08.pdf

11
380 Rev Bras Epidemiol 2007; 10(3): 380-90 Doenças hematológicas e situações de risco ambiental: a importância do registro para a vigilância epidemiológica Hematological diseases and environmental risk: the importance of clinical records to epidemiological surveillance Gisele Cazarin 1 Lia Giraldo da Silva Augusto 2 Raul Antônio Morais Melo 3 1 Instituto Materno Infantil Prof. Fernando Figueira/Departamento de Estudos em Saúde Coletiva. Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/ Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Recife,PE. 2 Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/ Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Recife,PE. 3 Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (HEMOPE)/ Universidade de Pernambuco- UPE, Recife-PE. Correspondência: Gisele Cazarin. Rua Almirante Batista Leão, 76, apto. 604, Boa Viagem, Recife, PE. CEP 51030-660. E-mail: [email protected] Resumo A problemática de grupos populacionais expostos a situações de risco que afetam o sistema sangüíneo e a gravidade dos da- nos causados à saúde faz com que este tema ganhe relevância para a saúde públi- ca. A compreensão do comportamento epidemiológico de doenças hematológicas relacionadas ao ambiente/ocupação é fun- damental para a instituição de medidas protetoras da saúde. A informação em epidemiologia depende de dados fidedig- nos sobre os diversos agravos. Este estudo verificou em prontuários de pacientes de um centro de referência o registro de con- dições de risco ambiental, em um período de dez anos. As patologias selecionadas foram as mais freqüentemente assistidas e que apresentam na literatura maiores evidências de associação com exposições a riscos químicos e/ou físicos de origem ambiental. As mesmas apresentaram-se com alta letalidade (52% da casuística). Para todas houve um grande sub-registro das situações de nocividade e de outros condicionantes de vulnerabilidade, reve- lando uma despreocupação dos profissio- nais de saúde com os aspectos da causali- dade, no sentido de orientar a prevenção de novos casos. No momento em que o Ministério da Saúde reconhece a relevân- cia desta problemática mediante recentes normatizações, é fundamental aprimorar o registro de situações de risco e agravos possivelmente relacionados a estes, espe- cialmente nos serviços que podem identi- ficar casos sentinelas, auxiliando, assim, a efetivação da vigilância epidemiológica e da saúde para grupos de expostos. Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Doença hematológica. Riscos ambientais. Registro médico. Vigi- lância epidemiológica e da saúde.

Upload: eliane-cardoso

Post on 30-Sep-2015

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 380Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas esituaes de risco ambiental: aimportncia do registro para avigilncia epidemiolgica

    Hematological diseases andenvironmental risk: the importanceof clinical records to epidemiologicalsurveillance

    Gisele Cazarin1

    Lia Giraldo da Silva Augusto2

    Raul Antnio Morais Melo3

    1Instituto Materno Infantil Prof. Fernando Figueira/Departamento de Estudosem Sade Coletiva. Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes/ Fundao OswaldoCruz (FIOCRUZ), Recife,PE.2Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes/ Fundao Oswaldo Cruz (FIOCRUZ),Recife,PE.3Fundao de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (HEMOPE)/Universidade de Pernambuco- UPE, Recife-PE.

    Correspondncia: Gisele Cazarin. Rua Almirante Batista Leo, 76, apto. 604, Boa Viagem, Recife, PE.CEP 51030-660. E-mail: [email protected]

    Resumo

    A problemtica de grupos populacionais

    expostos a situaes de risco que afetam o

    sistema sangneo e a gravidade dos da-

    nos causados sade faz com que este

    tema ganhe relevncia para a sade pbli-

    ca. A compreenso do comportamento

    epidemiolgico de doenas hematolgicas

    relacionadas ao ambiente/ocupao fun-

    damental para a instituio de medidas

    protetoras da sade. A informao em

    epidemiologia depende de dados fidedig-

    nos sobre os diversos agravos. Este estudo

    verificou em pronturios de pacientes de

    um centro de referncia o registro de con-

    dies de risco ambiental, em um perodo

    de dez anos. As patologias selecionadas

    foram as mais freqentemente assistidase que apresentam na literatura maiores

    evidncias de associao com exposies

    a riscos qumicos e/ou fsicos de origemambiental. As mesmas apresentaram-se

    com alta letalidade (52% da casustica).

    Para todas houve um grande sub-registrodas situaes de nocividade e de outros

    condicionantes de vulnerabilidade, reve-

    lando uma despreocupao dos profissio-nais de sade com os aspectos da causali-

    dade, no sentido de orientar a preveno

    de novos casos. No momento em que oMinistrio da Sade reconhece a relevn-

    cia desta problemtica mediante recentes

    normatizaes, fundamental aprimoraro registro de situaes de risco e agravos

    possivelmente relacionados a estes, espe-

    cialmente nos servios que podem identi-ficar casos sentinelas, auxiliando, assim, a

    efetivao da vigilncia epidemiolgica e

    da sade para grupos de expostos.

    Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Doena hematolgica.

    Riscos ambientais. Registro mdico. Vigi-

    lncia epidemiolgica e da sade.

  • 381 Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas e situaes de risco ambientalCazarin, G. et al.

    Introduo

    O estudo de doenas hematolgicas e

    sua relao com exposies provenientes

    do ambiente, incluindo o do trabalho, e o

    consumo de produtos nocivos ganharam

    grande impulso a partir do sculo XX, onde

    estes agravos revelaram-se um grave pro-

    blema de sade pblica. Entre as patolo-

    gias que apresentaram forte correlao

    com exposio a situaes de risco am-

    biental destacam-se a anemia aplstica e

    as leucemias, ambas com alta letalidade1,2.

    A nocividade ao sistema hemato-

    poitico de alguns fatores, tais como o

    benzeno e seus derivados, agrotxicos, ra-

    diaes ionizantes e no ionizantes, tem

    sido bastante estudada, com o estabeleci-

    mento de evidncias de associao3-12. Osefeitos hematototxicos, em particular do

    benzeno, so bem conhecidos desde o fi-

    nal do sculo XIX, tendo sido relatados pelaprimeira vez a partir da ocorrncia de bi-

    tos por anemia aplstica, em trabalhado-

    res suecos de uma fbrica de pneus parabicicleta1,2. O efeito leucemognico deste

    hidrocarboneto aromtico j fora observa-

    do em estudos experimentais em animaisdesde o incio do sculo XX2.

    No Brasil, a revelao deste importan-

    te problema sanitrio aconteceu em 1983,com a comprovao de um surto de benze-

    nismo na rea industrial de Cubato/SP, e

    posteriormente em outros plos industri-ais3,4,13-15, a exemplo da fbrica de BHC das

    Indstrias Qumicas Matarazzo em So

    Caetano/SP, em 1985/86; da CompanhiaSiderrgica Nacional (CSN) em Volta Re-

    donda/RJ, em 1985; e do Plo Petro-

    qumico de Camaari/BA, em 1990, entreoutros. Atualmente, possvel constatar a

    manuteno de uma grave situao end-

    mica de intoxicao em diversos setores

    produtivos brasileiros14.

    No entanto, dentro do contexto da

    Segunda Guerra Mundial, com a introdu-

    o de novas tecnologias de sntese qumi-

    ca, a partir do petrleo, que a situao se

    agrava pela amplitude e intensidade da

    produo de benzeno e outros hidrocar-

    Abstract

    The problems of population groups ex-

    posed to risk situations that affect the

    blood system and the seriousness of the

    damages caused to health make this theme

    highly relevant in public health. The un-

    derstanding of the epidemiological behav-

    ior of hematological diseases related to the

    environment/occupation is a priority for

    the implementation of health protective

    measures. Epidemiological information

    depends on reliable data on several con-

    ditions. This study investigated patient

    medical records of a reference center,

    records of environmental risk, covering a

    period of ten years. The conditions se-

    lected were those that were the most fre-

    quently seen in this facility and those thatpresented the strongest evidence of asso-

    ciation with occupational/environmental

    risks in the specialized literature. Theseconditions presented high lethality (52% of

    all cases). For all these diseases, there was

    significant under-recording of potentiallyharmful situations and conditions of vul-

    nerability, showing a lack of concern by

    healthcare professionals with the causesand prevention of new cases. The Minis-

    try of Health has recently acknowledged

    the relevance of this problem as shown inits standardizations. For this reason, it has

    now become paramount to improve the

    recording of risk exposures and their re-lated damages, especially in the healthcare

    services that can identify sentinel cases, so

    as to help in the implementation of epide-

    miological and health surveillance for ex-

    posed groups.

    Keywords:Keywords:Keywords:Keywords:Keywords: Hematological diseases. Envi-

    ronmental risk. Medical registiration. Epi-

    demiological and health surveillance.

  • 382Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas e situaes de risco ambientalCazarin, G. et al.

    bonetos aromticos que passam a ser pro-

    duzidos no s nas siderrgicas, mas tam-

    bm em petroqumicas e refinarias de pe-

    trleo, desta maneira expondo um nme-

    ro cada vez maior de trabalhadores, bem

    como a populao do entorno, atravs da

    contaminao ambiental.

    O benzeno, devido sua excelente pro-

    priedade solvente e por seu baixo custo

    relativo, largamente utilizado na inds-

    tria, principalmente qumica e petro-

    qumica. J seus derivados so comumente

    empregados como matria-prima na ca-

    deia produtiva de uma ampla gama de pro-

    dutos: borracha, agrotxicos, fertilizantes,

    medicamentos, fibras sintticas, plsticos.

    Estas substncias so consideradas conta-

    minantes universais, estando presentes

    tambm em produtos acabados, tais comocolas, tintas, vernizes, solventes em geral,

    produtos farmacuticos e combustveis.

    Atualmente podemos dizer que h umgrande contingente de expostos a esses

    txicos, e que este importante problema de

    sade pblica ainda pouco priorizado emtermos de proteo da sade4,15-17.

    As radiaes ionizantes, que comea-

    ram a apresentar, a partir do sculo XX,grande utilizao mdica, industrial e b-

    lica, tambm esto implicadas no desen-

    cadeamento de diversas doenas hema-tolgicas e neoplsicas, por exposio do

    tipo ocupacional, acidental, ou como efei-

    to adverso de certas terapias ou mtodosdiagnsticos. Por esta razo, h certas res-

    tries sanitrias de utilizao em todo

    mundo, objetivando a preveno de doen-as relacionadas exposio8,9. No entan-

    to, pouco se conhece, no Brasil, da real si-

    tuao de exposio e de agravos sadeem operadores de equipamentos e proce-

    dimentos que se utilizam destes meios, em

    especial na rea de sade e indstria, por

    ausncia de incorporao ao sistema de

    vigilncia epidemiolgica da notificao e

    investigao de agravos relacionados.

    O modelo desenvolvimentista, implan-

    tado no Brasil na dcada de 70, desenca-

    deou uma verdadeira transferncia de ris-co a partir da permisso para a instalao

    de inmeras indstrias qumicas e petro-

    qumicas ambientalmente poluidoras, ori-

    ginadas dos pases desenvolvidos. Decor-

    rente desta poca de total descontrole

    ambiental constata-se uma situao de

    permanente poluio devida expanso

    industrial ocorrida nos ltimos cinqenta

    anos e que hoje ocupa novos territrios,

    como, por exemplo, a introduo destes

    riscos na Regio Nordeste. Neste sentido,

    teve-se inicialmente uma transferncia de

    indstrias poluidoras de fora para dentro

    do pas, e agora h um processo interno

    de migrao de risco, principalmente do

    sudeste para o nordeste brasileiro.

    Outra importante cadeia produtiva que

    oferece situaes de risco sade a da

    cultura agrcola e pecuria que, nas dca-

    das de 60 e 70, passou por uma profundareestruturao do processo produtivo. O

    programa do governo brasileiro para o se-

    tor, institudo em 1975, determinou o usoobrigatrio de agrotxicos quando da aqui-

    sio de financiamento rural. O modelo de

    controle de pragas tambm adotado noambiente urbano, seja pela sade pbli-

    ca, no combate a vetores de endemias, seja

    pela utilizao freqente de inseticidas eoutros produtos domissanitrios prejudi-

    ciais, em reas intra e peridomiciliar. Em

    relao ao DDT, produto utilizado paraesses fins at final da dcada de 80, ficou

    evidenciado estar associado com o sur-

    gimento de leucemias e agranulocitosesem expostos5-7. Embora este problema seja

    reconhecido pela sade pblica interna-

    cional, especialmente pela OrganizaoMundial da Sade, s h dois anos, no Bra-

    sil, as intoxicaes por exposio aos

    agrotxicos foram introduzidas no Siste-ma Nacional de Agravos Notificveis -

    SINAN, porm ainda no implementado

    na maioria dos municpios. A sade pbli-

    ca tambm resiste a desenvolver novas

    abordagens para controle vetorial, man-

    tendo sistematicamente as populaes

    urbanas e rurais submetidas a peridicas

    exposies a produtos qumicos, cujos

    efeitos na populao so pouco avalia-dos18.

  • 383 Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas e situaes de risco ambientalCazarin, G. et al.

    Os campos eletromagnticos de fre-

    qncia extremamente baixa (linhas de

    transmisso, estaes e subestaes el-

    tricas) so um dos mais recentes proble-

    mas anunciados para a hematologia e ain-

    da pouco dimensionados do ponto de vis-

    ta do impacto para a sade humana. A ex-

    posio a este fator suspeita de afetar o

    sistema hematopoitico em especial no

    desencadeamento de leucemias10-12.

    A compreenso do comportamento

    epidemiolgico de doenas hematolgicas

    relacionadas ao ambiente e ocupao

    fundamental para a instituio de medi-

    das protetoras da sade e depende de um

    sistema de informao que se origina no

    momento do diagnstico clnico ou na ava-

    liao de grupos expostos, mediante

    monitoramento peridico ou de investiga-o de casos sentinelas.

    Data de 1984 a primeira deciso de in-

    cluir no sistema de vigilncia epidemio-lgica agravos relacionados exposio a

    fatores nocivos oriundos dos ambientes de

    trabalho. Atravs da portaria da Secretariade Estado da Sade de So Paulo - SS n

    69/10/1984 - foi eleito um grupo de cinco

    agravos ocupacionais, preliminarmentecircunscritos populao trabalhadora de

    Cubato-SP e, em um segundo momento,

    estendida a outros municpios do Estado.Esta iniciativa foi pioneira da sade pbli-

    ca ao atribuir vigilncia epidemiolgica

    aes voltadas para doenas no trans-missveis3,13,15,19. A partir da, outras inicia-

    tivas locais semelhantes ocorreram no Bra-

    sil, porm no tiveram a continuidade e afora necessrias para imprimir um mode-

    lo de vigilncia sade mais amplo, per-

    manecendo praticamente at os dias dehoje o tradicional realizado para algumas

    doenas transmissveis e que no acom-

    panha a profunda mudana no perfil de

    morbi-mortalidade da populao brasilei-

    ra18.

    No tocante vigilncia de riscos ocupa-cionais/ambientais, as aes de controle

    relativas ao benzeno merecem especial

    destaque por representarem mritos con-

    quistados a partir de um histrico de aes

    sociais desenvolvidas de maneira impor-

    tante no pas. Dentre estas conquistas po-

    demos apontar o Acordo Nacional do

    Benzeno (1995), a constituio da Comis-

    so Nacional Permanente do Benzeno

    (CNPBz), e a aprovao de leis favorveis

    ao controle desta substncia2,16,19, entre

    elas a Norma Tcnica de Vigilncia para

    Expostos ao Benzeno, publicada pelo Mi-

    nistrio da Sade em 200314.

    Mais recentemente, no mbito federal,

    vm se desenhando estratgias para a

    efetivao de uma Poltica Nacional de

    Ateno Integral Sade do Trabalhador,

    cujo principal foco a implementao da

    Rede Nacional de Ateno Integral Sa-

    de do Trabalhador (RENAST). A formao

    desta rede visa a integrao de servios de

    assistncia e vigilncia pertencentes aoSistema nico de Sade, alm da notifica-

    o de agravos sade do trabalhador atra-

    vs de servios sentinela21,22. Entre os agra-vos de notificao compulsria, previstos

    na Portaria 777 de 200422, esto as intoxi-

    caes por substncias qumicas, que in-cluem agrotxicos e gases txicos. A des-

    peito dos avanos que estas normatizaes

    representam, ainda so poucos os serviosque as conhecem ou esto implementando

    os procedimentos nelas previstos.

    A importncia do registro de situaesA importncia do registro de situaesA importncia do registro de situaesA importncia do registro de situaesA importncia do registro de situaes

    de risco para a vigilncia em sadede risco para a vigilncia em sadede risco para a vigilncia em sadede risco para a vigilncia em sadede risco para a vigilncia em sade

    As informaes geradas por pronturi-

    os de pacientes constituem bases de dados

    que podem subsidiar o planejamento demedidas preventivas no mbito local. A au-

    sncia de um sistema de vigilncia sade

    para grupos vulnerveis um fator impor-

    tante para que se mantenha a assistncia

    clnica dissociada dos aspectos de proteo

    da sade, no sentido de evitar novos casos

    e agravamento daqueles j existentes.

    Tambm o diagnstico de uma patolo-

    gia realizado sem a preocupao com oaspecto coletivo/epidemiolgico - contri-

    bui para a manuteno de situaes de ris-

    co, de adoecimento e de morte, que em

    muitos casos poderiam ser evitveis.

  • 384Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas e situaes de risco ambientalCazarin, G. et al.

    Neste fato reside a importncia deste

    estudo, que tem o intuito de colaborar para

    a melhoria do registro de dados necess-

    rios efetivao do sistema de informao

    e da vigilncia sade de populaes ex-

    postas a agentes hematotxicos e condi-

    es de vulnerabilidade em situaes de

    risco.

    Metodologia

    Trata-se de um estudo epidemiolgico

    descritivo de anlise de pronturios de pa-

    cientes para verificar a qualidade do regis-

    tro de condies de nocividade ambiental

    e ou ocupacional relacionadas pela litera-

    tura cientfica como associadas ao apareci-

    mento de patologias sanguneas, bem como

    o registro de antecedentes pessoais e carac-tersticas individuais de usurios atendidos

    no perodo de janeiro de 1989 a dezembro

    de 1999 no Hemope (Fundao de Hema-tologia e Hemoterapia de Pernambuco),

    que constitui o principal servio de refern-

    cia do Estado. Os pronturios estudadosreferiram-se a portadores de quadros

    nosolgicos possivelmente implicveis na

    exposio a fatores hematotxicos, bemcomo apresentaram maior freqncia

    no atendimento desse servio: leucemia

    linfoblstica aguda (C91.0), leucemialinfoctica crnica (C91.1), leucemia mie-

    lide aguda (C92.0), leucemia mielide cr-

    nica (C92.1), sndromes mielodisplsicas(D46), anemia aplstica idioptica (D61.3),

    anemia aplstica no especificada - hipo-

    plasia medular - (D61. 9) e leucopenia.O carter censitrio do estudo permi-

    tiu analisar o total de pronturios, no pe-

    rodo relatado, onde foram includos ape-

    nas os casos procedentes do estado de

    Pernambuco, com um total final de 1.494

    casos. Destes, foram excludos dois, por

    no terem a identificao do paciente

    (nome, sexo, idade); trs, por apresenta-

    rem diagnsticos divergentes entre a listade patologias do servio e o pronturio; e

    onze, por no ter sido possvel a localiza-

    o dos mesmos. Ao final, o universo de

    estudo foi de 1.478 casos.

    Uma vez que se trata de um estudo ba-

    seado em dados secundrios, diversas in-

    formaes relativas condies socioeco-

    nmicas ficaram prejudicadas por falhas

    de registro. O grau de instruo foi parci-

    almente registrado, em especial quanto

    aos diversos nveis de escolaridade. Isto

    exigiu um agrupamento, num mesmo es-

    trato, de indivduos com determinados

    graus de escolaridade, independente de t-

    los ou no concludo.

    Para fins de comparao entre variveis

    (dependentes e independentes), os casos

    foram agrupados segundo tabelas de con-

    tingncia. Foi utilizado o teste Qui Quadra-

    do ou o Teste Exato de Fisher, de acordo

    com a necessidade. A anlise foi realizada

    com nvel de significncia para um inter-

    valo de confiana de 95%.

    Resultados

    Caracterizao geral das patologiasCaracterizao geral das patologiasCaracterizao geral das patologiasCaracterizao geral das patologiasCaracterizao geral das patologias

    includas no estudoincludas no estudoincludas no estudoincludas no estudoincludas no estudo

    Houve uma maior prevalncia das

    leucemias no servio de referncia, no pe-

    rodo estudado, sendo as agudas com 52%dos casos e as crnicas com 25%. As de-

    mais patologias apresentaram-se na se-

    guinte ordem: hipoplasias e aplasias me-dulares (10%); sndromes mielodisplsicas

    (8%) e leucopenia (3%) (Tabela 1).

    A gravidade das patologias assistidaspode ser confirmada ao se observar o n-

    mero de casos falecidos no perodo, me-

    dida que mais da metade dos indivduos

    assistidos (52%) foram a bito. As leu-

    cemias agudas apresentaram maior letali-

    dade, quando comparadas s demais pa-tologias (p < 0,05). Foi observado que, para

    um pequeno nmero de pacientes, houve

    uma interrupo no seguimento realizadono servio (1,22%), no indicando se por

    abandono, alta ou bito. Considerando

    que, em geral, trata-se de pacientes acom-

    panhados por um longo perodo, este lti-

    mo dado revela uma alta adeso ao trata-

    mento e/ou controle evolutivo.

  • 385 Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas e situaes de risco ambientalCazarin, G. et al.

    Caractersticas individuais dos casosCaractersticas individuais dos casosCaractersticas individuais dos casosCaractersticas individuais dos casosCaractersticas individuais dos casos

    Quanto ao sexo, de modo geral o mas-culino foi ligeiramente predominante

    (53%). A maioria das patologias analisadas

    (leucemia linfoblstica aguda, leucemialinfoctica crnica, leucemia mielide agu-

    da, leucemia mielide crnica e anemia

    aplstica) acompanhou esta tendncia.Nos casos de leucemia linfoblstica aguda

    (LLA), esta diferena foi estatisticamente

    significante (p < 0,05). No entanto, para aleucopenia e as sndromes mielodis-

    plsicas (SMD), o sexo feminino foi o mais

    afetado (p < 0,05).Considerando a totalidade dos casos (N

    = 1.478), a faixa etria de indivduos maio-

    res de 61 anos foi a mais acometida (24%).Ao se considerar cada patologia em sepa-

    rado, tem-se que os casos de leucemia

    linfoctica crnica (LLC) e sndromesmielodisplsicas tambm se concentraram

    nesta faixa (p < 0,05). Para a leucemia

    linfoblstica aguda (LLA), observou-se que

    foram afetados indivduos mais jovens nas

    faixas etrias de 0 a 10 e de 11 a 20 anos (p

    < 0,05).

    A leucemia mielide aguda (LMA) aco-

    meteu com mais freqncia a faixa etria

    de 11 a 20 anos (p < 0,05). Os casos deleucemia mielide crnica (LMC) foram

    mais freqentes nas faixas etrias compre-

    endidas no intervalo de 21 at maiores de

    61 anos (p < 0,05). Os casos de anemia

    aplstica apresentaram uma distribuio

    bifsica, afetando mais freqentemente

    indivduos nas faixas etrias de 0 a 30 anos,

    e com um segundo pico entre os indivdu-os maiores de 61 anos (p < 0,05). Para a

    leucopenia, os casos concentraram-se na

    faixa etria de 41 a 50 anos (p < 0,05).Observou-se que o registro de raa/cor

    esteve ausente em 27% dos pronturios.

    Em relao aos registros vlidos para estedescritor tem-se que a maioria dos casos

    se distribuiu entre mestios/pardos (50%)

    e caucasianos/brancos (48%). A raaafrodescendente/negra obteve um per-

    centual de 2% e no houve registros de

    casos nas raas mongide/amarela e in-dgena. Estes dados esto coerentes com

    os do censo de 200023, onde a populao

    mestia/parda (53%) e caucasiana/bran-ca (40%) apresenta destaque em relao

    s outras raas/cor (afrodescendentes/

    negros: 5%; mongide/amarelos: 0,17%;

    indgenas: 0,41%) no Estado de Per-

    nambuco.

    A varivel grau de instruo no foiregistrada em 58% dos casos. Ao se anali-

    sar os pronturios que continham esta in-

    formao, e excluindo-se os sujeitos emidade pr-escolar - 6 anos - tem-se quecerca da metade (51%) est no ensino fun-

    damental completo ou incompleto e 21%

    esto no ensino mdio (concludo ou no).

    O nmero de indivduos analfabetos apre-

    sentou um percentual de 19%, congruente

    com a taxa de analfabetismo do Estado de

    Pernambuco (em torno de 23%), confor-

    Tabela 1 - Freqncia de diagnsticos clnicos na populao estudada (HEMOPE, 1989 a 1999).Table 1 - Frequency of clinical diagnoses in the population (HEMOPE, 1989 a 1999)

    Diagnstico N %

    Leucemia mielide aguda (LMA) 434 30Leucemia linfoblstica aguda (LLA) 342 23Leucemia mielide crnica (LMC) 244 16Leucemia linfoctica crnica (LLC) 147 10Amemia aplstica (AA) e hipoplasia medular (HM) 146 10Sndromes mielodisplsicas (SMD) 114 8Leucopenia 51 3

    TOTAL 1.478 100,00

  • 386Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas e situaes de risco ambientalCazarin, G. et al.

    me dados demogrficos do censo de

    200023.

    Caracterizao dos indivduos segundoCaracterizao dos indivduos segundoCaracterizao dos indivduos segundoCaracterizao dos indivduos segundoCaracterizao dos indivduos segundo

    registro de antecedentes pessoais eregistro de antecedentes pessoais eregistro de antecedentes pessoais eregistro de antecedentes pessoais eregistro de antecedentes pessoais e

    familiaresfamiliaresfamiliaresfamiliaresfamiliares

    Houve um alto grau de sub-registro,

    aproximadamente 65% dos casos, na mai-

    or parte das variveis pesquisadas (utiliza-

    o de medicamentos, uso de tabaco e/ou

    dependncia de lcool e outras drogas,

    doena infecto-parasitria e caso seme-

    lhante na famlia). Dos registros conside-

    rados vlidos, observou-se que a maioria

    da populao no referiu exposio a ne-

    nhum destes fatores tambm implicveis

    na ocorrncia de doenas hematolgicas.

    Elementos de risco ocupacional eElementos de risco ocupacional eElementos de risco ocupacional eElementos de risco ocupacional eElementos de risco ocupacional e

    ambiental no desenvolvimento deambiental no desenvolvimento deambiental no desenvolvimento deambiental no desenvolvimento deambiental no desenvolvimento de

    doenas hematolgicasdoenas hematolgicasdoenas hematolgicasdoenas hematolgicasdoenas hematolgicas

    A exposio de ordem ocupacional e/

    ou ambiental no foi registrada na maio-ria dos casos. No houve registros acerca

    dos antecedentes ocupacionais dos indi-

    vduos atendidos. Esta ausncia foi nota-da tanto entre trabalhadores ativos quan-

    to entre desempregados e aposentados.

    Para a ocupao atual do indivduo, nombito geral, a proporo de sub-registro

    foi de 26%. Dos dados vlidos (excluso de

    ignorados e menores de 14 anos no tra-balhadores), cerca de 30% so de indiv-

    duos cuja ocupao se deu no ramo de ser-

    vios; 25% destes ocupavam atividades

    domsticas, seguindo-se dos trabalhado-

    res do ramo agropecurio (18%) e indus-

    trial/artesanal (15%).

    Quanto aos dados de antecedentes

    ocupacionais, tais como acidentes ou do-

    enas relacionadas ao trabalho, em cercade 60% dos casos no houve registros. Dos

    dados vlidos (retirando-se menores de 14

    anos no trabalhadores), em apenas 1,61%houve informao positiva, porm com

    ausncia de registro do tipo de acidente/

    doena relacionada ao trabalho.Em 40% dos casos houve anotao so-

    bre antecedentes de exposio ocupa-

    cional/ambiental a fatores hematotxicos,

    sendo que, destes, 25% foram positivos

    para tal exposio. Entre os fatores citados

    esto: os agrotxicos, tanto de uso agro-

    pecurio quanto de uso domstico (71%);

    tintas e vernizes (13%); solventes (5%);

    metais (2%) e radiao ionizante (1%). Des-

    taca-se que estes importantes anteceden-

    tes no foram registrados em 60% dos

    pronturios.

    Dados de exposio ambiental foram

    pouco registrados. Em apenas oito pron-

    turios houve observao a respeito do

    caso ser procedente de local prximo a ati-

    vidades industriais e 33 de rea agrcola.

    Dos oito casos residentes nas adjacncias

    de atividade fabril, dois referiram proximi-

    dade de fbrica de baterias (risco de expo-sio ao chumbo) e dois prximos fbri-

    ca de papel (exposio a cloro). O restante

    distribui-se entre diversas indstrias igual-mente produtoras de riscos sade - in-

    dstria de borracha (solventes aromti-

    cos), cola (tolueno), indstria qumica (di-versas substncias) e txtil (anilinas, tin-

    tas). A meno a residncias prximas a

    unidades geradoras de campos eletromag-nticos de freqncia extremamente bai-

    xa foi ausente na totalidade dos casos.

    Discusso

    A importncia da informao para avigilncia em sade nos remete proble-

    mtica do registro em pronturios de ser-

    vios responsveis pela assistncia, espe-cialmente daqueles que atendem patolo-

    gias que no fazem parte do sistema de vi-

    gilncia epidemiolgica ou em que nohaja uma tradio de notificao, como,

    por exemplo, o caso de doenas hemato-

    lgicas que podem estar relacionadas a

    condies de risco ambiental/ocupacional

    e, portanto, na sua maioria prevenveis.

    Nesta questo, a exposio ao benzeno

    ganhou destaque em razo de ter sido ele-

    vada a uma condio de problema sanit-

    rio nos anos de 1983 a 1985, e que vem semantendo at os dias de hoje.

  • 387 Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas e situaes de risco ambientalCazarin, G. et al.

    No presente estudo, a principal averi-

    guao esteve relacionada insuficincia

    e at ausncia de informaes primordi-

    ais para a compreenso de causalidade da

    doena diagnosticada. O sexo, a raa/cor,

    a idade e suas inter-relaes com condi-

    es socioambientais, renda, trabalho e

    grau de escolaridade constituem em fato-

    res que geram desigualdades socioeco-

    nmicas e vulnerabilidades, particular-

    mente em relao exposies nocivas e,

    portanto, devem ser investigadas24,25.

    A faixa etria, quando analisada em re-

    lao a cada uma das patologias sele-

    cionadas, no servio estudado, corroborou

    na maior parte com dados descritos na li-

    teratura, para os quais as leucemias

    linfoblsticas agudas acometem com mais

    freqncia crianas e adultos jovens. Aanemia aplstica, alm de acometer estes

    grupos, apresenta tambm um pico entre

    idosos. No caso das demais doenas, a in-cidncia aumenta com a idade1,24,26,27.

    Na casustica estudada observou-se

    maior ocorrncia de registros de leuco-penia na faixa etria de 41 a 50 anos. Este

    fato merece ser devidamente investigado,

    medida que, em caso de exposio ahematotxicos, espera-se que a proporo

    de acometidos concentre-se em faixas

    etrias mais velhas. Alm disso, no Brasil,em trabalhadores expostos a substncias

    hematotxicas, a presena de leucopenia

    tem sido registrada como um sinal de in-toxicao, especialmente no caso de expo-

    sio ao benzeno, conforme exigncia dos

    Ministrios da Sade, do Trabalho e daPrevidncia Social14.

    Em relao ao sexo, as caractersticas

    das patologias analisadas revelaram-se,em geral, de acordo com dados de incidn-

    cia referidos pela literatura, uma vez que

    as leucemias acometeram mais indivdu-

    os do sexo masculino1,24. No entanto, a ane-

    mia aplstica que, segundo alguns auto-

    res24,28 pode afetar igualmente homens e

    mulheres, neste estudo acometeu com

    mais freqncia o sexo masculino.

    Os casos de SMD, referidos na literatu-

    ra como mais freqentes em homens28,

    nesta casustica acometeram mais pesso-

    as do sexo feminino. Embora haja condi-

    cionantes genticos e caractersticas pr-

    prias de vulnerabilidade que fazem com

    que o acometimento ocorra de forma dis-

    tinta entre homens e mulheres, o dado do

    sexo isoladamente no permite fazer qual-

    quer suposio sobre a tendncia obser-

    vada, tanto para a SMD quanto para a ane-

    mia aplstica, sem um aprofundamento

    clnico de cada caso e da observao

    epidemiolgica, a qual depende de regis-

    tros sistemticos e amostras representati-

    vas.

    De modo geral, a evidncia de relao

    entre agravos sade com anos de estudo

    e condies socioeconmicas faz supor

    que pessoas com baixo grau de instruo

    esto mais sujeitos a condies precriasde trabalho ou de moradia e, conseqen-

    temente, socialmente mais vulnerveis. O

    nmero ainda alto de indivduos analfabe-tos observados na populao de Pernam-

    buco e neste estudo deve merecer ateno

    na caracterizao da vulnerabilidade depopulaes sujeitas a determinados riscos

    ambientais/ocupacionais.

    Alguns grupos, como mulheres, negrose pardos, pelo fato de apresentarem me-

    nor renda e outras peculiaridades de sus-

    ceptibilidade, devem ser tambm conside-rados grupos mais vulnerveis. Por esta

    razo, dados relativos a gnero e raa de-

    vem ser valorizados no contexto scio-ambiental para investigao de patologi-

    as, em especial as hematolgicas25.

    Considerando que o Estado de Per-

    nambuco rea endmica para algumas

    doenas infecto-parasitrias, como por

    exemplo, a esquistossomose e a leishma-

    niose visceral, doenas que, direta ou in-

    diretamente, interferem no funcionamen-

    to do sistema hematopoitico, torna-seimportante a investigao sobre a ocorrn-

    cia destas enfermidades no diagnstico

    diferencial de doenas do sangue.Os hbitos nocivos e o uso de medica-

    mentos tambm requerem cuidados espe-

    ciais no registro e na investigao dos ca-sos. Dentre os hbitos considerados pre-

  • 388Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas e situaes de risco ambientalCazarin, G. et al.

    judiciais, a dependncia de tabaco mere-

    ce destaque por ser um produto que con-

    tm hidrocarbonetos aromticos em sua

    composio17,27. A presena destas subs-

    tncias entre os componentes da fumaa

    do cigarro um dos principais fatores atri-

    budos sua carcinogenicidade29.

    Dentre as ocupaes observadas com

    maior freqncia neste estudo, as ativida-

    des de cunho domstico e agropecurio

    so consideradas como envolvidas em ex-

    posio a diversos riscos, principalmente

    os de ordem qumica (solventes, insetici-

    das, outros agrotxicos etc.).

    Em que pese o elevado sub-registro de

    expostos a fatores hematotxicos presen-

    tes no ambiente, incluindo o de trabalho,

    o nmero de registros positivos para tais

    exposies no se apresentou to despre-zvel (um quarto da populao). No entan-

    to, esta informao no induziu nenhum

    registro de atitude preventiva, em relao vigilncia de outros expostos. Nestes ca-

    sos, os profissionais de sade devem aju-

    dar os pacientes a identificar riscos am-bientais/ocupacionais para que medidas

    protetoras da sade sejam tomadas para

    si e para a coletividade.O grande nmero de sub-registros de

    informaes relevantes para uma anlise

    epidemiolgica aprofundada de questesespecficas, e o conseqente desenvolvi-

    mento de aes preventivas, decorrem do

    no reconhecimento por parte dos profis-sionais de sade do seu papel no elo da

    cadeia que viabiliza o conhecimento de

    uma dada situao de sade. Mais que isso,

    o no reconhecimento de que as informa-

    es geradas por pronturios constituem

    a base que ir auxiliar o planejamento demedidas preventivas no mbito local30.

    A quantidade elevada de casos que fo-

    ram bito na casustica do estudo (cerca

    de 52%) um indicador claro de gravida-

    de das hematopatias estudadas e que po-

    dem estar implicadas em situaes de

    nocividade ambiental. A inespecificidade

    dos sintomas iniciais e atrasos no diagns-

    tico e ou no tratamento, que, no caso depossvel exposio a hematotxicos, deve

    incluir o afastamento imediato do risco,

    so condies que podem contribuir para

    a alta letalidade observada nos casos.

    A importncia da implementao de

    um sistema de vigilncia eficaz para a

    deteco precoce de agravos desta natu-

    reza est bem evidenciada. Escassas so as

    entidades nosolgicas suficientemente

    especficas em relao s suas causas que

    dispensaria a necessidade de uma vigiln-

    cia das situaes de riscos e das popula-

    es envolvidas31.

    Apesar da vigilncia sade propor

    uma ao integrada entre os diversos ele-

    mentos do processo sade-doena, alguns

    autores25,32 chamam a ateno para o fato

    desta se apresentar muito dependente da

    vigilncia epidemiolgica. Isto faz com que

    suas aes fiquem muito limitadas, me-dida que esta vigilncia atua basicamente

    sobre doenas infecto-contagiosas. O ni-

    co agravo sade do trabalhador, contidona lista de notificao compulsria, refe-

    re-se intoxicao por agrotxicos, porm

    a ao sobre estes eventos muitas vezes serestringe notificao de eventos agudos,

    sem uma efetiva interveno.

    Partindo do princpio de que a Porta-ria n 777/200422 informa que os hospitais

    de referncia de mdia e alta complexida-

    de devem estar sendo agregados ao siste-ma como unidades sentinela na vigilncia

    em Sade do Trabalhador, estes a partir da

    implantao deste sistema podero dimi-nuir o sub-registro de agravos nessa po-

    pulao. Considerando que boa parte dos

    casos de exposio a riscos ambientais estligada ao ambiente de trabalho ou relaci-

    onada a processos produtivos, a efetivao

    dessa vigilncia ser um passo importan-

    te para promover a proteo da sade e

    prevenir riscos.

    Protocolos clnicos de interveno de-

    vem ser manuseados com vistas tambm

    vigilncia de doenas hematolgicas su-

    gestivas de relao com a exposioambiental/ocupacional. Neste sentido, a

    conscientizao dos profissionais de sa-

    de da importncia do seu papel na inte-

    gralidade da ateno e na informao des-

  • 389 Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas e situaes de risco ambientalCazarin, G. et al.

    tinada a pacientes, gestores e para a soci-

    edade em geral so de suma importncia

    para a efetivao de um sistema de vigi-

    lncia eficaz, uma vez que no se pode se-

    parar as aes de cura e de preveno, bem

    como as aes relativas ao indivduo da-

    quelas de carter coletivo.

    Deste modo, as normas para a vigiln-

    cia de expostos a substncias qumicas

    (agrotxicos e benzeno) encontram-se

    mais avanadas em relao s normas so-

    bre irradiaes, especialmente o protoco-

    lo de interveno de expostos ao benzeno.

    A recente norma publicada14 avalia que

    devem ser identificados regionalmente

    servios de hematologia que devero no-

    tificar casos suspeitos ou confirmados

    atravs de critrio clnico-epidemiolgico

    de intoxicao por esta substncia. Tal fatorefora a necessidade do registro de infor-

    maes sobre exposio ocupacional/

    ambiental em servios especializados naassistncia de casos suspeitos.

    Em especial, para que haja proteo da

    sade e preveno de riscos ambientais eocupacionais a ela associados e se evite

    que grandes contingentes humanos expo-

    nham-se a nocividades promotoras de do-enas e mortes precoces, requerida uma

    reviso no modelo de vigilncia sade,

    que historicamente vem sendo executadano Brasil de forma restrita.

    Neste sentido, os servios de refern-

    cia devem ser integrados aos sistemas devigilncia no mbito do SUS. Na atual con-

    juntura, para que estes servios possam

    passar da condio de excelncia clnicapara a condio de um efetivo compromis-

    so de carter coletivo, temos a oportuni-

    dade de contribuir para que a sade p-

    blica cumpra sua misso de promoo,

    proteo e recuperao da sade.

    Concluses e recomendaes

    Podemos dizer que, de um modo ge-

    ral, no h preocupao entre os profissi-

    onais de sade, do servio de referncia

    estudado, com o registro de possveis fa-

    tores causais relacionados com patologias

    que j so amplamente reconhecidas pela

    literatura como associadas a fatores ex-

    genos de origem ambiental/ocupacional.

    Neste contexto, fazemos as seguintes re-

    comendaes:

    Incluso nos protocolos de investigao

    clnica, de campos relativos ao ambien-

    te, ocupao e consumo de produtos

    que ofeream riscos para a sade, em

    particular para o sistema hema-

    topoitico. Assim, so fundamentais os

    dados sobre profisso/ocupao/ativi-dades pregressas; tempo de trabalho;

    condies e riscos presentes no proces-

    so produtivo; renda e proximidade comunidades produtoras de risco; alm de

    outros que j existem nos pronturios,

    porm so pouco valorizados, tais comouso de medicamentos, doenas antece-

    dentes, presena de caso semelhante na

    famlia, uso de tabaco (tempo e quanti-dade), hbitos, raa/cor e escolaridade.

    Implementao de programas de edu-

    cao permanente sobre a coleta de in-formaes de agravos sade, relacio-

    nados exposio ocupacional/am-

    biental a partir de servios tanto de as-sistncia, quanto da ateno bsica.

    Informao s autoridades sanitrias

    sobre agravos sade de interesse para

    a sade pblica, mesmo quando estes

    no forem de notificao compulsria,

    para que possam ser investigados e in-tegrados ao sistema local de vigilncia

    sade.

    Referncias

    1. Goldstein BD. Haematopoietic and Lymphatic System.In: International Labour Office (ILO). Encyclopaedia ofoccupational health and safety. 4ed. Geneva: ILO; 1998. p.1.2.-1.9.

    2. Costa D. O acordo do Benzeno: uma negociaoexemplar. In: Costa D., Machado, JMH.(org.) RepertrioBrasileiro do Benzeno. 2ed. Braslia, DF: Ministrio daSade, Coordenao de Sade do Trabalhador; 2003. 1CD ROM. Material de demonstrao.

  • 390Rev Bras Epidemiol2007; 10(3): 380-90

    Doenas hematolgicas e situaes de risco ambientalCazarin, G. et al.

    3. Augusto LGS. Estudo longitudinal e morfolgico (medulassea) em pacientes com neutropenia secundria exposio ocupacional crnica ao benzeno [dissertaode mestrado]. Campinas (SP): UNICAMP; 1991.

    4. Novaes TCP. Bases metodolgicas para abordagem daexposio ocupacional ao benzeno [dissertao demestrado]. So Paulo (SP): Universidade de So Paulo; 1992.

    5. Augusto LGS. Exposio Ocupacional aos Organocloradosem Indstria Qumica de Cubato/SP: avaliao do efeitoclastognico pelo teste de microncleos [tese dedoutorado]. Campinas (SP): UNICAMP; 1995.

    6. Trap AZ. O caso dos agrotxicos In: Buschinelli JTP,Rocha, LE, Rigotto RM (Org.). Isto trabalho de gente?Vida, Doena e Trabalho no Brasil. Petrpolis: Vozes;1994. p. 568-93.

    7. Peres F, Moreira JC. veneno ou remdio? Agrotxicos,sade e ambiente. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2003.

    8. Azevedo AP. Rudo: um problema de Sade Pblica(outros agentes fsicos). In: Buschinelli JTP, Rocha, LE,Rigotto RM. (Org.). Isto trabalho de gente? Vida, Doenae Trabalho no Brasil. Petrpolis: Vozes; 1994. p. 403-35.

    9. Sullivan AK. Classificao, patognese e etiologia dasdoenas neoplsicas do sistema hematopotico. In: LeeGR et al. Wintrobe Hematologia clnica. So Paulo:Manole; 1998. p. 1897-970.

    10. Milham Jr S. Mortality from leukemia in workers exposed toelectrical and magnetic fields. N Engl J Med 1982; 307: 249.

    11. Garland F. et al. Incidence of leukaemia in occupationswith potential electromagnetic fields exposure in UnitedStates navy personnel. Am J Epidemiol 1990; 132: 293-303.

    12. London S. et al. Exposure to residential electric andmagnetic fields and risk of childhood leukemia. Am JEpidemiol 1991; 134: 923-37.

    13. Augusto, LGS, Rocha, LE, Freitas, CU, Lacaz, FAC, Bichir,A. Vigilncia epidemiolgica de doenas ocupacionais.Rev Bras Sade Ocup 1986; 14: 32-64.

    14. Brasil. Ministrio da Sade. Norma de vigilncia da sadedos trabalhadores expostos ao benzeno. Braslia; 2003.

    15. Augusto LGS. Benzolismo em uma siderrgica. RevistaS.O.S 1984; 110: 153-7.

    16. Freitas NBB, Arcuri, ASA. Negociao Coletiva nacionalsobre o benzeno. In: BONCIANI, M. (Org.). Sadeambiente e Contrato coletivo de trabalho: Experincia emnegociao coletiva. So Paulo: LTr; 1996. p. 71-153.

    17. Costa, MAF, Costa MFB. Benzeno: uma questo de SadePblica. Intercincia 2002; 27: 201-4.

    18. Augusto, LGS, Carneiro RM, Martins, PH. AbordagemEcossistmica em Sade: ensaios para o controle dadengue. Recife: Universitria; 2005.

    19. Augusto LGS, Novaes TCP. Ao mdico-social no casodo benzenismo em Cubato, So Paulo: uma abordageminterdisciplinar. Cad Sade Pblica 1999; 15: 729-38.

    20. Machado, JMH et al. Alternativas e processos devigilncia em sade do trabalhador relacionados exposio ao benzeno no Brasil. Cincia & Sade Coletiva2003; 8: 913- 21.

    21. Brasil. Ministrio da Sade. Portaria n 2.437. Dispesobre a ampliao e o fortalecimento da Rede Nacionalde Ateno Integral Sade do Trabalhador (RENAST) noSistema nico de Sade e d outras providncias. DirioOficial da Repblica Federativa do Brasil: Braslia, DF; 9de dezembro de 2005.

    22. Brasil. Ministrio da Sade. Portaria n 777. Dispe sobreos procedimentos tcnicos para a notificaocompulsria de agravos sade do trabalhador em redede servios sentinela especfica, no Sistema nico deSade - SUS. Dirio Oficial da Repblica Federativa doBrasil: Braslia, DF; 28 de abril, 2004.

    23. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica. Censodemogrfico- 2000 [Acessado durante o ano de 2005, parainformaes de 2000] [on-line]. Disponvel em http:www.ibge.gov. br/censo/default.php.

    24. Jamra M, Lorenzi, TF. Sistema Hematopoitico. In: Porto,CC. Semiologia Mdica. 3ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1997. p. 763-787.

    25. Cmara V.M., Tambellini, AT, Castro, HA, Waissmann, W.Sade Ambiental e Sade do Trabalhador: Epidemiologiadas relaes entre a produo, o ambiente e a sade. In:Rouquayrol, M. Z.; Almeida Filho, N. Epidemiologia &Sade. 6ed. Rio de Janeiro: MEDSI; 2003. p. 469-97.

    26. Lukens, J. N. Leucemia linfoctica aguda. In: Lee, GR. etal. Wintrobe Hematologia Clnica. So Paulo: Manole;1998. p. 2083-112.

    27. Aster J, Kumar V. Leuccitos, linfonodos, bao e timo. In:Cotran RS, Kumar V, Tucker C. Robbins Patologiaestrutural e funcional. 6ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan; 2000. p. 581-625.

    28. Young NS. Anemia aplsica, mielodisplasia e sndromesde insuficincia medular relacionadas. In: Braunwald E.et al. Harrison Medicina interna. 15ed. Rio de Janeiro: McGraw Hill; 2002. p. 735-44.

    29. Pereira FEL. Patologia ambiental. In: Brasileiro Filho G. etal. Bogliolo Patologia. 6ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan; 2000. p. 233-53.

    30. Niobey, FML, Casco AM, Duchiade MP, Sabroza, PC.Qualidade do preenchimento de atestados de bitos demenores de um ano na Regio metropolitana do Rio deJaneiro. Rev Sade Pblica 1990; 24: 11-318.

    31. Machado JMH. Processo de Vigilncia em Sade dotrabalhador. Cad Sade Publica 1997; 13: 33-45.

    32. Teixeira MG et al. Seleo das doenas de notificaocompulsria: critrios e recomendaes para as trsesferas de governo. Informe epidemiolgico do SUS 1998;7: 7-28.

    Recebido em: 22/11/06Verso final reapresentada em: 01/06/07

    Aprovado em: 07/06/07