01 | setembro 2013revistaparenteses.com.br/download/parenteses_ed01.pdf · 3 em-vindos (não que...
TRANSCRIPT
Ana Guadalupe
5Editorial 3
Créditos e contato 43
As fotos da capa
e ao longo da
edição são de
Camila Lordelo
Edu Suppion
14
Luana Vignon
23
Mirella Carnicelli
34
Bruno Palma e Silva
9
Fabiano Calixto
18
Marília Garcia
31
Lubi Prates
27
Múcio Góes
39
3
em-vindos (não que “bem-vindos”
seja o termo correto para quem abre uma
revista, e ainda mais virtual, mas na falta
de algo que se aplique melhor) ao nosso
primeiro número!
Parênteses, do grego (não que falemos
grego) παρένθεσις, inserção.
Entre dois parênteses cabe uma ob-
servação. Entre dois parênteses cabe uma
explicação (ou uma dúvida), cabe um co-
mentário, cabe uma ressalva, um esclare-
cimento.
Entre parênteses, um detalhe (mas às
vezes um detalhe pequeno é grande coi-
sa). Bastante coisa.
Entre dois parênteses cabe (será?) um
mundo inteiro.
b Parênteses, no nosso caso, é uma re-
vista literária independente que será dis-
tribuída gratuitamente na Internet, em
formato PDF e ePUB, com circulação a
princípio trimestral.
No nosso caso, é um projeto com meses
de planos, de pesquisas, de gestação que
agora vem à luz. Parênteses são conversas.
São anseios, são colaborações, são opi-
niões. São, por que não, sonhos. Parênte-
ses é amizade.
Não temos nenhuma grande preten-
são, apenas a intenção sincera de divulgar
bons trabalhos de prosa e poesia.
E, já que começamos com “bem-vindos”
e ainda na falta de termos que se apli-
quem, sintam-se em casa.
Estejam todos à vontade.
5
AnaGuadalupevamos perder e retomar o contatovamos perder o contato?
visto que não há motivo para mantê-lo
por meio de encontros e recados
se a cada dia acordamos outro
e não vamos manter nem em sonho
nosso outro de ontem
outrora foi mais fácil
cortar os laços todos
vamos retomar e perder o contato
só no arquivo permanente do passado
o outro ficará pra sempre lacrado
prêmio que apenas antecipamos
cromo raríssimo
pacote intacto
6
quando cortam a internetquando cortam a internet
coisas absurdas acontecem
mas não sem a tentativa de refresh
e do refresco de cogitar antes
um lapso passageiro
raios
insetos no aparelho
quando a página some
levando embora um link que se perderá
pra sempre, é aí que uma coceira aparece
então descobre-se que o eu lírico
carregava meses de urticária
ou brotoejas
ou micose da pior espécie
quando ninguém mais digita palavra
nenhuma, nosso herói ou heroína
se levanta com tontura pra ir à esquina
descobre árvores inesperadas
na sacada, quatro ou cinco
parentes desacordados
na escada de casa
daqui a poucodepois quando não existe
depois
não existe
só o agora continua insistente
se fosse um homem ou mulher de olhos grandes
o agora telefonaria muitas vezes
até que alguém atendesse
pra que a gente se gostasse no primeiro instante
e vivesse dias inteiros estragados por detalhes
aparelhos com defeito, despencamento de cabides
um amigo inconveniente, o gênero errado de filme
alergia a pólen
alergia a cabelos
7
7
infeliz em santa catarina
fui infeliz em santa catarinaem manhãs tétricas voltando pra casaem tardes chuvosas escorregando nas ruasde chinelos e camiseta branca com um pássaro na estampa
em santa catarina fui infeliz na maioria dos diascultivei bichos de pé e outros parasitasos animais de casa tiveram pulgase é claro que morreram jovens
no vento fatal de santa catarinaos eletrônicos mofaram ao mesmo tempo em orquestranão sobrou aparelho de som ou secador de cabelopra movimentar o quarto
fui infeliz em santa catarinaquando meu primeiro amor me chamou pra um encontroque não passava de um culto religiosoem que apenas o espírito santo me beijaria
em santa catarina fui infelizem casa, no ponto de ônibus,na ponte, na barraca de crepes,na pastelariaenquanto os catarinenses abriam os dentese repetiam “meu senhor, guria”
comprovei nas praias perigosas de santa catarinaque as águas do rio tendem a te afogar no manguee as águas do mar podem trazer o cadáver de um homem
em pleno domingo
8
fitas pra segundafoto e comprovante de residência
pra abrir a ficha que inaugura uma lista
nunca cumprida nem com todos os sábados
e dezembros da sua vida
uma história sem fim com dezenove sequências
todos os retornos, regressos e referências
um dia que se repetirá ao infinito
num longo close no rádio-relógio
é melhor que descubra agora
todas as fitas que você leva pra casa
estarão pra sempre num espaço escuro
do móvel da sala
o móvel da sala é você em versão animada
as fitas com devolução marcada pra segunda
são suas sem volta e sem capa
(embora o papel diga segunda)
estão cravadas à sua memória
guardadas num canto da sua nuca
na pele empoeirada das suas costas
talvez você devolva amanhã
talvez nunca
ana guadalupe nasceu em novembro de
1985 em londrina (PR), estudou letras em
maringá (PR) e hoje mora em são paulo
(SP), onde trabalha como redatora. seus
poemas foram publicados em antologias
como peso pena, be my mafia family, es-
cuela brasileña de antropofagia (méxico
e chile), cityscapes (estados unidos) e otra
línea de fuego – quince poetas brasileñas
ultracontemporáneas (espanha); sites
literários como o portal literal, as esco-
lhas afectivas, germina, confeitaria e the
scrambler; veículos como o globo, o esta-
do de s. paulo, zero hora, correio brazi-
liense, plástico bolha, lado7, suplemento
pernambuco e esferas; além de projetos/
exposições como blooks (idealizada por
heloísa buarque de hollanda), obra aberta
(pinacoteca do estado de são paulo), poe-
ma para viagem (mostra SESC de artes),
paisagens & poéticas (bienal internacio-
nal de são paulo) e na tábua (do escritor
paulo scott). seu primeiro livro, relógio de
pulso, foi publicado pela ed. 7letras em 2011.
ana escreve poemas no blog roxy carmi-
chael nunca voltou e bobagens no twitter
@anaguadalupe.
9
BrunoPalma e Silva
Lembro de ter lido uma vez, coisa
dessas com que se esbarra por aí, que um
peixe dourado deixado num aquário sem
luz perde a cor, acaba só um vulto esbran-
quiçado. É um fantasma. Lembro de ter
pensado que tem algo de trágico e muito
profundo nisso.
Pois se um peixe dourado deixa de ser
dourado, o que resta dele?
No entanto, não me lembro se li ou in-
ventei que, devolvido ao antigo aquário
iluminado, o peixe retoma sua cor, torna-
se de novo o que nasceu para ser e o que
marca, afinal, seu lugar no mundo: volta
a ser dourado.
Assim são os peixes, assim somos nós.
(Assim sou eu, pelo menos.)
Peixe dourado
10
Aos pedaçosVolta e meia me pegam olhando para
um banco de praça, um tufo de grama que
brotou no meio do asfalto e me puxam as
orelhas porque fiquei mudo e me perdi na
conversa. O pessoal costuma não entender.
Sei lá quando começou; sei que é de
menino. Uma vez me mudei de cidade, de
estado, e tive de começar tudo do zero, foi
uma barra. Agora, anos depois, já estou
bem estabelecido e sigo firme no meu ofí-
cio, quem sabe um dia os especialistas em
RH inventarão um nome: eu me aproprio
de pedaços da cidade.
É impossível amar uma cidade inteira,
o que me interessa são só uns pedacinhos.
Alguns me agradam em especial, então
eu os tomo para mim.
Meu inventário é repleto de árvores:
tenho, por exemplo, uma meia dúzia de
paineiras, dois pessegueiros e três figuei-
ras. Araucárias são oito, desde que uma
foi derrubada semana passada, vítima de
gente incomodada com os galhos caídos
no quintal. Sou dono também de uma ce-
rejeira, mas não dela toda: são meus só
os galhos do lado de cá. Tenho quase cer-
teza de que um senhor japonês que volta
e meia encontro caminhando pela praça
com os braços para trás é o dono da outra
parte. Mas temos convivido pacificamente.
Não chego ao ponto de tomar casas in-
teiras, não sou assim possessivo. Mas sou
o dono, por exemplo, do telhadinho em
forma de cone na entrada de um casarão,
assim como da janela rodeada de trepa-
deiras no segundo andar de um predinho
e dos lambrequins na varanda de uma
casinha de madeira. O relógio sem pon-
teiros na fachada de um sobrado colonial
caindo aos pedaços: é meu.
Uma vez cheguei a ter um anjo de tú-
mulo, um querubim magnífico de asas
abertas e espada em punho que aparecia
por cima do muro do cemitério, mas o aca-
bei trocando por um metro e meio do ca-
minho de pedras em frente de uma capela.
De algumas coisas eu sou dono só em
certos horário do dia. Aquele trechinho
da alameda só me interessa às quatro e
quinze da tarde, quando a luz passa en-
tre os galhos dos álamos e tinge a fachada
da charutaria de um tom esverdeado. Já
a poça que amanhece na praça depois de
uma noite de chuva só é minha pela ma-
nhã, quando os sabiás vão tomar banho
por lá; depois pode ser de quem quiser.
Já outros bens são mais difíceis de lis-
tar. Sou o feliz proprietário do cheiro de
café que se sente quando se atravessa
uma certa rua numa certa altura, do raio
de luz vermelho –só do vermelho– que
passa pelo vitral lateral da basílica numa
certa época do ano, do barulho oco que
faz quando se pisa numa certa pedra sol-
ta do calçamento.
É tudo meu, pago com sorrisos silen-
ciosos, olhares admirados, suspiros de
satisfação. Às vezes à vista, às vezes em
prestações.
Mas não é assim tão fácil, não ganhei
nada assim, de mão beijada. É trabalho
duro, muitos passeios, muitos torcicolos
de olhar para cima, muitos esbarrões no
poste porque estava olhando para outro
lado. Sem contar que é difícil ser dono de
tantas coisas; preciso sempre passar pelos
meus pedaços de cidade para ver se tudo
vai bem.
Mas, tirando um portãozinho que foi
arruinado por uma nova pintura cinza,
sem graça e quase criminosa, não tenho
do quê reclamar.
Esses dias, tenho desviado meu ca-
minho por uns quarteirões para passar
numa rua onde dez ou doze ipês amare-
los coloriram o chão e o teto de um dou-
rado que, por Deus, só vendo para saber.
Estou me segurando para não tomá-los
todos, de uma vez só, para mim. Acho que
não resistirei, amanhã cedinho passo lá.
11
Parábola dos porcosAssim que ele, segurando a respira-ção, não pôde ouvir mais nada além da coruja no pomar, o menino segurou fir-me a lanterna e saltou, já de tênis e tudo, de baixo das cobertas. Esqueceu da tábua solta do assoalho e, quando a madeira rangeu alto, ficou ali paralisado, pensan-do que tinha botado tudo a perder. Mas não: o avô já roncou logo em seguida. Ufa, à missão.
Missão que era nobre, que valia o peri-go de uma aventura na madrugada –para quem dorme à oito, qualquer dez horas já é madrugada. O menino respirou fundo, girou a maçaneta e saiu correndo de uma vez só, sem olhar para cima –não precisa-va; nessa noite não havia morcegos nas tábuas do telhado da varanda.
Eram agora as férias de inverno. Uns dias antes, o pai e a mãe o haviam deixa-do –junto com a mochila, a lanterna, o te-lescópio e uma pilha de revistas– no sítio do avô. A irmã teve que ficar na cidade, de recuperação em português.
A coruja girou a cabeça, curiosa, quan-do viu a sombra passar pelo galpão, con-tornar a jaqueira –não é bom passar por
baixo dos galhos; vai que uma bomba des-sas cai na cabeça?–, e seguir na ponta dos pés em direção do chiqueiro. A lanterna continuou desligada mesmo: era noite de lua cheia. E que lua!
A porca esparramada de lado, os por-quinhos aconchegados uns em cima dos outros. O avô dizia que porco é bicho es-perto, sabe quando a gente chega com co-mida na mão e quando chega com a faca escondida debaixo da camisa. Mas o me-nino chegava com coisa melhor e, por isso, nenhum reclamou quando ele, chegando de mansinho, agachou rente ao cercado.
Foi ganhando confiança, acariciou pri-meiro a mãe e depois os filhotes. Esticou os braços no meio das ripas e pegou um dos sete. Subiu o porquinho até em cima da cerquinha e notou, com alívio, que ele não se agitava. E então carregou-o no colo até o meio do terreiro.
Na roça, onde não há postes que apa-guem as estrelas, o céu cintilava:
— Olha só como é bonito. Tá vendo aquelas bem ali? É o Cruzeiro do Sul, eu aprendi na escola que é só saber achar ele no céu que a gente nunca vai se perder.
Ficaram os dois ali, um momento meio solene, meio engraçado: um menino com os braços esticados, um porquinho sus-penso lá em cima.
— Aquela grande ali é a lua. Meu vô as-sistiu uma vez na televisão que uns ho-mens viajaram até lá.
O garoto repetiu com cada um dos fi-lhotes –a mãe era pesada demais, mas quem sabe quando ele crescesse e ficas-se mais forte?– o mesmo ritual. Mostrou a todos o Cruzeiro do Sul –pouco prová-vel que um deles se aventure muito mais longe do que a cerca atrás do chiqueiro, mas enfim–, a lua cheia, as galáxias e até um avião que passava.
É que, mais cedo, segurando um pedaço de broa de milho numa mão e uma revista dessas de curiosidades na outra, o menino descobrira que os porcos não conseguem olhar para cima. Foi um momento de re-velação. Os porcos não podem ver o céu, e lhe pareceu injusto que alguém viva –e justo no campo, onde não há postes que apaguem as estrelas– sem nunca ver o céu. Daí a missão nobre, daí ele estar no meio do terreiro, com os braços cansados de se-gurar filhotes acima da cabeça.
Talvez, na ingenuidade, ele nem tenha notado a indiferença dos porquinhos. Ar-risco dizer que os bichinhos não deram grande importância. Os porcos que viram o céu.
Mas para o menino foi a melhor noite nas melhores férias de todas.
12
P.S.Uma noite dessas
coloco um capuz
e saio com uns papéis
debaixo do braço
E aí
junto com esses cartazes
de amarração para o amor
com pagamento após o resultado
prego um outro que diz
“mas que tipo de amor
pode começar amarrado?”
Nascido em São Paulo, 1982, e adotado por
Curitiba, 1994. Prefere sempre se esconder, mas
alguns textos seus, acidentalmente, já foram
parar em algumas revistas e até no vestibular.
É designer gráfico, cozinheiro de fim de sema-
na, cervejeiro caseiro e pai do Fábio. Ainda não
se denominou escritor, mas mantém -respiran-
do por aparelhos- o blog Acepipes escritos.
14
Edu Suppion
escreva, a poesia.escrever poesia é viver quantas vezes mais for possível viver. não garante uma vida melhor, também não acre-
dito que faz de nossa vida pior. mas, pelo menos, pode-se viver livremente. nem que seja por algumas linhas.
15
um dia, dizem, não sei se é verdade. um
dia, dizem, os mortais queriam ser deuses.
e lá foram. subiram os montes, andaram
pelas trilhas e chegaram à ponta da pedra
mais alta. de lá podiam ser ouvidos. os
mortais se reuniram, e gritaram, juntos.
lá estavam os deuses bebendo, comendo
e se divertindo quando ouviram aquele
som. “o que é isso?” “quem ousa gritar as-
sim?” “são os mortais que gritam?” pois co-
locaram suas coroas e desceram com suas
carruagens até a pedra. uma luz se abriu
no céu e dezenas de cavalos surgiram
puxando carros de ouro. os deuses apa-
receram. “por que a bagunça, a gritaria?”
os humanos, dizem, estavam com muito
medo e tremiam, ficaram mudos e se abra-
çaram. um se colocou à frente. “temos um
pedido. queremos ter poderes dos deuses
também.” foi um riso só vindo das carru-
agens. “querem ser deuses?” “não sabem
que isso é impossível?” foi quando uma
linda deusa surgiu de sua carruagem. “eu
posso fazer de vocês deuses, vocês podem
ser deuses, claro que podem!” “está lou-
ca!” gritavam todos no céu. “calma,” disse
a deusa para os seus. os humanos ficaram
ali, petrificados. a um gesto, todos caí-
ram num sono profundo. “vocês querem
ser deuses?” “pois terão todo o poder que
quiserem enquanto dormem. poderão fa-
zer o que quiserem, poderão voar, subir
montanhas, nadar, ficar invisíveis, carre-
gar casas, atravessar rochas, ser imortais,
desfrutar qualquer amor, construir qual-
quer coisa. serão deuses, todas as noites.
dentro de vocês. apenas dentro de vocês.”
e os deuses riram, e ficaram olhando os
corpos caídos em sono, mexendo para lá
e para cá. as carruagens voltaram para o
céu. os mortais para a terra. desde então,
dizem, os mortais são deuses nos seus so-
nos. começaram a sonhar.
o sonho sonhado.
16
você quer um amor literário, eu sei. é
seu direito. seu sonho talvez. construído
por horas e horas a céu aberto. prometi-
do entre amigas, uma jura de sangue por
aquela vida perfeita. custa muito quebrar
esse pacto. você quer um amor revisado,
eu já sei. talvez, eu seja real demais para
sua verdade. quem sabe, eu seja fantasia
demais para sua realidade. confesso, não
sei, olhando as entrelinhas do nosso en-
contro. penso, se o seu olhar me quer, se
a sua boca me afasta, se a sua escrita me
ilude, se a sua solidão me deseja. você quer
um amor literário, eu sei. e amores assim
não entendem nem um pouco a língua
do imprevisto, desses iguais ao nosso, que
seguem os impulsos. sem planos, tocando
de improviso. às vezes, abro você numa
página qualquer e leio culpa no seu corpo,
caindo sem pensar. ali, onde nossos va-
zios se encontram. se entregam. e partem.
deixando apenas nós, a sós, a dois. como
deveria ser. deveria, eu sei. mas eu tenho
defeitos, eu sou imperfeito, não sou amor
literário nem tão pouco romance. sou só
aventura.
posso escrever a minha vida inteira, mas escrever sobre mim é sempre estar frente a frente com o im-
possível. melhor deixar para outros. não eu. o que sei de mim é muito pouco. me vejo apenas por dentro.
não é uma visão completa. mas, se preciso falar, melhor dizer apenas o que sou. o que posso ver daqui. e
sou poucas coisas. prefiro assim, ser pouco, para não me perder com esse tudo do mundo. sou Eduardo
Suppion. sou filho. sou irmão. sou tio. sou amigo. sou apaixonado pelo humano. sou otimista. sou perseve-
rante. sou crente do bem. sou seguidor do amor. ponto. e pronto. e dentro desse limitado sou, posso estar
muitas coisas, infinitamente. hoje, apenas por hoje, estou publicitário, estudante de psicologia, escritor e
poeta. amanhã, sinceramente, não sei se estarei. mas sempre serei.
a ddois.
em frente ao
Banco de La Nación Argentina
o vendedor de pipocas
da avenida Paulista
desvenda os mistérios do Honda prata
que passa lentamente, soberbo
(“coisa mais sem gente!”)
pensa na noite crônica no organismo
da tiazinha de vestido florido (onde
predomina o ruivo)
agora assobia e coloca milho na panela
os estouros acordam a minha fome
(no El País
El presidente apuesta por las políticas
a favor de los “más olvidados”
y “los que pueden menos” –
risco outro fósforo, acendo outro cigarro,
outra melodia
frustrated incorporated)
quando chega o outro, de bicicleta
a canção do vendedor de pipocas
para Angélica Freitas
FabianoCalixto
noticiando o acidente na Rebouças
(“foi feio pra caralho, mano!”)
logo envelopa a fala, se cala
a chuva recomeça sua cantilena
preciso das horas, mas não encontro
meu celular
uma moça linda (ensopada) pára
em frente a mim,
balbucia
can you help me remember how to smile?
silencio e lembro de uma rua
que tem o nome do meu amor
– imagino que as canções de Bob Dylan
existam para nos fazer suportar dias
como este – a
cidade se altera, oxida de
alteridade e acídia
(La Contenta Bar
está muito muito longe e
a noite passada
você não veio me ver
19
meninos jogam
capoeira
em frente ao muro da creche
onde, escrita a tiros,
lê-se a epígrafe destes dias
jogam
capoeira
entre os ramos do berimbau
antes da chuva
com as nuvens
§
os tijolos vermelhos lodosos
as casas pela metade
andaimes, latas de tinta vazias,
pedras, cimento, cal
enquanto os burrocratas
do pensamento
discutem mais-valia & idolatria
mercancia & democracia
lucracia & poesia
na sala de justiça
dos bem-nascidos
& rebocam sua vaidade & idiotia
na cara da geral,
outra poesia é feita
neste mundo
na universidade desconhecida
na vida sem fim
de quem chegou até aqui
derrubando, aos murros, o muro
moldando o mundo a muque
§
o terreno baldio
a quadra de futebol de salão
o bamba rodando, mão em mão,
a ginga da ganja
na gramática feroz
do desânimo
§
no barraco à beira
do córrego fétido
um velho negro
com seu carro de entulhos
fuma sua guimba de cigarro
observa o sol
que se põe morno no horizonte
& nas gotas de suor em seu rosto
enquanto
ensaia dentro de um assovio
um velho bolero
que fala de uma cidade fantasma
onde mora uma mulher solitária
que faz pães pela manhã & à tarde
a quem ele gostaria de levar um pote de
manteiga
&, nas noites claras, ensinar trava-línguas
& contar estrelas
§
jogam
capoeira
§
o coração
aflito
oratório
20
§
chove
há mais de uma semana
§
no esgoto em frente
à entrada da biblioteca
uma ratazana, no meio da sopa
de merda, devora
restos de milho
§
as notícias da guerra jorram sangue
& fedem de longe
Cabul
no muro (de outra guerra)
o grafito de um grito
sem público
(entardecido na memória)
exila-se dos dias:
mano Jorge
saudade
§
ainda que exausta
a existência não fechou seus olhos
uma velhinha no ônibus
me ofereceu uma oração
& seu riso desmantelou
todos os músculos de seu rosto
não rezei com ela
fizemos silêncio juntos
& nos exilamos em nosso subúrbio
portátil
sob uma cortina de sangue
onde, do outro lado,
havia um cão sarnento tremendo de frio
& um bailarino imbecil
pedindo mais conhaque
21
e-mail para Tom WaitsEla, uma angústia hopperiana, encos-
tada no balcão, tomava dry martini e sol-
tava imensas baforadas de fumaça. Fitava
sua própria sombra – que era ela mesma,
em versão instrumental, tomando dry
martini e soltando imensas baforadas de
fumaça. Meu pigarro cínico deu início à
conversa. Eu sabia que ela era mais uma
bela garota que queria chegar num sebo
e comprar um livro do Larry Brown, lê-lo
em êxtase, guardando sob o grafite o que
a memória provavelmente vacilaria, e na
noite seguinte encontrar alguma amiga
para dizer que a mãe havia telefonado,
aos prantos, dizendo que o pai continu-
ava com uma sede insana e que o irmão
metera-se com traficantes, mas mesmo
assim sempre haveria um espaço na vida,
mesmo que mínimo (aquele que há en-
tre a morte clínica e o paciente estendido
sobre a mesa de cirurgia), para a vida. Da
mesma maneira que ela sabia que eu era
o sujeito mais solitário da cidade, e que
meu cigarro estava acabando e que eu
diria que em algum lugar entre o século
XIX e a Etiópia, Rimbaud teria dado um
tiro em um de seus criados por este ten-
tar lhe roubar, enquanto dormia, duas
ou três moedas de ouro. Nós, definitiva-
mente, não acreditávamos em verdades.
E isso acabou em tesão. Então, o dancing
quase vazio, ela pegou em meu braço, sa-
cou o batom e escreveu a palavra sinta-
xe. Do nada. E do nada, lembrei de uma
canção interpretada por Johnny Cash e
fiquei curioso em saber se houvera ele
passado por algo parecido quando pen-
sou em cantar “Hurt”. Johnny Cash não se
lembrava dos sonhos das noites anteriores
– ela disse. Fiquei quieto e pedi a ela outro
cigarro. O que me enoja no amor é que ele
é uma coisa fácil demais. É como comprar
um Chicabon na padaria. É como chegar
atrasada ao trabalho e esfarrapar um ver-
bo qualquer. Deveria haver uma lata para
o amor entre a coleta seletiva de lixo. Mas
não, não, as pessoas o guardam consigo e
o levam para o jantar, com a esposa e com
o amante, entre uma e outra senha. Levam-
no para as reuniões sobre superfaturamen-
to e para o jogo de futebol com o filho, no
Playstation. No amor cabe tudo, o catarro,
a lágrima, o esperma, o sangue, o carinho,
a mentira, a verdade, a sujeira. É amplo
demais. Democrático demais, como a morte
– amar-te amor-te, morrer. Carente demais.
Fácil. Só o amor parece não caber no amor.
Estranho, né? Fiquei quieto novamente.
Estava bêbado demais e o amor – o que
eu tinha para falar sobre o amor – com
certeza havia deixado em alguma velha
canção que fala de perdedores e bêbados
incorrigíveis. Eu era apenas um cachorro
molhado esperando a cidade se esvaziar
para que eu pudesse vasculhar os sacos
de lixo e, quem sabe, encontrar um amor
qualquer e matar minha fome. E ela era
aquela doce desordem dos sentidos. Po-
rém, a doce desordem dos sentidos jamais
havia ouvido nenhum dos seus discos.
Tive que cantar uma a uma as suas can-
ções – sem lembrar sequer de uma. Antes
de adormecer, ela disse: a culpa e os cadá-
veres escondidos são a essência das cidades.
Aqueles braços eram como um imenso
beijo e neles me guardei durante toda a
noite. Foi então que um caixão apareceu
no meio da sala. Eu, confortavelmente
anestesiado, beijei-lhe o rosto, e, antes
do pássaro com odor de óleo diesel abrir
seu voo, depus o amor, quieto e esquecido,
atrás do seu sono – perigosamente próxi-
mo ao açúcar dos sonhos.
22
versos de circunstânciaeu não entendia
& ela se mexia tanto ao meu lado
& aqueles bancos apertados
o ar condicionado gelando tudo
(os brincos dela, o meu humor)
mais de uma hora cruzando
ruas, avenidas, parágrafos –
o livro gritando alto
num mundo surdo
depois de arrumar-se
mais algumas dezenas de vezes
passou batom nos lábios
o sol já estava no meio do céu
quando ela se levantou
foi então que percebi que
três pequenos pássaros
voavam em suas costas
em torno deum disco repetindo-se
uniforme
a dor presente
como um salmo
esquecido na página
carburada de um baseado
& continua
redemoinho melódico
um transe, incêndio
prelúdio & fuga
um molusco carregando a parede
como um código
uma mosca decorando a paz
do prato sujo
contínua
agonia do futuro
rezando em mim
como um relógio
Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns, PE,
em 1973. É anarquista e também mestre em
Teoria Literária e Literatura Comparada
pela USP. Tem poemas e artigos publica-
dos em vários jornais e suplementos do
Brasil e do exterior. Publicou os seguintes
livros de poesia: Algum (edição do au-
tor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições,
2000), Um mundo só para cada par
(Alpharrabio Edições, 2001), Música possí-
vel (CosacNaify/7Letras, 2006), Sangüínea
(Editora 34, 2007) – este finalista do Prêmio
Jabuti de 2008 na Categoria Melhor Livro
de Poesia –, e A canção do vendedor de
pipocas (7Letras, 2013). Traduziu poemas
de Gonzalo Rojas, Allen Ginsberg, John
Lennon, Laurie Anderson, entre outros.
Traduz atualmente as obras de Kenneth
Rexroth e Benjamín Prado. Editou,
com Angélica Freitas, Marília Garcia e
Ricardo Domeneck, a revista de poesia
Modo de Usar & Co. Atualmente edita O
Almanaque Lobisomem. Seu novo livro
de poemas, intitulado Nominata morfi-
na, sairá em breve.
23
blindagem baratatenho uma caixa feita de ossos
para evitar desvarios
de qualquer músculo burro
ou tive, sei lá
o tal músculo bateu
inchou, murchou
deu umas cambalhotas
explodiu e se recompôs
é assim, o canalha
a gente se acostuma
pior são os estilhaços
um pedaço qualquer de alegria
que fica preso em lugares
de difícil remoção
tem o frio na barriga
tem o nó na garganta
tem uma sensação estranha
no céu da boca
tem o medo
tem o cheiro
tem sua imagem desaparecendo aos poucos
em meio a nuvens de fumaça
cartões de embarque
malas, roletas russas e saltos no escuro
quando olhei no fundo dos teus olhos
percebi que redes de proteção seriam inúteis
e que absolutamente nada poderia ser feito
para impedir que todos meus músculos
entrassem em colapso.
(inédito)
LuanaVignon
24
Não quero que Shirley desapareçaShirley é o tipo de pessoa especializada em perder aviões
algumas pessoas realmente nunca conseguem partir
tudo se transforma previsivelmente em desculpas
(sete doses de tequila
e um flerte com um argentino chamado Peco
não foram suficientes para impedir uma salsa
às cinco da manhã)
Embora Shirley não consiga permanecer por muito tempo
no mesmo lugar
é o tipo de pessoa que nunca consegue dizer adeus
seus olhos estão sempre fechados
sonhando com o dia em que possa simplesmente ficar
sem ressalvas
Shirley bebeu dezenas de cervejas com sua amiga Rebeca
Rebeca acha que uma amizade se faz com muitos brindes
e eventuais pedidos de desculpas
principalmente após algumas doses de tequila
e um discurso fervoroso em defesa de Caio Fernando Abreu
amizade é algo como carregar uma bomba armada dentro do coração
(poema dedicado a Thaís Regina, publicado na coletânea Peso Pena, Black Demon Press, São Paulo: 2010)
25
Levou junto aquela coleção de
tampinhas
e transfix
logo você, campeão de bafo
e burquinhas
logo você que nunca repetia o mesmo
enredo
você deixou a porta aberta
porque disse que não tinha medo
mas a solidão não é algo que acontece
de repente
você quase escutou
aquela canção do Solomom Burke
abafada pelo barulho do chuveiro
mas agora é só essa ligeira impressão
deixada no corrimão
da escada
só essa foto desgastada
daquela antiga polaroid
esquecida numa gaveta
seu herói foi embora
junto com o meu
os dois pularam daquele viaduto
na marechal rondon
era uma manhã de chuva
e operários voltavam pra casa de
bicicleta
era segunda-feira
e a gente se esquecia daquela conversa
quando ele dizia que nem tudo ia dar
certo
quando a gente nem queria mais ele
por perto.
(poema publicado no livro “Seu herói foi embora”, Yiyi Jambo, Paraguai: 2010)
Seu herói foi embora
Patos de borracha
(para Adriana Brunstein)
Cometemos uma pequena
chacina
Pela manhã
Os patos não têm sangue azul
(lembranças)
Nem mesmo os de borracha
Após o café nos servimos de
Sanduiches de vento
Para aplacar o silêncio que a chuva traz
Para tirar esse animal (o amor)da toca
E fazê-lo partir com as outras aves
Noturnas.
(inédito)
26
CuidadoFoi o que eu disse:
Cuidado,
eu sempre aposto em perdedores.
Logo eu,
que nunca imaginei a convivência pacífica
entre mim e uma garrafa de tequila.
Ficamos assim,
cara a cara
sem uma acabar com a outra
faz dias.
E têm essas escolhas absurdas,
o destino é um albino meio maluco
vestido de cowboy
gritando 22
dois patinhos na lagoa.
Bingo. Eu digo.
E saio sacudindo os cabelos,
inventando um novo jeito de andar dentro de casa.
(poema publicado na Revista Coyote 17, Coyote Edições, Londrina: 2008)
Luana Vignon, 32 anos, poeta, escritora e edito-
ra. Publicou os livros Seu herói foi embora (Yiyi
Jambo, 2010), Os Tiros vêm do paraíso (Panelinha
Books, 2010) e participou de algumas coletâneas
e publicações virtuais. Atualmente é uma das or-
ganizadoras da Festa Soul Kitchen, evento que
promove a interação entre literatura, música e
gastronomia
sobre você impressiona-me
esse viver em looping
voltas e voltas e voltas e
fazer refazer um circuito
de fórmula I
ao redor do próprio umbigo
sobre você impressiona-me
o não-rompimento, uma continuidade
nadar com uma âncora presa ao s pés
sobre você impressiona-me
o não ter fim.
LubiPrates
28
boa vistadescobri pelo google maps:
da minha casa até seu ouvido são
4.654 quilômetros
implacáveis
distância que torna-se perto quando
eu, encantada
recordo seu rosto antes de
despertar:
minha eterna boa vista.
furtonão notei quando me furtei.
amor foi embora, mas
pode devolver minhas palavras?
29
ignorar os atalhos
do seu corpo: ignorar
não ir direto ao ponto
ligar todos os seus poros com dedos
e língua
caminhar por seu corpo
sem usar meus pés.
Nasceu em 86, em São Paulo. Estudante de
Psicologia, atua como consultora e pro-
fessora de recursos humanos e orienta-
dora de carreiras. Traduz e participa em
elaborações de projetos fotográficos. Tem
publicado o livro “coração na boca” e al-
gumas participações em revistas literárias
nacionais.
Possessividade IIo que faço é te negar
pelo que já disse tantas
vezes: possessividade
e viver em círculos com
frases frases que não são
poemas.
porque me vem sempre
como inspiração
sua presença.
e não te quero
lábio palavra idioma
de outrém
não quero
repartir minhas migalhas.
31
MaríliaGarcia
dificilmente se arranca
a lembrança mas na lista de notas
estou sentada em uma
padaria, tem um suco de
mamão, um garçom que não
olha pra mim, um quadro
negro na parede com o cardápio
anotado em giz branco.
da janela de manhã
os corredores da maratona
atravessavam a ponte.
sou brasileira, estou em
lisboa sentada em um balcão
perto da ponte em algum
dia de abril. você lembra?
na 19ª edição da meia maratona de lisboa
32
ela traz sua lista
e enumera os dados da história:
uma manga, uma feira ao ar livre
e algo que você dizia sobre
ser tropical, assim:
– afinal, eu sou tropical!
mas o que era ser tropical,
pergunto dizendo que não me
imagino falando essa frase,
e ela dizia algo sobre
o tropismo
ou o braço se erguendo
até que você pudesse
chamar o garçom.
ou seriam os
braços atravessando a ponte
em sinfonia, maestros em silêncio
no movimento de se projetar correndo
para frente? pergunta tentando
buscar a lembrança:
– queria um suco de mamão,
por favor. você lembra?
na minha lembrança
existiu sobretudo um mamão.
você entra naquela padaria, uma senhora
portuguesa vem te atender.
ela que todas as vezes
acenava para o neto
que passava na calçada em frente.
aí você vê um mamão na vitrine
e pensa, mesmerizada:
aqui
tem
mamão
então pede a ela um suco de
mamão
mas ela, escandalizada
– mas isto é uma fruta trop’cal.
só usamos para colocar
alguns pedaços
na salada de frutas.
depois de externada
tanta indignação
com o desperdício,
depois de um longo
longo longo sermão
– você lembra se tomou
o suco trop’cal?
33
estou procurando a receita
para fazer um crepe francês
um crepe francês
de emental derretido
e um crepe doce
um crepe doce francês
feito de farinha de centeio
com açúcar mascavo derretido
e manteiga président
então faço uma busca
pela receita de crepes
para fazer um crepe francês
e no meio da busca pela receita,
ao buscar pela palavra crepe
encontro uma tradução da inês oséki
e entendo nesse momento
que fechar pode significar abrir.
mas isso depende,
você me diz
e pergunto mas o que seria um começo?
pensando que fechar ali só podia ser o fim
o fim era sem começo me convenço
lembrando daquele dia
começo era outra coisa ainda estou
aprendendo
mas entendo que fechar em português
pode significar abrir
só que a vida não disse isso
quando precisei
talvez porque estivesse vivendo
em outra língua, você me diz.
talvez, não sei bem
na tradução do poema
dizia inês oséki
que o vendedor de crepe
tinha acertado o negócio
enquanto isso, o poema original dizia
que o vendedor de crepe
tinha fechado o negócio
querendo dizer que o vendedor de crepe
tinha falido, que
tinha fechado a loja
fechar era literal:
uma porta em movimento
pronta para bater
isso era o fim
deserto falência.
fechar não poderia mais
ser positivo e nem significar
um acerto bem-sucedido.
queria dizer que a forma de uma
cidade muda mais rapidamente
do que o coração dos mortais
queria dizer que
embora meu coração ainda buscasse
uma lembrança qualquer
um vestígio, um sinal que pudesse
ser o recomeço, ao chegar no jardim
a loja de crepe já não existia
tinha fechado suas portas
eu queria dizer que embora buscasse
começar,
fechar ali era o fim.
o que é um começo
Marília Garcia nasceu no Rio de Janeiro, em 1979. É
autora dos livros 20 poemas para o seu walkman
(Cosac Naify, 2007) e Engano geográfico (7letras,
2012). Coedita a revista Modo de usar & co. e, atual-
mente, trabalha com tradução.
34
amassou o quarto filtro manchado
de vermelho no cinzeiro de vidro e olhou
o relógio pela primeira vez desde que
chegou no café onde tinham se visto pela
última vez.
vinte e oito. oito e vinte e oito.
no mesmo dia, às quatro e doze, fingiu
uma dor de cabeça usando uma cara que
ensaiou muito bem no espelho antes de
sair de casa. disse para o chefe que não
estava se sentindo disposta: uma dorzinha
chata, “coisa de mulher”. ela sabia que o
chefe nunca soube lidar muito bem com
coisas de mulher (e isso ele tinha confi-
denciado numa cerveja de departamento.
contou toda a história chatíssima da sua
educação sentimental. quatro mulheres
ao todo: ana maria, solange, maria hele-
na e uma que ele não mencionava. justa-
mente a mais fascinante: a que fez com
MirellaCarnicellicincos de agosto
35
que ele se decidisse comprometer com
a solidão) e ele prontamente lhe pagou
um taxi para que ela pudesse ir para casa
tranquila, descansar, tomar uma aspirina
e estar sorrindo e falante na reunião que
teriam na manhã seguinte. típico.
se o chefe prestasse um pouquinho de
atenção, perceberia que ela fazia a mes-
ma coisa, com a mesma cara ensaiada,
no mesmo dia do ano, há cinco anos. nos
três primeiros – antes de descobrir como
apertar no chefe aquela parte que doía –
ela usou desculpas menos verossímeis do
que absurdas. o chefe nunca fez pergun-
tas.
já em casa, demorou a encontrar o saca
rolhas que ela nem sabia se ainda tinha.
tomou duas taças de um vinho que não
sabia ser bom ou ruim. acendeu uma vela
no banheiro e se deu um banho – o ba-
nho longo da semana, que ela geralmente
tomava aos sábados. raspou os pêlos das
pernas para vestir aquela saia azul que,
um dia, ele disse que era bonita. passou
na pele um óleo de banho que tinha sido
presente de uma amiga vaidosa. esfregou
especialmente o óleo na barriga. porque
hoje está sol e deu tudo certo e ele com
certeza vai passar a mão na barriga dela.
ajeitou o cabelo de um jeito diferente. pu-
xou tudo para um lado e enfeitou o outro
com uma presilha nova. demorou vinte
e três minutos e algumas bolas de algo-
dão para conseguir reproduzir nos olhos
a pintura que tinha arrancado da revista
do dentista, duas semanas antes. vestiu o
casaco e percebeu que ele agora apertava
um pouco nos braços. teria percebido que
também a saia azul apertava um pouco e
não mais lhe caía tão bem quanto antes.
mas se dedicasse alguns minutos a mais
ao espelho, ela ia se atrasar. e se hoje ele
chegasse na hora?
só se permitiu os trinta segundos de
passar o batom vermelho que um outro
homem num outro café uma vez lhe disse
que despertava pensamentos lúbricos. na
ocasião, ela foi ao banheiro procurar na
internet do celular o que “lúbrico” signi-
ficava. retocou o batom e menos de uma
hora depois, não tinha mais nem sinal de
vermelho na boca.
hoje, tudo o que ela queria era que ele
tivesse pensamentos lúbricos por causa
daquele batom. mas acontece que o ba-
tom não resistiu ao quinto cigarro. oito e
quarenta e cinco. ela não podia sair para
o banheiro retocar. das últimas quatro
vezes não. mas na quinta, quarenta e cin-
co minutos de atraso significa que ele vai
chegar a qualquer momento.
e será que brigará com ela quando des-
cobrir que ela começou a fumar? e será
que por isso iria embora de novo? será que
ele engordou? que ele ainda tem aqueles
cachos? que amanhã chove? será que ele
ainda faz cara de dor quando goza? que os
anos não conseguiram destruir o sorriso
de criança? será que ainda usa o mesmo
relógio que tantas vezes lhe anunciou as
horas tempranas? quantas vezes em seis
anos será que se troca a bateria de um re-
lógio? será que ele se esqueceu do acordo?
será que ela era, dele, a mulher que ele
não mencionava?
nove e meia. sete cigarros.
pagou a conta, vestiu o casaco e voltou
para casa pensando em qual roupa usará
no ano que vem.
36
se hoje, como nos jogos da infância, eu pudesse escolher qual-
quer coisa do mundo pra querer, eu com certeza ia escolher ser
rica no rio com você.
quando eu conheci você, eu não conhecia o rio. e fiquei assim,
ignorante do rio, por muito tempo. por todo o tempo em que eu
passei me educando em você.
quando eu, enfim, conheci o rio, no depois do eu-e-você, não
foi nenhuma surpresa. porque eu conhecia você. e depois de
amar tanto você, era óbvio que eu também ia amar o rio.
porque você sempre teve esse jeito de quem faz parte do rio.
o érre sutil. o jeito que você abre a palavra e faz o érre sumir.
o jeito que a sua voz desvanece e deixa tudo aberto. do mesmo
jeito que você sempre deixa todas as coisas abertas. o seu proble-
ma com portas.
os olhos fechadinhos. como se você tivesse o sol o tempo todo
virado pra você. e o jeito como essa luz refletia e iluminava os
meus olhos quando nós nos orbitávamos.
os cachos. próximos de estarem sujos. e como eles brilhavam
e se mexiam de acordo com seu passo. como quem saiu do mar
e se secou na areia. a sua maneira de quem simplesmente não
se importou o suficiente.
as roupas largas de algodões e linhos. o arrastar dos chinelos.
o seu passo.
como ricos no rio, a gente vai frequentar pouco a praia. e
sempre elegantes. e com o cachorro. é claro que, como ricos no
rio, a gente vai dar um jeito de o cachorro não morrer nunca.
e a gente vai passear o cachorro cumprimentando conhecidos
bronzeados. e chegar atrasado em coquetéis na livraria da tra-
vessa. deixar umas palavras baratas sobre o papel da crítica na
literatura e logo depois ir embora. a gente vai em restaurantes
caros de qualidade questionável nas travessas da orla, encon-
trar nossos colegas de circunstância: os outros ricos no rio. e lá
a gente vai usar o nosso humor mais domesticado. a gente vai
falar sobre a vida amorosa do amigo divorciado e sobre como
o pedido de concordata da american airlines vai afetar a nossa
próxima viagem pra macau, johanesburgo ou ilha da madeira.
a gente vai ouvir coisas sobre estúdios de pilates, alimentos or-
gânicos e personal trainers. e a gente vai se cansar bem rápido
e voltar pra sacada com vista pro mar e pro cachorro. no dia se-
guinte, a gente vai beber cerveja na praia com os nossos amigos
de coração. e lá, a gente vai usar o nosso humor mais precioso,
a gente vai falar de coisas da alma e depois vai rir dos colegas
ricos no rio do dia anterior.
e esse vai ser o nosso hobby favorito. rir e rir muito. rir sem
parar. rir até morrer. de nós e de todos os outros ricos no rio.
ricos no Rio
37
em automáticosão poucas as coisas nesse mundo que
têm a capacidade tão incisiva de me colo-
car a vida em perspectiva como o subir-e-
descer de um avião. e por dois motivos:
o primeiro, e também o mais óbvio,
pelo distanciamento físico que um vôo
de avião oferece. estar a trinta e cinco mil
pés da própria vida faz com que ela dimi-
nua em tamanho e praticamente suma
em meio à grandeza absurda da cidade
vista de cima. diminuída em tamanho,
também acaba reduzida em relevância e
isto nos atira à constatação inquietante
da pequenez da nossa existência, do nos-
so corpo e de tudo que o orbita e o penetra.
o segundo motivo, menos universal,
creio, é decorrente do medo nem um pou-
co razoável que eu tenho de aviões. pou-
cas coisas me parecem mais absurdas do
que um monte de lata pressurizado que
acelera e levanta vôo. danem-se as leis da
física que permitem que isso aconteça e
dane-se a estatística que me conta que é
mais provável que eu morra num aciden-
te de carro. num hipopótamo. num tiro
de culatra. numa coxinha estragada. eu
odeio aviões e agora me parece tão im-
prudente assumir isso assim, por escrito
e publicamente.
cerca de 80% do tempo que eu passo
dentro de um avião, gasto pensando: na
morte. incêndios. explosões. asfixia. car-
bonização. nos outros 20%, consigo, não
com pouco esforço, distrair o medo pen-
sando em: sexo. música pra fazer sexo. re-
feições fartas. mar. gramados. todas essas
coisas que, no final, não deixam de ser
feitas da mesma matéria que a morte.
de certa forma, cada vez que um avião
acelera pra me levantar vôo é como se
me cravassem no peito um termómetro
bizarro de medir se estou cuidando bem
de mim e se estou sabendo ser feliz. como
um diálogo no escuro com os recônditos
do próprio coração. talvez uma versão em
miniatura dessas experiências de quase-
morte que a gente ouve por aí.
da mesma forma, subir num avião
com alguém é abrir as portas pro coração
se manifestar sem filtros e despejar sobre
nós suas entranhadas opiniões.
uma vez eu subi num avião com um
homem e a idéia de morrer ali, ao lado
38
dele, me apavorou de tal maneira que eu
não consegui parar de tremer durante
as seismilequinhentas horas que durou
aquele vôo. eu não queria que aquela mão
pegasse a minha no instante em que o
motor parasse. nem que aquela mão me
puxasse pr’aqueles braços quando come-
çasse a queda. nem que fossem aqueles
ouvidos a ouvir minhas últimas palavras
ou que fosse aquela a última voz que eu
ouviria nesta vida. eu não queria estar ali.
claro que eu teria percebido mais cedo
ou mais tarde, mas o distanciamento do
resto da minha vida (primeiro motivo) e a
iminência da morte no monte de lata vo-
ador (segundo motivo), me pouparam de
alguns momentos (meses, talvez até anos)
orbitando uma pessoa cuja mão eu não
queria apertar durante a queda.
e nisso, sou grata às tantas horas in-
tranqüilas e ao medo irrazoável. eu o ali-
mento. vejo filmes sobre histórias horro-
rosas. cuido do medo e faço paz com ele.
porque se essa vida não é senão abrir
espaço aos encontros com as pessoas cujas
mãos a gente gostaria de apertar quando
nosso avião cair, então eu não sei.
sofre de L.E.R no coração desde os 4 anos. tem 3 medalhas
de ouro de campeonatos de par ou ímpar. foi diagnosticada
por uma cigana como tendo sido um crepe suzete na vida
passada. escreveu mais de 500 cartas que nunca enviou.
“mirella carnicelli” é apenas um pseudônimo
amar não é coisa
para qualquer um
não conheço ninguém
feliz sozinho
antes / durante / depois
amar é coisa para dois
Múcio Góes
40
me espere
de braços abertos
só feche
os braços quando
eu chegar
só feche os braços
comigo dentroe tudo
aquilo
que foi tão lindo
ora jaz
lá no fundo
tudo findo
feito um barco
indo
41
era um punhado de sol
sol podia ser
aquele brilho nos olhos
da moça que dançava
ciranda na tarde
à beira-mar
Múcio Góes, poeta pernambucano, de verso de
baque solto, rima & remo. apreciador das simple-
zas, domador de palavras tardias, defensor da
lira delirante, do verso rasteiro, do relâmpago no
papel. passa uma chuva em recife, e escreve dia-
riamente no facebook.
o diabo
até que tentou
mas o meu pão
foi deus mesmo
quem amassou
A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar.
Todos os textos e imagens aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de seus autores.
Novas contribuições são bem vindas, fale conosco!
Edição Lubi Prates e Bruno Palma e Silva
Fotos Camila Lordelo
Projeto gráfico Bruno Palma e Silva
Um agradecimento muito especial a Stephanie Borges, que nos ajudou na
ideia inicial e batizou a revista.A bênção, madrinha!
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