios e alguns de seus

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militantes chegaram a envolver-se em obscuros casosde execução de supostos traidores13. Fatos como essesdevem ser tratados por cientistas sociais e artistas,evitando simplificações — esperemos que com melhorresultado estético e fidelidade histórica do que o filmede Barreto.

Para não me alongar demais, deixo para os outrosautores comentários mais específicos sobre o filme. Es-pero que os livros indicados, nesta breve introdução àhistória e à historiografia do período, ajudem a evitarque caia sobre o passado um inofensivo e superficial“manto de compreensão e boa vontade” — como bemaponta um artigo de Daniel Aarão Reis —, enquanto sereproduzem e se agravam, nos dias de hoje, as injustiçassociais que deram base aos projetos revolucionários dosanos 60. Eles merecem ser estudados a fundo, em seusparâmetros humanos e historicamente finitos, para quepossamos construir novas alternativas políticaslibertárias.

MARCELO RIDENTE é professor-assistente doutor desociologia na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Autor de O fantasma da revolução brasileira ;Política pra quê? Atuação partidária no Brasilcontemporâneo ; Professores e ativistas da esfera

pública; dentre outros livros e artigos.

12. GORENDER, op. cit., p. 151-2.13. Idem, Ibdem, p.235-238; PAZ, Carlos Eugênio. Viagem à luta armada.Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1996.

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UM PASSADO IMPREVISÍVEL:A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA

DA ESQUERDA NOS ANOS 60

Assim é se lhe parece.PIRANDELLO

I

Houve um tempo, não distante, em que homens sisu-dos e compenetrados entendiam que a história se

elaborava por descobertas, promovidas pela investigaçãoe pela observação crítica. De documentos escritos, fun-damentalmente. Era preciso desenterrar o passado dosescombros do esquecimento. Os fatos estavam lá, à es-pera, ocultos pelos véus da ignorância, como diamantes

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Publicado emTeoria & Debate, nº 32,

jul/ago/set 1996.

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nas trevas da terra, aguardando a luz do olhar arguto dogarimpeiro.

O discurso desses homens foi tão persuasivo que osenso comum, ainda hoje, acredita que a história é issomesmo: a procura incessante da verdade objetiva, únicae definitiva. Segundo esta maneira de ver, em contrastecom o futuro, vivo e irrequieto, sempre aberto à ima-ginação e à ação humanas, o passado, exatamente por játer passado, estaria morto e quieto, prestando-se à análisecalma dos cientistas, como um cadáver petrificado namorgue. Debruçados em torno dele, os profissionais damemória tratariam de determinar o quê, o como, oporquê dos acontecimentos terem acontecido. Commuita isenção e objetividade, caberia a eles pesquisar,encontrar, selecionar, explicar e narrar. E promover al-guns acontecimentos à condição de história.

Mas o que fazer se o morto se levanta, e parece vivo,e foge ao controle, oferecendo cintilações imprevistas?E não é mais possível reconhecê-lo, como se não tivessemais um rosto, mas uma sucessão de máscaras, alterna-das, alternativas. Como um quebra-cabeças, cada peçanova acrescentada modifica a percepção do conjunto.Onde o conforto e a segurança das ponderações objeti-vas?

Nos tempos da União Soviética, os russos diziamviver num país especial, onde era possível saber mais oumenos o que iria acontecer no futuro (agora, nem istosabem mais), mas impossível conhecer o que acontecerano passado, totalmente imprevisível, porque sujeito aosventos e às tempestades das mudanças abruptas do

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poder. Assim, acontecimentos e personagens apareciam,desapareciam e reapareciam nos textos e até mesmo nasfotografias e nos filmes, em variações inesperadas, aosabor de versões cujos fundamentos nem sempre eramperceptíveis pelo comum dos mortais.

Os russos, como de hábito, talvez tenham extrema-do uma tendência. Mas ela existe desde os faraós, quenão titubeavam em raspar inscrições para substituí-laspor outras, mais afeitas ao gosto, às inclinações ou aosinteresses do momento. E, assim, para o bem e para omal, a permanente e diversa reconstrução do passado,sobretudo de seus períodos mais relevantes, acompanhaa trajetória das sociedades humanas desde que o mundoé mundo.

Com as esquerdas dos anos 60 de nosso século, nãopoderia ser diferente. Em nosso país, em todo o planeta,foram anos de movimentos subversivos, de promessas detransformação, de desafios, em que os sistemas estabeleci-dos foram postos a rude prova. Apropriar-se deste passa-do, monopolizar, se possível, a sua memória, passa a serum objetivo crucial para os que vivem e estão em luta nopresente. Inclusive porque, em larga medida, o controledo futuro passa, como se sabe, pelo poder sobre o passa-do, dado, por sua vez, aos que imprimem na memóriacoletiva a sua específica versão dos acontecimentos.

II

A produção de histórias sobre os movimentos deesquerda brasileiros nos anos 60 já é relativamente

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considerável. Não seria possível, em curto artigo1, pas-sar em revista todos os autores relevantes. O que desejo,sem exaurir o assunto, é selecionar algumas versõesemblemáticas, tentar encontrar o seu significado no con-texto da luta pela apropriação da memória. O que menosimporta, esclareçamos logo de início, são as intençõesconscientes dos autores no momento em que elaboraramas versões. Os textos, desde que escritos e divulgados,distanciam-se dos autores, adquirem vida autônoma. Sãoeles que me interessam. E, sobretudo, o papel social ehistórico que desempenharam e seguem desempenhando.

A versão mais difundida apresenta os movimentosrevolucionários dos anos 60 como uma grande aventu-ra, no limite da irresponsabilidade: ações tresloucadas.Boas intenções, claro, mas equivocadas. Uma fulguração,cheia de luz e de alegria, com contrapontos trágicos,muita ingenuidade, vontade pura, puros desejos, ilusões.Diante do profissionalismo da ditadura, o que restavaàqueles jovens? Ferraram-se. Mas demos todos boas risa-das. Afinal, o importante é manter o bom humor.

Estamos falando, como é fácil supor, dos livros deFernando Gabeira e de Zuenir Ventura2. No texto deVentura, o ano começa com uma festa de “arromba”,da sua “tchurma”, por coincidência. E o simpático bair-ro de Ipanema transforma-se no umbigo do país, ali se

1. Veja indicações bibliográficas no artigo “Que história é essa?”, deMarcelo Ridenti, na página 11 desta edição.2. GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro,Codecri, 1979. VENTURA, Zuenir. 1968 — o ano que não terminou. Riode Janeiro, Nova Fronteira, 1988.

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desenrola a síntese dos acontecimentos. Gabeira faz gi-rar a trama de seu relato em torno da Dissidência Co-munista, uma organização revolucionária também basea-da no Rio de Janeiro, da qual fazia parte, como uma(auto) biografia coletiva.

Dois relatos cariocas, talvez expressão do últimocanto de cisne de um período em que a cidade do Riode Janeiro pretendia centralizar os acontecimentospolíticos nacionais. Tiveram excepcional acolhida. Eviraram rapidamente best sellers.

Seria fora de propósito imaginar que o resultado foiobtido apenas porque os autores, como jornalistas co-nhecidos, tinham relações especiais com os grandesórgãos de divulgação. Na verdade, as versões correspon-diam a anseios difusos no país, e as vendagens alcança-das são indicador seguro do fenômeno.

Com o recuo da ditadura militar, e a abertura “len-ta, segura e gradual”, vastos segmentos da sociedade que-riam recuperar a história agitada dos anos 60, reconci-liar-se com ela, mas na paz, na concórdia, sem revan-chismos estéreis, como aconselhavam os militares e oshomens de bom senso. No contexto da anistia recíproca,não seria possível avivar a memória sem despertar osdemônios do ressentimento e das cobranças? Seria comorecordar esquecendo, esquecendo a dor. Não é para istoque temos o recurso do humor?

Gabeira e Ventura seriam mestres nesse exercício,amadurecidos e irônicos, condescendentes, oniscientes,por fora ou por cima do fluxo dos acontecimentos, le-vam pela mão seus personagens, simpáticos incompe-

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tentes, em busca da utopia inalcançável. Em Gabeira, oprocedimento é mais marcado: a visão crítica do período,amadurecida coletivamente no longo exílio, é retrospec-tivamente localizada no fogo mesmo dos acontecimen-tos, concentrando-se no personagem principal. E, assim,Gabeira/guerrilheiro ressurge descolado da ingenuidadeambiente, reescrito pelo autor com uma superconsciên-cia das tragédias que haveriam de vir. Essa atitude dis-tanciada, crítica, irônica, a maioria dos leitores a deseja-va, e assim foi possível reconstruir o passado sem se ator-mentar com ele.

Estes autores foram a expressão mais acabada de seutempo. Daí, insisto, o sucesso alcançado. Que importatenham cometido deslizes na narração das histórias?Confundido acontecimentos, trocado diálogos, atribuí-do-se papéis? Detalhes... Os militares haviam se retira-do e seria talvez incômodo refletir sobre por que a dita-dura fora aturada tanto tempo num país tãodemocrático. Enfim, os exilados voltavam, todos esta-vam satisfeitos e curiosos em reencontrá-los. Um passa-do difícil, não seria possível lembrá-lo sem remorso?Gabeira e Ventura responderam afirmativamente, erapossível elaborar esta síntese. Até hoje, a maioriaagradece penhorada por esta versão ter permitido re-cordar uma história triste sem dor, e ainda com um sor-riso nos lábios.

Avivar a memória para conciliar, todo um progra-ma. Retomado recentemente, e de forma espetacular,pela Fundação Roberto Marinho e pelo jornal O Globo.O dono dos negócios, depois de se ter associado por

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longos anos ao mais virulento anticomunismo, assumiua guarda do acervo/memória dos comunistas brasilei-ros e incentiva debates e pesquisas a respeito do assunto.O jornal se lança à procura dos mortos assassinados pe-las forças armadas. E, assim, fazendo lembrar os temposde uma União Soviética que já não é mais, os terroristasconvertem-se em guerrilheiros, os justiceiros, em assas-sinos, e o jornal, de caçador, transmuda-se em defensordos caçados e cassados, e faz coro a favor das indeniza-ções aos mortos e desaparecidos, vítimas de um regimeque ele sempre sustentou. As cartas se embaralham devez, numa vertigem. De que se aproveita o responsávelpelo filme do seqüestro do embaixador norte-america-no para afirmar, sem sorrir, que não tem nenhum com-promisso com a realidade, a não ser, é claro, com a rea-lidade dos pecuniários benefícios que pretende colher,afinal, nestes tempos neoliberais, converteram-se emvirtudes os vícios de outrora.

Tempos de conciliação. Enquanto durarem, estaráassegurada a hegemonia das versões de Gabeira &Ventura. Reforçadas pela metamorfose dos herdeirosdo doutor Roberto Marinho. E pelos filmes quehaverão de vir.

Nesta sinfonia, os anos 60 terão sido anos vibrantes,mas loucos, e mesmo psicóticos, como chegou a afirmarum roteirista. Sobre eles deve cair um manto de com-preensão e de boa vontade. Não é isso o que de melhorpodemos dar aos meninos rebeldes dos anos 60? Quan-to aos mortos, um cheque de R$ 150 mil, e temos a con-versa resolvida: arquive-se. Anistia para esta dor.

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Jacob Gorender e Marcelo Ridenti3, falando do mes-mo assunto, oferecem uma outra versão. Um combatenas trevas, imposto pela ditadura, em busca de uma ima-gem fugidia, um fantasma, o da revolução.

A luta começa sob pressão do Estado, que aperta ogarrote, estreitando as margens de ação e de oposiçãopolíticas. E silencia e massacra os oponentes com sanha.Trata-se de recuperar o projeto dos vencidos, com-preendê-lo. Resgatar uma memória perdida.

Gorender já era um militante amadurecido nos anos60. Ridenti, ainda um menino, ouvia os silêncios do paidiante de certas notícias e intuía que o mundo não iaassim tão bem. Em meados dos anos 80, de formaautônoma, lançam-se à pesquisa: entrevistas com ex-mi-litantes, consultas aos jornais, aos textos das organizaçõesrevolucionárias e aos processos judiciais.

O resultado é um levantamento minucioso da tra-jetória dos movimentos revolucionários nos anos 60,incluindo-se também outras formas de contestação ecrítica. Os autores não pretendem uma condição deneutralidade. Tomam partido e evidenciam de ondeestão partindo e com que hipóteses estão lidando. Aironia é comedida e, quando emerge, toma como alvoos poderosos da época. Reconstroem estórias e astransformam em história.

Reportagem e pesquisa acadêmica na recuperaçãode gritos amordaçados. Os vencidos guardam o que de

3. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas — A esquerda brasiliera: dasilusões à luta armada. São Paulo, Ática, 1987. RIDENTI, Marcelo. Ofantasma da revolução. São Paulo, Unesp, 1993 (1ª reimpressão, 1996).

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melhor o país tinha para oferecer. Vítimas do poder,resistiram.

E assim os anos 60 aparecem como anos de resistênciademocrática. É este o ponto forte dos livros. Acuadospelo regime existente, sem opções, apenas a resistênciaera possível. Para além dos sonhos revolucionários, eapesar das exaustivas discussões (que, numa ironia já daépoca, exauriam mais os militantes do que as questõesem debate) sobre tática e estratégia, as organizações emovimentos dos anos 60 não fizeram mais do que resis-tir. A um poder que elimina as liberdades, desrespeita aordem jurídica, define políticas de desenvolvimento semconsulta a instituições representativas. Terrorista aqui éa ditadura que invade casas sem mandado judicial, prendee mata sem contemplações, e define a tortura comopolítica de Estado.

Um desmascaramento bem fundamentado das in-terpretações oficiais, uma proposta alternativa aos re-latos acorrentados pela censura, uma denúncia abran-gente dos crimes da ditadura militar. Nos livros deGorender & Ridenti não há meninos rebeldes, há pro-jetos revolucionários, e, antes e acima de tudo, háresistência de mulheres e homens que não se entre-gam. E assim, a luta dos poucos que lutaram com ar-mas na mão exprime a insatisfação de uma sociedadeesmagada. E o descontentamento dos que, emboranão recorrendo às armas, também não se sentiamconfortáveis na ordem vigente. O isolamento dos queforam liquidados pelo aparelho repressivo teria sidomais o resultado dos métodos que utilizaram (com

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os quais a sociedade não se solidarizou), do que davontade de resistir à ditadura.

Não passa por estes livros a sombra morna daconciliação. Nem mesmo com os erros das forças de es-querda. Tiveram um sucesso bastante considerável, porincrível que pareça aos céticos “de carteirinha”, sinal deque ainda há vida crítica neste país, gente à procura decaminhos. Inconformistas e inconformados. Enquantoexistirem tais sentimentos, os textos de Gorender &Ridenti terão um lugar na memória.

Mas as esquerdas não foram apenas vítimas de umaditadura feroz. E é problemática a idéia de conceber asua luta desesperada como resistência democrática.Numa terceira versão, presente em muitos relatos, masdefendida principalmente em meu trabalho4, asorganizações comunistas aparecem como uma contra-elite, alternativa, que parte ao assalto do poder político.

Rejeitando as tradições defensivistas e frentistas dosvelhos partidos comunistas latino-americanos, sobretu-do instauradas em meados dos anos 50, depois do pro-cesso de desestalinização, e inspirada pela vitória da Re-volução Cubana e pela guerra revolucionária no Viet-nã, toda uma geração de dissidentes, desde o início dosanos 60, vai colocar a questão do poder político no cen-tro de suas reflexões, como um desafio imediato.

Era preciso romper com o ceticismo em relação àhipótese de uma vitória revolucionária ao sul do Rio

4. REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo,Brasiliense, 1991.

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Grande. Cuba, nas barbas do grande império, já nãomostrara o caminho? A legenda do Che Guevara, trans-formando os Andes numa ardente Sierra Maestra, es-timulava todos os delírios. Além disso, a revolução cul-tural na China e os movimentos sociais na Europa enos Estados Unidos inebriavam. Os sistemas estabele-cidos pareciam vacilar. O tempo do calmo e sereno de-bate, dos cálculos cuidadosos da correlação de forças,cedia lugar ao tempo da ação transformadora, dela éque surgiria o novo mundo e o homem novo, a revo-lução. Não se tratava mais de morrer, mas de matar,pela revolução5.

Assim, antes da radicalização da ditadura, em 1968,e antes mesmo da sua própria instauração, em 1964, es-tava no ar um projeto revolucionário ofensivo. Os dis-sidentes se estilhaçariam em torno de encaminhamen-tos concretos, formando uma miríade de organizaçõese grupos, mas havia acordo quanto ao nó da questão:chegara a hora do assalto.

Neste quadro os revolucionários não resistem, ata-cam. Alegaram, em seu favor, que os autênticosrevolucionários não pedem licença para fazer a revo-lução. Seria o caso, talvez, de pedir licença ao seu própriopovo. Ora, a história evidenciou que não havia condiçõespara qualquer ataque ao sistema capitalista e que o graude desconforto da sociedade com sua ditadura era maisdo que relativo...

5. A fórmula é de Regis Debray em La critique des armes (Paris, Seuil,1974).

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Aprisionados por seus mitos, que não autoriza-vam recuos, insensíveis aos humores e pendores deum povo que autoritariamente julgavam representar,empolgados por um apocalipse que não existia senãoem suas mentes, jogaram-se numa revolução que nãovinha, e que, afinal, não veio. Pouco antes do fim,lutando como bravos, que eram, ainda imaginavamfustigar, mas apenas se defendiam. Cercados nas ci-dades e, nas cidades, cercados6, emboscados nas alame-das paulistanas, como Marighella, caçados no sertão,como Lamarca e Zequinha, foram trucidados semapelação.

Esta versão, apoiada também em minucioso levan-tamento de documentos e entrevistas, chama a atençãopara a necessidade da revisão de certas tradições fortesna esquerda: o apocalipse, o autoritarismo revolu-cionário, o messianismo de classes e partidos. É expressãode uma certa crítica aos projetos socialistas contemporâ-neos. E se confunde com a utopia, ainda irrealizada, tal-vez irrealizável, de uma esquerda revolucionária edemocrática.

Até o momento, as diferentes e divergentes versõesem debate sondaram os conhecidos territórios da socie-dade e da política. E se, para se captar e restituir a tra-jetória e as contradições dos movimentos revolucioná-rios, fosse necessário explorar outras dimensões, lançan-do mão de outras referências?

6. A fórmula é de Carlos Vainer, e data dos debates no interior daDissidência Comunista da cidade do Rio de Janeiro.

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Nos trabalhos de Herbert Daniel7, ainda de uma for-ma muitas vezes apenas sugerida, desponta aproblemática dos valores que animavam os esquerdistasdos anos 60. Como formular uma história destas lutassem se deter no processo de construção de uma iden-tidade que seria, afinal, a marca distintiva desses proje-tos abortados de transformação do mundo?

Vera Sílvia Magalhães8, em projeto que ascircunstâncias até hoje impediram de levar adiante,propõe a necessidade do estudo da constituição de umethos específico, formado no ambiente estudantil daépoca, saturado pela politização das interpretações, dosdebates, das atitudes. Crise generalizada das ideologiasaté então dominantes: o liberalismo, comprometido porsuas alianças com uma estrutura agrária reacionária epor perspectivas golpistas e antidemocráticas. O desen-volvimentismo, já mergulhado desde os anos 50 na de-pendência e na concentração de renda. O reformismo,incapaz de promover mudanças e, diante do golpe, im-potente para resistir. Desmoralização das alternativasinstitucionais: partidos de oposição que não a faziam,Congresso castrado, eleições viciadas, universidade eli-tista, imprensa legal censurada. Descrença nos valorespropagados pela ditadura e nos contravalores dos proje-tos e partidos alternativos que vinham de ser derrota-dos. O que significavam ainda o PTB, o PCB, o PSB e outros

7. DANIEL, Herbert. Passagem para o próximo sonho. Rio de Janeiro,Codecri, 1982.8. MAGALHÃES, Vera Sílvia. O ethos da Dissidência Universitária doPCB. Plano de trabalho, 1994, mimeo.

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UM PASSADO IMPREVISÍVEL

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partidos menores diante do golpe vitorioso? E quantoàs lideranças consagradas? Quem podia ainda esperar oque de Brizola, de Jango, de Prestes? Sensação de terraarrasada. Marco zero.

Para compreender a conjuntura político-cultural,seria preciso articulá-la com as trajetórias pessoais. Mi-cro e macroestruturas condicionando um processo deelaboração ética coletiva e individual, combinada a umaprática política. Um programa revolucionário queemerge como manifestação de uma identidade construí-da para além da dimensão política.

Esboço de versão. Embora em germe, contém firmesindicações “revisionistas” e enriquecedoras em relaçãoàs propostas já publicadas. Nestes tempos sombrios decapitalismo triunfante, em que se debate desorientadoo ânimo inconformista, será apenas uma coincidência ofato de que esta versão ganhou apenas contornos impre-cisos? E que ainda procura apurar categorias de análise,insegura do próprio terreno que pretende explorar?

III

É tempo de terminar estas considerações. Afinal, oque temos para oferecer? Como compreender os movi-mentos subversivos dos anos 60? Recapitulemos as pro-postas. Primeira: meninos alucinados ou a conciliaçãode uma sociedade cordial, cansada das lutas que não tra-vou. Segunda: resistentes heróicos ou a denúncia de umaditadura com a qual a sociedade não se comprometeu.Terceira: revolucionários que se apresentam como

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contra-elite ou a desconfiança de uma vanguarda ilumi-nada no contexto de uma sociedade que não se revoltoucontra a sua ditadura. E, finalmente, uma versão apenastateante, que refere o processo à construção de uma de-terminada ética, um conjunto de valores, sem a com-preensão dos quais nunca será possível entender essesestranhos anos, quando ainda era possível amar arevolução.

As versões não se equivalem. Talvez seja possívelcombinar aspectos de uma ou outra. Mas não serápossível, mesmo em dosagens sabiamente administradas,incorporar todas num caldeirão só. A sopa resultariaem indigestão de incongruências. As interpretações, nofundo, representam aspirações distintas, interesses dife-rentes. Pense o leitor na que melhor lhe convém, masao marcar a preferência, tenha em mente que faz umaescolha de sociedade, porque, ao decidir por uma versãodo passado, estará se posicionando no presente e pro-pondo uma opção de futuro.

DANIEL AARÃO REIS Fº é professor-titular dehistória contemporânea da Universidade Federal

Fluminense (UFF); foi membro da DissidênciaComunista da Guanabara em 1969.

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HELENA SALEM

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FILME FICA EM DÉBITOCOM A

VERDADE HISTÓRICA

HELENA SALEM

Publicado emO Estado de S. Paulo,

18/04/97.

O que é isso, companheiro? mantém o que já viroumarca das realizações da família Barreto:

produção esmerada, a bonita fotografia do argentinoFelix Monti (o mesmo de O quatrilho), o roteiro bemarticulado de Leopoldo Serran e a direção competentede Bruno Barreto.

Para quem não viveu de perto aqueles acontecimen-tos do fim dos anos 60 — o filme conta a história doseqüestro do embaixador norte-americano no Rio,Charles Elbrick, em 1969, inspirado no livro homôni-mo do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira (hoje deputa-do federal) — talvez não haja maiores restrições a fazer.É um filme que emociona, especialmente no final,quando os guerrilheiros que participaram do seqüestro

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FILME FICA EM DÉBITO COM A VERDADE HISTÓRICA

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e foram depois presos são libertados (por meio de outroseqüestro, do embaixador alemão) e se reencontram comMaria (Fernanda Torres, em parte inspirada na figurareal da ex-militante Vera Sílvia Magalhães) deixando opaís em cadeira de rodas.

No entanto, para quem viveu de perto a luta políticadaqueles tempos, O que é isso, companheiro? há de pro-vocar, no mínimo, polêmica. Ao transformar o perso-nagem de Fernando (Pedro Cardoso) no herói do filme,lhe é atribuído um espírito crítico em relação aos de-mais que ele, como os outros militantes que atuavamnos vários grupos da esquerda e da luta armada, estavalonge de ter nos anos 60. No filme, ele é o intelectual dogrupo, o único que faz uma reflexão mais livre, que tevea idéia do seqüestro (o que não é verdade, ele só soubeda ação poucos dias antes), que escreveu o célebre mani-festo pedindo a libertação de 15 prisioneiros políticos (eum libelo contra a ditadura militar), lido em rede nacio-nal no horário nobre da televisão (na realidade, quem oescreveu foi o hoje jornalista Franklin Martins), e que,por todas essas razões, é tratado com um certo desdémsobretudo pelo comandante da ação, o sectário Jonas(Matheus Nachtergaele). Nada disso está no livro. Pode-se argumentar que o filme é obra de ficção, apenas umaadaptação livre da obra e, como tal, tem toda a liber-dade de inventar. Mas, por outro lado, quando se utilizaos nomes verdadeiros de alguns personagens — de Jo-nas, do velho militante Toledo (Nélson Dantas) e dopróprio Fernando Gabeira (procurando-se inclusive asemelhança física com ele) —, quando se localiza e data

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o fato histórico ocorrido, o argumento da ficção se es-vazia. Essas pessoas e acontecimentos assim nomeadosexistiram, logo algum compromisso com a verdadehistórica deve haver.

Por outro lado, se o filme apresenta o guerrilheiroJonas como um homem frio, disposto a matar qualquercompanheiro que o desobedecer, sem vacilação, confereao torturador Henrique (Marco Ricca) um tratamentobem diferente. Ele sofre angústias, não consegue dormirdireito, tem problemas com a mulher quando ela desco-bre sua real atividade. É um carrasco em conflito (masnem por isso deixa de continuar torturando e matan-do). Já o Jonas, que luta contra a ditadura, que não tor-tura ninguém e que, pelo contrário, acaba morrendo natortura (ao ser preso após o seqüestro), é tratado comoum fascistóide. Nas suas angústias, Henrique é certa-mente bem mais humano.

A questão é: como obra de ficção, o filme precisaser fiel à realidade? Bruno Barreto argumentou, em umaentrevista, que o filme “não é um documentário, masuma interpretação ficcional da realidade”. Tudo bem.Só que essa interpretação — que é datada, localizada eutiliza nomes reais — deve ter, pelo menos, um com-promisso com o espírito do que de fato ocorreu. Podeser que muitos torturadores tenham tido crises existen-ciais como Henrique (o que é de duvidar, assim comotodos os Eichmans da vida), mas os guerrilheiros dosanos 60 não eram tão ingênuos, tolos, caricatos, comosão apresentados (à exceção de Fernando) no filme. Eramjovens que podem ter escolhido caminhos equivocados

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(como a realidade, mais tarde, iria revelar), mas eramgenerosos, indignados, sufocados pela ditatura nos seusanseios de liberdade, e alguns deles foram as cabeças maisbrilhantes de sua geração. É essa generosidade, essa ou-tra verdade que O que é isso, companheiro? não conseguerevelar.

Bem narrado, bem filmado, com ótimos atores, mas,é importante que se diga, O que é isso, companheiro? nãoé “uma história verdadeira”, como vêm anunciando ostrailers .

HELENA SALEM é socióloga, jornalista e mestra emhistória da cultura. É autora de diversos livros,entre eles Palestinos, os novos judeus; 90 anos de

cinema: uma aventura brasileira e As tribos do mal:o neonazismo no Brasil e no mundo.

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PAULO MOREIRA LEITE

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O QUE FOI AQUILO,COMPANHEIRO

PAULO MOREIRA LEITE

Publicado emVeja,

30/04/97.

Com o orçamento de R$ 45 milhões, elenco da Glo-bo e Alan Arkin num papel destacado, O que é isso,

companheiro?, com estréia nacional marcada para 1º demaio, não é um filme inesquecível, mas é uma obra eficaz.Dirigido por Bruno Barreto, faz você sentir medo nahora do medo, ansiedade na hora do suspense, rir depoisde uma piada. O enredo se inspira no livro de mesmonome, escrito por Fernando Gabeira logo após a anistia,best seller que vendeu 500 mil exemplares e descreve umfato histórico. Em setembro de 1969, quando a economiacrescia e a oposição gemia nos porões do regime militar,duas organizações armadas, a ALN e o MR-8, seqüestraramo embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick, para

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trocá-lo por 15 presos políticos. Elbrick foi levado parao cativeiro numa quinta-feira, libertado no domingo,quando os pri-sioneiros já se encontravam no México,mas o Brasil nunca mais seria o mesmo depois disso.

Primeiro de um pacote de quatro diplomatas se-qüestrados entre setembro de 1969 e dezembro de 1970,o cativeiro de Elbrick foi um raríssimo sucesso espeta-cular e instantâneo da esquerda armada, que entrou paraa história com um passivo de derrotas colossais e defini-tivas. Nos quatro dias em que aguardou pelo desfechodo episódio, o país falava do embaixador norte-americanono botequim, nas conversas de escola, nos jantares emfamília, na fila do cinema. Até o seqüestro, o regimemilitar era só demonstrações de força: baixou o AI-5 sus-pendendo as garantias constitucionais, censurou a im-prensa, cassou parlamentares, fechou o Congresso e, nadoença do presidente Costa e Silva, impediu a posse dovice legal, o civil Pedro Aleixo, substituído por umaJunta militar, a dos três Patetas. Com o seqüestro, ogoverno foi obrigado a ceder à ameaça de uma dúzia demilitantes. Em sua maioria, eles eram estudantes commenos de 25 anos, que admiravam Che Guevara, defi-niam-se como guerrilheiros, achavam que o destino daMãe Gentil estava ao alcance de um fuzil e, mais do quetudo, prometiam matar a sangue-frio o embaixador dapotência número um do planeta, caso não fossem aten-didos.

Apenas 24 horas após a libertação de Elbrick, a polí-cia fez seu primeiro prisioneiro e um segundo seqüestra-dor acabou apanhado logo depois. O operário Virgílio

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Gomes da Silva (“Jonas”, na ALN e no filme), que feztreinamento militar em Cuba e comandou a operação,foi morto aos 36 anos, menos de um mês depois. Maisexperimentado líder comunista presente à ação, JoaquimCâmara Ferreira (“Toledo”), 56 anos, sucedeu CarlosMarighella no comando da ALN, mas no ano seguinte jáestava morto. Um a um, pela violência selvagem noporão militar, seis militantes foram presos e condena-dos, os demais deixaram o país para longas temporadasno exílio.

Como é natural quando se leva para o cinema umaobra cuja matriz saiu da vida real, muitas situações fo-ram simplificadas, dois ou três personagens foram fun-didos num só, e assim por diante. No seqüestro de El-brick, apenas uma mulher tomou parte. Vera SílviaAraújo de Magalhães. Em função das torturas recebidasdepois da prisão, ela ficou temporariamente paralítica,e sentava-se numa cadeira de rodas quando deixou o paísbeneficiada por uma nova lista de prisioneiros trocadospor outro embaixador. No filme, as mulheres são duas.Cláudia Abreu seduz a platéia inteira quando jogacharme sobre o chefe de segurança da embaixada, paraobter informações a respeito da rotina de Elbrick.Fernanda Torres faz uma instrutora de tiro que dá liçõesna praia. Pedro Cardoso encarna um Gabeira que con-vence, mas no elenco é Alan Arkin quem dá um showno papel de Charles Elbrick, o diplomata que no inícioda operação era tomado como exemplo do conserva-dorismo norte-americano, até encantar os seqüestradorescom sua crítica ao apoio do governo dos Estados Unidos

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a regimes de força. Depois que tudo terminou, Elbrickfoi mandado de volta aos Estados Unidos e não retor-nou mais. Mas ele também se encantara com os seqüestra-dores. Chegou a se oferecer para testemunhar a seu fa-vor perante a Justiça brasileira.

Existe um defeito comum aos atores do filme, masnão se sabe se a falha é deles mesmos ou dos persona-gens originais, ou até mesmo fruto de uma cisma do ci-nema nacional com a esquerda brasileira. Como já acon-tecia em Lamarca, de Sérgio Rezende, todos os persona-gens de esquerda parecem sempre um pouco mais ner-vosos do que o necessário, gritam muito — como se aqui-lo que fazem tivesse obrigatoriamente um quê de artifi-cial, de postiço, quem sabe neurótico. Fica-se com a sen-sação de que até para pedir um copo d’água o pessoaltem de fazer discurso e agradecer com palavra de or-dem.

O filme possui um bom roteiro, de Leopoldo Ser-ran, com poder para atrair o espectador, envolvê-lo emsua trama e prender a atenção. A versão cinematográfi-ca de O que é isso, companheiro? radicalizou um traço daversão em livro, lembranças autobiográficas no qualGabeira já vitaminava seus próprios feitos, dava um ver-niz charmoso a seu papel e ironizava a atuação de outrosintegrantes da operação. Com personagens que usamnomes e codinomes reais, textos explicando grandesacontecimentos, cenas em preto-e-branco como se fos-sem saídas do arquivo, o filme tenta, o tempo inteiro,dar a impressão de que é um relato de fatos reais, comuma ou outra alteração apenas para facilitar as opções

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dramáticas. Mas é menos cuidadoso do que parece. Nascenas finais, informa que em 1979 o regime militar apro-vou uma anistia destinada a “todos os presos políticos”— na verdade, um punhado deles ficou de fora na época,inclusive um dos participantes do seqüestro de Elbrick,Manoel Cyrillo de Oliveira Netto.

Gabeira é apresentado como o sujeito que teve aidéia do seqüestro, escreveu o manifesto divulgado pelaTV e, por fim, foi o primeiro a fazer o balanço de que aluta armada era um sonho derrotado e sem remédio.Isso está longe de ser verdadeiro. Gabeira entrou e saiuda operação como um militante raso do MR-8, ou poucomais do que isso. Já residia na casa onde o embaixadorfoi abrigado — ali deveria cuidar da imprensa daorganização — e por essa razão ficou no local. Na horados trabalhos finais de limpeza, Gabeira ficou encarre-gado de recolher um paletó que pertencia a um gradua-do participante do seqüestro. Descuidou da tarefa, osmilitares descobriram a peça de roupa, localizaram oalfaiate e acabaram fazendo uma prisão importante.

Apontado como um militante de espírito crítico elúcido, com um pé na ação armada, outro na auto-iro-nia, interessante porque não deve ser levado a sério, oGabeira do cinema é o único seqüestrador com feiçãohumana, que tem não apenas boas maneiras, mas atévida própria. Já seus colegas vivem outra situação. Empermanente crise de identidade, em determinado mo-mento, Maria (Fernanda Torres) precisa ser lembradade seu nome verdadeiro. Numa cena melodramática,Renée (Cláudia Abreu) deixa claro que só resolveu

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seqüestrar o embaixador dos EUA porque papai não lhedava atenção em casa. Outra novidade é a presença deHenrique (Marco Ricca), oficial do Cenimar que coman-da as investigações e tortura prisioneiros.

Após uma discussão com a mulher — que na ocasiãoveste baby-doll e se mostra indignada com os maus-tra-tos —, ele passa a sofrer crises de consciência. É umaidéia interessantíssima expor o conflito interior de umtorturador, apurar como era possível trucidar suas vítimase depois voltar para casa, como bom marido e pai defamília. Esse comportamento duplo não é uma exclu-sividade profissional — médicos e monstros se encon-tram em toda parte. Mas seria uma boa idéia desde queo filme fosse em frente, com coragem e vontade de sa-ber, sem a preocupação de julgar nem de agradar porantecipação. Mas, não. O torturador tem suas crises deangústia apenas depois do expediente, e o filme lhe dáespaço para se justificar, no fundo até dá um certo créditoa suas razões — o que torna seu discurso e seu mal-estarmoral pura retórica, como palavras deslocadas que aliforam colocadas para agradar à platéia de hoje, em tem-pos que são outros.

Em vez de examinar o conflito entre a violência e aconsciência, o filme tenta diminuir a responsabilidadedo oficial-torturador, apenas para mostrar que, além deter uma noção clara do certo e do errado, quando erraele se sente culpado. Já o comandante Jonas (MatheusNachergaele) é descrito como um assassino frio, que dis-tribui ameaças de morte aos próprios colegas sem darsinal de arrependimento. Comparando os vilões de cada

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lado, não há dúvida de que o filme fez sua opção. Otorturador tem direito a um conflito interior, a honrade uma angústia. O comandante do seqüestro é um robôfanático sob a pele de esquerdista. Como observou acrítica Helena Salem, “em suas angústias o torturador émais humano”.

Elbrick morreu em 1983 e, em janeiro deste ano,sua filha, Valery Elbrick, assistiu ao filme numa sessãoprivada em Nova York. “Bruno Barreto fez um traba-lho excepcional”, disse ela. Veja ouviu dois militantesque participaram do seqüestro e assistiram ao filme empré-estréias. Um deles, Manoel Cyrillo, 50 anos, foi quemacertou uma coronhada na cabeça do embaixador norte-americano, no momento da captura. Preso um mêsdepois, Cyrillo cumpriu dez anos de prisão. O que eleacha do filme:

— Ninguém precisa me explicar a diferença en-tre realidade e ficção. É claro que sei o que éisso. Também sei que é possível fazer uma ficçãohistórica, misturando fatos reais e invenção. Nãoé disso que reclamo. Mas este é um filme quetende demais para o outro lado, contra nós. Tudoé a favor do governo, do Exército. Até otorturador é inteligente, pode se explicar. Nós,não.— Se o filme é assim tão ruim, de quem é a culpa?— É nossa culpa, minha culpa. Nós nunca con-tamos nossa versão. Nunca escrevi o que vi, oque passei. Então, os outros contam.

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— Você se emocionou com alguma cena?— Gostei quando os presos chegaram ao Méxi-co. E uma cena boa de lembrar, foi nossa vitória.Também gostei da hora que mostra o seqüestrosendo noticiado na TV. Eu estava na casa, com oembaixador e os outros. Foi um grande momen-to, para todo mundo. Devo ter chorado muito.

O outro militante é Paulo de Tarso Venceslau, 52anos. Ele participou da captura do embaixador e tambémda equipe que soltou Elbrick. Ficou cinco anos na prisão:

— O filme é uma boa aventura. Mas, comohistória, é leviano.— Qual a pior cena?— Existem coisas ridículas. No meio do seqües-tro, Gabeira resolve seguir os policiais queprocuravam a casa onde o embaixador era guarda-do. É um absurdo. Em outra cena duas pessoas,que levam uma mala cheia de metralhadoras egranadas, chegam de táxi à casa do seqüestro. Sórindo.

Co-financiado pela Columbia, produzido com am-bição de fazer bonito no mercado externo — e por issocom Alan Arkin como estrela de primeira grandeza —,O que é isso, companheiro? tem no embaixador seu maiorpersonagem. Elbrick tem um discurso que tenta colo-car ordem no filme, seu olhar examina e julga o que sepassa. Brilhante estudioso do cinema brasileiro, o pro-fessor Ismail Xavier, da Universidade de São Paulo, ob-

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serva que, no final “só o personagem do embaixador pa-rece ter história, não se esfumaça, merece referência”.O professor ficou incomodado com esse tratamentodiferenciado. “E as outras figuras desse episódio? Comolhes dar cidadania para além do ocorrido?”

Sem humanizar os personagens, o filme perde achance de fazer um ajuste de contas honesto com algu-mas mitologias da esquerda — o máximo que mostrasão traços de personalidade, como arrogância, autori-tarismo. Mas havia muito a procurar. Há quem cultivea lenda de que a luta armada só foi iniciada depois que oregime bloqueou os espaços para a atuação política e amobilização popular. É uma tese falsa, pois não haviacarência de democracia apenas no governo. Havia gru-pos de esquerda treinando guerrilha antes da queda deJoão Goulart, e os assaltos a Banco destinados a finan-ciar estruturas clandestinas são anteriores ao AI-5. Essafatia da esquerda produzia seu beco sem saída, um im-passe resolvido pela força bruta, com seu esmagamento.Desprezavam-se os valores democráticos. Não se apos-tava na ação política. O modelo visto como ideal para opaís era uma ditadura, o regime de Fidel Castro.

Como acontece com qualquer filme, do mais popu-lar ao mais erudito, O que é isso, companheiro? é umamontagem e uma remontagem. Uma história que seconta conforme o ponto de vista de quem filma. Nãohavia por que discutir quem venceu e quem perdeu numaescalada de violência que, iniciada em 1969, já estavaencerrada em 1972, quando os últimos integrantes dasorganizações armadas sobreviviam numa delinqüência

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sem perspectiva. Esse mundo clandestino desabou commilitantes presos, foragidos, mortos, desaparecidos. Masos derrotados não são necessariamente menos genero-sos, mais perversos nem mais mesquinhos do que os vi-toriosos, e é uma pena que esse seja o retrato deixadopelo filme. “São máscaras chapadas, sem história, figu-ras feitas disponíveis para a circulação do preconceito”,explica Ismail Xavier.

PAULO MOREIRA LEITE é jornalistae redator chefe de Veja.

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ENTREVISTA COM VERA SILVIA MAGALHÃES

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EX-MILITANTE INSPIRAPERSONAGENS FEMININAS

HELENA SALEM

Publicado emO Estado de S. Paulo,

1º/05/97.

Vera Sílvia Magalhães era da direção da Frente deTrabalho Armado da Dissidência Comunista (que

se transformou em MR-8, a partir do seqüestro do em-baixador Charles Elbrick). Foi ela que, então com 21anos, fez o levantamento para a ação, tendo tambémparticipado diretamente do sequëstro, na cobertura logís-tica. Vera, porém, não permaneceu dentro da casa emSanta Teresa — nenhuma mulher ficou —, mas acom-panhou os acontecimentos passo a passo, por intermé-dio de alguns companheiros que entravam e saíam. Nofilme, ela seria a fonte de inspiração das personagens deCláudia Abreu (que faz o levantamento da ação) e deFernanda Torres, que, como Vera, deixa o país com as

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EX-MILITANTE INSPIRA PERSONAGENS FEMININAS

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pernas paralisadas — quando de sua libertação em trocado embaixador alemão Ehrenfried von Holleben(seqüestrado em 1970), junto com mais 39 prisioneirospolíticos —, em conseqüência das violentas torturas quesofreu na cadeia.

Após tanto sofrimento, Vera, que é economista,mantém-se uma pessoa de bem com a vida, profunda-mente vital, inteligência brilhante, bom humor, gene-rosa, intelectualmente aberta e um espírito profunda-mente crítico. Aos 49 anos, mãe de Felipe (de 19 anos,filho do ex-marido e até hoje grande amigo Carlos Hen-rique Maranhão), Vera conta nesta entrevista ao jornalO Estado de S. Paulo como era a geração que aderiu àluta armada em 1968/1969 e participou do seqüestro doembaixador norte-americano; fala também das ligaçõesdessa geração com o movimento cultural do país naépoca; de torturados e torturadores e das seqüelas quelhe restaram das violências sofridas na prisão.

ESTADO – Como eram os jovens militantes da Dissidência?VERA SÍLVIA MAGALHÃES – Éramos uns 40 militantes euns 30 simpatizantes da Dissidência. Considerávamosque não tínhamos estrutura suficiente para fazer a açãosozinhos, então chamamos a Aliança Libertadora Na-cional (ALN), uma organização mais militarizada que anossa. Era uma questão mais logística. Eu, por exem-plo, que era do Comitê Central da organização, assimcomo o Daniel Aarão Reis, ainda tinha condições decircular pela zona sul do Rio antes do seqüestro. Nósestávamos num processo de acumulação de forças, nun-

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ENTREVISTA COM VERA SILVIA MAGALHÃES

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ca fazíamos ações de conflito, mas ações bem prepara-das, em que não ocorressem tiroteios. Pensávamos numprocesso insurrecional, de ação vanguardista, e entãodecidimos que iríamos pegar o homem, isto é, o embai-xador norte-americano. E esperávamos que dessa açãoresultasse um rebuliço social. Mas nós não éramos unsbobos. Ao contrário, a gente estudava desde os teóricosmais evidentes, como Marx e Engels, até Kant, Hegel,líamos Caio Prado Jr., Wanderley Guilherme — issono que a gente chamava Organização Parapartidária, asOPPs, antes de entrarmos para a organização mesmo.Ainda nas OPPs, em termos práticos, fazíamos algumasações para testar o futuro quadro, como tirar a placa deum carro etc. É difícil medir o tempo, nessa época, nosentido cronológico, para definir essa geração. É umageração que vai lançar depois a guerrilha rural e faz an-tes as ações urbanas de propaganda da luta. Mas nóspensávamos também em romper com os preconceitosda família, com os casamentos formais — a gente se casa-va, mas não era uma coisa formal —, queríamos rom-per com a virgindade. Era um momento de muita ebu-lição, era uma geração libertária. E isso aconteceutambém no teatro, com o Zé Celso Martinez Corrêa,do Teatro Oficina, na música com o Tropicalismo, cadaum com as suas ferramentas. Tinha também o CinemaNovo, nós freqüentávamos o Paissandu, discutíamoscinema. Dias antes da ação do seqüestro, vi com o meumarido na época, o José Roberto Spiegner, A chinesa,do Godard, e aquele filme polonês lindo, Cinzas e dia-mantes. O Carlos Zílio era artista plástico, parou de pin-

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tar durante a militância, mas voltou na cadeia. Assimcomo a contracultura que veio depois, as drogas e orock-n’roll, que a esquerda na época não via, mas tudofazia parte de um mesmo conjunto. A gente queria cons-truir sim, era o nosso sonho. E uma possibilidade.Muitos países tinham se tornado socialistas. Podíamoster um projeto autoritário, de uma guerrilha isolada,não ligada às massas. Mas, na verdade, fizemos mais açõesarmadas do que guerrilha. Eu me digo ex-militante deuma causa, não guerrilheira. Peguei em armas, não queeu gostasse, mas era preciso fazer. Essa geração de 68 éindescritível. Como disse, não é um tempo cronológi-co. Em 1969, houve o seqüestro, num contexto queabrange desde a luta armada até a luta cultural. Nósnão éramos uns babacas. Claro que a ação do embaixa-dor norte-americano foi jacobina, não tínhamos forçaspara o que viria depois.

ESTADO – Eram todos do movimento estudantil?VERA – Não, não éramos todos estudantes: o João LopesSalgado era um ex-militar que estudava medicina, e o Jo-nas, o comandante da ação, um operário de origem cam-ponesa. O Salgado atendia as pessoas feridas nas ações. Nóstínhamos mais uma estrutura de partido, enquanto a ALN

atuava em grupos. Na ação do seqüestro, participaram oitoda Dissidência e quatro militantes da ALN, entre eles o Jo-nas e o Toledo (Joaquim Câmara Ferreira). O Marighellafoi contra o seqüestro, quem foi a favor foi o Toledo. Foium marco na vida da gente. O primeiro a cair foi o Cláu-dio Torres, que não disse nada.

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ESTADO – No filme, o Jonas aparece como uma pessoa ex-tremamente dura, disposta a matar qualquer companheiroque o desobedecesse. Era isso mesmo?VERA – Não, o Jonas era um quadro de origem cam-ponesa, ele estava ali porque era um comandante mili-tar mesmo. Os quadros políticos da ALN eram o ManoelCyrillo e o Paulo de Tarso, que eram muito mais pró-ximos de nós. O Jonas sabia manter a ordem, a discipli-na, coisas fundamentais para uma ação. Eu não ia con-versar com ele sobre cinema, mas sobre revolução. Eledizia que quem corresse, durante uma ação, ele atiravaprimeiro no militante e depois no policial. Evidente-mente, isso era mais uma figura de efeito, de comandan-te de ação. Mas ele não falava que, quem desobedecesse,ele ia matar. Era muito fechado, sim. Parece que na casaele relaxava mais, segundo me disse o Cláudio Torres,que estava lá, e entrava e saía. Mas o Jonas foi um caraheróico, que morreu estraçalhado na tortura, esquarte-jado, tinha tudo na mão, até mesmo onde ia ser a guerri-lha rural, e não abriu nada. Também não houve isso doGabeira ser designado para matar o embaixador. Atendência era não matar ninguém, era uma ação típicapara ninguém morrer. O Jonas era uma pessoa dura,muito eficiente como comandante, mas nunca o ouvifalar em torturar o embaixador (como aparece no fil-me), nunca houve isso. Quando fomos soltar o embai-xador, já sabíamos que a Marinha estava lá, mas fomoscalmamente. O Cláudio que se precipitou e o carro decobertura, onde eu também estava, afastou-se. E houve,sim, uma ordem do Exército para não abrir fogo, porque

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aí morreríamos todos, até mesmo o embaixador. Eu nãofiquei dentro da casa, fiz o levantamento da ação, fiqueino fusca de cobertura com o Salgado durante o seqüestroe, na saída, com o Cláudio Torres.

ESTADO – O filme sugere que a personagem de CláudiaAbreu, que faz o levantamento da ação, dorme com o chefeda segurança do embaixador. Isso aconteceu mesmo?VERA – Não houve nada disso. Todo mundo sabe, éuma coisa cultural, que a mulher oferece mais segurançapara uma atividade dessas. Você pode jogar com asedução, mas sem ir às vias de fato. Nunca tive relaçãocom nenhum segurança. Era muito fácil se aproximar,fazer perguntas, ele mesmo gostava de contar para semostrar. Eu me apresentei como uma moça de classemédia baixa, que queria ver os jardins da embaixada,voltei lá umas três vezes, fiz as perguntas evidentes, se oembaixador fazia sempre o mesmo roteiro etc., ele fa-lou sozinho, queria valorizar-se. Mas nunca ocorreu deuma mulher de esquerda ter relação com um homemcom o qual ela não tinha nada a ver para fazer um le-vantamento. A gente não era agente secreto. Eu ia lá,acho que ele me achou bonitinha, foi falando, era tro-ca de olhares e conversa. Não cabia na nossa cabeçatransar com um segurança da embaixada norte-amer-icana ou de Banco. Para que ir para a cama? Conse-guíamos sempre o que queríamos só com uma pe-quena aproximação. Eles tinham uma visão da mulherbastante limitada. Depois, quando marcavam o encon-tro, a gente não ia.

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ESTADO – Quando e em que circunstâncias você foi presa?O que lhe aconteceu na prisão, que fez com que você saíssede cadeira de rodas?VERA – Fui presa em março de 1970, numa ação depanfletagem junto com o Zílio, o Daniel Aarão Reise a Regina Toscano. O José Roberto Spiegner, queera meu marido, já tinha morrido num cerco à nossacasa na Penha. A organização propôs um recuo de-pois do seqüestro, só fazíamos panfletagem de pro-paganda, tínhamos ainda o dinheiro de um assaltoque havíamos feito à casa de, acho, um candidato avereador do MDB. Fomos todos muito torturados. Eulevei um tiro na cabeça, tive uma convulsão cerebral,muita tortura psicológica também — estou pagandoaté hoje por isso. A tortura foi enlouquecedora. Nãosabia que dia, que hora era; quando eles me mos-traram diante de um espelho, não me reconheci. Tam-bém não disse o que eles queriam e acho que foi me-lhor para a minha cabeça. Não acho que exista issode heroísmo, depende de cada um, de como você sesente. Nossa organização era muito ética, acho que ageração 1969 lutava por uma ética, uma estética, quecontinua até agora. Acho que deixamos legados éti-cos, estéticos, que você tem de lutar contra o lance-lote de espada na mão. A tortura é uma punição quete culpabiliza para o resto da vida e, para quem ce-deu, é mais dura ainda. Foi muito barra-pesada. Fiqueisem andar por causa do pau-de-arara, muitas horascom os pés e as mãos amarrados, pendurada, levandochoque. Mas quando cheguei em Argel me recuperei

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logo. Houve muitos homens que saíram sem andartambém, como o Fayal, o Mário Japa.

ESTADO – Você se deparou com torturadores que, aparente-mente, tinham angústias, como no filme?VERA – Na minha tortura, não havia nada de angús-tia dos torturadores. Diziam-me que eu seria tortura-da como Jesus Cristo, era uma Sexta-Feira Santa. Eutive uma atitude como homem, de me fazer mais fortedo que eu era. E fui torturada como um homem. Amulher do Lobo (Amílcar Lobo, o psiquiatra quemais tarde seria denunciado como torturador) eracostureira da minha mãe e, quando ela soube dahistória pela minha mãe, expulsou-o de casa. Ele atinha levado até a nossa casa. Isso é conflito ou esqui-zofrenia? Claro, o torturador é um ser humano, coma função específica de destruir-nos, e eles conseguiramdestruir muita gente. Era uma pseudoguerra. Nós deum lado, armados, e eles de outro, superarmados. Elesnos colocaram numa situação de humilhação total.O Lobo torturou o Daniel, a mim não. Eu fazia psi-canálise havia muito tempo e para mim isso é esqui-zofrenia, não é angústia. Ele era metido a sedutor,mas muito bruto, parecia um psicopata. Eles nãoeram débeis mentais, montaram um esquema. Oschefes da tortura não foram pegos. Tinha o Zambins-ky, que conversava comigo, o Fontenele, esses con-versavam. Era um teatro. Todas as hipóteses sãoviáveis, mas acho que a mais viável é que eles esta-vam numa missão, a de nos destruir. Não me interes-

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sa uma classificação para essas pessoas. Eu estavanuma posição oposta a elas na sociedade.

HELENA SALEM é socióloga, jornalista e mestra emhistória da cultura. É autora de diversos livros,entre eles Palestinos, os novos judeus; 90 anos de

cinema: uma aventura brasileira e As tribos do mal:o neonazismo no Brasil e no mundo.

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FICÇÃO É JULGADASOB AS LENTESDA HISTÓRIA

HELENA SALEM

Publicado emO Estado de S. Paulo,

1º/05/97.

Professor-titular de história contemporânea na Uni-versidade Federal Fluminense, 51 anos, autor de

nove livros (e de uma tese de doutorado na USP sobre aesquerda nos anos 60, intitulada A revolução faltou aoencontro), Daniel Aarão Reis Fº era membro da direçãoda Dissidência Comunista (que se rebatizaria de Movi-mento Revolucionário 8 de Outubro, o MR-8),responsável junto com a ALN (Ação Libertadora Nacio-nal), liderada por Carlos Marighella, pela ação doseqüestro do embaixador norte-americano Charles El-brick, em setembro de 1969, retratada no filme O que éisso, companheiro?, de Bruno Barreto, com roteiro deLeopoldo Serran, inspirado no livro homônimo do ex-

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guerrilheiro e atual deputado federal Fernando Gabei-ra. Meses após o seqüestro, Daniel foi preso, violenta-mente torturado, sendo trocado com mais 39 prisionei-ros políticos pelo embaixador alemão Ehrenfried vonHolleben, seqüestrado em junho de 1970, e enviado paraArgel com os demais presos libertados.

Como historiador e participante ativo daquelageração que seqüestrou o embaixador norte-americano,ele tem uma visão bastante crítica em relação à formacomo Bruno Barreto apresentou os fatos em seu filme.Nesta entrevista, Reis — que após ser enviado a Argel,esteve em Cuba, graduou-se em história na França e le-cionou essa disciplina em Moçambique, vivendo umperíodo também em Portugal — faz uma análise minu-ciosa dos acontecimentos de 1969, critica o olhar “cari-catural dos autores do filme sobre os guerrilheiros” e “oolhar generoso” conferido ao torturador, afirmando quea questão mais importante que o debate sobre o filmedeve colocar é a “da apropriação da memória histórica”.E, conclui ele: “Ninguém faz um filme histórico impu-nemente.”

ESTADO — Como surgiu a idéia do seqüestro?DANIEL AARÃO REIS Fº — Desde que nós constatamosque o Vladimir (Palmeira, detido no Congresso Estu-dantil de Ibiúna, em 1968) provavelmente iria ter umaprisão prolongada. O Vladimir não tinha cargo dedireção na Dissidência, mas era a principal referência danossa organização, uma liderança nacional estudantil e,dentro da organização, uma liderança política, a pessoa

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mais preparada politicamente. Então, quando ele foipreso, nós tivemos esse movimento de libertá-lo, coisaque, aliás, o apavorou muito: ele tinha muitas dúvidassobre a nossa capacidade — dúvidas acertadas —, e temiaque uma tentativa de libertação pudesse resultar emmorte para nós e para ele mesmo. Recebemos uns reca-dos dele, ficamos até um pouco ofendidos na época. Masera muito difícil fazer isso e a idéia de um seqüestro fi-cou assim no ar. Havia a idéia de seqüestrar um general.Até que essa idéia do seqüestro do embaixador norte-americano surgiu dentro da organização. Alguns dizemque ela já teria sido sugerida, há mais tempo, por ummilitante nosso, que era estudante de economia, JoséRoberto Spiegner, que morreu em 1970, aos 19 anos.Ele e o Sérgio Rubens, que era estudante de psicologia,teriam tido essa idéia, conversando, mas assim muito debrincadeira. Posteriormente, em termos mais precisos,a idéia foi trazida para a direção da organização, da qualeu fazia parte, pelo Franklin Martins, que tinha conver-sado com o Cid Benjamin a esse respeito. Nós ficamosmuito encantados — eu, o Cláudio Torres, que faziaparte da direção também —, porque a perspectiva que oFranklin nos trouxe não visava a apenas pegar o embai-xador e trocá-lo pelo Vladimir. Mas se trataria de umaação que se inseriria num contexto mais amplo.

ESTADO — Que perspectiva era essa?REIS — Os movimentos de guerrilha urbana tinham feitomuitas ações até então, mas ações que eram muito isola-das, várias inclusive não se reivindicavam como ações

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revolucionárias. Embora a imprensa já tivesse noticia-do que o Marighella estava atrás de pelo menos algumasdaquelas ações, ainda havia uma certa atmosfera na so-ciedade de que aquelas ações poderiam estar sendocometidas por criminosos comuns. Não havia ainda umaassociação muito clara entre a multiplicação de ações eexpropriações de fundos, como nós chamávamos asações contra Bancos e instituições financeiras, e as ex-propriações de armas, como parte de um movimentorevolucionário. Embora as pessoas mais informadas jáestivessem sabendo dessa ligação. Então, a ação doseqüestro do embaixador norte-americano começou aser pensada entre nós não apenas para ser trocada umapessoa pela outra, mas como uma ação para apresentarà sociedade um movimento revolucionário, que era mui-to dividido naquele momento, mas tinha uma perspec-tiva comum.

ESTADO — A Dissidência Comunista, à qual vocês perten-ciam, já tinha se tornado MR-8?REIS — Não, a Dissidência ainda era Dissidência. Então,a idéia era fazer — inclusive porque tinha-se a infor-mação, da ALN, que era a organização do Marighella, ede outros, de que no ano de 1969, no máximo,começariam as ações de guerrilha rural — um manifestoque falasse disso, que tentasse globalizar o conjunto dasações feitas até então e anunciar um próximo desdobra-mento da ação revolucionária, que seria a guerrilha ru-ral. Ou seja, havia uma intenção clara de politizar a ação,e foi dentro disso que nós escolhemos a Semana da Pá-

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tria para a realização do seqüestro. Havia um contextomuito favorável, que era a doença do Costa e Silva e opoder estava meio desbaratado, enfrentando muitas con-tradições: eles tinham impedido a posse do vice-presi-dente, haviam composto uma Junta militar. Embora aditadura não estivesse ameaçada, a cúpula do poder es-tava relativamente fragilizada. Daí a ação ter sido pensa-da para a Semana da Pátria, para desestabilizar ainda maiso poder. E a terceira dimensão da ação foi tirar 15 pri-sioneiros políticos. Pensamos que, com um homem des-ses na mão, o embaixador norte-americano, não iríamostrocá-lo só pelo Vladimir, mas fazer uma lista. Primeiro,pensamos em cinco, depois em dez e depois em 15. Alista tentava ser ecumênica: juntavam-se os três militan-tes da nossa organização que estavam presos — o Vladi-mir, a Maria Augusta e o Ricardo Villas-Boas — e pes-soas representativas das mais diferentes organizações. Atémesmo o Gregório Bezerra, que era do Partidão1, a gen-te incluiu, para dar essa dimensão ecumênica à ação. Valedizer que nós, na época, estávamos animados por todauma perspectiva catastrófica, que era de que a ditadurairia se radicalizar cada vez mais e, portanto, os presos,mesmo aqueles com sentenças pequenas, iriam apodrecerna cadeia. Daí a idéia de libertá-los. Logo depois da ação,pelo impacto que ela teve, nós tivemos a compreensãode que, se tivéssemos pedido a libertação de todos ospresos políticos, a gente teria conseguido. Mas éramos

1. Partido Comunista Brasileiro (PCB), que se posicionou contra a lutaarmada.

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muito imaturos para ter, naquele momento, a dimensãodo peixe graúdo que nós havíamos pescado e o impactoque provocamos.

ESTADO — E por que a adoção do nome MR-8?REIS — Nós adotamos, como Dissidência, esse nomecomo mais uma ação de contrapropaganda. Porque, noprimeiro semestre de 1969, o Cenimar (órgão deinformação da Marinha) tinha desbaratado a Dissidênciado Estado do Rio, que era uma organização sem nome,porém tinha um jornal mimeografado que eles chama-vam de 8 de outubro, em homenagem ao dia da mortedo Che Guevara na Bolívia (08/10/1967). Quando oCenimar estourou essa organização, não podia anun-ciar que estourou uma organização sem nome. Entãoinventou, batizou a organização — uma coisa que pou-ca gente sabe — como Movimento Revolucionário 8 deOutubro, para que tivesse maior repercussão. Nós, queconhecíamos aquelas pessoas (e como o Cenimar ti-nha feito um grande estardalhaço sobre o fim do MR-8),resolvemos adotar o nome de MR-8, porque issotambém servia para nos encobrir — a Dissidência Co-munista era conhecida nos meios de esquerda, masmuito pouco nos meios da repressão. Então, nós nosencobrimos sob esse nome e, ao mesmo tempo, des-moralizamos aquele estardalhaço que a ditadura ti-nha feito havia alguns meses sobre o fim do MR-8.Então, o seqüestro foi assinado pela ALN e pelo MR-8.Depois, com a repercussão que a ação teve, nós resolve-mos assumir esse nome, MR-8.

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ESTADO — E a ALN entrou por quê?REIS — Éramos muito jovens, tínhamos pouca experiên-cia, nossa organização armada era muito pequena, entãoprocuramos a ALN porque julgávamos que ela tinha pes-soas com mais experiência na luta armada. Depois daação, refletindo, ainda naquela época, concluímos quenós tínhamos condições de fazer a ação sozinhos, porémtínhamos uma insegurança muito grande. A ALN nosmandou quatro militantes: eram dois quadros estudan-tis como nós, mais o Jonas, que era realmente um ho-mem com maior experiência da ação armada, que vinhado velho Partidão e tinha acompanhado o Marighellano racha da ALN, e o Toledo, que era um homem politi-camente muito experiente — achávamos que ele seriacapaz de nos dar conselhos políticos relevantes. Afinalnão foi assim, inclusive o manifesto foi redigido peloFranklin Martins, houve pequenas correções feitas peladireção, mas mínimas, irrelevantes, o texto todo é doFranklin. O Toledo leu o texto, ficou maravilhado, disse“ótimo”. O Toledo foi para dentro do aparelho, mos-trando, a meu ver, hoje, uma certa inexperiência, porqueele, como um quadro mais experiente, deveria se pre-servar, ficar fora do aparelho, aconselhando os que esta-vam fora a gerenciar aquela crise. Ele entrou, de repenteteve uma certa vaidade de participar da ação. Depois agente soube que o Marighella chamou a atenção dele,no sentido de que ele não deveria ter feito isso.

ESTADO — E qual foi o papel do Fernando Gabeira emtodo esse episódio?

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REIS — Bom, o Gabeira, como jornalista muito talento-so, tinha vindo para a organização em 1968 e passou aatuar num organismo que chamávamos de Frente dasCamadas Médias: uma frente de atuação na classe média.O movimento estudantil já estava em recuo, todos osmovimentos de classe média também, mas a gente man-tinha muitos contatos entre os jornalistas, bancários eadvogados (menos). Essa frente tinha o objetivo de or-ganizar todo esse pessoal em apoio às ações armadas que,desde abril de 1969, tinham se tornado o foco principalde atuação da organização. Na verdade, tínhamos doisfocos de ação principais: as ações armadas e as ações deagitação nas fábricas. E um terceiro foco importante, deapoio a esses dois, era o foco nas classes médias, e o Ga-beira fazia parte dessa frente. Uma coisa que essa Frentedas Camadas Médias reclamava muito era de que nãotínhamos uma imprensa autônoma. Daí, com o dinhei-ro colhido nas expropriações, compramos uma máquinaMultilite — uma máquina de mimeógrafo mais sofisti-cada — e instalamos numa casa na rua Barão dePetrópolis. E a única maneira de termos aquela casa sobcontrole estrito da organização era colocar um militan-te alugando a casa. O Gabeira era o único militante quetinha essa condição, era mais velho para a época, já ti-nha sido jornalista — nesse momento, ele já estava profis-sionalizado pela organização —, era um cara que estavanas Camadas Médias e ia gerenciar a Multilite. O Gabei-ra foi ser assim a capa legal da casa. Essa casa era para sermuito preservada, na perspectiva inicial, porque seria acasa da nossa imprensa clandestina.

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ESTADO — E como ela se tornou o “aparelho” para escond-er o embaixador norte-americano?REIS — Quando resolvemos fazer o seqüestro, e discuti-mos isso na Frente de Trabalho Armado (FTA) e nadireção, tínhamos resolvido uma série de questões quedeveriam preceder a ação. O Franklin era o cara maisentusiasmado. Eu diria mesmo que, sem ele, talvez oseqüestro não tivesse se realizado. Não só ele veio coma idéia mais consolidada, como ele lutou muito paraimplementá-la. Nessa época, ele era muito jovem, eutinha 23 anos, ele devia ter 20 ou 21 anos. Eu e o Cláu-dio Torres (o Cláudio menos, eu mais) receamos que aação pudesse resultar num desbaratamento completo daorganização. Então, a gente estabeleceu uma série derequisitos para fazer a ação. Todos os quadros teriam deter aparelho de reserva para se refugiar, caso o aparelhoexistente fosse descoberto. A gente tinha de descobriruma casa em ótimas condições para guardar o embaixa-dor etc. Poucos desses requisitos tinham sido alcança-dos quando foi se aproximando a data ideal para a ação,que era a Semana da Pátria, e o próprio aparelho paraguardar o embaixador não existia: a gente não tinha con-seguido alugar uma casa em boas condições para isso.Aí, por insistência do Franklin, resolvemos levar o em-baixador para a casa da nossa imprensa clandestina. Oque, em termos de uma política de segurança mais ge-ral, era uma autêntica loucura. Mas nós achamos queesse risco deveria ser corrido em proveito de todas ascircunstâncias que aconselhavam a realização da açãona Semana da Pátria. Tínhamos também descoberto, no

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levantamento, que era facílimo seqüestrar o embaixa-dor norte-americano, que ele andava sem segurança,cumpria sempre o mesmo trajeto. A Vera Sílvia fez umtrabalho muito importante no levantamento da ação,indo à porta da embaixada, engabelando os seguranças.

ESTADO — A personagem da Cláudia Abreu tem algumacoisa da Vera Sílvia?REIS — Tem, embora o filme se permita dizer que aCláudia transou com o chefe da segurança do embaixa-dor, o que na vida real não aconteceu. É uma pimentaque os autores do filme colocam na história, que, a meuver, não precisava disso para se tornar emocionante. Ahistória tem uma carga de emoção muito forte para exi-gir essa pimenta que eles resolveram pôr. A Vera cons-tatou então todas essas facilidades e o nosso temor erade que poderíamos perder um momento politicamentemuito importante — que era a Semana da Pátria —, quenas semanas seguintes a ditadura poderia ultrapassaraquela crise que a estava fragilizando — e a históriamostrou que isso tinha um certo fundamento. Sabem-os hoje que o almirante Rademacker, membro da Juntamilitar, não queria transigir na libertação dos 15 prisio-neiros, enquanto o Lyra Tavares, que era ministro doExército, acabou impondo a sua posição. Nós tínhamosmedo de que o momento político passasse, a fragilidadeda ditadura se alterasse e o próprio embaixador re-solvesse se tornar um homem mais prudente na suasegurança. Isso tornaria a ação mais difícil, de sorte quetudo isso fez com que a gente cedesse e consentisse no

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aproveitamento da casa da Barão de Petrópolis, em San-ta Tereza, para ser sede do aparelho onde seria escondi-do o embaixador norte-americano. O Gabeira entrouna ação assim, ele só soube do que ia acontecer nopróprio dia da ação. Nós, naturalmente, o prevenimospara que ficasse em casa, porque seria realizada umagrande ação. Mas só soube mesmo qual seria essa açãoquando o embaixador chegou em casa. Ele não tevenenhuma participação na elaboração da ação. Nesse sen-tido, o filme mente conscientemente, ao atribuir a idéiado seqüestro ao Gabeira. Ele nunca teve essa idéia. Aliás,em entrevistas anteriores, no fim do exílio, ele muitasvezes dava a entender que tinha tido essa idéia e tinharedigido o manifesto, mas depois ele próprio veio apúblico esclarecer que não. Inclusive, tem uma cena dofilme em que ele fica histérico, dá um chute no fogão,dizendo: “Puxa, a idéia foi minha, vocês querem meexcluir da ação.” Isso não foi verdade. Eu não sei atéque ponto os autores do filme querem com isso provo-car os participantes da ação a sair a público para dizerque isso é uma mentira, para poder dar uma publicidade,provocar uma polêmica a fim de angariar mais algunstrocados para o filme. O enredo da história não pre-cisaria apresentar o Gabeira como autor da idéia, nemcomo autor do manifesto, coisas já devidamente esclare-cidas.

ESTADO — E também ele é colocado como um personagemmais crítico que os outros, sofrendo por isso o desprezo dosdemais guerrilheiros...

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REIS — Olha, o Gabeira foi um intelectual, como muitosnaquela época, que quando veio para a luta armada ab-dicou de toda uma visão crítica a respeito das concepçõese dos métodos da luta armada. O Gabeira, nesse senti-do, é muito representativo de um conjunto de intelec-tuais, não só do Brasil, mas da América Latina, da Eu-ropa e dos Estados Unidos, nos anos 60, às vezes muitosofisticados, que aderiram à luta armada, abdicando detodo um aparelho conceitual e crítico que eles even-tualmente tinham acumulado. No livro O que é isso,companheiro?, o Gabeira apresenta toda uma visão au-tocrítica que a esquerda foi acumulando no exílio, umaautocrítica que foi se elaborando progressivamente,depois da queda do Allende2, no Chile, e o Gabeira apre-senta essa visão como sendo dele, indivíduo, e como seele tivesse tido uma visão desde 1964. Ele não só indi-vidualiza a autocrítica como a coloca retrospectiva-mente, como se nunca tivesse sido diferente. E isso éuma falsidade. Se o Gabeira tivesse essa crítica aguda doprocesso todo, ele nunca seria admitido numaorganização de esquerda. Eu me lembro perfeitamenteque ele, inclusive — e eu não digo que era umacaracterística dele não, mas nossa —, tinha uma pro-pensão até a ver com uma certa repulsa o passado delecomo intelectual. Eu me lembro que quando nós fo-mos trocados pelo embaixador alemão e chegamos em

2. Salvador Allende, eleito presidente do Chile em 1970 pela coalizãode esquerda Unidade Popular (UP). Em seu governo lutou parasocializar a economia, realizar a reforma agrária e nacionalizar asindústrias. Foi derrubado em 11/09/73 por um violento golpe militar.

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Argel, vieram os cubanos, e quando a mídia internacio-nal quis nos ouvir, muito naturalmente indicamos oGabeira como representante da organização para o con-tato com a mídia — e ele não gostou disso. Dizia quenós estávamos querendo confiná-lo a uma condição dejornalista, enquanto ele era um revolu-cionário, não eramais um jornalista. Posteriormente, quando os cubanosvieram nos encontrar (porque depois nós fomos todospara Cuba, ou pelo menos quase todos), o homem ládo aparelho de Estado cubano se comprazia sadicamentede chamá-lo de periodista (jornalista em castelhano) eele se revoltava contra isso, ficava indignado, dizia queera provocação: “Eu sou um revolucionário, não souum jornalista.” Mais adiante, com a derrota da esquer-da, o Gabeira foi recuperar a sua visão crítica de in-telectual refinado — que ele era quando aderiu à lutaarmada —, e isso de certo modo o ajudou a percorrer atrajetória da autocrítica. Agora, toda essa visão críticaque aparece em O que é isso, companheiro? ele efetiva-mente não tinha. O que não significa que ele não era,então, uma pessoa já irônica, o que o distinguia de mili-tantes mais sectários, mais truculentos. Realmente, nocaso do Gabeira, apesar de toda a renúncia à condiçãode intelectual, seria uma falta de nuance muito grandenão reconhecer que ele se distinguia naquele conjuntocomo uma pessoa mais irônica em relação aos nossosdelírios, fraquezas, que ele compartilhava também,porque se não compartilhasse, não entrava na aventu-ra. A aventura exigia uma completa adesão às con-cepções catastróficas que eram as nossas, a crença sem

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limites numa revolução que efetivamente não estava emcurso e assim por diante.

ESTADO – Quem ficou dentro da casa?REIS – O próprio Gabeira, que fez todo um trabalho deidas e vindas, de pegar comida, botar as mensagens. OCláudio Torres também fazia as idas e vindas para a casa.Havia também um jardineiro, que era um militante daDissidência que veio da Bahia, pois estavámos em pro-cesso de fusão com a Dissidência da Bahia. Esse jardi-neiro havia sido chamado para compor a capa legal dacasa. Depois, estavam ainda o Toledo e o Jonas, o ManoelCyrillo e o Paulo de Tarso Venceslau, da ALN; e, daDissidência, o Franklin, o próprio Gabeira, o João LopesSalgado, que era o subcomandante geral da ação e o co-mandante por parte da Dissidência. Talvez, no filme, elestenham feito daquele militante mais alto (interpretado porLuiz Fernando Guimarães) — os dois eram mais altos etinham um ar muito sério, compenetrado, eram muitodeterminados – essa fusão dos dois, mas é uma caricatura.

ESTADO – Vocês tinham contato freqüente com o pessoalde dentro da casa?REIS – Por meio do Cláudio Torres, eu com ele, queéramos da direção, e também com outros elementos daFrente de Trabalho Armado, como o Cid, a Vera Sílviae o Sebastião Rios, que participaram da ação e ficaramfora da casa, mantendo contato. Por exemplo, o Cid seaproximou da casa no momento em que o embaixadorfoi solto. Nós sabíamos que a casa estava cercada. Até a

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rua Paulo de Frontin, realmente, houve uma perseguiçãoem que os agentes do Cenimar mostraram suas armas eos meninos também mostraram as deles. Mas, natural-mente, eles não queriam começar o tiroteio antes quesoltássemos o embaixador. Afinal, com aquela coisa dojogo — não era Flamengo e Vasco, era Palmeiras e nãosei quem — as pessoas da ação tinham previsto alibertação do embaixador na hora que o jogo acabassepara se diluir na multidão e isso foi um raciocínio bemfeito, porque efetivamente funcionou.

ESTADO – Como você vê a abordagem que o filme faz da-quela geração de 1968/69?REIS – Acho que o filme é muito infeliz no tratamentodaquela geração, porque ele a representa de uma manei-ra extremamente caricatural. Aquela história dos meni-nos voltados de cara para a parede (enquanto a militan-te Maria fala com eles) nunca existiu. Os autores do fil-me deram uma demonstração de preguiça intelectualmuito grande, porque se eles tivessem feito uma pesqui-sa séria, teriam podido retratar — até porque não faltamaspectos caricaturais naquele momento — aspectos en-graçados, pitorescos, e poderiam fazer um bom filme.Mas eles devem ter feito uma pesquisa miserável, muitorápida. De sorte que eles se permitem apresentar umatruculência dos guerrilheiros urbanos que não se sus-tenta e é uma injustiça à época, não é um retrato daépoca. Havia entre nós pessoas intratáveis, sectárias, masde forma nenhuma chegava àquele ponto caricatural queo filme apresenta. O filme, na verdade, em relação aos

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militantes revolucionários, só preserva a imagem doPaulo, isto é, do Fernando Gabeira, que é o único per-sonagem conflituoso, rico. Os outros personagens sãomonolíticos. Acho que se eles tivessem feito uma pes-quisa mais séria, teriam descoberto os conflitos que exis-tiam até mesmo nos mais sectários, e poderiam ter feitoum filme mais rico. Por outro lado, os autores do filmesão capazes de ver conflitos nos personagens do embai-xador e do torturador. Mas não vêem conflitos nos guer-rilheiros, à exceção do Gabeira. Isso, a meu ver, não éuma coisa gratuita. Acho que esse filme se insere numatendência que é marcante no Brasil de hoje, derecuperação dos anos 60 sob um prisma conciliador.Acho que, como sempre, há uma luta em torno daapropriação do passado. Em todas as sociedades há sem-pre uma luta de um passado em geral e de momentoscríticos desse passado. Acho que os anos 60 foram críti-cos e, naturalmente, há uma tendência a umaapropriação deles. Uma dessas tendências é conciliadora,apresenta sob um prisma alegre toda essa etapa da nossahistória. Ela está presente fundamentalmente em doislivros: o do Gabeira e o do Zuenir Ventura (1968 — oano que não terminou). Acho que esse filme radicalizaessa tendência, leva a limites que o Gabeira e o ZuenirVentura não haviam chegado, que são esses limites daapresentação do torturador sob uma luz generosa.

ESTADO – Por que radicaliza?REIS – No caso, radicaliza porque o Gabeira faz umaanálise dos torturadores no livro muito interessante, a

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meu ver, e inclusive inovadora para a época, no sentidode que havia uma tendência a apresentar os torturadorescomo debilóides. E muitas vezes eles apareciam comodesvairados. Ora, no exílio, como antes, nós todos sabía-mos que a tortura não era uma obra de bate-paus, erauma política de Estado determinada nos altos escalões.A ditadura contava com bate-paus, com psicóticos, mastambém com jovens analistas do serviço secreto do Exér-cito, que eram jovens de classe média, bem formados,com suas famílias, que desempenhavam na tortura umpapel tão central quanto um bate-pau. Porque, na ver-dade, tortura não se resolve com bate-pau, tortura seresolve fundamentalmente com a figura do analista, queé a pessoa que analisa os depoimentos e orienta o bate-pau sobre que perguntas ele deve fazer, que rumos eledeve dar ao interrogatório etc. A figura do analista éfundamental na tortura. O Gabeira fez essa denúncia,tanto numa entrevista ao Pasquim quanto no livro dele.Ora, o filme faz uma leitura rápida e pouco rica dessadenúncia do Gabeira. Porque, no filme, a tortura aparecequase como uma decisão que os torturadores estão to-mando por conta própria. Inclusive, como você deve serecordar, em determinado momento o torturador falanum esquema alternativo e, depois, quando aquela au-toridade intervém para deter os agentes, isso tambémestá ligado a uma visão geral que procura a absolviçãoda ditadura como responsável pela tortura. E, além dis-so, conclama a sociedade a olhar para o torturador comgenerosidade e compreensão. Então, nesse sentido, o fil-me radicaliza as tendências presentes nos livros do Ga-

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beira e do Zuenir. Acho que, se esse filme tiver sucessode público como os livros do Zuenir e do Gabeira tive-ram, ele estará confirmando uma tendência que, a meuver, ainda é hegemônica na sociedade brasileira, que é ade ter uma visão compreensiva com a ditadura — que,aliás, é coerente com a trajetória dessa sociedade quederrubou a ditadura. Eu sempre faço um paralelo comos meus alunos, nas minhas aulas e palestras, do fim daditadura no Brasil com a sociedade francesa e a ocupaçãonazista. Até hoje, é muito difícil para a sociedade fran-cesa admitir que ela colaborou com o nazismo. Então,eles exaltam os feitos da Resistência, quando sabemosque a Resistência agrupou uma minoria irrisória de pes-soas; só no final da guerra ela começou a receber re-forços etc. Mas a França não se libertaria do nazismograças à Resistência. Ela se libertou graças ao exércitonorte-americano e aos russos, que quebraram a máquinamilitar nazista. Aqui, a meu ver, a sociedade brasileiraprecisa encarar — haverá um dia, espero — criticamenteo que aconteceu. Agora, há uma forma mais triste, a derecuperar a ditadura para absolvê-la abertamente. Nosanos 80, a sociedade brasileira viveu essa questão comdificuldade. Os livros do Gabeira e do Zuenir foramimportantes para abrir um terreno de conciliação, emque a crítica é feita, mas dentro de certos limites. A pro-posta geral é a conciliação.

ESTADO – E o filme se insere nesse mesmo contexto?REIS – O filme radicaliza esse movimento. Pode ser que,na esteira desse filme, se a repercussão for positiva, nós

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cheguemos à absolvição total da ditadura. Outro dia euestava vendo um programa das Frenéticas (elas hoje sãomulheres maduras) e elas estavam conclamando a quese recuperassem os anos 70, dizendo que os anos 70 fo-ram muito bonitos, alegres. A sociedade brasileira temuma certa repulsa por esses anos, assim como a francesatem em relação à ocupação nazista. Vamos ver se, nessaluta pela apropriação da memória, acabam prevalecen-do as perspectivas críticas em relação à ditadura e à co-laboração que largos segmentos da sociedade tiveramcom ela. Outro dia, conversando com um amigo — queparticipou do processo —, ele me dizia que talvez essefilme seja, muito mais do que a nossa história, na reali-dade a história de como os autores do filme a viram ecomo os Barreto viveram os anos 70. De repente, elestêm necessidade de apresentar essa visão conciliatóriada ditadura e, talvez, aí esteja a explicação da maneiracomo são apresentados os anos 60 no filme.

ESTADO – E como foram as relações dos guerrilheiros como embaixador norte-americano durante o seqüestro?REIS – Elas foram muito boas, segundo os relatos querecebemos. Desse ponto de vista, o filme relata algumafidelidade. Ele realmente era um liberal, declarou-se fran-camente contra a ditadura, um homem que não tinhacontrole sobre a CIA, assim como ele fala no filme, pro-vocando uma certa surpresa na gente. Encontramosdocumentos com o embaixador altamente comprome-tedores para o governo brasileiro. Inclusive, a pessoa queestava na casa e saiu com esse material infelizmente foi

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capturada pela repressão mais tarde. Havia várias gra-vações de entrevistas com o embaixador, que nós pre-tendíamos utilizar para denúncia contra a ditadura. Enós iríamos supor, depois, que a maneira como o gover-no brasileiro quase exigiu a saída do Elbrick do país —logo após o seqüestro ele foi aos Estados Unidos, vol-tou para o Brasil e pouco depois saiu do Brasil de novo— e as versões divulgadas pelo governo não ficarammuito claras. Talvez fosse o caso de pesquisar nos arqui-vos norte-americanos, para ver o que eles dizem a res-peito. A hipótese que tínhamos na época era de que tal-vez o governo brasileiro tivesse pedido a saída do El-brick pela forma altamente comprometedora como eleagiu durante o seqüestro. Ele fez críticas à ditadura, elecompreendia a ação dos guerrilheiros urbanos, mais tar-de ele fez esse mesmo tipo de declaração nos EstadosUnidos. Ele fez uma declaração compreensiva com osseus captores.

ESTADO – Só o Gabeira falava inglês?REIS – Não, também o Cláudio Torres e o próprioFranklin Martins falavam inglês com ele. As duas mu-lheres também são uma invenção do roteiro: acho queos autores pretenderam apresentar o lado afirmativo daVera Sílvia (a Fernanda Torres) e o lado doce da VeraSílvia (a Cláudia Abreu). O personagem interpretadopor Fernanda Torres está muito caricatural. Acho que,como atriz, ela merecia mais do que ganhar um papelcaricatural como aquele. A outra moça, interpretada porCláudia Abreu, se sustenta melhor no filme. Os outros

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personagens masculinos são todos caricaturais, salvo oToledo (Nélson Dantas) e o Gabeira (Pedro Cardoso),naturalmente, que é um bom ator e ambos se sustentambem no jeito como são apresentados. Em geral, comofilme de ação, me pareceu muito mal, embora a minhaantipatia por toda essa versão subjacente possa ter in-fluenciado minha avaliação sobre o filme.

ESTADO – Então, você, como professor de história — já queforam feitas diversas sessões para professores de história doRio —, o que diria para seus alunos sobre esse filme?REIS – Eu diria que é um filme que representa umatendência conciliadora de recuperação da memória.Acho, inclusive, que as polêmicas sobre o filme deve-riam se centrar nessas questões gerais e não na coisa dese o Gabeira fez o manifesto ou não fez, se teve a idéiaou não. Essas são polêmicas interessantes, têm o seu lu-gar, mas acho que o fundamental é discutir o que essefilme representa como proposta de recuperação dos anos60 e o que ele representa na luta pela apropriação damemória. Não adianta os autores dizerem que quise-ram fazer uma ficção, que não tem nada a ver com arealidade. Isso é uma balela, eles estão envolvidos na luta,conscientemente ou não. Por exemplo, já existe umapequena filmografia brasileira sobre a guerrilha urbananos anos 60. O Murilo Salles fez um filme (Nunca fomostão felizes), mas nenhum outro filme tinha assumido umaperspectiva tão conciliadora como O que é isso, compa-nheiro? assume. Acho que essa é a grande polêmica emque o filme deve estar inserido — a apropriação da

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memória, isto é, a generosidade com o torturador, a idéiade que a ditadura não está comprometida com a tortu-ra, a idéia de que o torturador é um homem dividido,de que os guerrilheiros urbanos são um bando desectários e idiotas. Essa é, eu insisto, uma proposta queradicaliza as tendências já manifestadas pelo Gabeira epelo Zuenir. Acho que isso é grave, e nesse âmbito é queo centro da polêmica deve ser tomado. Se a sociedadebrasileira quiser absolver a ditadura, que faça essa opçãoe dê um Oscar ao filme. E se ela resolver consagrar eaprofundar a sua crítica à ditadura e fazer, inclusive, aautocrítica de seu colaboracionismo, então deve repu-diar o filme e deve solicitar dos cineastas novos filmes.Nós já temos dois belíssimos trabalhos sobre essa épocacomo A história oficial (de Luis Puenzo) e Tangos, o exíliode Gardel (de Fernando Solanas), ambos argentinos,lindíssimos filmes que mostram os guerrilheiros no seusectarismo e mostram até mesmo os torturadores nosseus conflitos. Veja, eu não quero fazer o que os autoresdesse filme fizeram com os sinais trocados. Mas A históriaoficial e Tangos apresentam perspectivas críticas à dita-dura, eles fazem uma opção. E também o Nunca fomostão felizes, do Murilo Salles, fez uma outra opção contraa ditadura, enquanto esse filme, O que é isso, companhei-ro?, faz uma opção a favor da ditadura. A gente não fazfilme histórico impunemente. Isso, para mim, é que é oquente na discussão.

HELENA SALEM é socióloga, jornalista emestra em história da cultura.

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CINEMA NAERA DO MARKETING

CÉSAR BENJAMIN

Publicado noJornal do Brasil,

20/05/97.

Nos primeiros dias de setembro de 1969, o país vi-veu em suspense: o embaixador norte-americano

era refém de um grupo guerilheiro no Rio. Impasse etensão. A crise ainda não tinha desfecho visível quandoo Centro de Informações da Marinha (Cenimar) locali-zou e cercou o cativeiro. As autoridades — e, por exten-são, os guerilheiros — viram-se diante de decisões queenvolviam não só conseqüências políticas, mas a vida ea morte. Divididos sobre a aceitação das exigências dogrupo, os militares tinham agora a possibilidade de umataque direto. A Junta que ocupava a presidência acom-panhava as operações em tempo real, passo a passo:

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recém-empossada sob contestação de todos os lados, sa-bia não ter controle total sobre a tropa.

Esse foi um dos momentos dramáticos do episódioque estamos todos revendo nas telas, em O que é isso,companheiro?, de Bruno Barreto. Um prato feito paraprofissionais do suspense, gente dotada de olhar argutosobre paixões e sentimentos humanos, roteiristas hábeisem reconstruir contextos ou desvendar, às vezes pormeio de detalhes, a lógica de funcionamento de meca-nismos decisórios em situações de tensão. Principal-mente se todos têm a seu favor a liberdade que a recri-ação ficcional propicia. Recordemos a narrativa do fil-me: o agente da Marinha está a um passo de confirmara informação mais cobiçada daquele momento. Dificil-mente teria outra chance como essa em sua carreira.Disfarça-se de trabalhador telefônico, sobe num postea poucos metros da casa (passando de vigia a vigiado),instala as engenhocas de escuta. Uma vez lá em cima, oque faz? Liga para a namorada, é claro. Desce, tira omacacão e toca a campainha da casa, travestido de ou-tra coisa qualquer. Só não muda o próprio rosto, visívelpara os guerrilheiros, um pouco antes, no alto do poste.Segue-se curto diálogo. Seqüestradores e agentes fare-jam-se uns aos outros. Estes últimos se retiram, sen-do seguidos numa rua deserta, a um metro e meio dedistância, pelo saltitante guerrilheiro Paulo. Aga-chado atrás de um muro, nosso herói espicha opescoço e ouve a comunicação dos militares com suacentral. A base dos especialistas em segurança, comose vê, não tinha segurança nenhuma.

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De volta, o guerrilheiro-espião confirma aos demaisa inquietante suspeita: a casa fora localizada. Estavamcercados. Que fazem, então, nas cenas seguintes? O ex-periente Jonas desmonta sua própria metralhadora eprossegue em maquinações infantis contra Paulo. Este ea comandante Maria — durona, mas no fundo carente— vão para o quarto fazer amor, pois ninguém é de fer-ro. Segue-se um animado bate-papo geral na cozinha,regado a cerveja, embora sem pagode (afinal, a casa esta-va cercada!). Depois o grupo se junta na sala da televisãono andar térreo, todos de costas para a janela, atrás daqual — eles sabiam — estava a polícia.

Não, meus amigos, não é um roteiro de Casseta ePlaneta. É do nosso filme do ano, que não foi feito paraser engraçado. Fui vê-lo e pensei: se fizéssemos guerri-lha com a incompetência com que essa gente faz cine-ma, teríamos lutado uma ou duas semanas, se tanto, nãoanos. A não ser que esteja correta outra informação queSerran e Barreto nos dão: em nosso encalço estava umaparato policial-militar que se resumia praticamente aum só indivíduo, aliás com dramas de consciência. En-tre uma e outra discussão com a namorada, esse coitadofazia os relatórios de praxe, montava estratégias de in-vestigação, ia atrás de donos de botequins, escalavapostes, tudo observava, envolvia-se em perseguições einterrogava presos. Será que, ao menos, ganhava horaextra?

O que é isso, companheiro? mostra que o cinemabrasileiro evoluiu muito — principalmente no marketing.Profissionalismo, seriedade e talento, escassos na con-

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cepção do filme, transbordam na operação publicitáriaque o cerca. Queriam polêmica em torno dessa versãodo seqüestro, pois polêmica vende. Com dinheiro e com-petência, contratando bons profissionais, semearamdiscussões imaginárias sobre maniqueísmo, ficção, rea-lidade, liberdade de criação, esquerda, patrulhamento.Inventaram a versão crítica de que necessitavam, feitasob medida para ser espancada: como ninguém a assu-mia, produziram o portador metafísico dessa versão in-ventada, “a esquerda”. Nos dias de hoje, para lembrarCasablanca, ela é a suspeita de sempre.

A operação de marketing, maior do que o filme,segue a mesma técnica disseminada no mundo damídia, que molda o mundo da nossa pseudocultura.É intrinsecamente autoritária, pois sua eficácia de-pende de garantir para si completa liberdade. Precisadesqualificar previamente, e sem apelação, adversáriosreais ou imaginários, efetivos ou potenciais. Precisamanter controle sobre qualquer irrupção imperti-nente do real, de modo a usar a verdade, para lem-brar Guy Debord, como um momento fugaz da men-tira. E, antes de tudo, precisa impedir que as pessoasformem livremente o próprio juízo, ou seja, que pen-sem: o dinheiro investido e a perspectiva antevistade lucro são grandes demais para que se corra esserisco. Vende-se assim tudo o que o sistema desejavender: sabonetes e refrigerantes, a Companhia Valedo Rio Doce, corpos femininos, um novo filósofo,cigarros, a felicidade, um filme, intelectuais contes-tadores. E os políticos que aí estão. Os únicos anta-

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gonistas reais dessa grande engrenagem são os quedecidem ficar fora dela.

No caso de O que é isso, companheiro?, o barulhopublicitário serve para esconder algo simples: a não serem dois ou três bons momentos, o roteiro é primário,os personagens são pobres, a recriação de situações hu-manas não é competente. Os autores do filme poderiamter feito a opção de não abordar diretamente a tortura,assunto marginal à temática central. Quiseram mostrá-la. Mas, como tudo é relativo e não parece haver maisvalores a defender, apresentam uma tortura limpinha,que quase não dói, no corpo ou no espírito. Mantêmeqüidistância até mesmo aí. Opção discutível. Ela podelevar a dupla a produzir, no futuro, um roteiro quemostre a complexidade humana, certamente real, de cin-co jovens de Brasília, em contraste com os defeitos, reaisou inventados, de um pataxó desavisado (creio que nãoo farão, por enquanto: análises mercadológicas desacon-selhariam esse filme).

Desculpem, mas a tortura não é bem assim. A va-lentia do torturado, quando ele não quebra, concentra-se toda na tentativa elementar de controlar o desespero;sua esperança, quando consegue mantê-la, é usar a únicaarma que lhe resta, pois em horas, ou poucos dias, umaorganização clandestina desfaz os laços que ligam o mi-litante preso e os demais.

Estabelece-se uma corrida contra o tempo para osdois lados, tão desiguais. Isso produz ambientes bemdiferentes dos que o filme nos mostra: em lugar de umagente conservador, dez ou doze, muito excitados. Medo,

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degradação, humilhação. E fedor. Pois a tortura fede —a suor, sangue pisado e excremento, que se acumulamdias a fio no chão, nas paredes e no corpo do seviciadonu. Grita-se muito. Vê-se a morte. Sente-se uma imen-síssima sede — e nada disso tem a ver com maniqueísmonenhum. Nem tudo é relativo.

Serran e Barreto só combatem o maniqueísmo quan-do lhes convém. Onde dizem seguir princípios, fazemescolhas. Vejamos Jonas: é um canalha perfeito, queameaça de morte seus companheiros, faz intrigas irri-tantes, submete o refém a tortura moral e precisa sercontido para não escalar em direção a atitudes mais bár-baras (Jonas, na vida real, foi o operário Virgílio Gomesda Silva, militante respeitado e digno, de longa trajetória,trucidado na Operação Bandeirantes; não teve chancede escrever livro contando suas façanhas nem creio queviesse a ter interesse nisso). Vejamos Paulo: tem a idéiado seqüestro (é criativo), conquista o coração de Maria(é sedutor), recusa-se a usar capuz diante do embaixador(é elegante), diverge abertamente das malvadezas de Jo-nas (é ousado), escreve um belo manifesto (é inteligente),fala inglês (é culto), percebe que a luta armada está isola-da (é maduro) e, quando pendurado no pau-de-arara,responde com gracinhas corajosas às gracinhas do tortu-rador. Vai para o trono ou não vai? (Paulo, na vida real,é Fernando Gabeira, cujo relato, considerado fantasio-so por seus companheiros, serviu de base aos autores dofilme.) Quanto aos outros, nada a dizer: são figurantescaricatos ou anódinos, desertos de humanidade. O ta-lento dramático do roteirista esgotou-se em dois perso-

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nagens, o bom e o mau, e a única esperteza antima-niqueísta é que eles foram colocados no mesmo lado.

O que é isso, companheiro? terá o destino de todamercadoria ruim, porém bem lançada: badalação, su-cesso e esquecimento, caminho inverso ao percorridopor obras de arte. Que ninguém fique triste com isso:novas mercadorias serão bem lançadas, no tempo devi-do, para prosseguir a fuga para frente de que nossa so-ciedade precisa. Não creio — fique claro — que o fil-me seja mal-intencionado. Talvez seja o máximo queSerran e Barreto consigam realizar. Mas, num país quefaz música, literatura e teatro da melhor qualidade, es-ses cineastas aprendizes continuam nos devendo traba-lhos à altura da empáfia que ostentam, dos lobbies quetêm e do dinheiro que ganham. E, agora, do marketingque aprenderam a fazer.

CÉSAR BENJAMIN é editor da Editora Contraponto;foi membro da Dissidência

Comunista da Guanabara em 1969.

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VERSÕES E FICÇÕES:A LUTA PELA

APROPRIAÇÃO DA MEMÓRIA*

DANIEL AARÃO REIS Fº

Publicado emO Globo,

06/05/97.

O senso comum, ainda hoje, acredita que a históriaé a procura da verdade objetiva, única. Mas, o que

fazer, quando aparecem diferentes versões, como se averdade tivesse não um rosto, mas uma sucessão demáscaras, alternadas, alternativas?

A experiência dos anos 60 é assim: como um que-bra-cabeças, recusa-se a avaliações definitivas. Temposcríticos, de movimentos subversivos, em que os siste-

* Este artigo retoma, de forma resumida, idéias desenvolvidas peloautor em "Um passado imprevisível"(p. 31), às quais junta-se umaanálise do filme O que é isso, companheiro?. Apesar de haver repetições,o autor e o editor preferiram mantê-lo integralmente nesta coletâneapara preservar sua integridade e lógica interna. (NE)

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mas estabelecidos foram postos a rude prova. Apropriar-se deste passado, monopolizar, se possível, a suamemória, passa a ser um objetivo crucial, inclusiveporque, como se sabe, o controle do futuro passa, emlarga medida, pelo do passado, dado, por sua vez, aosque imprimem na memória coletiva a sua específicaversão dos acontecimentos.

No Brasil, sobre o período, há muitas propostas deanálise e interpretação. O que desejo neste artigo é ape-nas selecionar a versão mais difundida na luta pelaapropriação da memória coletiva. Ela apresenta os mo-vimentos revolucionários dos anos 60 como uma gran-de aventura, no limite da irresponsabilidade: ações tres-loucadas. Uma fulguração, cheia de luz e de alegria, con-trapontos trágicos, muita ingenuidade, vontades, dese-jos, ilusões. Diante do profissionalismo da ditadura, querestava àqueles jovens? Ferraram-se. Mas demos todosboas risadas. Afinal, o importante é manter o bom hu-mor.

Estamos falando, como é fácil supor, entre outros,do livro de Fernando Gabeira, O que é isso, companhei-ro? (Rio de Janeiro, Codecri, 1979). Teve excepcionalacolhida, virou best seller. A versão, sem dúvida, corres-pondia a anseios difusos no país, e o sucesso alcançadoatesta o fenômeno.

Com o recuo da ditadura militar, no quadro da aber-tura “lenta, segura e gradual”, a sociedade queria recu-perar e se reconciliar com a história agitada dos anos 60,mas na concórdia, sem revanchismos estéreis, comoaconselhavam os militares e os homens de bom senso.

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No contexto da mal chamada anistia recíproca, não se-ria possível avivar a memória sem despertar os demôniosdo ressentimento?

Gabeira foi um mestre neste exercício. Amadureci-do, irônico, condescendente, onisciente, por fora do flu-xo dos acontecimentos, leva pela mão seus personagens,simpáticos incompetentes, em busca da utopiainalcançável. A visão crítica do período, amadurecidacoletivamente no longo exílio, é retrospectivamentelocalizada no fogo mesmo dos acontecimentos, concen-trando-se no personagem principal. E, assim, Gabeira/guerrilheiro ressurge descolado da ingenuidade ambien-te, reescrito pelo autor com uma superconsciência dastragédias que haveriam de vir. Esta atitude distanciada,crítica, irônica, a maioria dos leitores a desejava, e as-sim foi possível reconstruir o passado sem se atormen-tar com ele.

Gabeira e seu livro foram a expressão mais acabadade seu tempo. Que importa o autor ter cometido desli-zes na narração das histórias? Confundido acontecimen-tos, trocado diálogos, atribuido-se papéis? Detalhes... Osmilitares haviam se retirado e seria talvez incômodo re-fletir sobre por que a ditadura fora tolerada tanto tem-po num país tão democrático. Avivar a memória, man-tendo uma visão crítica, mas para conciliar, todo umprograma.

O filme de Bruno Barreto, recentemente lançado,radicaliza este programa, vai além. Já não se trata depropor a conciliação crítica, ou a crítica conciliatória,trata-se, agora, de absolver a ditadura. Claro, a proposta

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não vai sem ambigüidades: afinal, num país de 150milhões de democratas (alguém duvida?), não seriapossível tratar de forma bruta um tema tão sensível.

Assim, temos direito a um final emocionante, cadaum enxugando, no canto do olho, uma lágrima furtiva,diante da jovem guerrilheira na cadeira de rodas.

Mas o essencial está na apresentação dos contendores.Dois, sobretudo, emblemáticos. De um lado, o tortura-dor delicado, dilacerado, cheio de dúvidas e de questio-namentos. De outro, o guerrilheiro truculento, mono-lítico, cheio de certezas. Não importa que o primeirotenha, na vida real, dilacerado o corpo do segundo, trans-formando seu cérebro numa poça de sangue (perdoempela falta de tato, mas foi exatamente assim que aconte-ceu). O roteirista já se permitiu a declaração de que “to-dos têm suas razões”. Certo, mas por que não expuse-ram as razões — e os conflitos — dos guerrilheiros? Ondeestão os conflitos de Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, oque teve o cérebro esmagado pelo torturador delicado?Onde sua trajetória de homem do campo que veio paraa cidade, virou operário e se transformou num militan-te revolucionário? Será que este tipo de homem rudenão tem direito a dúvidas? Talvez, quem sabe, estavertente não tenha sido explorada porque os autores dofilme estejam mais próximos, social e culturalmente, dotorturador do que do torturado.

Uma coisa é certa: não deixaram de apresentar umVirgílio Gomes da Silva complexo e rico por falta desaber e de sensibilidade. Tanto que alguns personagensvivem conflitos intensos, emocionados, emocionantes.

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Ou seja, os autores do filme sabem apresentar como ricose complexos alguns personagens, e não outros. Trata-sede uma opção.

E de uma proposta. O que pensar, por exemplo, deuma guerrilheira com um quepe do exército, transfor-mada num verdadeiro sargentão, totalmente ridícula, eridicularizada? Ou de um grupo de militantes passandopor um exame iniciático, em pé, de rosto para a parede,exatamente como fazia a polícia política com os guerri-lheiros?

Exatamente como a PM faz ainda hoje com favela-dos e vítimas de suas arbitrariedades? O que pensar dacena em que uma guerrilheira transa com o chefe dasegurança da embaixada para obter informações, numareprodução fiel e exata da versão simplória e poucolisonjeira que os homens da ditadura tinham das mu-lheres que lutavam contra o regime que eles representa-vam. Não se trata apenas de preguiça intelectual na pes-quisa de época, trata-se de uma proposta que se esmeraem confundir papéis, e propõe equivalências, diluifronteiras...

Por outro lado, e mais expressivo, a tortura apareceno filme como um acidente, um excesso. E as autori-dades mais altas, na única vez em que aparecem, é paracontrolar e apaziguar os torturadores sinceros, mas radi-cais. Ora, não se pode ignorar que a tortura era uma políticade Estado, sistemática, terrivelmente eficaz. Foi ela, e nãoo suposto profissionalismo das Forças Armadas, que des-truiu o movimento revolucionário, de resto condenadohistoricamente pelo seu isolamento social e político.

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Os belíssimos filmes argentinos — também ficcio-nais — A história oficial e Tangos, o exílio de Gardel, sou-beram apresentar todos os seus personagens de formarica e complexa, mas sem perder a visão crítica, contun-dente, da ditadura feroz. Lacombe Lucien, filme francês,fez de uma ficção uma denúncia perturbadora e bela, eperturbadora porque bela, do colaboracionismo da so-ciedade francesa com o nazismo. O filme de Barreto es-colheu outro caminho: é generoso com a ditadura e seusagentes, e mesquinho com os que a ela se opuseram. Érisível dizer agora que se trata apenas de uma ficção.Senhores, a ficção é freqüentemente muito mais pode-rosa, para a apropriação da memória de uma época, doque os tratados sociológicos e históricos mais sérios. Osautores do filme apresentaram, apesar, talvez, deles mes-mos, uma proposta. A mais completa e bem articuladaaté hoje no sentido da absolvição da ditadura.

Se conseguirão, ou não, que a sociedade engula apílula, é uma outra história...

DANIEL AARÃO REIS Fº é professor-titular de históriacontemporânea da Universidade Federal

Fluminense (UFF); foi membro da DissidênciaComunista da Guanabara em 1969.

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EMIR SADER

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LEÕESE CAÇADORES

EMIR SADER

Publicado emO Globo,

10/05/97.

Até que os leões tenham seus próprios historiadores,as histórias de caça continuarão glorificando o caça-

dor”, diz um provérbio africano. Uma autobiografia, pordefinição, é feita post-festum. Quando a festa acabou, osolhares já são outros, os sonhos (se existiram) se desfize-ram ou foram renovados, mudamos nós e o Natal e ficamuito difícil reconstituir o clima que inspirou os gestos.Não se pode pedir que autobiografias substituam a história.Antes de mais nada, porque são feitas a partir de um ego,com todos os riscos da egotrip, que fala de como ele viu ecomo participou de um tempo passado.

No caso da literatura do que foram os nossos tem-pos de chumbo, aqueles em que a resistência à ditadura

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LEÕES E CAÇADORES

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só podia se dar no espaço da luta clandestina, armada ounão; a derrota, a prisão, a tortura, a morte de tanta gen-te que compartilhava ideais e destino, o exílio, se an-tepõe entre o que vivemos e o que somos no momentodo relato. Quando se volta sobre aqueles tempos, é im-portante saber não apenas quem o faz (que ego, qual oseu tamanho etc.), mas a partir de que lugar social serevê aquele passado.

Visto assim, o vivido pela geração dos anos 60 podeparecer uma “aventura sem sentido”, como diriam vozes,prematuramente envelhecidas do alto de seu ceticismo,que beira o cinismo, ou “caminhos conscientemente es-colhidos para a morte”, como sentenciam os que usam apsicanálise não para decifrar, mas para justificar. Falta algoessencial à maioria dessas “óticas retrospectivas”, a história.Em que condições uma parte pequena mas representativada geração optou por aquele caminho de luta?

Sem reconstruir o clima dos anos 60 — ao lado dosanos 20, a década em que a história do século esteve maisaberta — nada pode ser compreendido. Daí a debilidadedas autobiografias, se se pretende que elas dêem contado que aconteceu. Como falar daqueles “brancaleones”,sem recordar que com eles estavam Sartre, os guerri-lheiros vietnamitas, Glauber, os Beatles, Che, Bob Dy-lan, Chico Buarque, entre tantos outros — em suma, oque de melhor a humanidade havia produzido?

Aquele gesto militante da juventude, do qual tantosse arrependeram — sem que nunca tenham tido momen-to mais bonito e generoso em toda a vida, à sombra dopoder ou da aposentadoria — tinha um significado preci-

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EMIR SADER

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so: assaltar o céu, transformar radicalmente aquela socie-dade que revelava, já naquele momento, sua profunda in-justiça, sua concentração de poder e sua exclusão social,sua tendência à mercantilização da vida e ao embruteci-mento das consciências. Quem não pensar assim, terá passa-do ao largo do significado mais profundo de tudo aquilo.

Muita tinta correu desde então sobre aqueles episó-dios. O livro de Fernando Gabeira teve, antes de tudo, omérito de ter sido escrito. É um acerto de contas dele.Quem reclama de seu relato — que, à medida que os de-poimentos vêm à tona, revela cada vez mais seu caráterficcional e não de relato factual — o faz com razão, secomprometendo com a reconstrução das coisas na suaverdadeira dimensão. A releitura de O que é isso, compa-nheiro? (reedição da Cia. das Letras, 1997) deixa ver que setrata de uma valiosa sugestão de roteiro cinematográfico,além do acerto de contas de um dos milhares de protago-nistas daquela geração.

Algumas imprecisões factuais já foram aceitas pelopróprio Gabeira, como a da autoria do manifesto, queele reivindicou no livro, mas que foi de Franklin Mar-tins, a quem Fernando Gabeira alega ter protegido comaquele gesto. Outras ficam à mostra diante de qualquerleitura do livro como eventual relato que busca ser verídi-co. Não importa, o livro O que é isso, companheiro? falamuito mais de quem o escreveu, como toda autobiogra-fia, do que daquilo que aconteceu. Quem o tomar comohistória, estará enganado. Quem passar para adiante aidéia de que se trata de “uma história verdadeira”, estaráenganando os outros.

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LEÕES E CAÇADORES

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Quem quiser um relato factual preciso do seqüestrodo embaixador norte-americano Charles Elbrick tem agoraà disposição o livro O seqüestro dia a dia (editora NovaFronteira, 1997), de Alberto Berquó, que, ao contrário dode Gabeira, não é escrito na primeira pessoa, mas na óticacoletiva do grupo que teve todos os méritos de realizá-lo eno qual Gabeira foi um personagem lateral e ocasional.

Ali encontramos o desenrolar dos planos, desde suaelaboração pela direção do MR-8 da época, até suaexecução, à qual se somaram militantes da ALN vindosde São Paulo. Vemos também flashes do que aconteciasimultaneamente em vários pontos do país, retiradosda imprensa. Como, por exemplo, das colunas de Ibra-him Sued, Zózimo, Tarso de Castro, Hélio Fernandes,Swann e Jacinto de Thormes, entre outras.

Revemos ali situações e personagens conspícuos daépoca, como a proibição do juiz Allyrio Cavalieri deque qualquer criança pedisse esmolas em toda a Guana-bara, solicitando à população que “denuncie qualquerpetitório”. Também nos deparamos com conversas reaisdo embaixador norte-americano com Franklin Martinse com Joaquim da Câmara Ferreira.

O seqüestro dia a dia é um relato do seqüestro quedaria um grande filme. Provavelmente dirigido porCosta-Gavras ou por Ruy Guerra, para não perder suadimensão incontornavelmente política, isto é, histórica.Sem o que, somos apenas leões abatidos pelos caçadores,que sabem inventar suas histórias e fazer bom uso delas.

EMIR SADER é professor de sociologia naUniversidade de São Paulo.

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ELIO GASPARI

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O QUE É ISSO,COMPANHEIRO?:

O OPERÁRIO SE DEU MAL

ELIO GASPARI

Publicado emO Globo e Folha de S. Paulo,

04/05/97.

Depois de contemplar uma daquelas maravilhosasmulheres que só Matisse conseguiu pintar, uma

senhora lhe disse: “Essa mulher tem uma perna maiscurta que a outra.” “Isso aí não é uma mulher. É umquadro”, respondeu Matisse. O que é isso, companheiro?não é a narrativa do seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, é um filme. Isso permitiuaos seus autores a manipulação de fatos e personagensnum trabalho que denominaram de “síntese”, quandoseria mais apropriado chamar de fabulação. Uma gran-de e emocionante fabulação, capaz de entediar o especta-dor nos primeiros 15 minutos e de levá-lo às lágrimas nabela cena final. Como se trata de um filme assumida-

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O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?: O OPERÁRIO SE DEU MAL

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mente relacionado com fatos reais, vale a pena, embenefício do conhecimento da história, enumerar algu-mas diferenças entre o que se vê e o que aconteceu.

Três diferenças estão relacionadas com a participaçãode Paulo (o ator Pedro Cardoso no filme), o atual depu-tado Fernando Gabeira da vida real. Não foi de Gabeiraa idéia de seqüestrar o embaixador. Foi de Waldyr, diri-gente da Dissidência Estudantil do Rio de Janeiro.Waldyr era o codinome de Franklin Martins, atual dire-tor da sucursal de O Globo em Brasília. Essa informaçãoé de conhecimento público há pelo menos 17 anos.

Não foi Gabeira quem escreveu o manifesto dos se-qüestradores. Novamente, foi Franklin Martins. Nãofoi Gabeira quem teve o embaixador sob a mira de umrevólver, pronto para executá-lo. Aliás, ninguém teveElbrick na mira. É fabulação todo o segmento do filmeque narra a possível execução do embaixador caso ogoverno estourasse o prazo dado pelos seqüestradores.A patética Junta que governava o país aceitou ascondições nas últimas horas da noite do próprio dia doseqüestro (4 de setembro de 1969). Essa informação foidivulgada na manhã do dia seguinte. Quem forçou aposição do governo foi o chanceler Magalhães Pinto,que naquelas horas teve como principal interlocutor oseu chefe-de-gabinete, embaixador Ítalo Zappa. (Os doisestavam almoçando quando o ministro-conselheiro daembaixada norte-americana William Belton telefonouao Itamaraty avisando, em mau português, que tinham“roubado” o embaixador. A palavra seqüestro ainda nãofazia parte do cotidiano do poder.)

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ELIO GASPARI

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Essas três fabulações foram convenientes para aconstrução do personagem Paulo. Transferidas paraa biografia de Gabeira, nela continuarão a misturarrealidade e fábula, mas como a biografia é dele, podefazer com ela o que bem entender. Também é fabu-lação o descontrole intestinal de Elbrick, mas isso temtanta importância quanto o fato de que nem o embai-xador norte-americano nem a rainha da Inglaterra se-riam capazes de conseguir um táxi no portão principaldo Maracanã num fim de Flamengo e Vasco.

A camionete do Centro de Informações da Mari-nha que perseguiu os seqüestradores na hora da liber-tação não foi interceptada e dissuadida por um veícu-lo com militares armados. Sua tripulação amarelouao ver o cano da metralhadora de um dos seqüestra-dores. Renée, a seqüestradora vivida por CláudiaAbreu, não passou a noite com o chefe da vigilânciada casa do embaixador (Milton Gonçalves). Era Mar-ta, codinome de Vera Sílvia Magalhães, uma lindamorena de traços finos. Ela conseguiu preciosas in-formações sobre os hábitos do embaixador à custade seu talento e inteligência. Sempre em pé. Vera foipresa em março de 1970. Levou um tiro superficialna cabeça e uma das sessões de pau-de-arara a que foisubmetida durou sete horas. Seu tamanho na vida realfoi tão grande que o filme precisou transbordá-la na“companheira Maria”, vivida por Fernanda Torres.Foi Vera quem embarcou para a Argélia numa cadei-ra de rodas, ao fim de um novo seqüestro. Vera Sílviaé hoje uma planejadora urbana.

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O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?: O OPERÁRIO SE DEU MAL

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Jonas, o comandante militar da operação, chamava-se Virgílio Gomes da Silva. Tinha 36 anos, fora operáriotêxtil, militara no Partido Comunista e passara algunsmeses em Cuba treinando guerrilha. Nada tem a ver como personagem primitivo do filme. Era um homem de-terminado e valente, não um boçal capaz de ameaçar oscolegas de morte. Quando os seqüestradores temeramque a casa fosse invadida, não havia dúvida de que eleseria capaz de matar Elbrick. Foi capturado vinte diasdepois, em São Paulo. Na última cena da vida real emque foi visto vivo, estava na central de torturas do Exér-cito, com as mãos algemadas para trás, cuspindo e chutan-do seus algozes. Quando o tiraram da sala de espanca-mentos, batiam com sua cabeça no chão. Supõe-se quejá estivesse morto. A ditadura e os oficiais que coman-daram seu assassinato informaram que ele fugiu daprisão. Assim, Virgílio Gomes da Silva foi o primeirobrasileiro a “desaparecer” depois de capturado. Um anodepois de morto, foi condenado a 30 anos de prisão.

Nem Virgílio era um bugre, nem a tortura se re-sumia a afogamentos e pau-de-arara. Havia tambémchoques elétricos, abusos sexuais e pancada, muita panca-da. Foram poucos os torturadores que revelaram dra-mas existenciais. Também foram poucos os generais,almirantes e brigadeiros que revelaram dramas deconsciência por terem ordenado e acobertado as tortu-ras praticadas por tenentes, capitães e majores. (Devolvi-do o poder aos civis, essa inconsciência mudou de roupae parou-se de torturar no andar de cima. Diadema e Ci-dade de Deus estão aí para não deixar ninguém mentir.

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ELIO GASPARI

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Naquela época, o advogado Marcello Alencar defendiapresos políticos. Hoje, diz que entre os surrados de Ci-dade de Deus “não há nenhuma Virgem Maria”.)

Há algo de estranho no papel que coube a VirgílioGomes da Silva na memorialística do período. Comolivro de memórias é coisa de intelectual, o operárioacabou se tornando um estorvo. Virou um personagemora secundário, ora embrutecido. Uma espécie de tipoexcessivamente popular para caber num cenário habita-do (e narrado) por gente fina. Mais estranho é que essedesconforto tenha se repetido anos depois, quando seteve de achar um lugar na história para um metalúrgicopaulista chamado Manuel Fiel Filho, assassinado em1976, em São Paulo. De sua morte resultou a demissãodo comandante do II Exército, e a partir dela o presiden-te Ernesto Geisel encurralou os torturadores que desa-fiavam sua autoridade. Não só a morte de Fiel é poucolembrada, como sua viúva não conseguiu receber inte-gralmente a indenização que conquistou na Justiça em1980. Ela continua na fila dos precatórios.

ELIO GASPARI é jornalista.

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FRANKLIN MARTINS

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AS DUAS MORTESDE JONAS

FRANKLIN MARTINS

Publicado emO Globo,

10/05/97.

Jonas, o profeta, viveu duas vezes. Uma não foi sufi-ciente para que ele cumprisse sua missão e, por isso, oDeus em que ele acreditava deu-lhe outra vida, arran-

cando-o do ventre de um peixe.Já com Jonas, o guerrilheiro que comandou o

seqüestro do embaixador norte-americano Charles B.Elbrick, passou-se o contrário. Morreu duas vezes: umaacabou com seu corpo, a outra quer suprimir sua alma.

A primeira morte de Jonas, o guerrilheiro, ocorreunas mãos dos agentes da Operação Bandeirantes, centrode terror que funcionava nas dependências da Políciado Exército, na rua Tutóia, em São Paulo. Preso no dia29 de setembro de 1969, cerca de três semanas depois do

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AS DUAS MORTES DE JONAS

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seqüestro, Jonas foi barbaramente torturado numa sessãode dez horas de pau-de-arara, afogamentos, choqueselétricos, espancamentos, queimaduras etc. Recusou-sea ceder qualquer informação a seus torturadores, enfren-tando-os a socos, pontapés e xingamentos. Como nãopuderam vencê-lo, os torturadores resolvem destruí-lo.Mataram-no selvagemente, batendo sua cabeça contra aparede até reduzi-la a uma pasta. No local do crime, res-tou uma poça de sangue, que os torturadores, eufóricose excitados, exibiram a outros presos políticos comotroféu de guerra. O corpo sumiu. Até hoje está desapa-recido.

A segunda morte de Jonas é mais recente. Está acon-tecendo, com estardalhaço, no filme O que é isso, compa-nheiro?, de Bruno Barreto, com roteiro de LeopoldoSerran. Não se trata de uma morte física, mas de umaexecução moral. Jonas é apresentado ao mundo inteirocomo um monstro, um primata, um boçal, um dese-quilibrado, quase um psicopata.

Entra em cena recusando o cumprimento de umcompanheiro, como se fosse um campeão dos mausmodos. Logo em seguida, reúne os guerrilheiros que vaichefiar e adverte-os: a primeira bala de sua arma estádestinada ao companheiro que não cumprir suas ordens;a segunda, àquele que sair em defesa do indisciplinado.E completa com algo mais ou menos assim: “Estamosentendidos?” Só faltou rosnar.

No interrogatório de Elbrick, Jonas parece um alu-cinado. Encostando o cano da pistola na cabeça do em-baixador, aos gritos, ameaça diversas vezes matá-lo,

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num misto de gozo e desequilíbrio que deixa a platéiaem pânico — afinal, um assassino está no comando deum grupo de guerrilheiros de araque.

Mas o Jonas do filme não se limita a ser um animalferoz com os inimigos. É também um tremendo maucaráter com os companheiros. A versão de Barreto/Ser-ran é que Jonas passava o tempo todo fazendo intrigas etentando desqualificar aqueles que não pertenciam a seugrupo. Como se isso fosse pouco, ainda teria manipula-do a escala da guarda do diplomata, para que o turno dapossível execução de Elbrick tocasse ao guerrilheiro-in-telectual que, desde o primeiro momento, ele odiou eperseguiu. Não há dúvida: tratava-se de um sujeitinhoordinário, um recalcado da pior espécie.

Terá o Jonas do filme algo a ver com o Jonas darealidade? Conheci este último durante um período cur-to, de 2 a 7 de setembro de 1969, quando participamosjuntos do seqüestro do embaixador norte-americano.Nossa convivência foi curta, mas devido às circunstân-cias, intensa. Posso assegurar que o Jonas do filme é uminsulto ao Jonas da vida real.

A sessão inicial de advertência nunca existiu, emmomento algum do interrogatório o embaixador foiameaçado com uma arma na cabeça; as intrigas emudanças de escala atribuídas a Jonas não passam deinvencionices. Durante todo o seqüestro, ele compor-tou-se como deveria se comportar à testa de uma açãocomo aquela. Era um homem valente e determinado,tranqüilo e atento, entusiasmado mas com os pés nochão. Tudo bem: ele não havia lido Gramsci e Lukács,

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provavelmente não amava os Beatles e os Rolling Stonese não freqüentara as sessões de cinema de vanguarda doPaissandu ou do Belas Artes. Não tinha a sofisticaçãointelectual de outros guerrilheiros. Mas em matéria deestatura pessoal, condição moral e experiência de vida,não ficava a dever nada a nenhum deles.

Jonas — nome de guerra de Virgílio Gomes da Silva— tinha uma longa militância política. Nasceu no interiordo Rio Grande do Norte e, como tantos nordestinos, mi-grou para São Paulo, onde tornou-se operário têxtil, ativistasindical e militante do Partido Comunista Brasileiro. Em1962, durante um comício pelo 13°salário, foi ferido a bala.Em 1967, deixou o PCB junto com Carlos Marighella, fun-dando a Ação Libertadora Nacional. Fez treinamento deguerrilha em Cuba e, ao voltar, tornou-se um dos maisdestacados chefes militares da ALN, tendo comandado deze-nas de ações armadas.

Ninguém é obrigado a considerar Jonas um heróipelo fato de ele ter pago por suas idéias e por suamilitância um preço que poucos aceitariam pagar. Tal-vez ele fosse um homem mais rico interiormente do queadmitem os preconceitos elitistas dos inventores do Jo-nas do filme. Ou talvez ele desse maior valor à liber-dade e à dignidade que outras pessoas, e não fosse deregatear ou barganhar quando elas estavam em jogo. Nostempos da luta armada, essa qualidade era chamada de“firmeza ideológica”. Hoje, com mais simplicidade, eua chamaria de caráter. Jonas tinha caráter.

O filme, porém, sentiu-se na obrigação de caluniá-lo, pintando-o como a besta-fera. Não vale tirar o corpo

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fora, alegando que se trata de uma obra de ficção, sempreocupação de correspondência com a realidade. Afi-nal, na vida real, o comandante do seqüestro atendia pelonome de Jonas, pertencia à ALN e viera de São Paulo.No filme, também. É evidente que houve a intençãodeliberada de superpor realidade e ficção, confundindouma com a outra.

Qual a razão? Preguiça mental, como ironizou oroteirista? Claro que não. Trata-se de uma escolha: ofilme quis ter a liberdade da ficção, mas sem abrir mãodo lastro da realidade. Afinal, o seqüestro do embaixa-dor norte-americano tem presença difusa mas forte noimaginário da sociedade. Vende entrada de cinema. Umsucedâneo, talvez não. Assim, contatos de primeiro esegundo graus com fatos acontecidos e pessoas que vive-ram o episódio são indispensáveis. Sem isso ficaria mui-to difícil badalar o filme. Como nos programas humo-rísticos, é preciso que alguém faça as vezes de escada,para o comediante principal brilhar. Em O que é isso,companheiro?, a realidade é a escada. Cabe à ficção ar-rancar gargalhadas. A fórmula deu certo no livro. Porque não daria na tela?

Isso explica por que há personagens no filme que sechamam Elbrick, Toledo, Jonas etc. Não explica, porém,por que é feita uma adulteração tão agressiva do carátere do papel do comandante da operação. O que faz Jonasdescer ao inferno é outra coisa: a síndrome do politica-mente correto. O filme parte de um preconceito — nãotomar partido em nada — que se transforma numaobsessão, às vezes beirando o ridículo. Por exemplo: se

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um guerrilheiro telefona para o Jornal do Brasil infor-mando o local onde está a lista dos presos políticos aserem libertados, outro guerrilheiro está obrigado apedir, logo em seguida, em alto e bom som, ao jornal-eiro da esquina um exemplar de O Globo. É preciso con-tentar a todo mundo e nunca se expor tomando posição.É isso o tempo todo: uma no cravo, outra na ferradura.Barreto/ Serran julgam que essa atitude é sinônimo deisenção e apartidarismo. Não é. É indício de superficial-idade, de insegurança, de dificuldade para tirar con-clusões próprias. Quiseram fazer um filme equilibrado,fizeram um filme equilibrista.

A obsessão dos autores pelo muro é a condenaçãode Jonas. Ele é animalizado para que o torturador possase humanizar. Ou terá sido ao contrário, numa novaversão do enigma do Tostines? Pela mesma razão, osguerrilheiros são convertidos em doidivanas, enquantoos militares mais graduados aparecem como homenssensatos, que tentam conter os excessos dos oficiais en-volvidos diretamente na tortura. É notável o esforçopara dissolver fronteiras. Com isso, tenta-se afastar anecessidade de que o cineasta, atrás da câmara, e o es-pectador, em frente da tela, tenham de se colocar diantedos dilemas da época. Se todos os gatos são pardos, eninguém está certo e ninguém está errado, para quetomar posição? Em vez de reflexão, digestão. É a receitade uma época: a atual. Não era a dos tempos que o filmepretendeu retratar.

Apesar de tudo isso, não creio que O que é isso, com-panheiro? absolva a ditadura. Seria tarefa acima de suas

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FRANKLIN MARTINS

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forças. Tampouco o filme justifica a tortura. Se a classemédia de baby-doll não caiu nessa, na época do terror deEstado e da propaganda maciça, não serão nossos jovensde bermudão hoje, com democracia e liberdade, quecomerão gato por lebre no escurinho do cinema. O per-sonagem do torturador não passa de uma tentativa; éum arremedo, raso e sem consistência. Não convenceninguém. Que diferença para filmes como A história ofi-cial ou A batalha de Argel, em que a tortura tinha cara,alma e lógica. Mas, nesses casos, os cineastas podiam ar-riscar-se no mergulho. Não tinham medo, ao mesmotempo, de condenar a tortura.

Assim, de equilibrismo em equilibrismo, o filmeacaba desequilibrado. Tem seqüências fortíssimas, comoaquela em que Elbrick busca adivinhar a personalidadede seus captores a partir de suas mãos, e cenas infantis,como o ritual de entrada dos militantes na organizaçãorevolucionária — “todos contra a parede!”. Alterna óti-mos diálogos, como o que é travado entre o guerrilhei-ro e o ator na porta do teatro, com falas ridículas, comoas do treinamento na praia. É arrastado e chatíssimo nocomeço, mas ganha ritmo vertiginoso no final. Tudosomado, como cinema, não é nem uma obra-prima nemuma porcaria. É um filme médio. Um resultado pre-visível para quem cravou todas as suas apostas na colu-na do meio. A qualidade da matéria-prima — refiro-meao episódio, bem entendido — e a competência do ci-neasta permitiriam que o filme tivesse ido mais longe.

Para finalizar, continuo achando, como sempreachei, pouquíssimo importante a exegese das minúcias

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da ação. A discussão sobre quem fez isso ou aquilo ousobre quem foi mais importante numa operação mili-tar é simplesmente ridícula. Todos os que participaramda ação estavam no mesmo barco e arriscaram suas vi-das por igual. No mais, cada um sabe de si. Como nãovivo no passado e, muito menos, do passado, não te-nho o menor interesse em polemizar a respeito deminudências.

O caso de Jonas, por certo, não é uma minudência.Ele está sendo morto pela segunda vez. Como na primei-ra, sem direito a defesa. É terrível como o homem nãoconsegue conviver com a diferença. “(...) Narciso achafeio o que não é espelho”, já iluminou Caetano, e tem anecessidade de destruir o que não entende.

FRANKLIN MARTINS é jornalista; foimembro da Dissidência Comunista

da Guanabara em 1969.

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CELSO HORTA

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JONAS,UM BRASILEIRO:

TESTEMUNHO SOBRE

SEU ASSASSINATO NA OBAN

CELSO HORTA

De quando Virgílio, que não era Virgulino, masJonas, da caatinga potiguar, a encarnação dodemônio, que não era cangaceiro, mas terrorista ejaz insepulto... Para ser visto a partir da óticaplatinada da globalização neoliberal, dademocracia “midiada” pelas mentiras, peloesquecimento e pela impunidade dos carrascos.

Alguns instantes antes percebi que alguma coisa es-tranha estava ocorrendo. Meus torturadores sus-

penderam a sessão de choques e me abandonaram nopau-de-arara. Pendurado, de cabeça para baixo, a pernadoía insuportavelmente. Sem os choques eu podia res-

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JONAS, UM BRASILEIRO

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pirar novamente, pensar — se é possível pensar — nasinformações que a repressão tinha a meu respeito e queeu insistia em negar.

A porta da sala fora deixada aberta e um “reco” mevigiava da soleira. Me lembro da farda verde, do fuzilnas mãos e daquele rosto imberbe me olhando curiosoe parecendo que ia desmanchar num choro de criança.O tempo passava, interminável. A dor vinha por ponta-das e os músculos da perna pareciam irremediavelmenterompidos. Me lembro que eu conseguia enxergar os trêsou quatro metros de corredor ao levantar a cabeça eolhar por sobre a barra de ferro do pau-de-arara.

De repente o alvoroço. Corre-corre, empurra-em-purra, gritos, palavrões. Uma pequena multidão, com di-ficuldade, acabou vencendo o corredor. “Estão matandoum brasileiro!”, você protestava aos urros, enquanto ten-tava se defender das botinas dos homens da Operação Ban-deirantes que o arrastavam, mãos e pés algemados.

Acho que percebi que se tratava de você, antes mes-mo de vê-lo. Os torturadores já o tratavam pelo nomede guerra. Eles o chutavam em todas as partes do corpo,cuspiam em seu rosto, esmurravam-no. “A guerraacabou, filho da puta”, vituperavam seus carrascos en-quanto o espancavam. O corredor polonês não foi ca-paz de vencer o orgulho que você trazia no peito: umesforço sobrenatural do corpo experimentado na lutade boxe faria você devolver pontapés e cusparadas so-bre seus torturadores.

Não sei quantos segundos, minutos. Até que con-seguiram jogá-lo num dos cantos da sala do pau-de-arara.

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CELSO HORTA

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Exausto, ofegante como um carcará, ferido. Falcão cisan-dino, que o tupi nomeou pelo poder de rasgar com asunhas. Um pequeno corte na cabeça, sangrava. Seusangue, espalhado pelas roupas das bestas humanas ali-mentava o ódio com que espancavam você.

Uma trégua. Por um instante os tiras se retiraram dei-xando-nos a sós. Foi um tempo muito breve. Um ou doisminutos, talvez. Um breve instante, em que pela últimavez, meu olhar cruzou o seu olhar. Nenhuma palavra en-tre nós. Apenas um olhar, um “distante mirar”, como di-ria Violeta Parra ou Mercedes Sosa, já não me lembro.Profundamente solidário. Apenas um instante de silêncio.Profundamente cúmplice. A mesma cumplicidade domomento imediatamente anterior ao combate.

“Filhos da puta! Vocês estão matando um patrio-ta”, você urrou mais uma vez, ignorando minha pre-sença. Era como se você estivesse propondo uma senhade fidelidade absoluta, um pacto de vida e de morte con-tra o imperialismo norte-americano, herdeiro da hedion-da tortura nazista. Talvez aquelas palavras fossem só paramim.

Mas, e as pílulas de cianureto que planejávamos con-seguir para escapar das torturas? Este projeto jamais foiexecutado, até porque sabíamos que nem sempre seriapossível ingeri-las. Será que você sabia da prisão de outroscompanheiros? Tudo ocorrera tão rápido. Ou, talvez,ao propor aquele pacto com a morte você estivesse pen-sando na mulher e nos filhos que, quem sabe, em Cuba,como você planejava, conseguiriam ficar a salvo da vio-lência da ditadura.

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JONAS, UM BRASILEIRO

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Sem uma só pergunta, os tiras voltaram rapidamentee me arrastaram para fora daquela sala. Naquele mo-mento eles eram muitos. Não dá para esquecer a tru-culência do capitão Albernaz, nem a covardia do dele-gado Raul Careca. Naquela manhã, parece que estavamtodos lá. Capitães Tomas, Dalmo, Maurício e Homero.Delegado Otavinho, investigadores Lungaretti, Ameri-cano. Eram dezenas, todos sob comando do major ValdirCoelho, o primeiro comandante da Operação Bandei-rantes.

Eles ainda não estavam organizados em equipes dis-tintas, busca, interrogatório e análise. Àquela altura to-dos faziam de tudo, e as prisões políticas eram novidadenaquela delegacia da rua Tutóia. Na verdade, naquelefinal de setembro de 1969, nós estávamos só inauguran-do aquela experiência de repressão, que depois viria aganhar o formato do DOI-CODI, os temidos Destacamen-tos de Operação de Informação/Centros de Operaçõesde Defesa Interna da ditadura.

Quando a gente desce do pau-de-arara, pensa que nuncamais vai conseguir andar. Foi assim, debaixo dos ponta-pés impacientes dos meus torturadores, que fui levado paraa sala ao lado, onde continuei sendo torturado na “cadeirado dragão”. Pés e mãos atados aos pés e braços da cadeira,como no pau-de-arara, continuei submetido a choques,espancamentos generalizados, “telefones” e outras violên-cias. Nunca mais vi o corpo atarracado e troncudo do meucomandante. Nunca mais ouvi a sua voz, ou mesmo osgritos de Jonas. Foi tudo ali, naquele instante mágico, dedor, de violência infernal.

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CELSO HORTA

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Se você gritou novamente, meus gritos poderiamter encoberto os seus. Se protestou e continuou devol-vendo cada golpe e insulto que recebeu, minha dor nãopermitiu perceber. Quanto tempo se passou? Não seidizer. A noite chegou, o dia voltou a raiar e nenhumsinal de sua vida. Nunca mais vi qualquer sinal real demeu comandante. Apenas algumas referências dos nos-sos torturadores:

— Nós matamos o Jonas. A guerra acabou para vocês.Eu o conheci pouco. Alguns dias, alguns momen-

tos. Um fim de semana de treinamento militar no cerra-do, uma viagem a Goiás, algumas operações em São Pau-lo. Certa feita suspeitei que você tinha mulher e filhose, talvez, até os tivesse conhecido quando o acompanheiem uma cidade do interior de São Paulo.

A compartimentação das informações — regranúmero um de segurança — poderia apagar seus defeitos.Mas não foi o bastante para esconder suas virtudes. Vivocê na boca da noite, tecendo a rede de resistência denosso povo. Vi você demarcando, no chão do PlanaltoCentral, os eixos por onde se deslocaria a coluna guerri-lheira que atravessaria a América do Sul em direção àalma de Che Guevara.

Você acreditou na liberdade desta América. Vocêé um brasileiro, Jonas. Nordestino, de Sítio Novo, RioGrande do Norte. Descendente de Lampião, MariaBonita e Marighella. Operário, militante comunista,guerreiro fiel. Lembra do Che, do “seja bem-vinda amorte, desde que outras mãos se ergam para empunharnossos fuzis”? Estão aí seus irmãos Vicentinho, Lula e

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JONAS, UM BRASILEIRO

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tantos outros brasileiros e patriotas empunhando suacoragem.

CELSO HORTA é jornalista. Foi militante daALN, membro de um dos GTAs (Grupos

Táticos Armados) comandados por VirgílioGomes da Silva (Jonas) e testemunha do

comportamento deste em sua breve e fatalpassagem pelo cárcere da Operação

Bandeirantes (Oban).

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CELSO HORTA

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BREVE BIOGRAFIA DEVIRGÍLIO GOMES DA SILVA

DULCE MUNIZ

Virgílio Gomes da Silva, o comandante Jonas, tinha36 anos de idade quando foi assassinado pela dita-

dura militar. Nasceu no dia 15 de agosto de 1933, numapequena cidade do interior do Rio Grande do Norte —Sítio Novo —, filho de Isabel e Sebastião. Era casadocom Hilda, tinha quatro filhos, Wladimir, Virgílio,Gregório e Isabel, e vários irmãos, entre eles o Chiqui-nho, seu companheiro de militância.

Foi preso na manhã do dia 29 de setembro de 1969,na avenida Duque de Caxias, em São Paulo, e ao cair datarde já estava morto, depois de uma das mais violentassessões de tortura de que se tem notícia. Seus tortura-dores e assassinos não ouviram nem tiveram de seus

Texto lido no Ato Teatral“Em defesa do companheiro Jonas”,

realizado em São Paulo,no dia 21/05/97.

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BREVE BIOGRAFIA DE VIRGÍLIO GOMES DA SILVA

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lábios a mínima informação que fosse, apenas insultos edesprezo pela infame atividade que exerciam.

Durante anos ouvi contar que suas últimas palavrasteriam sido: “Vocês vão me matar, seus filhos da puta, enunca saberão por que, mas eu sei por que morro.”

Sua mulher e seus pequenos filhos foram presos eameaçados de tortura, inclusive Isabel, que era um bebêde 6 meses de idade.

Virgílio deu frutos, e agora a Wladimir, Virgílio,Gregório e Isabel se juntam Gabriel, Ivani, Helena, Ca-mila e Amanda, seus netos.

DULCE MUNIZ é atriz, diretora,autora teatral e socialista.

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IDIBAL PIVETA

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SOBRE JONAS,O DO FILME,

NÃO O DA BALEIA

IDIBAL PIVETA(CÉSAR VIEIRA)

Um dos modismos mais manchetados é o de afir-mar que todos os que se levantaram em armas

contra o regime militar eram porra-loucas... O momen-to, a situação sociopolítica e econômica do período de1969 a 1980 é jogado para escanteio e as novas geraçõesficam com essa visão, porque “tudo mais” lhes é sonega-do, atirado na bruma, no limbo cinzento do olvido,como se falar nos “anos de chumbo” da ditadura fosseum sacrilégio.

Talvez porque muitos dos que participaram demovimentos não muito pacíficos estejam, atualmente,abrigados nos mantos dourados do poder, e suas ações— à época —, se trazidas a lume, poderiam prejudicar

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SOBRE JONAS, O DO FILME, NÃO O DA BALEIA

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suas caminhadas junto às benesses já conquistadas e porconquistar...

É a partir de 1969 que o sistema engrossa definitiva-mente. Com o afastamento do presidente Castelo Bran-co, assumem os generais ditos da linha dura: o Congres-so fica de joelhos, a imprensa amordaçada, os sindicatossob intervenção, as entidades estudantis dissolvidas equalquer possibilidade de organização civil violentamen-te reprimida.

É contra esse estado de coisas que se levantaram— certa ou erradamente — centenas de cidadãos ten-tando “opor à violência da repressão, a violência darevolução”.

Diante desse quadro de sufocamento das liberdadese dos direitos universais inerentes ao ser humano é quesurgiram várias organizações político-partidárias, obriga-das a viver na clandestinidade, compostas por homens emulheres que, idealisticamente, quiçá poeticamente, sa-crificaram seus empregos, suas carreiras, suas famílias eaté suas vidas.

Virgílio Gomes da Silva, codinome Jonas, foi umdesses jovens.

Dois fatos marcaram em minha vida o contato comesse comandante guerrilheiro: ter ficado 40 dias detido— incomunicável — na mesma masmorra das catacum-bas da Operação Bandeirantes (DOI-CODI), na rua Tu-tóia, em São Paulo, onde Jonas foi barbaramente tru-cidado; e em 1978, em Havana, Cuba, durante o Festi-val Mundial da Juventude, em que, como participantedo grupo de teatro União e Olho Vivo, tive opor-

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IDIBAL PIVETA

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tunidade de conhecer Hilda, sua mulher, e seus filhos,então crianças.

Mas depois, a partir de informações obtidas no cor-rer do convívio com muitos de meus clientes, persegui-dos políticos, aprendi a conhecê-lo e a admirá-lo. Suavida poderia ser definida por esta frase, de um argentinoprofeta e visionário: “Hay que endurecer, pero sin per-der la ternura, jamás.”

E agora, Jonas se converte em motivo de polêmica,em virtude da exibição do filme O que é isso, compa-nheiro? .

Como advogado, como autor teatral e como cidadãonão aceito e jamais poderei aceitar qualquer cerceamen-to à total liberdade de expressão. Mas o criador, o artis-ta, no seu semear de idéias e beleza, tem de saber que oseu plantio só será verdadeiro quando falar para o ho-mem, tomado no seu todo individual e coletivo. Foiesse senso de dignidade, que sobrava em Jonas/Virgílio,que faltou aos realizadores do filme.

IDIBAL PIVETA (CÉSAR VIEIRA) é advogadomilitante dos direitos humanos e diretordo Teatro Popular União e Olho Vivo.

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JORGE NAHAS

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O QUE FOI AQUILO,COMPANHEIROS? (2)

JORGE NAHAS

Publicado no jornalO Tempo, de Belo Horizonte,

em 11/05/97.

Mas o que foi aquilo, companheiro, que arrebatousua juventude e seus sonhos e o levou a assaltar

Bancos e seqüestrar embaixadores? O que foi aquilo,companheiro, que sede era aquela que o levou ao tudoou nada, a testar sua coragem, seu orgulho, seu limite?Tudo bem que era uma ditadura, tudo bem que nos in-sultavam diariamente, tudo bem que alguém precisavafazer alguma coisa, mas apesar disso tudo, companheirosCoqueiro, Jeová, Eudaldo, Pauline, Lavecchia, Fleury:o que foi mesmo aquilo? E já estamos virando lenda,não apenas vocês, que morreram antes de terem tempode se perguntarem nada, mas até nós que ainda não te-mos a resposta, afinal 30 anos são passados, é muito

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O QUE FOI AQUILO, COMPANHEIROS? (2)

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tempo nestes tempos velozes, já fazem filmes sobre nós,passou a época dos testemunhos e documentários, ago-ra fazem ficção, ou será que é história, ou serão a mes-ma coisa, ficção e história?

O que dizer do que se passou há 30 anos, de quantasmaneiras cada um de nós viveu aqueles momentos, quecicatrizes deixaram, que mágoas, que tristezas, que ale-grias, que arrependimentos. Mas saiba, companheiro, quenenhuma história lhe explicará, nenhum artista alcançaráescrever, ou pintar ou filmar nada nem remotamenteparecido com o furacão de medo e coragem, ternura ebrutalidade, ânsia de vida e morte e de glória que habi-tava o seu coração, e portanto não exija de um filme, oude um livro, que seja verdadeiro, esta verdade é só sua,tragicamente sua, não faz, nunca fez, não fará parte denenhuma história.

A história são versões, a história são histórias, só asditaduras tentam forjar uma história, querem impor àposteridade uma das versões. E então quando nós, osprotagonistas, nos perguntamos o que foi aquilo, nósque sobrevivemos e vivemos quase 30 anos depois desco-brindo, a cada dia que passa, novas versões daquele tem-po, nós que agora e como antes não sabemos bem o quesomos, e menos ainda o que fomos, nós não podemosexigir que exista apenas um olhar, uma versão, não po-demos cair na tentação de que exista a história e de queesta ainda não foi escrita. Porque ela está sendo escrita,e filmada, e hoje faz parte do show business, e como tal asversões visam o público, e este se interessa por tais ouquais detalhes. Não somos nós que fazemos nossa própria

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JORGE NAHAS

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história, mas eles, os leitores, os espectadores que se in-teressarão por alguma coisa a que não demos a menorimportância. Ou vice-versa, o que é pior.

Será importante saber quem teve a idéia doseqüestro, ou se a jovem guerrilheira usava um quepeigual ao do Lamarca, ou que gostaria de usar um tur-bante como o da mulher do embaixador? Quem sabe?Mas olhe, não foi importante lembrar o fato de que nóséramos seduzidos pela disciplina e treinamento milita-res, atribuíamos a eles qualidades quase mágicas, comoa capacidade de derrotar a ditadura militar no terrenomilitar, e que éramos envolvidos pela mise-en-scène aponto de perdermos o senso da realidade e até do ridícu-lo? Não se avexe, é só um filme. E como foi importanterelembrar o velho Toledo, torturado até a morte, suafibra de velho militante, sua adesão às táticas militaris-tas... calma lá, “adesão às táticas militaristas”, o que éisso, companheiro, por que não um imperativo deconsciência ante aquela juventude desbragada, à qual elese entregou mesmo bem depois dos 50, e sabemos hojecomo são difíceis essas coisas depois dos 30. É tarde ago-ra para perguntar ao Velho se em algum momento eleteve pena de nós, como um pai tem pena de um filhoque ele acredita que vai sofrer muito, é bem possível,quem sabe em que pensava quando montava guardacomo um recruta disciplinado.

Não se irrite, companheiro, com o torturador filó-sofo, ai de nós que os conhecemos bem tranqüilos, masé bem possível que existam, ainda não escreveram suahistória. Deixe de lado esses detalhes, bastante tempo

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O QUE FOI AQUILO, COMPANHEIROS? (2)

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de nossas vidas perdemos com esses detalhes, resista atodos e escape do círculo de suas lembranças, imagine-se com a idade de seus filhos e curta o filme, pois a ju-ventude continua bela e generosa, e o Rio de Janeirocontinua lindo.

JORGE NAHAS é médico, ex-militante da Colina(Comando de Libertação Nacional) e da VPR

(Vanguarda Popular Revolucionária). Foi presoem janeiro de 1969, sendo um dos 40 presos

políticos libertados em troca do embaixador vonHolleben em 1970. Exilou-se em Cuba, ondeconcluiu o curso de medicina. Regressou ao

Brasil em 1979, com a anistia.

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IZAÍAS ALMADA

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HISTÓRIA:FICÇÃO, REALIDADE E

HIPOCRISIA

IZAÍAS ALMADA

Publicado naRevista Adusp,

junho/97.

O cinema tornou-se de tal maneira parte denossas vidas que, por vezes, esquecemos de comoele pode influenciar nosso comportamento, ounossa maneira de pensar.

(SYD FIELD, roteirista e teórico norte-americano, em Four screenplays, studies in theamerican screenplay)

A pior e mais contundente crítica que se pode fazerao filme O que é isso, companheiro? é a de que se

trata de um filme bem feito. Explico o aparente para-doxo.

Um cinema feito com competência, bem alicerça-do em alguns de seus principais fundamentos (como o

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HISTÓRIA: FICÇÃO, REALIDADE E HIPOCRISIA

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roteiro, a direção de cena e a montagem), o último tra-balho do cineasta carioca Bruno Barreto, coriscou comoum raio os céus de um Brasil que ainda tem memória,chamuscando de maneira indelével a nossa história con-temporânea e mexendo em feridas ainda não de todocicatrizadas. E, como é um trabalho bem feito na suacarpintaria técnica, o filme agrada, emociona e... ilude.

Livre para escolher o tema que quiser, para mani-festar o seu pensamento e para sensibilizar as pessoaspara a sua obra, qualquer artista assume um compro-misso ético, estético e ideológico com a sociedade emque vive. Seja para afirmá-la, criticá-la ou mesmo negá-la, ainda que o seu nível de consciência a respeito dessecompromisso não lhe convença disso. Em outras pala-vras: como artista, posso produzir uma obra para tocarmeu semelhante, para fazer vibrar as suas cordas da razãoe da emoção. Quero que ele compartilhe (ou não) domeu ponto de vista, seja um ponto de vista engajadon’alguma causa social ou descompromissado, alienado.Ideológico ou “sem ideologia”. Hipócrita ou sincero.Uma vez acabada e comunicada, essa obra deixa de mepertencer (como reflexão ou mero entretenimento, de-pendendo do ponto de vista) e passa a pertencer ao teci-do social no qual me incluo.

Como a qualquer brasileiro — e não só — que viveunas entranhas dos anos de chumbo, a polêmica criadaem torno do filme O que é isso, companheiro? me atingiu.Antes de ver o filme já havia mergulhado na leitura deartigos, críticas, entrevistas envolvendo atores e perso-nagens, reais ou fictícios. Nessa altura, duas questões

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IZAÍAS ALMADA

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me chamaram mais a atenção, ambas apresentadas ementrevistas à imprensa e TV pelo próprio diretor BrunoBarreto. Na primeira delas, cito, Barreto afirma: “Fizum filme para os jovens, para as pessoas que não conhe-ceram aquele período da história do Brasil [os anos60]...”, afirmação que encerra um contra-ataque aos que,vivendo e combatendo a ditadura militar, ou partici-pando do seqüestro do embaixador norte-americano,criticaram o filme pelos erros históricos e pela inter-pretação enganosa de alguns dos fatos narrados. A se-gunda questão, levantada em declaração feita em entre-vista a Jô Soares, o cineasta — acompanhado do pai eprodutor — sentenciou: “Fiz um filme para o mercadonorte-americano, para contar aos norte-americanos umahistória sobre um seu embaixador seqüestrado noBrasil no final dos anos 60, história que os própriosnorte-americanos desconheciam...” Com essas duaschaves de leitura, indicadas pelo próprio realizador,fui ver O que é isso, companheiro?.

A mistura da ficção com a realidade, no inícioem preto e branco do fi lme, remeteu-me, entreoutros, ao JFK de Oliver Stone, mas é um recursoefêmero e que acaba por decepcionar. Enquanto nofilme de Stone a técnica documentarista informa,sustenta e faz avançar dramaticamente a narrativa dainvestigação, aqui ela é redutora das próprias possi-bilidades que contém e não passa de um simples re-curso de introdução para situar o tempo do filme.Aplicado o carimbo “Anos 60”, com direito a Jobim,Vinícius, Garota de Ipanema, Leila Diniz, Garrincha,

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Pelé e Maracanã, somos apresentados aos personagensque vão fazer caminhar a ação dramática: os guerri-lheiros urbanos do MR-8.

Syd Field, roteirista e um dos principais teóricosnorte-americanos sobre dramaturgia para cinema, noseu livro The foundations of screenwriting, sustenta queé preciso conhecer muito bem o personagem para po-der revelar visualmente os seus conflitos (capítulo 3,página 22). E conhecer bem um personagem é sabersobre o seu passado, construir-lhe uma sólida biografia.Segundo o próprio Field, a vida interior de um perso-nagem vai do seu nascimento até o filme começar. Avida exterior do personagem é a que nós vemos na tela,aquela que vai do início ao fim da história do filme. Ospersonagens de Bruno não têm passado. Ou melhor,alguns têm lá qualquer coisa próxima disso, aqueles aquem o realizador e seu roteirista resolveram privile-giar: o embaixador, o policial/militar torturador e oprotagonista da história, um ex-jornalista. Os outrosnão: sabemos apenas que são jovens que resolveramcombater a ditadura, assim, vindos do nada. Seriamestudantes que se conheceram no movimento estudan-til. Unem-se, três deles, a uma gostosinha, que mais tar-de intuímos (por um telefonema) ter se integrado à lutaarmada porque não se dava com o pai ou com a família.E todos juntos, comandados por um comediante daRede Globo de Televisão (Luis Fernando Guimarães) euma caricatura de militante da esquerda revolucionária(Fernanda Torres), iniciam a primeira parte da sua açãoguerrilheira, recrutados como se fossem integrantes de

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IZAÍAS ALMADA

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uma pequena quadrilha de mafiosos, rebatizados comseus “nomes de guerra” e exercitando tiros nas praiasazuis e desertas do litoral carioca. Comecei a desconfiarque alguma peça andava fora do lugar, apesar de tudomuito bem filmadinho. Chega-se à primeira ação arma-da do grupo e ao plot-point, como dizem os norte-ame-ricanos, isto é, àquele momento de virada na história,feito para ganhar maior densidade dramática: o assaltoa Banco seguido pelo seqüestro do embaixador. E paracompletar a construção da história, em seu primeiroato, como manda o figurino, a apresentação de um jo-vem bem barbeado ao lado de uma gata de baby-doll,em cuja seqüência, um dos planos revela com estudadaprecaução uma peça de farda militar dependurada noguarda-roupa do casal. Costa-Gavras em Estado de Sítiofoi menos sutil com os militares brasileiros, quandomostrou um prisioneiro sendo torturado à frente dehomens fardados, tendo a bandeira brasileira na paredepor trás do torturado. Remember Dan Mitrione...

Até esse momento do filme, quando se inicia o se-gundo ato, a bandeira norte-americana já havia apareci-do na cena da chegada do homem à lua, no bolo ofereci-do ao embaixador em comemoração a esse mesmo fatoe numa conversa de trabalho dentro da própria embai-xada, sutilezas e regrinhas a que o cineasta — atualmen-te vivendo e trabalhando nos Estados Unidos — vai seacostumando, e das quais conhece muito bem o signifi-cado para a indústria cinematográfica de Hollywood.

Nesse ponto, devo fazer uma profissão de fé paraevitar equívocos: sou grande admirador do cinema nor-

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HISTÓRIA: FICÇÃO, REALIDADE E HIPOCRISIA

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te-americano e — mesmo sabendo das suas regrinhas emdefesa do american way of life e das maravilhas do “paraí-so capitalista” — consigo distinguir e apreciar na suaimensa produção muitos daqueles que deverão ficarcomo os melhores filmes de sempre. Inigualáveis nosgêneros do western e dos musicais, para citar apenas doisexemplos, a produção norte-americana de filmes ajudoua elevar o cinema à categoria de arte, desde os seusprimórdios com Edwin S. Porter, D.W. Griffith e Chap-lin, entre outros. E constitui-se hoje num dos maioresentretenimentos do mundo contemporâneo. Não co-mungo, pois, com aqueles que vêem o demônio no ci-nema norte-americano, longe disso...

Pois bem: Bruno Barreto — sem que ele precisassedizer — fez um filme norte-americano. Até aí, nada acensurar. É um direito seu como artista que trabalhanaquele mercado. No caso, me atrevo a dizer, creio queescolheu a história errada. Ou, já que o livro tambémnão é dos mais sérios em matéria de crítica e autocríticaao pensamento revolucionário brasileiro dos anos 60,adaptou o livro errado. Contar para o público norte-americano que o seqüestro do seu embaixador Elbrick,em 1969 no Brasil, foi fruto da ação juvenil inconse-qüente de um grupo chamado Movimento Revolu-cionário 8 de Outubro (MR-8), grupo esse comandadopor dois mafiosos de uma tal Aliança Libertadora Na-cional, pode ser palatável àquele mercado. Mas, aindaassim, é ingênuo do ponto de vista político e desrespeito-so à própria memória do embaixador, homem sufi-cientemente corajoso para criticar, na época, a ditadu-

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IZAÍAS ALMADA

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ra militar brasileira com maior veemência do que aque-la que o filme sugere. Aliás, os norte-americanos ficari-am talvez mais orgulhosos hoje, se vissem o seu embai-xador criticar com mais dureza um governo ditatorialao sul do Equador, política posta em prática a partir dogoverno de Jimmy Carter. Do ponto de vista dramatúr-gico e de marketing, essa opção poderia ser até mais útilàs intenções dos produtores em tentar conquistar oOscar de melhor filme estrangeiro em 1998.

Maior desrespeito, no entanto, fica por conta dotal filme feito para os que não conheceram ou viverama história política dos anos 60 aqui no Brasil e que, apósassistirem ao filme, afirmo, continuarão sem conhecer...Os defensores de O que é isso, companheiro? alegam quese trata de uma adaptação livre de um momento, deum fato, da história contemporânea brasileira. Ficção,embora muito em cima da realidade, mas ainda assim,ficção... E aqui chegamos, quanto a mim, ao miolo daquestão: a hipocrisia. A hipocrisia vem se constituin-do em marca e apanágio cultural da sociedade brasilei-ra após a ditadura militar. Engatinhando no governoSarney, com a Nova República adensou-se essa práti-ca de sobrevivência política e social, com a nefandaexperiência do “caçador de marajás” e agora desfilacom plumas e paetês pelo governo pífio de FernandoHenrique Cardoso. Para alegria da nossa elite endi-nheirada, sempre perversa, e da emergente classemédia sacoleira.

Que bom ver um filme sobre o meu país, faladoparcialmente em inglês, com alguns atores norte-ameri-

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HISTÓRIA: FICÇÃO, REALIDADE E HIPOCRISIA

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canos, no qual um grupo de meninos da classe médiacarioca (alguns deles também sabem falar inglês) brin-cam de revolucionários, sob o comando de dois mafio-sos/terroristas paulistas (que não sabem falar inglês) eseqüestram um cândido e inocente embaixador norte-americano. Atenção, que o falar inglês aqui assume acaracte-rística do mais primário preconceito cultural, tãotípico dos dias atuais. A tal ponto, que os dois coman-dantes da operação/seqüestro, os caipiras vindos de SãoPaulo, os maus da fita, são os únicos que morrem, comodiz no final a companheira Maria. Coincidência sutil,subliminar...

Que bom também saber que havia uma ditaduramilitar no país entre os anos de 1964 e 1979, mas que osseus principais prepostos — policiais e militares — eramhomens com escrúpulos em exercer a violência e a bar-bárie da tortura, divididos entre o dever (conferir asfalas do personagem quando explica o que faz à mulherde baby-doll) e o humanismo cristão (o crucifixo pen-durado na parede do quarto), ao contrário dos guerri-lheiros de esquerda, impiedosos, incrédulos, amorais,pérfidos. Como é que aqueles garotos ingênuos se dei-xaram manobrar pela “experiência” dos mais velhos?Chegam a ser ridículas as cenas em que o militante maisnovo acende o cigarro do comandante da ação, o Jonas,e a do personagem Toledo ouvindo a Internacionalnuma vitrola, enquanto o mundo desaba lá fora. Ou opôster soviético displicentemente largado junto à mes-inha do telefone. Se esses dois últimos ícones deveminformar que os personagens são comunistas mesmo,

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IZAÍAS ALMADA

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gente capaz de fuzilar qualquer um, por que os uni-formes militares da repressão são escamoteados? Sobrea ditadura, a “ficção”; sobre a esquerda revolucionária,a “realidade”. Ingenuidade? Má-fé? Pesquisa históricasuperficial? Liberdade de criação? Oportunismo paracativar o mercado norte-americano e branquear o ar-bítrio para os que financiaram aqui a repressão? Pensoque quaisquer destas alternativas não respondem àquestão de fundo. Ou não lhe dão a devida sustentaçãoideológica. O filme é mais que isso: é uma visão hipócritados nossos anos 60. E também maniqueísta, malgré lui.Não estou afirmando que Bruno Barreto seja hipócri-ta. Apenas criou uma peça artística firmemente convic-to de que podia lançar um olhar isento sobre o Brasilda ditadura militar. Só que o Brasil preso, torturado,calado, humilhado, exilado, ficou sem voz, ausente dahistória oficial e do filme. Por conseqüência, sujeito àvisão arrogante e hipócrita dos vencedores, os mesmosque educaram a geração de Barreto, ainda bem jovemquando os fatos ocorreram.

Num país onde se compram votos para aprovar areeleição em causa própria, também se fazem filmescomo O que é isso, companheiro?. Uma coisa tem exata-mente a ver com a outra... No entanto, companheiroBruno Barreto, ao contrário daquilo que o filme insi-nua, não pretendo fuzilá-lo. Defendo o seu direito defazer o filme que quiser, o seu direito de expressar etrabalhar com liberdade. Apenas, não se deixe tambémenganar pelos mais velhos, não se deixe manipular porpontos de vista que não correspondem à realidade

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HISTÓRIA: FICÇÃO, REALIDADE E HIPOCRISIA

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histórica. Como você vê, a ficção e a realidade podem edevem valer para todos.

IZAÍAS ALMADA é escritor, dramaturgo e roteirista.Foi preso em 1969, em São Paulo, como militante

da Vanguarda Popular Revolucionária e, sobre operíodo, escreveu os romances A metade

arrancada de mim e Florão da América, ambospublicados pela Editora Estação Liberdade.

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CONSUELO LINS

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O QUE É ISSO,COMPANHEIRO?:A FICÇÃO RESISTE

SEM A HISTÓRIA?

CONSUELO LINS

Publicado noDiário Catarinense,

31/05/97.

Um embaixador é seqüestrado por um grupo de jo-vens inexperientes e sem grandes atrativos como

personagens. Liderados por um fascistóide que os ameaçatodo tempo, cometem uma série de besteiras que leva apolícia a localizar a casa onde se escondem, mas conse-guem mesmo assim escapar. Quem os persegue está emcrise com a namorada, porque dá “caldos” em alguns“garotos ingênuos”, mas nem por isso desiste do seu de-ver. Seu chefe é um educado militar que o impede dealcançar os seqüestradores no momento da fuga. Seja-mos francos: o roteiro de O que é isso, companheiro? étotalmente inverossímil para qualquer filme, thriller ounão, e sem qualquer interesse se, justamente, não tivesse

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O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?: A FICÇÃO RESISTE SEM A HISTÓRIA?

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acontecido e se não estivesse absolutamente enraizadoem um momento específico da história do nosso país.

Na verdade, o filme estabelece uma estranha relaçãocom os acontecimentos ligados ao seqüestro do embaixa-dor norte-americano nos anos 60: por um lado, a históriaserve apenas como referencial para a ficção — “um pontode partida”, como insiste em dizer o diretor Bruno Barre-to; por outro, o filme não se sustentaria e não teria esseimpacto sem ter a história como pano de fundo.

A multiplicidade de acontecimentos que produziramos anos 60 — seja no Brasil, na França, na Itália ou nosEstados Unidos — possui cintilâncias, fulgurações que es-tão longe de se verem esgotadas. A luta por um “mundomelhor”, a possibilidade de se acreditar em uma mudança,a crença revolucionária são o que há de mais belo e fasci-nante nessa década de inquietação existencial e perturbaçãopolítica e o que nos parece mais distante e quaseincompreensível nesses tempos de normatização política,estética, ética. Se o ato de seqüestrar um embaixador podeser questionável, a aura desses anos se mantém. E é estaaura que faz, paradoxalmente, O que é isso, companheiro?funcionar, apesar de suas imagens, sua narrativa e seus per-sonagens. No filme, o líder do seqüestro é mostrado comoum stalinista fascistóide (ele é efetivamente o torturadormental da narrativa, ameaçando incessantemente o em-baixador e seus companheiros — “serão dois tiros...”) e osdemais guerrilheiros — à exceção de Toledo e Fernando— não passam de jovens tolos e vazios, mas a vitalidadedos anos 60 e a ousadia do seqüestro fazem com que “mon-temos” esses personagens de outra maneira.

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CONSUELO LINS

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Se o filme, de uma maneira ou de outra, funcio-na é justamente porque nós, espectadores, fazemosuma montagem “mental” do que nos é oferecido comas imagens que faltam, que estão em nossas mentes eque foram obtidas das mais variadas maneiras. Nessesentido, a minissérie da TV Globo, Anos rebeldes, teveum papel importante na afirmação, para grande par-te da população, desses acontecimentos — a resistênciaarmada à ditadura, a tortura —, tarefa que conseguiurealizar com mais densidade do que o filme de BrunoBarreto.

Essa operação mental, da qual depende o filme deBarreto, integra, de fato, todo e qualquer processo de“leitura” de um filme, mas no caso de obras sobre acon-tecimentos da história, esse processo é mais específico.O campo no qual nos instalamos para assistir ao filmetem referências comuns mais partilhadas.

Tornar o personagem do torturador complexo eproblematizado e simplificar ao extremo o papel dosseqüestradores não dá ao filme qualquer toque de mo-dernidade e o torna indigno dos acontecimentos. Aliás,a ausência de ousadia nos filmes com temas políticos éuma constante no cinema contemporâneo. Under-ground, de Emir Kusturica, talvez seja uma das poucasexceções nesse cenário de pouca criatividade. No entan-to, de Vertov a Godard, de Eiseinstein a Glauber Rochae Alain Resnais, o cinema efetivamente político semprefoi muito mais do que um cinema de conteúdo político.E nesses cineastas, as dimensões da política e da estéticasempre estiveram imbricadas.

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O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?: A FICÇÃO RESISTE SEM A HISTÓRIA?

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Na polêmica atual em torno do filme, Barreto colo-ca de um lado os partidários da “estrita realidade dosfatos” (?), da história, da política, do documentário, e deoutro aqueles que defendem a arte, a estética e a ficção.Ora, esses campos, já há muito, não existem separados eé da mistura deles que o cinema moderno se inventa.Para ficarmos apenas no Brasil, a obra de Glauber Rochanos anos 60, a de Eduardo Coutinho nos anos 80 e a deJorge Furtado nos anos 90 são exemplos vigorosos doque pode o cinema, a partir justamente de uma articu-lação da estética com a política, da ficção com o docu-mentário. Deslocar a discussão para esse terreno reple-to de clichês verbais é a maneira mais eficaz de desquali-ficar toda e qualquer crítica e reduzir o debate a maisum instrumento de divulgação do filme.

CONSUELO LINS é jornalista, professora decinema da Escola de Comunicação da UFRJ e

doutora em cinema pela Universidade deParis III. Coordena atualmente uma pesquisasobre as articulações entre cinema e política.

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PELA PORTADOS FUNDOS

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Quando lançou seu livro O que é isso, companheiro?,Fernando Gabeira colocou-lhe na capa a chance-

la de depoimento, e dividiu o trabalho em 16 “partes”, enão em capítulos. Nos depoimentos, os juízes ouvem aspartes.

Ter como objeto pessoas e fatos reais diferencia odepoimento de qualquer manifestação ficcional, o quecompromete o autor com a correspondência da obra àrealidade dos fatos e personagens que reporta. No livro,porém, o personagem central é ficcional: o Gabeira per-sonagem é uma figura que nos anos 60 já disporia deformulações críticas que, de fato (historicamente), sóviriam a ser elaboradas coletivamente anos depois, comoresultado de experiências, reflexões e formulações dos

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quadros e organizações de esquerda (no Brasil e noexílio), esquerda que o autor tenta desacreditar e des-qualificar ao longo do trabaho. Como esse personagemconfunde-se com o autor, o narrador e a própria história,o livro torna-se todo ele uma ficção cuja estratégia ge-ral é a de apropriar-se da virtude alheia e, ao mesmotempo, tentar ridicularizar aqueles de quem espoliou omérito.

Daniel Aarão Reis Fº em seu artigo “Versões e ficções:a luta pela apropriação da memória” (ver p. 101), observa:

A visão crítica do período, amadurecida coletivamenteno longo exílio, é retrospectivamente localizada nofogo mesmo dos acontecimentos, concentrando-se nopersonagem principal. E, assim, Gabeira/guerrilhei-ro ressurge descolado da ingenuidade ambiente, rees-crito pelo autor com uma superconsciência das tragé-dias que haveriam de vir.

No filme de Barreto/Serran, a mesma trapaça seconstruirá na contramão. Defendido publicamentecomo ficção pelo diretor, numa das seqüências finais,quando o personagem Paulo (Pedro Cardoso), depoisdo seqüestro, dirige-se a uma casa num bairro de perife-ria para encontrar Maria (Fernanda Torres) e se detémpara olhar, colados nos muros, os cartazes com fotosdos militantes procurados pela repressão, a câmera, semcorte ou trabalho de edição/montagem, vai do rosto deCardoso (até então Paulo ou eventualmente Fernando,nas cenas iniciais antes do recrutamento) para a foto docartaz que reproduz o rosto de Cardoso, e sob a qual

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está escrito “Fernando Gabeira”. Este último plano étão rápido que não é suficiente enquanto estímulopara que os espectadores tomem consciência do queestava escrito. No entanto, é exatamente esse truque(subliminar) que sagrará definitivamente o filmeficção enquanto depoimento na subjetividade do es-pectador.

Textos e contextos

Um depoimento legitima-se (torna-se verídico) peranteo público a partir da documentação que reúna e/ou pelasreflexões que articula e/ou pela legitimidade do autor.Fernando Gabeira, em seu livro, aposta na terceira alter-nativa. Para isto e por causa disto seu personagem necessi-ta sempre de um destaque maior do que a participaçãoque realmente teve nos episódios que relata. Pelo mesmomotivo, o filme não pode prescindir de um ficcional-Ga-beira dotado de uma superconsciência.

Nossa insistência na discussão da questão docu-mento/ficção deve-se ao fato de que não entendemoso livro como uma peça apenas ou fundamentalmentenarcísica, mas como um documento de adesão à tran-sição conservadora que já se anunciava no Brasil nofinal dos anos 70, quando o livro foi lançado. Umatransição que naquele momento já consumara umaanistia recíproca.

O roteiro/filme não passa de um agiornamentto dolivro/argumento, e o colorido radicalizado do primeiroface ao segundo reside fundamentalmente nas possibili-

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dades e necessidades colocadas pelos dois momentoshistóricos em que se manifestam.

Ainda que, no Brasil, as forças conservadoras tenhammantido sempre o controle da abertura e da transição, ofinal dos anos 70 assiste a uma grande ascensão do movi-mento operário, sindical e popular e das camadas médiasurbanas, dos quais a esquerda, trazendo consigo a memória(crítica) de todas as fases anteriores das lutas contra a dita-dura, ainda disputava a hegemonia (política e ideológica).O contexto internacional era um mundo ainda bipolari-zado pelos EUA e URSS, sob os efeitos da crise do petróleo,e onde a nova política externa de Washington fundava-senos direitos humanos de Jimmy Carter.

Como hoje, finda aquela bipolaridade, o mundo estáglobalizado e os mercados de investimento e consumode cinema — e o Oscar — visados pelo filme ficam acimado Rio Grande e têm suas leis próprias, como a maiorforça política de esquerda no Brasil tende a zerar ahistória no final dos anos 70, e o projeto neoliberal e suaimplantação no país são presididos por um ex-exilado ecassado, que pede que esqueçam tudo o que ele escreveuantes, o filme pode (e deve) ousar mais.

O filme de Barreto/Serran é um manifesto de adesãoao neoliberalismo, ao qual o deputado Gabeira não fazqualquer ressalva.

Os recursos e o método

Como nas concepções fascistizantes das comuni-cações e artes, o livro privilegia as sombras e os estados

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de inconsciência, as técnicas de condicionamento e sub-liminares e a catarse para atingir a subjetividade do lei-tor pela porta dos fundos. O filme segue seus passos.

Levando-se em conta os tempos de que trata e osrecursos literários que mobiliza, o livro/argumento podeser dividido, grosso modo, em três blocos.

O primeiro bloco, cujo tempo real abrange do golpecivil-militar de 1964 até setembro de 1969 e que englobaos 15 primeiros capítulos, estrutura-se fundamental-mente como uma peça do teatro de revista.

Uma série de pequenos sketches por onde circula —como personagem central e costurando-os entre umapiadinha e outra — o ficcional-Gabeira. Os militantessão construídos linearmente enquanto personagens, aopasso que aquele é complexo e profundo. Diferente-mente do teatro de revista, o personagem central/estre-la está excluído do deboche. O teatro de revista não pre-cisa de heróis. Onde a estrela não se leva a sério, o ficcio-nal-Gabeira é um poço de bom senso e de outras virtu-des ao gosto de uma classe média conservadora.

O humor e as insinuações do teatro de revista sãogeralmente construídos na base da ambigüidade designos e de silogismos, falsos silogismos e sofismas, ondeo terceiro termo (a conclusão) é deixado quase sempreem aberto, a cargo da imaginação já anteriormente in-duzida do espectador. É nessa estrutura de lógica for-mal que o autor encaixará algumas formulações da au-tocrítica da esquerda, manipulando tais formulações esubmetendo-as à lógica das palavras, e não à dinâmicados fatos.

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A idéia generalizante de uma esquerda caricata,no livro, é construída cumulativamente, ao longo dosdiversos casos que narra. Como no filme, além detudo, Barreto e Serran dispõem de menos espaço/tem-po para sua narrativa, devendo construir a caricatu-ra em poucos episódios, o grotesco se revela mais ra-pidamente. É também para suprir essa exigüidade deespaço/tempo que eles, por exemplo, recrutam umelenco de comediantes para protagonizar os jovensmilitantes.

O encantamento dos espelhos

No segundo bloco (capítulo 15, que trata doseqüestro do embaixador Elbrick), consumado o condi-cionamento do leitor àquela lógica do teatro de revista,a estrutura narrativa do livro se apoiará na idéia do du-plo, do simétrico, do simultâneo e do contraponto. Écom esse instrumental que o autor passará para o leitor,entre outras, a idéia de que ele e o embaixador são doisiguais

O texto do manifesto dos seqüestradores e duas cartasde Elbrick à esposa são apresentados transcritos (e comidêntico tratamento gráfico — o itálico), o que lhes con-fere o mesmo nível de realidade e de importância. Além emais do que apresentar seu personagem e o do embaixa-dor como gente do mesmo coturno, num mesmo movi-mento, o que Gabeira pretende e diz (sem escrever) é quefoi ele o autor do manifesto. A indução é feita tambémcumulativamente e de vários modos. Destacamos três prin-

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cipais: os militantes da esquerda já tinham sido, no blocoanterior, desqualificados, incapazes portanto de produzirum texto sobre o qual o autor desdobra-se em elogios,inclusive sobre seus aspectos formais, quando observa atentativa (do manifesto)

ainda que não elaborada, de fugir à velha lengalengada esquerda, aos discursos muito bacharelescos quenão atraíam ninguém. Neste sentido, a experiênciados textos dos panfletos que se produziam diariamenteno movimento operário foi aproveitada pelo redator.(O que é isso, companheiro?, p. 114, editora Codecri,4ª edição)

Até este ponto do folhetim, Gabeira é o único per-sonagem capaz de transcender tal “lengalenga”. O ma-nifesto é tratado ao longo do capítulo (p. 113 a 115) naprimeira pessoa do plural — o que pressupõe diversosautores ou um plural majestático —, e apenas noparágrafo que citamos acima surge, depois de uma enxur-rada de sujeitos sem os complementos nominaisnecessários à clareza do texto ou simplesmente indefini-dos, um autor singular: “o redator”. Aliás, uma palavramuito bem escolhida, pois logo abaixo da sua superfíciepodemos ler “jornalista”. O leitor foi bombardeado des-de o primeiro capítulo do livro com a informação deque “Gabeira é jornalista” — “as palavras que se ponhamsentido”, diria o Ovo, personagem de Alice no país dosespelhos.

O capítulo coloca ainda o ficcional-Gabeira diantedo embaixador como um duplo e simétrico, quando da

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preocupação de ambos — como cabe aos heróis — como destino de damas desprotegidas: o embaixador com ode sua esposa — Elviry — e o ficcional-Gabeira com ode Helena — a fiadora do aparelho onde está cativo El-brick. Finalmente, como seu duplo simétrico, o embai-xador diverge e critica “inteligentemente” a instituiçãoa que serve: neste caso, a política externa do governonorte-americano.

O contraponto é utilizado no tratamento da figurade Joaquim Câmara Ferreira — o Toledo. Enquanto oembaixador (da mesma geração de Toledo) tem in-teligentes diálogos com o redator-ficcional-Gabeira, asintervenções de Toledo são todas no sentido de pedir aoúltimo coisas tolas ou descabidas.

A simultaneidade mais importante utilizada é aseguinte: “Enquanto Vera examinava a casa do embai-xador em Botafogo, buscávamos [primeira pessoa doplural] em Santa Teresa a casa onde ele ficaria quandoseqüestrado.” A construção induz o leitor a pensar queGabeira já sabia que a casa em Santa Teresa seria aluga-da para o seqüestro, quando a procurou, embora não oafirme. Todos sabemos que a casa fora alugada apenaspara abrigar uma gráfica do MR-8, sendo a decisão de lácolocar o embaixador tomada de última hora. Em en-trevista a Helena Salem — transcrita neste livro — DanielAarão conta:

O Gabeira (...) só soube o que ia acontecer no própriodia da ação (...) Ele não teve nenhuma participaçãona elaboração da ação. (...) Ele nunca teve essa idéia[do seqüestro]. Aliás, em entrevistas (...) ele muitas

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vezes dava a entender que tinha tido essa idéia e tinharedigido o manifesto, mas depois ele próprio veio apúblico esclarecer que não.

Será em meio a esse hipnótico jogo de espelhos e de-formações da realidade que Barreto e Serran construirãoo personagem Renée (Cláudia Abreu) e o episódio daincontinência intestinal do embaixador.

Barreto explica o fato de ter incluído ficcionalmenteo problema intestinal porque “a filha do Elbrick (...) medisse que antes de o pai ser seqüestrado ele era um ho-mem muito anal, muito formal, muito frio, distante.(...) Então, veio a idéia da incontinência”. Ora, aindaque levando a sério essa psicologia de botequim (ou seráde bistrô?), a necessidade estrutural da cena para a nar-rativa encontra-se na necessidade do duplo, do simétri-co para o desarranjo emocional do ficcional-Gabeira que,em outra “licença dramatúrgica”, ameaça explodir acabeça do seu duplo, Elbrick.

O gancho para a criação da personagem Renée, porsua vez, está numa frase do autor do livro (p. 109), refe-rindo-se a uma conversa de Vera Sílvia Magalhães como segurança do embaixador durante o levantamento queela fazia da casa: “Vera sentiu no ar que havia sexo econduziu imediatamente para este lado.” O que a duplaBarreto/Serran extrapola a partir daí é inominável, e aprópria Vera Sílvia já respondeu na medida exata o quedevia ser dito.

Com o telefonema de Renée para seu pai, depois doaffaire com o segurança, Barreto e Serran dão sua versão,por meio de um recurso psicologizante — e, portanto,

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abstraindo e escondendo a questão política e objetivada ditadura — sobre a opção pela militância feita pelosjovens da época: desajustes e problemas com a família.Assim como Renée, todos os jovens militantes. Este foio discurso da ditadura, que patologizava as manifestaçõesde dissidência (fossem os militantes de esquerda, fossemos hippies) e responsabilizava as famílias pelo fato e porseu controle. Cecília Coimbra dedica o capítulo 7, “Umadendo às práticas psicanalíticas: a família e a subversão”,do seu livro Guardiães da ordem, ao estudo dessa questão.

Acompanhando ainda a repressão de então em seusargumentos, Barreto e Serran entendem e nos dizem quea militância daqueles anos se resumia a um punhado dejovens desajustados, manipulados por velhas raposasnada confiáveis (Toledo e Jonas). Daí a necessidade nãoapenas de se referirem a Toledo nos mesmos moldes dolivro (senil), como também o de criarem um Jonas (ocomandante da ação, e não por acaso praticamenteausente no livro) psicopata. Isto atende também a re-quisitos conceituais da modernidade neoliberal, segun-do a qual um dirigente revolucionário histórico e umoperário revolucionário “são coisas ridículas”, “obsole-tas” ou “jurássicas”.

“Humanizando”

A construção da narrativa do terceiro bloco dolivro (último capítulo: clandestinidade, prisão, tor-tura e libertação do personagem central) obedece àestrutura das epopéias, antiga forma gravada (e legi-

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timada) no inconsciente coletivo e que sustenta invi-sivelmente o texto. É a coroação do herói e a descriçãode suas aventuras, descobertas e proezas no caminhode volta ao lar. Mas, aqui, trata-se daquelas epopéiasencomendadas por príncipes para louvar seus feitos,e nos quais ele (o príncipe) é o herói, e o poeta a quemse faz a encomenda não passa de um cortesão, geral-mente ralo de talento literário, bem como de caráter.Para além disto é que Gabeira inova: o príncipe (queé a transição conservadora) está oculto, e o herói é opersonagem de ficção que o leitor deverá supor reale que corresponde ao autor.

Assim, depois do seqüestro, acompanhamos asperipécias do ficcional-Gabeira clandestino no aparta-mento da professora Ana (RJ), na casa de uma famíliaoperária (SP), no aparelho que aluga (SP), sua queda epassagem pelo hospital militar e organismos da repressão— onde se deslumbrará com o lúmpen, medida de todasas coisas — e, por fim, sua saída em troca do embaixa-dor alemão.

Nesse trajeto, o personagem visita todas as classessociais dominadas e, uma a uma, passa a “humanizá-las”, descaracterizando as suas situações, os interesses epapéis sociais e políticos dessas classes. Para tanto, lançamão de uma subliteratura melosa, cuja matriz varia casoa caso. “Humanizadas” as classes, “humaniza-se”também a repressão. Aqui a estratégia segue dois cami-nhos: primeiro (e outra vez) a técnica cumulativa; se-gundo, a apresentação da tortura enquanto fruto darazão.

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No primeiro caso, trata-se de listar tantos funcio-nários dos órgãos da repressão e policiais “bonzi-nhos”, tantos gestos simpáticos que, aquilo que foi aexceção transforma-se em regra, uma vez mesmo que,comparativamente, poucos elementos truculentos sãodescritos.

No segundo caso — que está imbricado com oprimeiro —, a tortura vira exclusivamente uma práticaracional. Ora, a face racional da tortura é sua face depolítica de Estado, decidida na mais alta cúpula do go-verno que a dirige e a coloca a seu serviço. Mas, comoos comandantes civis e militares estão invisíveis no li-vro e a natureza do regime não é seu objeto, dirigentes eregime ficam absolvidos. A racionalidade, por sua vez,é transferida pelo autor para os porões do regime que,todos sabemos, viviam infestados de psicopatas cujastaras sempre foram colocadas a serviço daquela razãoque as estimulou e orientou.

Para ser fiel ao espírito do argumento e obedecer aoespaço/tempo de um filme comercial, a dupla Barreto/Serran abandona a técnica cumulativa, substituindo-apelas caricaturas dos dois policiais jovens (Marco Riccae Maurício Gonçalves), coisa tão óbvia que não nos de-teremos sobre ela. Quanto à racionalidade da tortura, ofilme acompanha o livro ao pé da letra e ainda fabulacom a criação do personagem militar moderado, inter-pretado por Othon Bastos — outra “licença poética”.

Depois da cena que legitima o filme enquanto de-poimento, e à qual já nos referimos, quando o públicojá identificou e se identificou com o redator-ficcional-

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Gabeira, passamos para a construção final da catarse.Em ritmo de thriller, o personagem é perseguido, balea-do e sagrado herói na tortura, desembocando, por fim,na cena cinematográfica e plasticamente mais bemconstruída do filme: a reconstituição da foto históricado embarque dos presos trocados pelo embaixador ale-mão ocidental von Holleben, com direito a Maria(Fernanda Torres) chegando de cadeira de rodas, zoomin, closes e tudo.

E todos choram, purgam suas culpas e saem recon-ciliados com o mundo e suas consciências — que ficar-am penduradas no cabide do saguão e que agora já po-dem ser outra vez colocadas nas cabeças, como oschapéus.

ALIPIO FREIRE foi militante da Ala Vermelha eesteve preso de 1969 a 1974. É jornalista e artista

plástico. Sobre o período, fez roteiros e dirigiuos vídeos De amor y de sombra, A todos que lutam

e Viva o povo brasileiro. Organizou um acervode peças e artesanato realizados nos presídiospolíticos de São Paulo pelos que lá passaram

entre 1969 e 1979.

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QUAL É A TUA,COMPANHEIRO?

RENATO TAPAJÓS

Publicado naRevista Adusp,

junho/97.

O filme O que é isso, companheiro?, dirigido porBruno Barreto e baseado no livro homônimo

de Fernando Gabeira, tem provocado muita discussão,sobretudo entre aqueles que viveram ou têm infor-mação do que ocorreu nos anos da ditadura militar. Porser razoavelmente bem realizado, dentro de um padrãode linguagem hollywoodiana, o filme tem sido bem re-cebido por platéias jovens — que nele vêem uma es-pécie de thriller político capaz de manter a atenção e osuspense, funcionando como entretenimento. No en-tanto, na medida em que faz referência a fatos de nossahistória recente, acaba por ser consumido comoinformação verídica sobre aqueles fatos — e é aí que

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residem muitos, ainda que não todos, de seus proble-mas.

O debate que se tem travado sobre o filme geral-mente aborda a polarização que ocorre entre o tortura-dor “humanizado” e o dirigente guerrilheiro (Jonas)apresentado como grosseiro, violento e manipulador.Vejamos cada um dos lados da questão.

O torturador apresentado no filme mostra-se angus-tiado com o fato de ter de torturar os jovens e discuteisso com sua mulher. Fora o fato de a cena ser cine-matograficamente ridícula (inverossímil, diálogos arti-ficiais e francamente ruins, sentimentos dos personagenssubjugados pelo didatismo), ela traz para o debate algu-mas questões. A primeira delas é a da tortura como umadecisão racional do torturador. Ele discute a tortura coma mulher como se houvesse uma possibilidade de esco-lha racional, por parte dele, entre torturar ou usar outrosmétodos. Isso se aprofunda nas próprias cenas de tortu-ra: ele se mantém frio, distante, burocrático. Interrogao torturado com bons modos, bate com bons modos,afoga o preso com bons modos. Como se estivesse dati-lografando um relatório ou limpando uma arma. A tor-tura é apresentada como uma atividade banal, burocra-tizada e, portanto, racional. Essa visão do filme é umaradicalização da posição que Gabeira apresenta em seulivro, no qual define a tortura como racional. Essa visãoé falsa, distorcida. A tortura pode ser uma decisão racio-nal para os altos escalões de comando, que decidem per-miti-la ou aceitá-la como método e são capazes, inclu-sive, de mandar trazer assessores internacionais para di-

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vulgar técnicas “modernas” de tortura entre seus coman-dados. No entanto, no escalão do torturador, daquelesujeito que põe a mão na massa, a tortura significa infli-gir dor, humilhação e talvez a morte a outro ser hu-mano. Ela acontece em meio a gritos, sangue, cheiro desangue e de suor, o fedor insuportável do medo,freqüentemente urina e fezes — porque o medo e a dorsoltam bexigas e intestinos. Esse sujeito, metido numasala abafada e malcheirosa (ninguém tortura com as ja-nelas abertas, por onde possa entrar o ar da manhã e sairo grito de dor do torturado), em cima do corpo maltra-tado e sangrento do torturado está tomado: a adrenali-na do predador corre solta, o prazer primitivo de domi-nar e humilhar o outro gera o ódio pelo prisioneiro in-defeso, o cheiro do medo e do sangue desperta o animalque dorme em todo ser humano; freqüentemente des-vios sexuais vêm à tona, impulsionados pelo fato deleter em suas mãos um corpo geralmente nu, indefeso esobre o qual ele detém todo o poder. Quebrar a resis-tência do prisioneiro envolve humilhá-lo: nenhum tor-turador vai pedir educadamente que o outro fale; eleberra, no mínimo, um “fala, filho da puta!!”.

Vamos parar com a brincadeira: achar que a torturapossa ser conduzida racionalmente é uma piada — exata-mente porque ela é a regressão do homem ao não-hu-mano, a abdicação pelo homem daquilo que o faz hu-mano (e a racionalidade faz parte disso). A tortura é anegação do humano — e essa é a chave da sua eficácia. Aprática da tortura contamina o torturador, destrói seuequilíbrio. É uma experiência limite, como muitas ou-

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tras, que deixa sua marca indelével em quem se envolvecom ela. Sobretudo quando a prática da tortura deixade ser eventual, resultante de um momento crítico, epassa a ser a norma, o cotidiano da repressão. O tortu-rador está, todos os dias, regredindo, negando sua hu-manidade, exercitando aquilo que de pior existe nele.Com o tempo, ele cristaliza a regressão, reforça sua não-humanidade, entroniza como valor o seu lado mais po-dre. E se transforma em sua própria caricatura, uma es-pécie de monstro bidimensional. Não é mais possívelpensar na figura de um burocrata que encerra o expe-diente e volta para casa para encontrar sua mulher e seusfilhos, levando a vida normal de classe média. Depois decerto tempo, o torturador é torturador o tempo todo.

A idéia, portanto, de condenar a tortura tentandocompreender o torturador, é absurda. Mesmo porque,da maneira como o filme a apresenta, fica-se longe deuma condenação. Ela é amenizada pelo tratamento quelhe confere racionalidade: dá até a impressão de não sertão cruel assim. Por outro lado, na medida em que seevita a condenação do torturador, dá-se razão à ditadu-ra que aproveitou a anistia para impedir que se fizessejustiça em relação aos torturadores. O filme compreendetanto as razões do torturador que fica difícil percebê-locomo aquilo que na verdade é: um criminoso. Praticantedaquilo que hoje é considerado crime hediondo e, por-tanto, inafiançável. Não é possível deixar de lembrar afrase de Jorge Semprum em A viagem, referindo-se aostorturadores de então: “Não é necessário compreenderos SS. É necessário exterminá-los.” No quadro brasileiro,

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“exterminar” é um pouco excessivo. Mas levar os tor-turadores à Justiça teria sido, no mínimo, saudável paranossa democracia, importante para evitar que fatos comoaqueles se repitam. A atitude leniente do filme em relaçãoao torturador e à tortura não contribui nem um poucopara que aquilo não mais se repita.

Mas voltemos ao filme: como em nenhum momen-to se faz referência aos escalões superiores (comandosdas Forças Armadas e outros), tem-se a impressão deque a decisão de torturar foi tomada pelo mesmo es-calão que pratica a tortura. Essa é uma bela distorção,que absolve a ditadura ao condenar seus agentes meno-res. O mesmo tipo de problema surge em outros mo-mentos do filme: numa determinada seqüência, osagentes da repressão discutem se vão ou não ceder aopedido de resgate dos seqüestradores. Pelo mesmomecanismo de omissão, tem-se a impressão de que sãoeles, ali, que vão decidir sobre isso — quando é sabidoque essa era uma decisão da Presidência da República.Esse mecanismo — voluntariamente ou não — acaba porpassar a idéia de que a repressão durante a ditadura “eraindependente” ou “fugia ao controle” do governo cen-tral. Essa interpretação dos fatos é extremamente inte-ressante para todos aqueles que fizeram parte dos altosescalões da ditadura e que estão aí, como democratasem nossa democracia. Afinal, podem argumentar, ago-ra com o aval do filme, que eles não sabiam do que sepassava nos porões.

Agora, o outro lado. O dirigente da ação doseqüestro, apresentado no filme com o nome de guerra

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de Jonas, nos é mostrado como um sujeito rude e au-toritário, que não hesita em ameaçar de morte os com-panheiros que porventura desobedecerem a disciplinaimposta por ele. Também ameaça o embaixadorseqüestrado de tortura e de morte, além de manipulardesonestamente a escala de plantões para colocar umdeterminado personagem na situação de ter de executaro embaixador caso as negociações fracassem. O retratoque se pinta, portanto, é o de um mau-caráter, stalinistanos métodos e com uma prática interna de chefe degangue. Inicialmente, não vou me deter na questão daidentificação desse Jonas com o Jonas real, ou seja, comVirgílio Gomes da Silva. Isso fica para depois. Acontestação inicial é outra: para quem militou nasorganizações clandestinas do final dos anos 60, éinimaginável pensar num dirigente com essas caracterís-ticas. Dirigentes autoritários, houve. Stalinistas, é evi-dente que sim. Mas o clima reinante nas organizaçõesprovenientes das lutas internas e rachas do período erade tal ordem (bem ao estilo libertário e antiautoritárioda época) que qualquer dirigente que tentasse manter adisciplina com ameaças de morte seria imediatamenteapeado do seu posto, acusado de autoritário, obreirista,stalinista, contrário ao espírito do marxismo-leninismoe do centralismo democrático. Organizações inteirasracharam por muito menos: a disciplina dos militantes,“pequeno-burgueses provenientes do movimento estu-dantil”, era garantida por meio de longuíssimasdiscussões eivadas de citações dos clássicos, sessões decrítica e autocrítica, ácidas comparações com a discipli-

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na “natural” dos quadros operários ou camponeses —jamais por meio de ameaças diretas e cruas. Essa disci-plina obtida pela ameaça é típica dos bandos de gângsteres— da máfia aos nossos traficantes locais. Transportar essetipo de atitude para dentro de um grupo guerrilheiro daesquerda armada no Brasil dos anos 60 é não terinformação sobre a política interna dessas organizaçõesou, simplesmente, má-fé.

E aqui se coloca a questão do Jonas. Na vida real, aação de seqüestro do embaixador norte-americano pelaALN e pelo MR-8 em 1969 foi comandada por VirgílioGomes da Silva, codinome Jonas. No filme, a ação deseqüestro do embaixador norte-americano pela ALN epelo MR-8 em 1969 é comandada por um militante decodinome Jonas. É impossível não identificar os dois.Dizer que não são a mesma personagem é querer con-tar, ao contrário, a piada do sujeito que não se chamavaJoaquim e não morava em Niterói. Na medida em quetodos os depoimentos de militantes que conheceram overdadeiro Jonas contradizem frontalmente o persona-gem do filme, só restou ao diretor do filme, Bruno Bar-reto, e ao próprio Gabeira, argumentar que o filme é“ficção” e que não se pode cobrar dele fidelidade ao real.Evidentemente este mesmo argumento vai servir parajustificar todas as “diferenças” entre a versão do filme ea realidade, aí incluídas a caracterização do torturador eas relações internas à organização guerrilheira. O quenos leva a uma outra discussão: quais são as responsabi-lidades que um filme dito de ficção tem ao recriar umaépoca real e personagens reais? É evidente que a ficção

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tem enorme liberdade, senão ela limitaria o imagináriodos criadores ao espaço do documentário. O autor deficção cria — ou elimina — personagens, altera fatos,inventa outros. Tudo no sentido de tornar sua narrativamais fluente e de deixar mais claros seus pontos de vista.Ele pode se dar ao luxo de inventar um personagem fictí-cio em meio às figuras reais da Revolução Francesa, fa-zer com que figuras famosas que nunca se cruzaram seencontrem e convivam. Pode até criar cenáriosimaginários a partir de hipóteses fantásticas como: o queaconteceria se os nazistas tivessem vencido a guerra etomado os EUA? Nesse sentido, a ficção não tem limites.Mas, ao aplicar essa imensa liberdade, a ficção tem res-ponsabilidades. Por exemplo: se alguém escrever umahistória onde um certo Adolph é o benévolo dirigentedemocrático de uma feliz Alemanha e se torna vítimade judeus desalmados, que inventam um troço chama-do Holocausto? Ou, também, se alguém resolver fazerum filme em que uma flor de pessoa conhecida comoStalin premia seus colaboradores com estadas maravi-lhosas nos hotéis cinco estrelas da região paradisíaca (epor que não, tropical?) da Sibéria? A pergunta é: qual oefeito dessa liberdade ficcional? A resposta é simples:deixam de ser “apenas” obras de ficção e se transformamem instrumentos de propaganda ideológica. Porque nãoestão apenas criando ficcionalmente no interior dos fa-tos históricos. Estão distorcendo esses fatos e colocan-do uma versão mentirosa no lugar do que já é historica-mente comprovado. Um filme como O judeu Suss, obrafundamental da propaganda nazista de pré-guerra,

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realizava exatamente esse tipo de manobra. Uma dasmais bem-sucedidas e prolongadas distorções históricasé representada pelo tratamento que o western deu, pormais de 30 anos, aos índios norte-americanos. Váriasgerações, por intermédio do cinema norte-americano,foram convencidas de que os índios daquele país eramcruéis, sanguinários e um estorvo à expansão da civiliza-ção. É só no final dos anos 50 que começa um movi-mento de revisão da verdadeira história da expansão parao Oeste nos EUA, tentando compreender o que de fatoaconteceu no final do século passado. E é só então quese vão contar as histórias dos massacres cometidos pelosbrancos contra as populações indígenas. Só aí que per-sonagens como o general Custer assumem sua verdadeiradimensão histórica.

A pergunta, portanto, é: a quem servem essas dis-torções? A ficção não é inocente: na medida em que aliberdade de criação não busca uma certa fidelidade aoque se sabe da história, ela passa a servir como difusorade um ponto de vista ideológico, interessado em distor-cer a história para criar opinião. E a desculpa de que oficcionista não tem a obrigação de conhecer a histórianão tem fundamento. Ele tem, sim, a obrigação de sa-ber o que de fato ocorreu no período que retrata para,daí, criar com liberdade.

O que nos leva de volta ao filme — uma pequena, eincompleta, lista das distorções e desinformações nelecontida pode ser elaborada:

O filme omite o background político-cultural da época,fazendo com que os espectadores tenham a impressão

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de que a decisão pela luta armada foi uma opção quasegratuita dos jovens estudantes. Na medida em que nadaé dito das organizações políticas então existentes, daslutas internas que se travavam, das teorias e modelosque se discutiam, a idéia da luta armada parece surgir donada, do inconformismo de rebeldes sem causa.

Da mesma forma, a repressão parece se reduzir a umgrupo de militares decididos a acabar com aquela bader-na juvenil. Em nenhum momento ela é percebida comouma política de Estado, que ia muito além do combateaos grupos guerrilheiros e que, na verdade, se utilizavadesse combate para imobilizar e massacrar toda oposiçãoao regime.

Não há, no filme, resposta à interpretação do tortura-dor de que os guerrilheiros “eram um grupo de jovensingênuos iludidos por uma canalha de dirigentes deso-nestos e mal-intencionados”. Os únicos dirigentes queaparecem no filme são Jonas e Toledo. Jonas, como seviu, é retratado como pouco mais que um bandido co-mum. Toledo, no filme, não diz a que veio: apenas sedeixa estar no aparelho sem fazer nada de significativo.A versão do torturador acaba predominando.

O filme passa a impressão de que o torturador, aqueletorturador, fez tudo sozinho na repressão ao seqüestro.No filme ele tortura os presos, investiga o seqüestro,localiza a casa onde o embaixador está sendo mantido,monta a campana, segue os seqüestradores quando vãolibertar o seqüestrado. Só não prende todos os militan-tes e resolve sozinho o seqüestro porque seu comandan-

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te o impede, para não colocar em risco a vida do embai-xador. Nenhum outro grupo da repressão é apresenta-do, nenhuma relação fora daquela unidade se estabelece.Sabe-se, no entanto, que durante o seqüestro real, umimenso aparato repressivo foi montado. Dezenas, tal-vez centenas de casas foram vigiadas. A localização dacasa foi resultado de uma mobilização repressiva semprecedentes. De novo, temos aqui a tal liberdade do trata-mento ficcional. Que resulta, como sempre, numa dis-torção: o filme minimiza o aparelho repressivo (de novoo “grupo fora de controle”) e com isso minimiza e ba-naliza o seqüestro do embaixador Elbrick.

Além disso tudo, há um outro aspecto, que diz maisdiretamente respeito à linguagem cinematográfica uti-lizada. Bruno Barreto domina a narrativa clássica do ci-nema. Mas a opção que faz, num filme que se pretendede ação, de desdramatizar cinematograficamente as se-qüências mais tensas resulta, ainda uma vez, num retra-to falso. O filme não é capaz de sugerir, nem de longe, atensão e a adrenalina que banhavam a vida clandestinanas organizações armadas. Parece tudo muito burocráti-co, muito banal. Até mesmo as ações armadas (assaltoao Banco, seqüestro do embaixador), a tortura e a vidano aparelho são apresentadas sem muitos sobressaltos.Há um certo clima blasé, uma ponta de tédio, uma ba-nalidade suburbana em tudo o que acontece. Isso é gera-do pelas escolhas formais de direção: enquadramentos,cortes, ritmo, tom da interpretação. Não nos parecedeficiência no domínio da linguagem cinematográfica:quando o diretor quer criar uma cena tensa e profunda-

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mente emocional (a cena do aeroporto, quando a guer-rilheira chega na cadeira de rodas), ele consegue, comadmirável economia de recursos. É uma escolha. E nãopodia deixar de ser: tudo o que se discutiu neste texto éo resultado das escolhas feitas na roteirização e na direçãodo filme. Escolhas em última instância ideológicas. Ofilme é o que é não pelo fato de ser ficção ou entreteni-mento; ele é o produto de escolhas ideológicas que lhedão um perfil conservador, ainda que moderno. Neoli-beral, na verdade.

RENATO TAPAJÓS é escritor e cineasta; foimilitante da Ala Vermelha do PCdoB e

processado com base na Lei de SegurançaNacional por participar da luta armada.

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DANIEL AARÃO REIS FILHO

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À MANEIRA DEUM BALANÇO:

EPÍLOGO OU PRÓLOGO?

DANIEL AARÃO REIS Fº

Entre a intenção e o gesto, pode haver distâncias. En-tre a estimativa e os resultados, com a ajuda do im-

ponderável, pode haver abismos — e surpresas.Por exemplo, os filmes de propaganda do nazismo.

Nos anos 30, impressionaram e levantaram multidões afavor do Reich. Depois da guerra, liquidada a Besta,mudadas as concepções, os humores e as preferências,os mesmos filmes foram e têm sido utilizados contra oregime de que faziam um discurso positivo. Como po-deria imaginar a criativa diretora que seus filmes pelonazismo iriam ser usados contra o nazismo?

Trata-se de um caso extremo, de inversão radical demão, entre o projeto e a obra. Concebido para atingir

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À MANEIRA DE UM BALANÇO: EPÍLOGO OU PRÓLOGO?

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determinados objetivos, o trabalho, com o tempo, é re-utilizado, sem mudar um ponto, uma vírgula, para che-gar a finalidades opostas.

Assim é o mistério da obra. Autonomiza-se emrelação à imaginação do criador. Perfaz caminhos ines-perados, segundo as circunstâncias da época e a qualida-de da recepção de leitores (livros) ou espectadores (fil-mes). De nada adianta o autor espernear, que desejavadizer outra coisa, que eram outras suas intenções. A obra,feita, tem vida e voz próprias, quem saberá dela, no casode um filme, são os espectadores. Ao autor, não raro,caberá apenas a condição subalterna de criatura daprópria criatura.

Do filme O que é isso, companheiro?, ainda é cedopara elaborar um balanço exaustivo de sua trajetória.Mas podemos fazer algumas considerações. De início,um fato intrigante: em apenas cinco semanas, o filme jáparece cansado, esgotado. E, no entanto, não faltaramos meios.

Prepararam o lançamento com esmero de profissio-nais. Dedicaram ao empreendimento mais de um ano.Mobilizaram céus e terras, armaram intrigas, provoca-ram polêmicas. Cada respiro de cada ator, qualquer fo-foca virava notícia, devidamente registrada nos cader-nos de variedades da vida.

Com certa segurança, e alguma arrogância, chega-ram a prever mais de 1 milhão de espectadores, talvez 1milhão e 200 mil, quem sabe mais?

Alcançaram até o momento (meados de junho de1997), um pouco mais de 200 mil, talvez se chegue a 250

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mil. O mercado não espera que ultrapasse os 300 mil.Aquele meio-sucesso que é mais do que um desastre, con-siderando as previsões e as expectativas. Não se ponhaem dúvida a expertise dos autores, produtores e amigos,todos altamente qualificados nas artimanhas domarketing. Mas é aquela questão da dosagem. De tempoe de ingredientes. O bolo deste filme parece ter solado.O pessoal caprichou demais. Querendo seduzir, satu-raram.

O imponderável

Bem, deixemos de lado a questão do vil metal. Estagente podia ter também outras razões para fazer o fil-me. O que desejavam? Aí pisamos num terrenomovediço. Com efeito, não é nada fácil chegar a con-clusões seguras. Não se trata de má vontade. A confusãobrotou do próprio discurso dos autores. Ora diziamquerer fazer apenas uma ficção. Mas na publicidade,agressiva, reivindicavam associação com a história. Nãoqueriam falar de personagens reais. Mas contaram umahistória real, e na apresentação dos personagens, nãotiveram sequer o cuidado de mudar os nomes de guer-ra. Um descuido de profissionais. Num país sério, de-pois de pagar as devidas indenizações, poderiam ficar aperigo.

Ou seja, um filme de ficção histórica que não seequilibrou como ficção e desabou como história.

Mas o filme teve um aspecto positivo: fez a socieda-de, e sobretudo a juventude, pensar ou repensar os anos

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60, a ditadura e a trajetória de uma esquerda rebelde.Por incrível que pareça, mais um resultado imprevisto.Porque os autores do filme tinham preparado e esta-vam esperando uma outra discussão, em torno de quemtinha escrito o quê, quem fizera isto ou aquilo quando,quem transara ou não transara com quem. Queriam quese apreciasse o bom gosto da trilha sonora. E, sobretu-do, que as pessoas relaxassem e curtissem o filme. Comefeito, para que perder tempo com aborrecidas reflexões?É tão penoso e pesado pensar. Por que não relaxar ecurtir?

Mas as pessoas resolveram pensar. E, pensando, nãogostaram de associar o torturador à delicadeza e o guer-rilheiro à boçalidade. Os autores do filme queriam che-gar a um ponto etéreo, eqüidistante entre torturadorese torturados, igual e assepticamente distanciado da dita-dura e dos guerrilheiros. Mas houve dificuldades paraencontrar este ponto, e as pessoas pareceram simpatizarmais com os vencidos do que com os vencedores. Aliás,no filme, e apesar dos autores, os vencidos vencem e osvencedores perdem. Uma coisa inusitada. Mas estranhomesmo é que a grande maioria não ficou neutra, gostoude ver os vencidos vencerem, pelo menos uma vezinha.O que, de certo modo, reproduziu o que já havia ocor-rido naquele longínquo mês de setembro de 1969.

Nem nos personagens centrais os autores acertarama mão. Fizeram o filme para projetar o Paulo/Gabeira.Um homem pretensamente sem qualidades, mas, de fato,sem defeitos. César Benjamin fez o inventário da per-feição: Paulo/Gabeira é criativo, sedutor, elegante, ousa-

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do, inteligente, culto, maduro, corajoso. Não havia jeitode não ir para o trono. Enquanto isto, o Jonas/VirgílioGomes da Silva, o comandante da ação do seqüestro,era todo o oposto: obtuso, chapado, deselegante, timo-rato, burro, inculto, imaturo, covarde. E, ainda por cima,intrigante e mau-caráter. Não havia como não desceraos infernos. Aquela história do príncipe e do sapo.

Ora, e uma vez mais, as coisas não se passaram con-forme o figurino desenhado. O distinto públicocomeçou a se interessar pelo sapo, obrigando o príncipea responder a incômodas questões. Na seqüência, osautores tentaram justificar-se dizendo que aquilo tudonão era bem tudo aquilo: que o príncipe não era assimtão nobre, nem o sapo tão grotesco. E que aquelepríncipe, do filme, não se referia a nenhum príncipe, navida real. E que o sapo, do filme, não era exatamenteum sapo. Na verdade, aliás, era um herói. Aí as coisas seembaralharam de vez. E não deu mais para relaxar, nempara curtir.

E o inesperado aconteceu: vagarosamente, os refle-tores deixaram Paulo/Gabeira de lado e foram ilumi-nar o desconhecido Jonas/Virgílio. E muita gente co-nheceu pela primeira vez uma história ignorada: a deum homem que lutou uma luta desesperada e morreucomo um bravo. E o sapo virou príncipe, e o príncipe,sapo. Uma vertigem.

Nesta altura a sociedade estava mergulhada numadiscussão contraditória, desagradável, uma cacofonia.Vozes impertinentes propunham temas e personagensnão programados, nem previstos no roteiro original. O

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tranqüilo bate-papo, tipo ação-entre-amigos, deu lugarà polêmica, este detestável exercício. Como bons demo-cratas, os autores do filme desqualificaram as críticas,insultaram. E como elas persistiam, ofenderam-se. E seretiraram.

Um balanço de cinco semanas e já estamos noepílogo. Deste filme, esperamos. Mas não de um debatemaior, que mal começou: o das complexas e prolonga-das relações entre a sociedade e a ditadura militar. Nestedebate, essencial para que se consolide a democraciabrasileira, ainda estamos apenas no prólogo.

DANIEL AARÃO REIS FILHO é professor-titular dehistória contemporânea da Universidade Federal

Fluminense (UFF); foi membro da DissidênciaComunista da Guanabara em 1969.

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ENTREVISTA COM CLÁUDIO TORRES

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O FILME CONFUNDE

INTENCIONALMENTE A

REALIDADE

HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA

Publicado na

Revista Adusp,

junho/97

Dirigente do MR-8 em 1969, o gaúcho Cláudio Torres

da Silva teve participação direta no seqüestro do em-

baixador norte-americano Charles Elbrick, realizado em

conjunto com a ALN no dia 4 de setembro daquele ano,

durante a ditadura militar. Dois dias depois da liberação do

embaixador — trocado por 15 prisioneiros políticos —, ele

foi preso pelos órgãos de segurança do regime e passou sete

anos na cadeia. Atualmente, com 52 anos de idade, Cláudio

Torres é sociólogo, mora em São Paulo e trabalha na área

de meio ambiente. Depois de assistir ao filme O Que É Isso,Companheiro?, de Bruno Barreto, baseado no livro de Fer-

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nando Gabeira, o ex-dirigente do MR-8 disse ter ficado “in-dignado” com a versão apresentada na tela. Nesta entrevis-ta, ele discute os aspectos documentais e ficcionais, o trata-mento dado aos personagens tirados da realidade e confron-ta com o seu testemunho vários momentos relatados nofilme. A obra de Bruno Barreto, segundo Cláudio Torres,tem méritos estéticos e técnicos, mas faz uma “distorçãodeliberada dos fatos e do comportamento das pessoas en-volvidas no episódio”.

O que você achou do filme?

CLÁUDIO — O filme tem inegáveis qualidades. Aliás, se ofilme fosse ruim eu não estaria preocupado em estar aquidiscutindo. O filme tecnicamente é muito bem feito, temuma fotografia muito boa, tem qualidade interpretativa devários atores e conta uma história que consegue manter in-teressado o espectador durante todo o tempo. Do ponto devista narrativo, é um bom filme. Mas, do ponto de vista defidelidade aos processos que ocorreram na época, ao signi-ficado do seqüestro, ao significado da ditadura militar, eledeixa muito a desejar. Essa questão precisa ser separada.Uma outra questão importante é que o pecado original dofilme é o fato de se basear no livro de Fernando Gabeira,que saiu com esse mesmo título, O Que É Isso, Companheiro,publicado em 1979. Na época reconheci qualidades e sau-dei o livro como uma abertura para amenizar a figura doguerrilheiro urbano e cortar um pouco aquele véu que aditadura tinha conseguido impor a nós todos que estávamosligados àquele processo. Então, eu só acho o seguinte: se o

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ENTREVISTA COM CLÁUDIO TORRES

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filme do Bruno Barreto tivesse sido feito em 1979, talvezfosse realmente um avanço, mas hoje, depois de um filmecomo Lamarca, do Sérgio Rezende, eu acho que é um atra-so. É um filme que, exatamente por ser tecnicamente bom,é ruim, porque com uma boa técnica e uma boa qualidadeinterpretativa dos atores, conta uma história de uma manei-ra ruim.

No começo do filme, o diretor explica que, embora baseado numfato real, ele compôs vários personagens. O grupo que apareceno filme não corresponde totalmente ao grupo que participoudo seqüestro. Ou seja, ele usou elementos de ficção na monta-gem do filme. Isto não retira o caráter documental e a obriga-ção de fidelidade ao episódio?

CLÁUDIO — Acho que aí houve uma manobra de marke-ting da produção do filme. Se o filme fosse uma históriasobre um seqüestro ocorrido no final dos anos 60 e feitopela esquerda armada, eu acho que ele teria uma liberdadebem maior de interpretar os fatos, não total, evidentemen-te, mas teria um grau de liberdade superior. Acontece que ofilme usa, inclusive, nomes próprios de pessoas que partici-param daquela ação. Então, é como se você estivesse fazen-do um filme sobre a Revolução Francesa, em que você re-produz cenas da Revolução Francesa. Tem um personagemchamado Danton, que é um dos líderes, outro personagemchamado Robespierre, que é outro dos líderes, e o roteiro ébaseado numa novela, digamos do Desmoulins. Então, pormais que você diga que aquilo é ficção, não pode ser vistocomo ficção, porque na verdade você utilizou caracteres for-mados pela própria realidade; ou seja, você confundiu in-

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tencionalmente a realidade vivida com os personagens. Ospersonagens, portanto, não são criados, eles são reproduzi-dos por papel carbono de má qualidade a partir de persona-gens reais. Portanto, eu acho que o filme tem caráter docu-mental, sim, e quem optou por isso, pela reprodução, pode-ria ter optado por uma outra versão, uma outra caracteriza-ção mais anódina, mais distante daqueles fatos.

Quais os aspectos do filme que apresentam maiores contradi-ções ou que mais distorcem o que de fato ocorreu?

CLÁUDIO — Eu acho que o seqüestro não está solto noespaço e no tempo, o seqüestro pertence a um conjunto deações políticas, militares, sociais, ideológicas, culturais, quecontemplam toda uma década extremamente rica, diga-sede passagem não só de Brasil. A pobreza maior do filme éexatamente não permitir ao espectador integrar esses dife-rentes momentos dos anos 60. Ou seja, o seqüestro do em-baixador é uma operação realizada em grande parte porestudantes que, num determinado momento muito anteriorao do filme, já tinham sentido a obstaculização e a repres-são cada vez mais violenta, crescentemente violenta do regi-me, inclusive muito antes do AI-5. Dizer que o regime setornou violento e repressor com o AI-5 é uma fantasia. Naverdade, em 1964 os sindicatos foram fechados, líderes ru-rais foram assassinados, Gregório Bezerra, por exemplo,que era um quadro do Partido Comunista Brasileiro, foipreso e não só preso, mas arrastado com uma corda amarra-da no pescoço; os partidos foram extintos, o Congresso,fechado; enfim, a intervenção sobre as instituições demo-cráticas no Brasil foi violenta. O termo é esse, foi violenta.

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Então a violência não começou conosco, ela começou exa-tamente com aqueles que detinham o poder. Ora, no mo-mento do seqüestro, quem governava o Brasil era exatamen-te uma junta militar que tinha dado uma espécie de golpebranco contra o ditador de plantão, o Costa e Silva, e o fezexatamente porque havia interesse, já naquela época, de ra-dicalizar ainda mais o processo. Havia uma aliança perver-sa entre a violência contra a subversão e a corrupção; e a partirdali, então, os governos militares vão se caracterizar basica-mente por isso: são governos extremamente corruptos e extre-mamente violentos.O filme não mostra nada disso.

O filme não situa corretamente a operação do seqüestro?

CLÁUDIO — O filme, de alguma forma, quando tenta sereportar à conjuntura externa, ao contexto, digamos assim,usa fotografias e afirmações em letreiros em preto e branco.Ou seja, é evidente que se você tem um história contadacom a vivacidade narrativa que o filme realmente tem — épreciso ser reconhecido — e põe antes e no final letreirosem preto e branco, é óbvio que o diretor está dando umaimportância muito maior à história da ação em si do que aoseu contexto. Pois bem, o contexto não precisa ser vistoapenas exteriormente à ação, mas a própria narrativa doseqüestro permite algumas ilações a respeito do contextoem que o filme pretensamente se baseia. E essas ilações vãoser observadas no tratamento que é dado a algumas ques-tões básicas da época. Uma delas, por exemplo, é o trata-mento dado à repressão, ao aparelho repressor. Eu pessoal-mente acho que o tratamento que o filme dá tem dois aspec-tos a considerar: primeiro, ele não faz distinções entre o

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aparelho repressor usado pela ditadura militar e o conjuntodos militares brasileiros, muitos dos quais não concorda-vam com aquilo, apesar de se sentirem incapazes de mudaras coisas. A outra questão, que é mais grave ainda, é o fatode que os torturadores foram apresentados de uma maneiraque exalta os seus eventuais problemas psíquicos ou proble-mas existenciais. É evidente, eu não vou aqui dizer que umtorturador não tenha problemas existenciais, deve até ter, emuitos, mas eles conseguiam colocar esses problemas exis-tenciais para fora, controlá-los de alguma forma, ou passarpor cima deles, e continuavam diuturnamente fazendo açõesextremamente cruéis, extremamente violentas contra presos,matando e seviciando meninas e crianças, e uma série de coi-sas atrozes.

Na época do seqüestro já tinha muita gente presa?

CLÁUDIO — Não, não tinha muita gente presa. Na verdade,à medida que o processo de luta armada aumentou de inten-sidade, a violência — a única coisa que a ditadura militardemocratizou foi a violência — passou então a ser exercidacontra todo o povo; faziam-se batidas na rua, prendiam gen-te que nem sabia do que se tratava, faziam coisas terríveis,exatamente para tentar com isso amedrontar a população,para que essa população não apoiasse, não desse guarida, dealguma forma ficasse intimidada e procurasse colaborar coma polícia. Então, mudou a qualidade da repressão, mas a re-pressão já existia antes. Inclusive, a repressão institucional éanterior ao AI-5, ela vem desde abril de 1964.

E com relação aos personagens, como são descritos no filme. OJonas, por exemplo, é tratado como um cara duro, ameaçador,

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inclusive contra os próprios companheiros. Na realidade foi issoque aconteceu?

CLÁUDIO — Não, isso é deformado. A caracterização doJonas está bastante deformada, exatamente porque a di-reção do filme e o roteiro tentam fazer um contrapontoentre o Jonas e o Gabeira, como se os dois estivessemrepresentando ali posições antagônicas. Isto não é verda-de, factualmente. Apesar de o livro do Gabeira, O Que ÉIsso, Companheiro?, permitir uma interpretação que, seexagerada, leva exatamente a esse tipo de visão; exata-mente porque ele não se preocupa em hierarquizar asquestões, de certa forma confunde o personagem da his-tória com o personagem do livro e do filme. Em relaçãoao Jonas, ele evidentemente era um cara duro, você nãopode ser um bom comandante de ação armada se foruma pessoa extremamente gentil, um cara que para cadadecisão reúne o grupo para saber qual o melhor cami-nho a tomar, isso não faz parte do ethos da ação armada,isso não faz parte das exigências organizacionais de umgrupo que se propõe a hostilizar e a combater a ditaduramilitar por meio de ações armadas. A ação armada preci-sa ter características militares, e as características milita-res por definição não podem coexistir com excesso dedemocracia. Duro, portanto, ele era, e por isso era umbom comandante, e por isso nós o escolhemos para ser ocomandante da operação. Agora, de forma alguma, emnenhum momento na realidade da ação ele diz coisasque o filme lhe atribui, como por exemplo aquela entre-vista com o embaixador, que de fato aconteceu, mas quenão tem nenhuma relação com aquilo. E muito menos

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aquela ação desonesta que ele faz para tentar envolver oGabeira, enfim, tentar testar o Gabeira numa situaçãoem que o Gabeira teria de assassinar o embaixador casoa ação não tivesse êxito.

Isso não aconteceu?

CLÁUDIO — Não aconteceu de forma alguma, e se alguémtivesse que fazer isso certamente não seria o Gabeira, porqueo Gabeira sequer pertencia ao grupo de fogo da organização.

O Gabeira ficou na casa o tempo todo?

CLÁUDIO — Não o período todo, mas uma boa parte dotempo.

Você disse que o Jonas não teve aquele diálogo com o embaixa-dor. Quem participou da conversa com o embaixador? Foi umaint imidação?

CLÁUDIO — Não, não foi de forma alguma uma intimida-ção. Primeiro há que se esclarecer o seguinte: essa ação doseqüestro tinha um comandante militar que era o Jonas,cujo nome real era Virgílio Gomes da Silva, e que foi assas-sinado pela repressão durante a tortura algumas semanasdepois do seqüestro. Politicamente tinha dois responsáveis:um era o Toledo, o “Velho” [Joaquim Câmara Ferreira],que representava a ALN, e o outro, naquele momento daoperação, era eu, que representava a Dissidência da Guana-bara ou MR-8.

A Dissidência estava se assumindo como MR-8?

CLÁUDIO — Não, o MR-8, na verdade, originalmente, éuma outra organização que era dissidência do Estado do

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ENTREVISTA COM CLÁUDIO TORRES

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Rio, uma dissidência universitária, estudantil, do PartidoComunista Brasileiro do Estado do Rio, de Niterói. E essegrupo tentou a guerrilha rural lá no Paraná e foi dizimado,foi preso e alguns foram mortos. A grande imprensa come-çou a publicar que a guerrilha no Brasil tinha acabado e nós,para fazer uma espécie de contrapropaganda, ou seja, utili-zando essa afirmação para exatamente mostrar que isso nãoera verdadeiro, que a guerrilha continuava, nós passamos aassinar as nossas operações com o nome de MR-8. Foi assimque terminamos adotando e terminamos sendo conhecidoscomo MR-8. Diga-se de passagem, esse MR-8 que até algunsanos atrás ainda existia, tem muito pouco a ver ou nada a vercom o antigo MR-8. Esse atual, se é que ainda existe, eu nãosei, usa esse nome porque dois ou três dos quadros antigosfundaram ou praticamente refundaram uma outra organi-zação que tem outros objetivos, com outra visão de mundo,que não tem absolutamente nada a ver com o antigo. Quan-to à operação do seqüestro, algumas questões precisam serresgatadas, e volto a dizer, eu só me proponho a fazer issoexatamente porque o filme confunde intencionalmente,mistura e deforma, e não o faz de forma inocente, como nósvamos ver logo a seguir.

Como foi a conversa com o embaixador?

CLÁUDIO — Primeiro, o Jonas era o comandante militar.As perguntas ao embaixador não foram feitas por ele, e simpelo Toledo e por mim. A primeira coisa que eu disse naabertura dessa entrevista com o embaixador foi exatamenteo seguinte: “O senhor não precisa se preocupar com intimi-dações porque nós não costumamos agir como a polícia

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brasileira, que tortura e mata os seus prisioneiros para ar-rancar informações.” Isso foi a primeira coisa que foi dita, eisso eu inclusive informei à produção do filme anos atrás enão sei por que não foi utilizado. Aliás, a produção temtodas as informações disponíveis, ela tem uma entrevista detrês horas e meia que eu dei ao Daniel Filho e à MartaAlencar, no Rio de Janeiro, que poderia ter sido utilizadano filme. O roteirista preferiu pegar o livro do Gabeira, queera evidentemente o centro maior de inspiração do roteiro,e inclusive, na minha opinião, pegou algumas característi-cas do livro do Gabeira que já eram discutíveis e as exacer-bou. Ou seja, o roteirista não teve nenhuma preocupação decorrigir dados factuais, porque ele tinha as informações ne-cessárias para isso, e não o fez. Em relação, portanto, a essaentrevista, fica bem claro o seguinte: nós não usamos denenhuma violência com o embaixador, que nós avisamos,no início, a primeira observação, como eu já disse, foi nosentido de deixá-lo à vontade. Se ele quisesse responder,responderia, se não quisesse, não responderia, ou seja, serealmente fosse para fazer um contraponto do nosso com-portamento com o da repressão, bastava colocar essa cena,que por si só ela seria suficiente. Acontece que o filme estáinteressado, na minha opinião, em fazer uma espécie deamenização dos extremos, sobretudo do extremo represen-tado pela violência policial da ditadura. De certa forma, aofazer isso ele vai contra a realidade, mas não se pode estu-prar a realidade, ainda que se tenha todos os mecanismos depublicidade, de mídia, para isso. Existem testemunhas, exis-tem pessoas que estavam lá, existem, enfim, condições dedesfazer.

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O filme coloca duas mulheres na casa. Havia duas mulheres ouuma só na operação?

CLÁUDIO — Havia uma mulher só, que era uma moça sim-patizante da nossa organização, não me lembro se era qua-dro ou não, e se não me engano era namorada do Gabeira. Épreciso esclarecer o papel do Gabeira na operação. O Ga-beira era da nossa organização, era quadro da Dissidência,do MR-8, mas não pertencia ao grupo de fogo, ele jamais fezuma operação armada, pelo menos enquanto esteve na or-ganização, pelo menos até o seqüestro do americano. Por-tanto, ele era um quadro da organização, que compartilha-va das posições da organização, isso é importante que sediga, porque às vezes certas coisas aparecem como se jánaquela época o Gabeira tivesse uma visão crítica daquiloque ele estava fazendo. Isso não é verdade, nem ele nemninguém tinha. Nós fizemos aquilo plenamente convenci-dos de que era uma tática correta. Hoje eu tenho uma visãodiferente, o próprio Gabeira tem uma visão diferente, masnaquela época não tínhamos. É bom que isso fique claro, oproblema da contemporaneidade dos eventos, isso é muitoimportante. O Gabeira era um quadro da organização per-feitamente identificado com a tática e a estratégia da organi-zação, apenas não atuava no grupo de fogo. Ele atuava naárea de camadas da classe média, na área de jornalistas,artistas etc.

E qual foi o papel dele no seqüestro?

CLÁUDIO — O Gabeira foi quem alugou aquela casa, queoriginalmente era para servir de aparelho da imprensa daorganização. Inclusive, houve um erro na locação da casa,

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porque o proprietário, no ato de negociação, olhou para oGabeira e perguntou: “Escuta, vocês não são terroristas não,né?” E mesmo assim a casa foi alugada. Ou seja, uma casacom este tipo de problema não poderia ser alugada para seraparelho de imprensa da organização. Aliás, não poderiaser alugada para nada, o negócio deveria ter sido desfeito noato. Pois bem, isso foi evidentemente uma falha, porqueessa informação foi dada, o Gabeira passou essa informa-ção para a direção da organização, mas a avaliação que adireção fez, eu participei dessa discussão, foi no sentido deque isso não seria um problema, e a casa foi utilizada emfunção de suas qualidades de localização para a operação.Então, dentro da casa, o papel do Gabeira era simplesmentede dono da casa, aquele que tinha alugado a casa, e fora dacasa ele cumpriu algumas funções, junto comigo, de dartelefonemas e colocar os recados para a imprensa. Aqueletelefonema que ele supostamente dá para a redação do Jor-nal do Brasil é um detalhe, mas é um detalhe absurdo, pois oGabeira pertencia à redação do Jornal do Brasil; então, quemna verdade deu o telefonema fui eu, justamente por essarazão, para que a voz do Gabeira não fosse identificada.

E o comunicado foi mesmo colocado numa igreja?

CLÁUDIO — Foi colocado. Eu me lembro de dois locais.Um é a igreja, se não me engano do Largo do Machado, nacaixa de esmolas, e outra comunicação foi colocada em frenteà sede da Manchete, ali na praia do Rocio, no Rio de Janeiro.Bom, então a função do Gabeira era essa, não era outra. Ofilme mudou completamente. O pecado original do filme,como eu estava dizendo, se expressa exatamente nisso: se o

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roteiro se inspirasse numa obra de ficção, ou numa obradocumental, porém o personagem não fosse ao mesmo tem-po o escritor e aquele que participou da ação, talvez o filmepudesse ser mais distante e não caracterizar personalidadesreais de uma forma tão imediata como fez. Ou seja, ao Jonasfoi atribuído fazer o contraponto com o Gabeira, que apare-ce como uma espécie de anti-herói... Por quê anti-herói?Porque era um cara que não sabia atirar, mas estava numaação armada, era contra aquelas ações, aquelas coisas, maspertencia a uma organização que defendia esta estratégia deluta armada. Então, ele aparece como alguém que sempreestá, de alguma forma, tensionando o processo do qual eleestá participando. E isso não é verdade. Eu acho que as pes-soas podem até fazer gestos no sentido de parecer diferen-tes, mas a história não registra dessa forma o seu gesto.

A polícia havia localizado a casa, como aparece no filme?

CLÁUDIO - Havia, a polícia havia identificado, estava cer-cando e apenas não penetrou na casa porque recebeu or-dens da Junta Militar, que governava o país, de não pôr emrisco a vida do embaixador. Por conta disso, inclusive, eufui preso dois dias depois de terminar a ação do seqüestro.Eu fui o primeiro, digamos, a ser preso, e eu tive uma discus-são surrealista no meio do interrogatório, portanto numasituação extremamente difícil, em que o agente do Cenimar[Centro de Informações da Marinha] tentava me provar queeles poderiam penetrar na casa usando atiradores de elite,que eles sabiam o quarto onde estava o embaixador, queeles tinham identificado pela planta, que eles penetrariamna casa, resgatariam o embaixador e matariam todos nós. E

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eu defendendo a tese que eles entrariam na casa, matariama todos nós, mas o embaixador morreria antes disso. Estafoi uma das discussões que eu tive que manter em situaçãoextremamente precária.

Você foi preso dois dias depois?

CLÁUDIO — Sim, exato.

E já identificado como participante da operação?

CLÁUDIO — Sim, claro, já identificado. A operação tevealgumas falhas organizativas, e a principal foi justamenteesta, a casa utilizada não era adequada porque era uma casajá sob suspeita. Na minha opinião, e isso eu digo sem ne-nhum outro intuito que não seja relatar o caso, eu acho queo próprio proprietário da casa já tinha informado a polícia.É a explicação mais plausível, mas não foi comprovada. Dequalquer forma, a casa, já no dia seguinte à operação, outalvez até na noite do mesmo dia, já estava identificada e foicercada sutilmente, passou a ser vigiada não ostensivamen-te pelos órgãos de segurança. Eu pessoalmente fui seguido.Inclusive, numa hora em que eu fui deixar o Gabeira próxi-mo à casa, teve um carro da repressão que me seguiu, eutive que sair rapidamente das ruas de Santa Teresa para melibertar, me livrar do carro dos órgãos de segurança queestava me seguindo. O motorista dos órgãos de segurança,inclusive, me encontrou depois também no interrogatórioe se identificou como o motorista do carro que me seguia.

Como foi a sua prisão?

CLÁUDIO — Eu fui preso dois dias depois do seqüestro, efui preso em primeiro lugar porque cometi um erro. Nós

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estávamos com a suspeita de que os nossos aparelhos e nos-sas residências não estavam seguras, em função exatamentedo fato de a repressão ter localizado tão rapidamente a casa.Nós ficamos preocupados porque não sabíamos como elestinham descoberto. Então, por conta disso, eu não fui dor-mir onde normalmente eu dormia e morava. Eu procurei acasa de amigos. Mas numa situação daquelas, de extrematensão, os amigos que eu procurei me pediram para nãoficar lá, sabiam que de alguma forma eu estava ligado àque-le problema, ainda que eles não soubessem detalhes, e eufui dormir na casa de uns tios meus, cujo endereço suposta-mente a repressão não conhecia. Acontece que houve umdetalhe de que eu não me apercebi imediatamente, que foi oseguinte: quando participei da operação, fui eu quem diri-giu o Cadillac da embaixada, quem rendeu e substituiu omotorista da embaixada. E para dirigir o carro, exatamentepara me parecer como um motorista de embaixada, eu fuicom um terno azul marinho e gravata, para que não chamas-se atenção. E depois, quando eu saí da casa, eu tinha tarefasa fazer fora da casa, eu não fiquei todo o tempo lá, eu deixeio paletó e a gravata dentro da casa, e fui em mangas decamisa fazer o que eu tinha que fazer na rua. Por isso, pediduas vezes ao próprio Gabeira que tirasse de lá esse paletó,porque sabia que ele poderia mais cedo ou mais tarde serum instrumento para levar à minha identificação. Aconteceque ele não fez isso, as duas vezes que eu pedi ele não retirouo paletó de lá e eu fui preso exatamente por conta dessepaletó. O paletó tinha sido feito em alfaiate, e a polícia foiao alfaiate e me identificou, soube do meu endereço e apare-ceu lá. Aliás, foi no endereço dos meus pais, e depois na casa

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de meus tios, que era mais ou menos próxima, e ficaram meesperando lá, à noite.

Então você foi preso por causa do paletó?

CLÁUDIO — Exatamente, o paletó esquecido pelo Gabeira,porque eu não esqueci, eu deixei lá intencionalmente. Eupedi ao Gabeira que o retirasse, e ele se esqueceu de fazer. Éesta a história da minha prisão. Não estou querendo cobrarnada do Gabeira, mas eu acho apenas lamentável que nolivro ele tenha escrito que eu fui preso porque eu não teriatirado o paletó da casa.

O Gabeira foi o autor do manifesto, como aparece no filme?

CLÁUDIO — Quanto ao manifesto, que foi lido nas rádios ena televisão, era uma base, vamos dizer, para as nossas exi-gências, para a troca dos companheiros presos que foramenviados ao México. Esse manifesto foi escrito por um com-panheiro, Franklin Martins, que atualmente é jornalista emBrasília. O Franklin escreveu o manifesto e apresentou-o àdireção da organização, à qual eu pertencia na época. Adireção aprovou o manifesto. Não sei se o Gabeira leu omanifesto antes, ele também escrevia muito bem, poderiater dado, talvez, algumas sugestões, mas seguramente a au-toria é do Franklin. Eu também não sei por que razão ofilme distorce isso e coloca o Gabeira como o autor domanifesto. Não sei também por que razão o Gabeira nãofez algo para impedir esta distorção, na medida em queele tinha acesso ao roteiro e ao filme, antes mesmo que ofilme estivesse concluído. O fato é que isto também éuma distorção.

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A cena da libertação do embaixador corresponde ao que aconte-c eu?

CLÁUDIO — É outra distorção que o filme faz, e não fazinocentemente. O embaixador foi libertado na medida emque o seqüestro tinha sido vitorioso, nosso objetivo tinhasido cumprido, os companheiros nossos já estavam chegan-do ao México, então o embaixador foi libertado depois deter sido bem tratado, tratado com respeito, e em circunstân-cias evidentemente adversas. O embaixador, inclusive, de-monstrou um certo reconhecimento à forma como tinhasido tratado. Isso é perfeitamente verificável pelas declara-ções que deu após o seqüestro. Pois bem, o embaixador foilibertado, foi conduzido dentro de um Volkswagen dirigi-do por mim, com o Jonas atrás e ele ao meu lado. Nósdescemos a rua Barão de Petrópolis, onde ficava o aparelho,atrás vinha o nosso carro de segurança, mas nesse momentouma caminhonete do Cenimar, uma Rural Willys, entrou ecomeçou a seguir o cortejo. Só que não se deu conta de quehavia um segundo carro de segurança nosso atrás dela. En-tão, quando chegamos próximo ao sinal da Tijuca, o Jonasme avisou: “Nós estamos sendo seguidos, procure se des-vencilhar.” Consegui passar no sinal já vermelho e com issoimpedi que os carros atrás me seguissem, inclusive o nossopróprio carro de segurança não conseguiu passar. Então fi-caram parados no sinal, o primeiro carro de segurança, aRural Willys da repressão e o segundo carro de segurançanosso. Foi nesse momento que um dos companheiros deum desses carros pegou a metralhadora, engatilhou e man-dou os caras irem embora. Ameaçou a repressão e ela, queestava totalmente inferiorizada, resolveu ir embora. Isso no

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filme aparece como se fosse uma ação, um gesto do coman-dante militar. Nós realmente não metralhamos a repressão,sabendo que era um carro da repressão, porque não tínha-mos nenhum objetivo com isso. Ameaçamos, apenas, por-que o nosso objetivo era espantá-los, e conseguimos espan-tá-los. O filme poderia inclusive ter omitido isto. É maisum exemplo de distorção, porque se você conta uma his-tória e omite algum fato, você pode até não ser cobradopor isso, agora se você conta esse fato invertido, eu achoque a coisa aí mostra uma intenção. E o filme teve umaintenção real de adocicar o papel da repressão dos ór-gãos de segurança da época. E isso aí eu acho que é visí-vel, eu acho que isso é uma coisa que realmente depõecontra o filme.

Por que o seqüestro do embaixador norte-americano é conside-rado um marco importante na luta contra a ditadura?

CLÁUDIO — O seqüestro é importante do ponto de vistaoperacional e tático porque ele foi a primeira ação dessegênero vitoriosa, que colocou durante três dias o embaixa-dor — e não era um embaixador qualquer, era o embaixadordos Estados Unidos — detido. Com a operação se consegueromper a censura da imprensa, que impedia qualquer notí-cia sobre a luta das forças populares, revolucionárias e de-mocráticas. O nosso manifesto de alguma maneira rompecom isso de uma forma vergonhosa para o regime. Ou seja,o contexto imediato em que o seqüestro ocorre é plenamen-te vitorioso. Eu vi muitas manifestações, desde motoristasde táxi — o próprio filme demonstra isso —, como de váriasoutras pessoas. Eu tive muito pouco tempo para aquilatar,

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avaliar isso, mas houve apoio da população. Na verdade,eram os poderosos que tinham sido vencidos. O Brasil esta-va governado pela Junta Militar, violentando totalmente asinstituições e a vontade do povo brasileiro, e aquele seqües-tro fez com que a junta baixasse a cabeça e fosse obrigada asoltar 15 companheiros, presos políticos, libertá-los e enviá-los ao México. Então, foi uma desmoralização para a JuntaMilitar. Do ponto de vista até de ineditismo, ele foi umaação muito importante. Outra importância dele, discutível,e eu vou discutir logo a seguir, é que a partir do seqüestroqualquer esperança que se pudesse ter de uma luta pacíficapela redemocratização em termos imediatos estava elimi-nada, ou seja, a partir dali o regime militar se muniu detodas as defesas possíveis e passou a fazer um governo quasefascista, utilizando inclusive uma propaganda baseada nasvitórias no futebol e coisas do tipo para conseguir essa legi-timidade que não tinha através do voto e através da vontadeexplícita do povo brasileiro. Agora, o seqüestro, portanto,foi um ponto de não-retorno da luta pela restauração dademocracia no Brasil. Pessoalmente, hoje, mas não naquelaépoca, acho que o seqüestro foi uma operação vitoriosa den-tro de uma tática equivocada.

Qual foi a sua reação ao ver o filme? O que você sentiu?

CLÁUDIO — Olha, o filme me fez... em primeiro lugar foiuma catarse pessoal. O filme, para mim, produziu diferen-tes reações. A primeira reação foi de indignação, exatamen-te pela deformação dos fatos. E até, a meu favor, quero dizerque não foi nem pelo fato de que eu não tivesse aparecidocomo personagem do filme, pois na verdade a minha pessoa

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foi apagada e as minhas funções na operação foram redistri-buídas por outros personagens.

Eram 12 pessoas que estavam na operação?

CLÁUDIO — Eu não sei exatamente o número, mas era emtorno de dez, 11 pessoas.

No filme aparecem sete ou oito.

CLÁUDIO — É, mas essa questão não é nem o fato [sic], eutive uma participação extremamente importante na opera-ção e isso foi apagado. Mas a questão central não foi nemessa, a questão central foi a caracterização, essa caracteriza-ção do Jonas, esse contraponto forçado que foi feito com afigura do Gabeira, que era uma figura extremamente apaga-da para um tipo de ação como aquela, da qual ele não deve-ria sequer estar participando, só o fez por conta do que eu jádisse, por conta de ser quem alugou a casa. Então o filme mecausou uma certa indignação porque me deu inclusive asensação de uma profunda... É como se fosse uma segundaderrota nossa. A primeira foi aquela, dos anos 60, 70, quan-do a ditadura conseguiu desbaratar as nossas organizações.Muitos companheiros morreram, outros foram exilados,enfim; e a segunda derrota é o fato de nós não termos conse-guido contar a história, ou seja, nós não conseguimos pro-duzir... a esquerda armada no Brasil não conseguiu produ-zir, nem antes, nem durante e nem depois, uma interpreta-ção pelo menos razoável desse processo histórico do qualfui protagonista. Então, o filme tem alguma coisa de bom,nesse sentido de que ele provoca, e eu só lamento que odebate que ele provoca se dê em questões periféricas, por-

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que na verdade eu acho que do ponto de vista da luta arma-da é secundário saber se eu participei da operação, se eu fizisso ou deixei de fazer aquilo, ou se o Jonas fez aquilo ounão fez, são questões episódicas. O fundamental seria po-der discutir o contexto em que aquilo aconteceu, o caráter,inclusive os erros da esquerda armada, o caráter real daditadura militar. E isso o filme não permite que seja discuti-do, como eu já tentei mostrar brevemente aqui.

Eu tinha perguntado sobre a sua reação...

CLÁUDIO — O filme foi um bom motivo para eu poderfazer esse trabalho interno, como eu disse, essa catarse dosfantasmas que ainda estavam guardados no sótão. Isso foimuito bom para mim pessoalmente, porque a minha pri-meira resposta foi de indignação, foi emocional, eu fui des-tilando isso e hoje eu consigo — evidentemente que nãoexiste neutralidade total num caso que foi tão importante— de alguma forma conversar sobre isso de uma maneirabastante tranqüila. Acho inclusive fundamental o seguinte:esses episódios, esses processos todos da história do Brasil,eles precisam ser resgatados não simplesmente por contaruma história, mas porque eles são importantes para a genteentender e para a gente reestruturar as nossas vidas e osrumos do nosso país no momento atual. Nós precisamoster bastante entendimento disso, inclusive para o pessoalmais jovem saber que não era só meia dúzia de pessoas queestava fazendo aquilo, mas havia centenas e milhares depessoas no Brasil inteiro envolvidas direta ou indiretamen-te com a luta democrática, com a luta armada, enfim, comformas de tentar derrubar e neutralizar a ditadura militar.

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Eu queria, de alguma forma, dizer que eu tenho orgulho detudo o que eu fiz, não renego o meu passado, mas hoje nãorepetiria da mesma forma. Hoje eu procuraria realmentevisualizar e respeitar certos ritmos da sociedade, sem osquais nada acontece, nada de profundo acontece.

HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA é

jornalista e professor do curso de

jornalismo da PUC-SP.

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EUGÊNIO BUCCI

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O DESLOCAMENTO DO

NARRADOR EM O QUE É

ISSO, COMPANHEIRO?

EUGÊNIO BUCCI

Publicado, sem algumas

das notas de rodapé, em

O Estado de S. Paulo,em 11/06/97.

Engraçado como O que é isso, companheiro?, de BrunoBarreto, vem recebendo críticas à esquerda. A adapta-

ção cinematográfica do livro homônimo de Fernando Ga-beira, narrando o seqüestro do embaixador americano Char-les Elbrick, no Rio de Janeiro de 1969, por um grupo dejovens militantes da esquerda brasileira, fez reaparecer umcerto sectarismo ríspido que parecia extinto. O roteiro deLeopoldo Serran foi chamado de falsificação, de absolviçãode torturadores, foi contestado com vigor. Entre nós, O que

é isso, companheiro? ganhou mais notoriedade pelos ataquesque angariou do que pelas suas qualidades de bom thriller

CONTRAPONTO

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político. Engraçado mesmo. O livro de Fernando Gabeira,publicado em 1979, que forneceu o argumento de BrunoBarreto, era um libelo contra aquela vigilância doutrináriaque depois ficaria famosa como “patrulha ideológica”. Ago-ra, é como se vivêssemos uma patrulha temporã. Olhampara a tela e retrucam: “O que é isso, companheiro cineas-ta?”

Os críticos à esquerda começam por apontar os errosfactuais cometidos pela adaptação, mas não é nisso que sefincam. Parece haver um sentimento tardio de ultraje quenão se resolveria com a correção dos erros. É provável que,ao modificar deliberadamente os acontecimentos, o filmeesteja ferindo não os fatos apenas, mas algo de mais sagradoque haveria por baixo de todos eles, como se produzisse umentendimento distorcido daquele período, ofendendo assima memória dos guerrilheiros ou, pelo menos, oferecendo detodos eles uma visão no mínimo injusta.

De minha parte eu gosto do filme, e muito, mas nãovou aqui me ocupar em defendê-lo. A discussão é outra. Atentativa deste artigo é refletir um pouco sobre os sentimen-tos despertados pelo filme, o que vai nos levar a refletir so-bre a estrutura que ele adotou e de que modo ele promove odeslocamento do narrador.

Antes, porém, vale a pena parar um pouco num parale-lo com uma série de TV de 1992. A comparação é valiosa.Há cinco anos, Anos Rebeldes, de Gilberto Braga, foi exibi-da na TV Globo. Também adaptação de um livro, contavauma história parecida com a do filme: o seqüestro de umembaixador, pela esquerda brasileira, e sua troca por presospolíticos. A série foi recebida com aplausos. No entanto,

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Anos Rebeldes cometia uma redução melodramática de seuspersonagens que não se vê no filme de Barreto. Na série daTV, toda a conduta dos guerrilheiros tinha fundamentosemocionais, românticos, sentimentalóides. Ou eles entra-vam na luta armada para pirraçar o pai, ou para provar hom-bridade diante da namorada, ou simplesmente por um ar-roubo juvenil que acabou indo longe demais. Eram incapa-zes de cálculos, de análises e de pensamentos políticos. Já oscapitalistas e os agentes da repressão, esses sim, entendiam epremeditavam direitinho o jogo de xadrez; podiam ser fri-os, cruéis, mas detinham o monopólio da inteligência.

Pois mesmo assim a série foi acolhida com gratidão.Alegava-se que ela pelo menos trazia à tona o tema da lutaarmada, tirava os guerrilheiros do esquecimento. Digamosque não se tratou bem disso — e aqui vale uma comparaçãocom uma novela recente. Quando O Rei do Gado deu visi-bilidade aos sem-terra, uma visibilidade notoriamente me-lodramática, havia a contrapartida real de milhares de sem-terra de carne, osso e boné vermelho andando pelas estradasdo Brasil, contrapondo-se com seu movimento material àversão edulcorada que a TV propunha deles. Essa oposiçãopresente da realidade à sua expressão ficcional evitou quehouvesse danos à imagem dos retratados. Mais ainda, pode-mos até dizer que o Movimento dos Trabalhadores RuraisSem Terra (MST) saiu ganhando, e muito, com os persona-gens que inspirou em O Rei do Gado. Mas quando Anos

Rebeldes fez o que fez com os guerrilheiros, transforman-do-os em faces bonitinhas e assustadas, nada havia que osguerrilheiros pudessem fazer para responder. Eles estavammortos.

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No filme de Bruno Barreto não é assim. Ali, a decisãopela entrada na luta armada não vem de uma afetação melo-dramática. Apenas uma das guerrilheiras, a que é interpre-tada pela mesma Cláudia Abreu de Anos Rebeldes, manifes-ta uma crise com o pai. Ela está angustiada e, num telefone-ma rápido, tenta falar com o pai. Este não lhe dá atenção.Assim, insinua-se que a moça pega em armas por lhe faltar ocarinho paterno. Mas é uma cena isolada, desnecessária, des-toante e intrusa. Durante quase todo o filme, o curso prin-cipal da narrativa soube guardar boa distância das motiva-ções melodramáticas. Quanto aos outros seqüestradores, sãopuros seres políticos. Podem ser superficiais, podem ser atécaricatos, mas sua motivação é política. As razões que o jor-nalista Fernando apresenta para cair na clandestinidade e setornar guerrilheiro são razões claramente fundamentadasem um debate político. Rapidamente, ele refaz o raciocínioque acabou ficando um lugar comum daqueles tempos: semliberdade de imprensa, sem democracia, só a força das ar-mas derruba a ditadura. As relações pessoais (sentimentais)que os militantes vão desenvolver entre si acontecerão comodecorrência da opção política — e não o contrário.

Só por isso a memória da esquerda brasileira sai maisrespeitada de O que é isso, companheiro? do que de Anos

Rebeldes. É natural que, sendo apenas políticos, pouco“humanos” segundo uma certa expectativa, os persona-gens do filme acabem se estreitando e passando ao espec-tador uma imagem que é necessariamente uma versãometonímica de si mesmos. Ficam panfletários demais.Mas essa estreiteza não é invenção do filme de BrunoBarreto — ela vem meio de contrabando da própria crí-

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tica que já está no livro de Fernando Gabeira. Apenasvem de sinal trocado: no livro, a caretice dos guerrilhei-ros era um sinal negativo, um defeito que tinha raízesnuma visão fechada demais da própria política, era umdesvio a ser superado; no filme, a caretice tem sinal posi-tivo, quer dizer, não é um traço que atrapalha o grupo,mas um traço essencial a ele, que até produz bons resul-tados (sem aquela disciplina careta não teria sido possí-vel uma ação tão espetacular). No livro, a caretice é umproblema; no filme, uma solução, o que é muito pior.Daí a estreiteza aparecer na tela com o sinal trocado.

* * *

É verdade que o O que é isso, companheiro? não guardalá muita reverência em relação aos fatos. Omite-os, recria-os, inventa-os1. São, digamos, licenças ficcionais sobre umepisódio real. Talvez pareçam licenças demasiado licencio-sas mas é imperioso recorrer a elas em qualquer adaptação.E embora muitos dos críticos ataquem as imprecisões histó-ricas que surgem na tela como quem denuncia a armação deuma mentira histórica, não são as licenças ficcionais que tantoincomodam. Filmes tão distintos como Outubro ou Batalha

de Argel apresentam cenas específicas que jamais acontece-ram. Nem por isso recebem tantas críticas à esquerda. En-tende-se, sem que se declare, que o sentido produzido pelassuas cenas, ainda que fictícias aqui e ali, é a expressão daverdade. Em alguns casos, da verdade “revolucionária”. Sem

1. Veja alguns exemplos no final do texto.

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querer elevar o longa-metragem à estatura de uma obra-pri-ma, o que ele não é, a comparação é válida para entenderque sua mentira tão odiada não é a mentira factual — embo-ra esta seja atacada com mais freqüência. A sua mentira maisodiada, e menos nomeada, seria a mentira de sentido. Comtodo o respeito pelos argumentos alheios, eu diria que criti-cam o filme porque ele não é ideologicamente correto. Ou,em outras palavras, porque ele não desvenda, por baixo dasucessão dos fatos, a verdade redentora que gostaríamos dever ali na tela. E aqui chegamos ao que tenho chamado dedeslocamento do narrador. É esse movimento que gera oque nos aparece como uma mentira de sentido.

* * *

Para evitar uma abordagem idealista, é bom não esque-cer as condições de produção e consumo do cinema nacio-nal contemporâneo. No sucesso e no fracasso, o filme brasi-leiro é realizado hoje para ser um produto viável no chama-do “mercado externo”. Assim como os executivos, os joga-dores de futebol e os cantores baianos, o cinema nacionaltem que falar inglês para sobreviver, e o filme de BrunoBarreto não seria exceção: teria mais chances no mercadoexterno se falasse inglês também (um pouco de português ésempre bom para dar o toque indispensável de exotismoétnico.)

Os cineastas daqui têm encontrado saídas melhores epiores para a atender a essa mesma necessidade: uns inven-tam uma bobagem qualquer como um rapaz que vai passarférias em algum país e conhece uma namorada americana;

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outros descobrem uma história genial, movimentada, comingredientes de suspense, aventura e romance, como essa doseqüestro de Charles Elbrick. Essa história já pedia uma fil-magem desde que livro de Fernando Gabeira se provou deforte apelo comercial (vendeu mais de 250 mil exemplares).

Topar o desafio era enfrentar um tabu. O seqüestro, aluta armada, a tortura, tudo isso é um capítulo traumáticona memória nacional e é especialmente embaraçoso nas re-lações entre Brasil e Estados Unidos. O apoio americano aogolpe militar brasileiro e às barbaridades cometidas contrapresos políticos e seus familiares no Brasil e em outros paí-ses da América Latina é ainda razão de um desconforto parao qual a melhor política tem sido o silêncio diplomático.Mas era preciso encarar o tabu. Em primeiro lugar porque,dentro do imaginário brasileiro, a luta armada pouco a pou-co sai da desmemória e se revela um dos raros períodos comboa matéria-prima para o entretenimento, com modelos depaixão política, intensidade dramática e figuras quase mito-lógicas. Isso já se sentia em Anos Rebeldes, guardados todosos empobrecimentos, e se expresou em tons maiúsculos comLamarca, de Sérgio Rezende (1994). Desse passado poucodigno, feito de conciliações e covardias que é o nosso, a re-sistência mortal de alguns heróis contra a ditadura é um ca-pítulo do qual os brasileiros podem se orgulhar. É uma pro-va da bravura nacional, ainda que derrotada. Os erros táti-cos ou políticos quase não importam. Foi por isso, talvez,que, depois de ver o filme, Marcelo Coelho exprimiu comum ponto de exclamação o seu respeito pela biografia dealguém como Fernando Gabeira: “Que vida, afinal, ele teve!”(Folha de S. Paulo, 30/04/97). Assim, a simples escolha do

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tema já é, por si mesma, muito expressiva. A luta armada apai-xona, cativa, comove platéias ainda hoje, ou melhor, sobretu-do hoje, com personagens que não são carneirinhos, que sãograndiosos. O que não é pouco.

Mas na tela a coisa toda desanda, aparentemente para adireita. No cinema, a história resultou emocionante, herói-ca, mas estranha. A explicação para a “estranheza” não é aopção ideológica reacionária dos produtores do filme. Aexplicação é outra: o deslocamento do narrador, coisa que,dentro dos moldes de mercado e institucionais em que essesfilmes vêm sendo feito, independe da opção “ideológica”dos produtores. Esse deslocamento é provocado por umimperativo externo ao próprio filme. O imperativo é: essefilme tem que falar inglês. E falar inglês, nesse caso, é maiscomplexo do que simplesmente usar um idioma; é usar umaorganização americana para a história e para a sua narrativa.Vejamos.

No livro, escrito em primeira pessoa, o narrador era opróprio Gabeira. Já no filme, se observarmos com atenção,vamos notar que quem narra a história não é mais o jorna-lista Fernando, mas o americano Charles Elbrick. Para alémdeste filme em particular, esse deslocamento é parte de umoutro, mais abrangente: o deslocamento do narrador dopróprio cinema brasileiro. Há tempos temos visto esses fil-mes brasileiros que “nem parecem brasileiros”. E muitosobservadores já identificaram: se não parecem brasileiros éporque parecem, ou gostariam de parecer, americanos. Nãoque o mero afastamento de uma aparência brasileira já ostransporte a uma aparência americana (é menos automáticodo que isso), mas quando busca espaço no mercado globali-

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zado, e globalizado segundo os padrões de produção e con-sumo da indústria do entretenimento de moldes america-nos, o cinema nacional abre mão de pelo menos algumascaracterísticas de seu sujeito narrador em busca de substi-tuí-las por características de outro. O narrador se transfor-ma à medida que o público se expande. Às vezes, o filmeconsegue descartar sua função original de filme brasileiro,aquela “tarefa incômoda de internalizar a crise” de que fa-lou Ismail Xavier ao comentar a produção nacional dos anos60, para adotar uma outra, que é a de contar uma históriasegundo uma visão de mundo coesa, que passa pela crisesem internalizá-la mas, de preferência, vencendo-a. É o nos-so caso, agora.

O narrador é Charles Elbrick. É ele quem escreve ascartas que sintetizam os perfis dos personagens, é dele o tex-to em off que se ouve aqui e ali; embora ele saia da históriaantes que ela termine, é sob sua ótica que os acontecimentosserão narrados (e, do ponto de vista americano, não seriaabsurdo dizer que a anistia de 1979 beneficiou “todos” osperseguidos políticos; seria apenas uma inexatidão menor).O narrador, fundamentalmente, é aquele que narra em in-glês. Não custa anotar que Elbrick, embora falasse portugu-ês, insiste desde o começo do filme em conversar com osseqüestradores em seu idioma de cidadão americano. Não éapenas a sua língua que dará suporte para a narrativa, mas étambém o seu modo de ver o mundo — é o seu modo de ser,o seu espírito sujeito de cinema americano, de alguém quepassa por dentro da crise sem internalizá-la.

Sendo uma vítima, Elbrick é um tipo de narrador passi-vo, por isso sua tomada de poder na condução do filme é

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quase imperceptível. Aparentemente, os acontecimentosgiram em torno do jornalista Fernando. Mas no filme ele sótem relevância (ele só é o guerrilheiro mais elaborado, maiscomplexo) porque fala inglês e, assim, será aquele que, entreos esquerdistas fanáticos (surdos para as razões do america-no), tem condições de diálogo com o embaixador. Diálogoaqui não designa apenas uma tradução que torne compatí-veis dois idiomas distintos. Significa uma interlocução exis-tencial. O jornalista Fernando escuta e entende as razões dodiplomata seqüestrado.

À primeira vista, o que se vê no filme é que o persona-gem de Ferndando, um jornalista, dono de um bom texto,com estilo etc, é mais, como se dizia naquele tempo, “inte-lectualizado” que os outros. Tanto assim que até era bilín-güe, uma conseqüência a mais de sua sofisticação intelectu-al. Mas, uma vez que o narrador não é mais ele, e sim oembaixador americano, podemos observar que o que se dá éexatamente o oposto: é o atributo de falar inglês que confe-re ao nosso jornalista guerrilheiro uma amplitude humanae intelectual que os outros não têm. Ele não é como seuscompanheiros, um radical produzido pela ignorância sub-desenvolvida; se compreende inglês, não pode ser tão igno-rante a ponto de ser fanático. Ele é alguém que enxerga ooutro lado. É o interlocutor por excelência. Ele não falainglês por ter tido uma formação melhor que os outros —mas é melhor que os outros, menos estreito, menos cego emenos surdo, porque fala inglês. Como o embaixador.

Ainda sobre o deslocamento do narrador, é importantevisualizar como é que se estruturam os pólos dramáticos. Seo narrador fosse mesmo um guerrilheiro, e se o filme tives-

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se a mesma estrutura dramática que possui, teríamos o se-guinte esquema: de um lado ditadura (opressão, tortura, cen-sura, imperialismo); de outro lado o povo oprimido; no cen-tro, os representantes do povo (a esquerda armada); e umterceiro, um elemento externo que seria o embaixador se-qüestrado. Mas o esquema do filme é claramente outro: deum lado os torturadores e a polícia, com seus dramas exis-tenciais; de outro lado os guerrilheiros, com seus dramascomportamentais; no centro, atenção, num trono equidis-tante entre os dois pólos, o embaixador compreensivo, hu-manista, democrata resignado. Nesse caso, é por ser o cen-tro que ele precisa ser o narrador — ou vice-versa. E é só porque ele é o centro que o torturador pode (e precisa) adquiriruma estatura tão sofisticada. Afinal, tanto quanto os guerri-lheiros, os torturadores representam um extremo, o exatonegativo do outro, tão errado quanto seu oposto. Se o cen-tro estivesse na esquerda, aí seria impensável algo mais so-fisticado que um gorila para representar o torturador. Mas,da perspectiva do embaixador, havia dois lados em conflito,ambos sem razão, posto que a virtude estaria no centro.Assim, os excessos de um justificariam os excessos do ou-tro, numa escalada de violência sem culpados.

Como Charles Elbrick não é um simples agente daCIA, mas um humanista de convicções democráticas, suacondição de centro alcança mais legitimidade. Comosujeito narrador, ele não encarna o imperialismo, mas olado mais civilizado (civilizador) dos Estados Unidos daAmérica, alguém que tem a clareza necessária sobre aineficácia dos regimes de exceção. Ele chega a declararisso em uma cena. A coisa não só não parece inteiramen-

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te forçada como tem até uma certa coerência histórica.Neste ponto, em meio a tantas liberdades estilísticas noque concerne à alteração dos fatos, o filme parece tersido particularmente fiel à realidade. Elbrick de fato foicortês e compreensivo com seus seqüestradores, era mes-mo um crítico da linha dura no Brasil. Segundo depoi-mentos de participantes da ação, havia na pasta de Elbri-ck documentos indicando que ele estava empenhado emencontrar uma alternativa civil e menos autoritária parao impasse da ditadura brasileira. Esses documentos su-miriam logo depois do seqüestro nas mãos da repressão.Elbrick, de fato, manteve uma relação de simpatia comseus carcereiros. Agora, na ficção, funciona muito bempara encarnar a má consciência americana, essa constan-te cada vez mais histriônica, determinante sobretudonesse totalitarismo surdo da onda do politicamente cor-reto. O personagem de Elbrick não poderia ser maispoliticamente correto. Elbrick representa no filme, comodeve ter tentado representar em vida, a encarnação daculpa americana.

Assim, existe um e só um personagem da vida real que éhomenageado por Bruno Barreto: Charles Elbrick. Não ébem verdade que o filme absolve a ditadura (“O que é isso,

companheiro? faz uma opção a favor da ditadura”, disse Da-niel Aarão Reis em entrevista a Helena Salem; ver página71). Nem é verdade que o filme é “condescendente” com oerro político que foi a luta armada, como pretendem ou-tros. As duas críticas não são ilegítimas, mas são parciais;espelham arestas da questão, mas ofuscam uma visão de con-junto. A finalidade dessa adaptação cinematográfica, quer

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dizer (não se pode falar de uma finalidade nesses termos), asua vocação é absolver o centro — apenas o centro. De todaessa sujeira, só quem sai sem manchas é a bandeira america-na. O sujeito narrador a leva embora consigo, limpa, depoisque seu martírio termina. E mesmo o martírio acaba sendoum modo de purgar a culpa inconfessa que ele há de ter; éum martírio justo, ainda que confuso. Mas, uma vez liber-to, ele volta para casa, leve e livre, como sempre faz o sujei-to do cinema americano. Do meio do fogo entre os doisextremos, ele sai ferido na cabeça (na consciência), o queseria devido, mas sai ileso, moralmente ileso.

Por tudo isso, O que é isso, companheiro? é candidato aoOscar. A algum Oscar. A menos que haja um acidente gra-ve de percurso, ele corre o risco de levar uma premiação.Estava faltando um filme para expiar a culpa americana pe-los crimes praticados no Brasil contra os direitos humanos.O que é isso, companheiro? faz isso — e faz isso sem ter quedefender a luta armada, embora seja até simpático em rela-ção a alguns de seus personagens, e sem defender a tortura,ainda que incorporando o fictício drama de consciência deum torturador. Há nesse detalhe, como em todos os outros,uma sólida justificativa de natureza narrativa, ou dramáti-ca. Para que as tensões funcionassem, um dos torturadoresprecisava ter alguma complexidade, alguma hesitação ética,do mesmo modo que o jornalista Fernando sofria com seusdilemas antimilitaristas. Por isso, um dos torturadores, obranco, vira um híbrido quase inconsistente, mas um híbri-do tão necessário que sua inconsistência evapora: cometebaixezas de que só alguém irremediavelmente degradado seriacapaz, e analisa as tendências com o toque visionário digno

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de um Golbery do Couto e Silva (quando ele se refere àtortura como um “frasco” que não deveria ter sido aberto,pois fugirá ao controle, temos a sensação de ouvir trechosda obra de um estrategista diplomado). O outro torturador,o negro, não se incomoda com a truculência, do mesmomodo que o guerrilheiro Jonas (o do filme, bem entendi-do), o operário, também não se incomoda. Numa simetriabilateral perfeita, há um espelho entre a tortura e a guerri-lha — e no fio desse espelho caminha o bom senso do em-baixador, pedindo a compreensão geral. Ele terá chances deconsegui-la agora, depois de morto, quando o colégio elei-toral da Academia de Ciências e Artes Cinematográficas deHollywood estiver votando nos premiados do Oscar. Essecolégio eleitoral vota com a consciência ética (ou culpada).Não vota segundo critérios estéticos.

Pois aí estamos: em O que é isso, companheiro? os prota-gonistas da luta armada deixam de ser protagonistas da his-tória. Eles agora se tornam uma terceira pessoa no meio deuma história que não lhes pertence, a do embaixador. Numhorizonte mais amplo, eles foram parar dentro da históriado sujeito narrador do cinema americano, que ocasional-mente engoliu um trecho da história do Brasil. Nisso talvezresida o golpe mais insuportável para os críticos à esquerda:de alguém que pretendia tomar nas mãos as rédeas dos acon-tecimentos, a régua e o compasso para traçar o futuro, osheróis da guerrilha se vêem, sem que se perceba, relegados àcondição de coadjuvantes. Em Anos Rebeldes, pelo menos,eles ocupavam a posição triunfante de protagonistas. Nãoimporta se desfeitos em mingau de melodrama: os militan-tes eram os protagonistas.

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Não surpreende que o próprio Gabeira, mesmo elogi-ando o filme, declare sobre o personagem que leva seu nome:“Nem dá para caracterizar que aquele personagem sou eu.Não sou eu.” (Folha de S. Paulo, 10/05/97.) É óbvio: “nãosou eu” porque aquele da tela é um terceiro. É uma terceirapessoa. É um coadjuvante, como todos os outros, submeti-do a inúmeras colagens, montagens, alienado da direção dosfatos. Aquele que “não sou eu” é, na aparência, alguém cujoponto de vista conduz a ação mas, no fundo, em contraposi-ção com os torturadores, que são sua imagem em negativo,é um ser à mercê de uma violência que lhe foge ao controle.Quanto ao embaixador aprisionado, este é o único a ter umavisão geral das coisas. Cativo, é ele o narrador. Mesmo sobos óculos que lhe são impostos para tentar cegá-lo, são osseus olhos que enxergam os fatos através das câmeras deBruno Barreto.

* * *

Mesmo assim, O que é isso, companheiro? é um belo deum filme. Empolgante, vibrante, tem força própria. No ca-lor da tensão (e haja tensão), que ninguém tenha dúvida: opúblico torce para que o embaixador escape vivo. Depois,torce para os guerrilheiros escaparem vivos. Torce contra atortura e torce pela democracia. O problema, entre nós, foiter tomado o filme por aquilo que não é. Ele não é um filmebrasileiro do modo como estávamos acostumados a ter fil-mes brasileiros. Rigorosamente, O que é isso, companheiro?

não nos pertence, não brota de um movimento que guardecom a esquerda alguma cumplicidade histórica. Ele é um

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filme brasileiro que já não é tão brasileiro como os filmes deoutros tempos. Está, em boa parte, fora daqui. O olho queele tem não é mais o olho que nós tivemos, ou que a esquer-da teve, para ver as coisas. Não se pode esperar dele que eleveja o embaixador com os olhos da esquerda, pois ele é quemvê a esquerda com os olhos do embaixador. Isso não estáerrado, nem tampouco está certo. Isso apenas é assim por-que é.

Tomara que O que é isso, companheiro? lote platéias, poisirá despertar ao menos discussões sobre aqueles tempos decombates sombrios. E é melhor ser visto pelos lá de fora doque não ser entendido pelos aqui de dentro. O que é isso,

companheiro? é muito bom mas, como eu já disse, não preci-so defendê-lo aqui. Digo apenas que não é um filme que façasentido sozinho, ao menos entre nós. Ele faz sentido acom-panhado dessa gritaria à esquerda que pipoca em torno dele.E isso, companheiros, é um avanço. Pode arranhar os nos-sos olhos, mas é melhor que a permanência da escuridão.

Nota da página 215:1. O números de participantes foi arbitrariamente alterado. Apenasuma mulher havia no cativeiro de Elbrick: Vera Sílvia Araújo deMagalhães. Como se sabe, o roteiro a transformou em duas, interpre-tadas por Fernanda Torres e Cláudia Abreu. Há também persona-gens fictícios que se inspiram em um ou mais personagens da realida-de e há outros que foram simplesmente inventados. O Jonas do filme,

EUGÊNIO BUCCI é jornalista, diretor da

revista Superinteressante, secretário

editorial da Editora Abril e colunista da

revista Veja.

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EUGÊNIO BUCCI

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encarnando uma rigidez tirânica, além de estúpida, não chega nem aser uma caricatura do Jonas que existiu de verdade, Virgílio Gomesda Silva, um herói da história do Brasil. É simplesmente outra figura:está lá para representar o lado burocrático e militarista daquela es-querda que, esta sim, existiu de fato. Dar a esse personagem o nomede Jonas talvez tenha sido um deslize ético (é bastante enfático, sobreisso, o artigo “As duas mortes de Jonas”, de Franklin Martins, que foium dos seqüestradores; ver página 117). Talvez o erro pudesse tersido evitado com uma troca de nome.2. Joaquim Câmara Ferreira, cujo codinome era Toledo, e VirgílioGomes da Silva, o Jonas, vindos de São Paulo, chegam de táxi aosobrado que os abrigaria. Trazem metralhadoras dentro de uma gran-de mala. Um contra-senso. Dificilmente os dirigentes da ALN, já per-seguidos naquele ano, fariam uma parte que fosse de uma viagemcomo aquela dentro de um táxi. Joaquim Câmara Ferreira era o se-gundo homem da ALN, e sua organização não cometeria tamanhatemeridade.3. Na operação de libertação do embaixador e fuga dos seqüestrado-res, o filme mostra uma briga entre duas viaturas policiais. A primei-ra pretendia seguir os guerrilheiros; a outra interceptou a primeira,deixando os guerrilheiros escaparem para não pôr em risco a vida doamericano. Trata-se de uma fantasia. Nem no livro original de Fer-nando Gabeira a história está contada desse modo. Na verdade, foium carro dos próprios guerrilheiros, na retaguarda, quem espantouos perseguidores.4. A julgar pelo filme, a repressão já sabia exatamente qual era a casaem que estava o embaixador e teria condições de fotografar e identifi-car quase todos os participantes do seqüestro no momento da fuga.Depois, bastaria localizá-los. Mas não foi bem assim. De fato, agentesdo Cenimar, dentro de uma Rural Willys, mantiveram a casa sobvigilância desde o segundo dia. Mas muitos outros endereços eramvigiados do mesmo modo. Encontrar os guerrilheiros foi mais difícildo que o filme dá a entender. O paletó de um deles, Cláudio Torresda Silva, esquecido na casa depois da ação, acabou sendo uma pistadecisiva: ali estava o endereço do alfaiate. Ele foi preso no dia 9 desetembro. Esta pista inicial, que desencadeou a caçada selvagem quese segiu àquela Semana da Pátria, não aparece no filme.5. A anistia de 1979 não foi aquela maravilha ampla, geral e irrestritaque sugere um dos letreiros finais do filme.

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MANIFESTO DA ALN E DO MR-8

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Grupos revolucionários detiveram hoje o sr. Charles

Burke Elbrick, embaixador dos Estados Unidos, le-

vando-o para algum lugar do país, onde o mantêm preso.

Este ato não é um episódio isolado. Ele se soma aos inúme-

ros atos revolucionários já levados a cabo: assaltos a bancos,

nos quais se arrecadam fundos para a revolução, tomando

de volta o que os banqueiros tomam do povo e de seus em-

pregados, ocupação armas e munições para a luta pela der-

rubada da ditadura, invasões de presídios, quando se liber-

tam revolucionários, para devolvê-los à luta do povo, ex-

plosões de prédios que simbolizam a opressão, e o justiça-

mento de carrascos e torturadores.

Na verdade, o rapto do embaixador é apenas mais um ato

da guerra revolucionária, que avança a cada dia e que ainda

este ano iniciará sua etapa de guerrilha rural.

ANEXO

MANIFESTO DA

ALN E DO MR-8

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ANEXO

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Com o rapto do embaixador, queremos mostrar que é

possível vencer a ditadura e a exploração, se nos armarmos

e nos organizarmos. Apareceremos onde o inimigo menos

nos espera e desapareceremos em seguida, desgastando a di-

tadura, levando o terror e o medo para os exploradores, a

esperança e a certeza de vitória para o meio dos explorados.

O sr. Burke Elbrick representa em nosso país os interesses

do imperialismo, que, aliado aos grandes patrões, aos gran-

des fazendeiros e aos grandes banqueiros nacionais, man-

têm o regime de opressão e exploração.

Os interesses desses consórcios, de se enriquecerem cada

vez mais, criaram e mantêm o arrocho salarial, a estrutura

agrária injusta e a repressão institucionalizada. Portanto, o

rapto do embaixador é uma advertência clara de que o povo

brasileiro não lhes dará descanso e a todo momento fará

desabar sobre eles o peso de sua luta. Saibam todos que esta

é uma luta sem tréguas, uma luta longa e dura, que não ter-

mina com a troca de um ou outro general no poder, mas

que só acaba com o fim do regime dos grandes exploradores

e com a constituição de um governo que liberte os trabalha-

dores de todo o país da situação em que se encontram.

Estamos na Semana da Independência. O povo e a dita-

dura comemoram de maneiras diferentes. A ditadura pro-

move festas, paradas e desfiles, solta fogos de artifício e pre-

ga cartazes. Com isso ela não quer comemorar coisa nenhu-

ma; quer jogar areia nos olhos dos explorados, instalando

uma falsa alegria com o objetivo de esconder a vida de misé-

ria, exploração e repressão que vivemos. Pode-se tapar o sol

com a peneira? Pode-se esconder do povo a sua miséria,

quando ele a sente na carne?

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MANIFESTO DA ALN E DO MR-8

229

Na Semana da Independência, há duas comemorações:

a da elite e a do povo, a dos que promovem paradas e a dos

que raptam o embaixador, símbolo da exploração.

A vida e a morte do sr. Embaixador estão nas mãos da

ditadura. Se ele atender a duas exigências, o sr. Elbrick será

libertado. Caso contrário, seremos obrigados a cumprir a

justiça revolucionária. Nossas duas exigências são:

a) A libertação de 15 prisioneiros políticos*. São 15

revolucionários entre milhares que sofrem torturas nas

prisões-quartéis de todo o país, que são espancados,

seviciados, e que amargam as humilhações impostas

pelos militares. Não estamos exigindo o impossível.

Não estamos exigindo a restituição da vida de inúme-

ros combatentes assassinados nas prisões. Esses não

serão libertados, é lógico. Serão vingados, um dia.

Exigimos apenas a libertação desses 15 homens, líde-

res da luta contra a ditadura. Cada um deles vale cem

embaixadores, do ponto de vista do povo. Mas um

embaixador dos Estados Unidos também vale muito,

do ponto de vista da ditadura e da exploração.

b)A publicação e leitura desta mensagem, na íntegra,

nos principais jornais, rádios e televisões de todo o

país.

Os 15 prisioneiros políticos devem ser conduzidos em

avião especial até um país determinado — Argélia, Chile

* Gregório Bezerra, Wladimir Palmeira, José Ibrahim, Ivens Marchetti,Flávio Tavares, João Leonardo Rocha, Ricardo Zaratini, MárioRoberto Galhardo Zanconato, Onofre Pinto, Maria Augusta Carneiro,Luís Travassos, José Dirceu, Argonauta Pacheco, Rolando Fratti,Ricardo Villas-Boas (Nota do Editor).

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ANEXO

230

ou México —, onde lhes seja concedido asilo político. Con-

tra eles não devem ser tentadas quaisquer represálias, sob

pena de retaliação.

A ditadura tem 48 horas para responder publicamente

se aceita ou rejeita nossa proposta. Se a resposta for positi-

va, divulgaremos a lista dos 15 líderes revolucionários e es-

peraremos 24 horas por seu transporte para um país seguro.

Se a resposta for negativa, ou se não houver resposta nesse

prazo, o sr. Burke Elbrick será justiçado. Os 15 companhei-

ros devem ser libertados, estejam ou não condenados: esta é

uma “situação excepcional”. Nas “situações excepcionais”,

os juristas da ditadura sempre arranjam uma fórmula para

resolver as coisas, como se viu recentemente, na subida da

Junta militar.

As conversações só serão iniciadas a partir de declara-

ções públicas e oficiais da ditadura de que atenderá às exi-

gências.

O método será sempre público por parte das autorida-

des e sempre imprevisto por nossa parte. Queremos lem-

brar que os prazos são improrrogáveis e que não vacilare-

mos em cumprir nossas promessas.

Finalmente, queremos advertir aqueles que torturam,

espancam e matam nossos companheiros: não vamos acei-

tar a continuação dessa prática odiosa. Estamos dando o úl-

timo aviso. Quem prosseguir torturando, espancando e

matando ponha as barbas de molho. Agora é olho por olho,

dente por dente.

Ação Libertadora Nacional (ALN)

Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)

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A segunda edição de Versões e ficções: o se-

qüestro da história foi impresso na cidade

de São Paulo, em setembro de 1997, pela

Cromoset Gráfica e Editora Ltda. para a

Editora Fundação Perseu Abramo com ti-

ragem de 1.500 exemplares. O texto do li-

vro foi composto em Garamond no corpo

10,5/13. Os fotolitos da capa foram exe-

cutados pela Pro Texto Editorial e os la-

serfilms do miolo foram produzidos pela

própria Editora. A capa foi impressa em

papel Triplex 250g com acabamento em

laminação fosca. O miolo foi impresso em

papel Pólem soft 80g.

Caso não encontre este livro nas livrarias,solicite-o diretamente à:

Editora Fundação Perseu AbramoAv. Dr. Arnaldo, 128

01246-000 — São Paulo — SPFone: (011) 259-8024/214-0594/256-0521

Fax: (011) 214-5026E-mail: [email protected]

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