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CALE-SE - A MPB E A DITADURA MILITAR A Ditadura Militar (1964 – 1985) e a produção musical O regime militar assumiu o poder no Brasil em 1964, em um golpe de Estado que derrubou João Goulart do cargo da presidência da República. Durante seus 21 anos, opositores políticos foram presos e torturados ou mortos, e outros tiveram de recorrer ao exílio para se salvar. Nesse grupo de opositores políticos estavam inclusos vários artistas que faziam críticas ao governo. Assim que chegaram ao poder, os militares diminuíram a liberdade de imprensa e a de expressão, e a liberdade artística foi muito prejudicada por métodos como a censura prévia. As coisas pioraram para artistas, jornalistas e intelectuais em 1968, quando a ditadura instituiu o AI-5, e a repressão aumentou. Os anos entre 1968 e 1973 foram marcados por grande crescimento econômico e forte repressão política. Quando a economia começou a entrar em colapso, começou a abertura política. Em 1979 veio a anistia ampla, geral e irrestrita e foram surgindo movimentos populares como as Diretas Já!, e em 1985, assumiu novamente um presidente civil. Quando o regime endureceu, a censura e a repressão à produção cultural se intensificaram, foi gerado o que o escritor Alceu Amoroso de Lima classificava como “terrorismo cultural”, já que qualquer tipo de expressão cultural, seja recitada, cantada, escrita ou representada, era motivo para perseguição por parte do governo militar. Neste período da história brasileira, as produções culturais tinham de ser revisadas e aprovadas pelo governo para poderem circular. Não raro, os censores trocavam palavras, frases ou expressões de músicas ou falas de uma peça por acharem algo ‘inadequado’ nas originais. É certo que uma música que

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CALE-SE - A MPB E A DITADURA MILITAR

A Ditadura Militar (1964 – 1985) e a produção musical

O regime militar assumiu o poder no Brasil em 1964, em um golpe de Estado que derrubou

João Goulart do cargo da presidência da República. Durante seus 21 anos, opositores políticos

foram presos e torturados ou mortos, e outros tiveram de recorrer ao exílio para se salvar. Nesse

grupo de opositores políticos estavam inclusos vários artistas que faziam críticas ao governo.

Assim que chegaram ao poder, os militares diminuíram a liberdade de imprensa e a de expressão,

e a liberdade artística foi muito prejudicada por métodos como a censura prévia. As coisas

pioraram para artistas, jornalistas e intelectuais em 1968, quando a ditadura instituiu o AI-5, e a

repressão aumentou. Os anos entre 1968 e 1973 foram marcados por grande crescimento

econômico e forte repressão política. Quando a economia começou a entrar em colapso, começou

a abertura política. Em 1979 veio a anistia ampla, geral e irrestrita e foram surgindo movimentos

populares como as Diretas Já!, e em 1985, assumiu novamente um presidente civil.

Quando o regime endureceu, a censura e a repressão à produção cultural se

intensificaram,  foi gerado o que o escritor Alceu Amoroso de Lima classificava como “terrorismo

cultural”, já que qualquer tipo de expressão cultural, seja recitada, cantada, escrita ou

representada, era motivo para perseguição por parte do governo militar. Neste período da história

brasileira, as produções culturais tinham de ser revisadas e aprovadas pelo governo para poderem

circular. Não raro, os censores trocavam palavras, frases ou expressões de músicas ou falas de

uma peça por acharem algo ‘inadequado’ nas originais. É certo que uma música que falasse mal

do governo (e este percebesse) seria censurada e não poderia ser veiculada. De um modo geral,

para suas canções não serem censuradas e para os próprios compositores não sofrerem os

abusos da ditadura, quando se queria criticar o regime vigente, usavam se diversas figuras de

linguagem, especialmente metáforas. Feito isso, rezava-se para os oficiais não perceberem. Foi à

maneira que os compositores encontraram nos “anos de chumbo” para dar seu recado

contornando a censura. Durante o período conhecido como a “Era dos festivais”, entre 1965 e

1968, as canções de protestos ganharam larga divulgação. As músicas tinham  três características

primordiais. A crítica do governo, a esperança e a importância da música como veículo de idéias.

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Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores

(Geraldo Vandré)Composição: Geraldo Vandré

Caminhando e cantandoE seguindo a cançãoSomos todos iguais

Braços dados ou nãoNas escolas, nas ruasCampos, construções

Caminhando e cantandoE seguindo a canção...

Vem, vamos emboraQue esperar não é saber

Quem sabe faz a horaNão espera acontecer...(2x)

Pelos campos há fomeEm grandes plantaçõesPelas ruas marchando

Indecisos cordõesAinda fazem da flor

Seu mais forte refrãoE acreditam nas floresVencendo o canhão...

Vem, vamos emboraQue esperar não é saber

Quem sabe faz a horaNão espera acontecer...(2x)

Há soldados armadosAmados ou não

Quase todos perdidos

De armas na mãoNos quartéis lhes ensinam

Uma antiga lição:De morrer pela pátriaE viver sem razão...

Vem, vamos emboraQue esperar não é saber

Quem sabe faz a horaNão espera acontecer...(2x)

Nas escolas, nas ruasCampos, construçõesSomos todos soldados

Armados ou nãoCaminhando e cantando

E seguindo a cançãoSomos todos iguais

Braços dados ou não...

Os amores na menteAs flores no chão

A certeza na frenteA história na mão

Caminhando e cantandoE seguindo a canção

Aprendendo e ensinandoUma nova lição...

Vem, vamos emboraQue esperar não é saber

Quem sabe faz a horaNão espera acontecer...(4x)

Esta composição de Geraldo Vandré talvez seja a música símbolo da resistência à ditadura no Brasil, já possuindo enorme valor simbólico na cultura brasileira. Produzida em uma fase de endurecimento do regime militar, seus versos incitam a população a resistir, quase de forma heróica, e a lutar para derrubar os militares do poder, exaltando a força da sociedade civil. A música começa com uma afirmação de igualdade entre os brasileiros (importante lembrar que na época a desigualdade social crescia

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e que parte da sociedade, especialmente a que vivia no interior, pouco ou nada sabia da situação política real). E partindo desse princípio o autor convoca a população a “seguir a canção”, ou seja, a lutar contra o regime e avançar politicamente, garantindo direitos iguais para pessoas que são, por princípios, iguais. É importante observar que o autor quer garantir direitos mesmo àqueles que não se opuseram até então ao regime por quaisquer motivos.

Para o compositor, não há tempo há perder: a população tem de agir. Para ele, esperar é um mau sinal e vai contra o princípio de participação das massas, especialmente considerando os abusos cometidos a todo instante naquela época. (“Vem, vamos embora, que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”). Este trecho é repetido muitas vezes ao longo da música, é a principal mensagem do compositor para seu público.

Na estrofe seguinte, Geraldo Vandré fala sobre os contrastes sociais do Brasil (“Pelos campos há fome em grandes plantações”). Mesmo com terra sobrando e comida sendo produzida, nossa produção vai para o exterior e os brasileiros passam fome. Logo depois, Vandré faz referência à "geração Paz e Amor" dos anos 60, que ficou conhecida por manifestações pacíficas pedindo mudanças sociais em todo o mundo, sendo um grande movimento cultural. Os versos são “Pelas ruas marchando indecisos cordões/ Ainda fazem da flor seu mais forte refrão/ E acreditam nas flores vencendo o canhão”. Em “Há soldados armados, amados ou não/ Quase todos perdidos de armas na mão/ Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição/ De morrer pela pátria ou viver sem razão”, o autor fala sobre os militares, mas de um jeito diferente das outras músicas do período: ele os humaniza e não deposita a culpa total por agirem como agiam. O autor coloca que há um motivo por trás, que os soldados foram doutrinados a agir daquele jeito

Em “Nas escolas, nas ruas, campos, construções/ Somos todos soldados, armados ou não/ Caminhando e cantando e seguindo a canção/ Somos todos iguais braços dados ou não/ Os amores na mente, as flores no chão/ A certeza na frente, a história na mão/ Caminhando e cantando e seguindo a canção/ Aprendendo e ensinando uma nova lição”, Vandré também classifica a população como “soldados” pois também lutam por uma causa. E não classifica somente a parcela da população que fez resistência armada, também exalta aqueles que nada fizeram diretamente para acabar com a ditadura. Estes merecem ser chamados de soldados pois estão no mesmo time, pois estes também serão beneficiados com a queda dos militares. Assim, ele reafirma a tese de que todos são iguais.

Geraldo Vandré escreveu essa música em 1968, em meio ao auge da ditadura militar brasileira. O sucesso da canção que incitava o povo à resistência levou os militares a proibi-la, usando como pretexto a "ofensa" à instituição contida nos versos "Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão / Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição / de morrer pela pátria e viver sem razão". A melodia da canção

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tem o ritmo de um hino, e sua letra possui versos de rima fácil (quase todos em ão), que facilitam memorizá-la, logo era cantada nas ruas. Com sua letra, Vandré fez uma síntese de sua geração, retratando a angustia da população perante o regime.

Retirado de: http://www.jorwiki.usp.br/gdnot10/index.php/Analisando_a_m%C3%BAsica_brasileira_do_per%C3%ADodo_da_ditadura_militar

E Vamos Á Luta

GonzaguinhaComposição : Gonzaguinha

Eu acreditoÉ na rapaziada

Que segue em frenteE segura o rojão

Eu ponho féÉ na fé da moçada

Que não foge da feraE enfrenta o leão

Eu vou à lutaÉ com essa juventudeQue não corre da raia

À troco de nadaEu vou no blocoDessa mocidade

Que não tá na saudadeE constrói

A manhã desejada...(2x)Aquele que sabe que é negro

O coro da genteE segura a batida da vida

O ano inteiroAquele que sabe o sufoco

De um jogo tão duroE apesar dos pesares

Ainda se orgulhaDe ser brasileiro

Aquele que sai da batalhaEntra no botequim

Pede uma cerva geladaE agita na mesaUma batucada

Aquele que manda o pagodeE sacode a poeira

Suada da lutaE faz a brincadeira

Pois o resto é besteiraE nós estamos pelaí...

AcreditoÉ na rapaziada

Gonzaguinha participava de festivais e já começava a despontar pelas suas letras sempre com forte teor social. Aliás, essa era uma marca em sua carreira. Suas letras eram provocativas e, em virtude do regime militar, estava sempre tendo que driblar a censura. Em 73 se apresentou no programa de Flávio Cavalcante e causou grande espanto pelo teor de suas música. Gonzaguinha era agressivo e irônico. Recebeu uma advertência da censura e muitas críticas, mas teve um lado positivo. Seu compacto que estava encalhado nas prateleiras foi rapidamente vendido. Começou aí a carreira de Gonzaguinha. Era um sucesso na Rádio Tamoio e logo veio a gravar seu primeiro long-play. Isto foi por volta dos anos 1983-1985, um

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momento de crescimento dos movimentos sociais no país, abertura política e a nossa conscientização juvenil político religiosa que a Música “E vamos à luta”, surgiu, como algo revolucionário. A música, gravada no disco “De volta ao começo”, em 1980, conclama e celebra a participação da juventude, como construtora da esperança.

Retirado de: http://radioboanova.com.br/clubeamigosdaboanova/censura-ditadura-militar/

Apesar De Você

Chico BuarqueComposição : Chico Buarque

Amanhã vai ser outro diaHoje você é quem manda

Falou, tá faladoNão tem discussão, nãoA minha gente hoje anda

Falando de lado e olhando pro chãoViu?

Você que inventou esse EstadoInventou de inventar

Toda escuridãoVocê que inventou o pecadoEsqueceu-se de inventar o

perdãoApesar de você

Amanhã há de ser outro diaEu pergunto a você onde vai se

esconderDa enorme euforia?

Como vai proibirQuando o galo insistir em

cantar?Água nova brotando

E a gente se amando sem pararQuando chegar o momento

Esse meu sofrimentoVou cobrar com juros. Juro!Todo esse amor reprimido

Esse grito contidoEsse samba no escuro

Você que inventou a tristezaOra tenha a finezaDe "desinventar"

Você vai pagar, e é dobradoCada lágrima rolada

Nesse meu penarApesar de você

Amanhã há de ser outro diaAinda pago pra verO jardim florescer

Qual você não queriaVocê vai se amargar

Vendo o dia raiarSem lhe pedir licençaE eu vou morrer de rir

E esse dia há de virAntes do que você pensa

Apesar de vocêApesar de você

Amanhã há de ser outro diaVocê vai ter que verA manhã renascerE esbanjar poesia

Como vai se explicarVendo o céu clarear, de

repenteImpunemente?

Como vai abafarNosso coro a cantar

Na sua frenteApesar de vocêApesar de você

Amanhã há de ser outro diaVocê vai se dar mal, etc e tal

La, laiá, la laiá, la laiá

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Nesta composição de 1970, o “você” é a ditadura militar, embora muitos acreditem que seja uma crítica direta ao ex-presidente Médici. Para conseguir burlar a censura, Chico Buarque insistiu que “você” era na verdade uma mulher de temperamento muito difícil, o que, não se pode negar, era uma característica do regime.

A canção reclama o fato de que por causa “dela” há silêncio, não há discussão (“Hoje você é quem manda/falou, tá falado/ não tem discussão”), mas seu tom é de que tudo aquilo é passageiro. Têm-se certeza que aquela situação é temporária e já há um tom de triunfo na fala do compositor:  “Apesar de você/ amanhã há de ser outro dia/ eu pergunto a você/ onde vai se esconder/ da enorme euforia” A música é uma contestação clara ao regime, e desafia-o diretamente. Desafia-se o regime moralmente(“Você que inventou a tristeza/ora, tenha a fineza/de desinventar”) e há um latente desejo de vingança:“Quando chegar o momento/ esse meu sofrimento/ vou cobrar com juros, juro/ todo esse amor reprimido”, “Você vai pagar é dobrado/ cada lágrima rolada/ nesse meu penar”.

O interessante desse desejo de vingança e desse anúncio de uma futura derrota é que foi conclamado após seis anos da instauração do regime,ou seja, ainda em seu início, e coincidindo com a época mais repressiva do mesmo, os chamados “anos de chumbo”. Sabendo disso, compreende-se o tom de voz revoltoso do enunciador. Depreende-se também que o eu falante da canção tem boa noção de história e compreende que por mais tenebrosa que seja uma fase, ela sempre será uma fase. O eu ainda anuncia que seu lado sairá como vencedor, e provoca os governantes que, no futuro, já não terão mais poder: “Como vai abafar/nosso coro a cantar/ na sua frente?”.

O enunciador fala ainda das relações interpessoais em um contexto autoritário. Ao dizer “Água nova brotando/ e a gente se amando/ sem parar”, o compositor refere-se à hipocrisia da sociedade da época e a falta de liberdade até mesmo nesses aspectos. Por fim, o autor se refere àqueles anos como “escuridão”, e resume sua opinião sobre eles em palavras como “tristeza” e “penar”.

Retirado de: http://www.jorwiki.usp.br/gdnot10/index.php/Analisando_a_m%C3%BAsica_brasileira_do_per%C3%ADodo_da_ditadura_militar

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Roda Viva

Chico BuarqueComposição : Chico Buarque

Tem dias que a gente se senteComo quem partiu ou morreuA gente estancou de repente

Ou foi o mundo então que cresceu...

A gente quer ter voz ativaNo nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda vivaE carrega o destino prá lá ...Roda mundo, roda gigante

Roda moinho, roda piãoO tempo rodou num instanteNas voltas do meu coração...A gente vai contra a corrente

Até não poder resistirNa volta do barco é que senteO quanto deixou de cumprir

Faz tempo que a gente cultivaA mais linda roseira que há

Mas eis que chega a roda vivaE carrega a roseira prá lá...Roda mundo, roda gigante

Roda moinho, roda piãoO tempo rodou num instanteNas voltas do meu coração...

A roda da saia mulataNão quer mais rodar não

senhorNão posso fazer serenataA roda de samba acabou...A gente toma a iniciativa

Viola na rua a cantarMas eis que chega a roda viva

E carrega a viola prá lá...Roda mundo, roda gigante

Roda moinho, roda piãoO tempo rodou num instanteNas voltas do meu coração...O samba, a viola, a roseira

Que um dia a fogueira queimouFoi tudo ilusão passageira

Que a brisa primeira levou...No peito a saudade cativaFaz força pro tempo parar

Mas eis que chega a roda vivaE carrega a saudade prá lá ...

Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pião

O tempo rodou num instanteNas voltas do meu coração...

(4x)

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A canção Roda-viva, de Chico Buarque faz parte da famosíssima peça de mesmo nome, escrita em 1967. Chico Buarque, que até então era "a única unanimidade brasileira", nas palavras de Millôr Fernandes, chocou parte de seu público com a radicalidade crítica e o tom francamente agressivo da peça. A letra Roda-viva tem um chão histórico específico, ou seja, os obscuros anos da ditadura. A composição de Chico se originou em meio ao turbilhão da instauração da ditadura militar no Brasil. Ditadura que representava, para a cultura, simplesmente o fim da liberdade de expressão. Um meio muito utilizado na época (e, de um modo geral, em períodos não democráticos, no Brasil e em outros países) para driblar a censura foi a metáfora, o despistamento, a linguagem figurada. O que é roda-viva? Roda-viva é, conforme os dicionários, movimento incessante, corrupio, cortado; é ainda confusão, barulho. O texto menciona ações frustradas pela roda-viva.  Na letra a roda-viva está associada à morte, ao contrário do que indica a palavra. A roda ceifa, arranca aquilo que ainda está em desenvolvimento: a gente estancou de repente. A gente parou (de crescer) de repente. Note-se como é expressivo o uso de estancar, que nos faz lembrar imediatamente de sangue. Somos abortados na capacidade de decidir o próprio destino, de adquirir autonomia como um rio é barrado, como um fluxo de sangue é estagnado. 

Essa espécie de vendaval arrebata a voz, o destino das pessoas e a capacidade de exprimir artisticamente seu sofrimento:arrebata-lhes ainda a viola . A roda-viva arrebata da gente a roseira há tanto cultivada e que não teve tempo de exibir tudo o que prometia.

A composição é cortada por dois movimentos: um expressa a ação empenhada, o trabalho sistemático, o desejo de ser o sujeito da própria história. A esse movimento pertence o querer ter voz ativa, o ir contra a corrente (da roda-viva), o cultivo ininterrupto da rosa, o tocar viola na rua e a saudade de tudo isso (na medida em que a saudade pode ajudar a reorganizar o pensamento e a luta). O outro movimento expressa a ação abortiva exercida pela roda-viva. Esse movimento vem expresso numa frase reiterada: "Mas eis que chega a roda-viva e carrega (o que quer que seja) pra lá". A conjunção "mas" sinaliza justamente essa mudança de direção, sinaliza ação adversa. A frase "eis que chega..." vem sempre ligada na letra a um tipo de estribilho, a uma fórmula aparentemente ingênua, que lembra as cantigas de roda: "roda mundo, roda gigante/ roda-moinho, roda pião/ o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração". Essa

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fórmula, inocente na aparência, dado seu teor caótico e quase surrealista (típico de enigmas, cantigas de ninar etc.) e a referência a brinquedos infantis (roda-gigante, pião), tem o efeito de exprimir um desnorteio, uma situação absurda, fora do esquadro. De fato, não é possível conceber a ditadura como algo natural.

Esses movimentos descritos na letra são, portanto, de trabalho em curso e de sucessiva frustração. Isso descreve muito a experiência brasileira, tanto do ponto de vista social e político como do ponto de vista cultural. Quando estávamos começando a engatinhar na democracia, é instalado o regime totalitário, para o qual não existem indivíduos.

Mas esse ambiente de tanto mal-estar foi filtrado por Chico Buarque com muita cautela: era preciso despistar a censura, daí a profusão de rodas e de versos encantatórios; era preciso dizer a verdade, daí o tumulto e a sensação de frustração advinda da mesma profusão de rodas, que diríamos serem antes de trator.

Retirado de http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/poesias/chicobuarquedehollanda_rodaviva.htm

Acorda Amor

Chico BuarqueComposição : Leonel Paiva/Julinho da Adelaide (Chico Buarque)

Acorda amorEu tive um pesadelo agora

Sonhei que tinha gente lá foraBatendo no portão, que afliçãoEra a dura, numa muito escura

viaturaMinha nossa santa criaturaChame, chame, chame lá

Chame, chame o ladrão, chame o ladrão

Acorda amorNão é mais pesadelo nada

Tem gente já no vão de escadaFazendo confusão, que aflição

São os homensE eu aqui parado de pijama

Eu não gosto de passar vexameChame, chame, chame

Chame o ladrão, chame o ladrão

Se eu demorar uns mesesConvém, às vezes, você sofrerMas depois de um ano eu não

vindoPonha a roupa de domingo

E pode me esquecerAcorda amor

Que o bicho é brabo e não sossega

Se você corre o bicho pegaSe fica não sei não

AtençãoNão demora

Dia desses chega a sua horaNão discuta à toa não reclame

Clame, chame lá, chame, chame

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Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão

(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão)

Após as canções “Cálice” e “Apesar de Você” terem sido censuradas pelo sistema repressivo, Chico Buarque achou que seria mais difícil conseguir aprovar alguma música sua pelos agentes da censura. Escreveu então “Acorda Amor” com o pseudônimo de Julinho de Adelaide para driblar a censura. Como ele esperava, a música passou. Julinho ainda escreveria mais 2 músicas antes de uma reportagem especial do Jornal do Brasil sobre censura, que denunciou o personagem de Chico. Após esta revelação, os censores passaram a exigir que as músicas enviadas para aprovação deveriam ser acompanhadas de documentos dos compositores.

Acorda Amor é um retrato fiel aos fatos ocorridos no período que teve seu ápice entre 1968 (logo após a decretação do AI-05) e 1976 quando, teoricamente, a tortura já não era mais praticada pelos militares. Diversas pessoas sumiram durante este período após terem sido arrancadas de suas casas a qualquer hora do dia ou da noite, e levadas para DOPS e DOI-CODI´s espalhados pelo Brasil. A falta de confiança era tão grande que as pessoas tinham mais medo dos policiais (que seqüestravam, torturavam, matavam e, muitas vezes sumiam com corpos) do que de ladrões. A ironia do compositor é tão grande que, quando os agentes da repressão chegam a casa chamam-se os ladrões para que sejam socorridos.

Retirado de: http://www.latinoamericano.jor.br/musica_brasil_mpb_ditadura.html

Cálice

Chico BuarqueComposição : Chico Buarque e Gilberto Gil

Pai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sanguePai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangueComo beber dessa bebida

amargaTragar a dor e engolir a labuta?

Mesmo calada a boca resta o peito

Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa?

Melhor seria ser filho da outraOutra realidade menos morta

Tanta mentira, tanta força bruta

Pai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

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Como é difícil acordar caladoSe na calada da noite eu me

danoQuero lançar um grito

desumanoQue é uma maneira de ser

escutadoEsse silêncio todo me atordoa

Atordoado eu permaneço atento

Na arquibancada, prá a qualquer momento

Ver emergir o monstro da lagoaPai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangueDe muito gorda a porca já não

anda (Cálice!)De muito usada a faca já não

cortaComo é difícil, Pai, abrir a

porta (Cálice!)Essa palavra presa na garganta

Esse pileque homérico no mundo

De que adianta ter boa vontade?

Mesmo calado o peito resta a cuca

Dos bêbados do centro da cidade

Pai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangueTalvez o mundo não seja

pequeno (Cale-se!)Nem seja a vida um fato

consumado (Cale-se!)Quero inventar o meu próprio

pecado (Cale-se!)Quero morrer do meu próprio

veneno (Pai! Cale-se!)Quero perder de vez tua

cabeça! (Cale-se!)Minha cabeça perder teu juízo.

(Cale-se!)Quero cheirar fumaça de óleo

diesel (Cale-se!)Me embriagar até que alguém

me esqueça (Cale-se!)

Esta canção de Chico Buarque é uma das mais lembradas quando se pensa em ditadura. Faz críticas à ditadura do começo ao fim, e seu próprio nome é um trocadilho com o “cale-se” imposto aos civis. É uma tática para burlar a censura. Assim, os versos iniciais “Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue” referem-se à própria censura da época (o cale-se, que traz consigo o sangue daqueles que sofreram na mão dos militares). Nota-se que esses mesmo versos são constituídos de vocábulos comumente usados em discursos religiosos, o que pode dar uma conotação religiosa à frase, como se somente Deus pudesse acabar com esse mal da sociedade (a ditadura). Somente Deus pode afastar o cálice de vinho tinto de sangue e o cale-se imposto pelos militares.

A música inteira reflete insatisfação com a situação de falta de liberdade, como nos versos “Mesmo calada a boca, resta o peito” (ninguém controla a esfera íntima de cada um. Mesmo que não falem, há insatisfação); “Melhor seria ser filho da outra/ outra realidade menos morta/ tanta mentira tanta força bruta”.

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Em “Como é difícil acordar calado/se na calada da noite eu me dano” , “Esse silêncio todo me atordoa/atordoado eu permaneço atento” o autor lembra as invasões noturnas do militares à casa de inimigos do regime para prendê-los sem qualquer chance de defesa, e retorna à insatisfação de viver em um país com tão pouca liberdade e transparência, onde o silêncio não demonstra aprovação e sim medo.

No verso “De muito gorda a porca já não anda”, Chico faz referência até mesmo ao fim do “milagre econômico”, onde se dizia a respeito dos recursos do Brasil que “primeiro o bolo tinha que crescer, para depois ser dividido”. Neste verso, a ‘porca’ seria este aspecto econômico da ditadura militar: Já entrou tanto dinheiro, mas ele não chegou para quem precisava. Pelo contrario, o Brasil fica estagnado ou regride.

“Cálice” foi censurada, como a maior parte da obra de Chico, e hoje é um símbolo da manifestação artística na época.

Retirado de: http://www.jorwiki.usp.br/gdnot10/index.php/Analisando_a_m%C3%BAsica_brasileira_do_per%C3%ADodo_da_ditadura_militar

Alegria, Alegria

Caetano VelosoComposição : Caetano Veloso

Caminhando contra o ventoSem lenço e sem documentoNo sol de quase dezembro

Eu vou...

O sol se reparte em crimesEspaçonaves, guerrilhasEm cardinales bonitas

Eu vou...

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Em caras de presidentesEm grandes beijos de amor

Em dentes, pernas, bandeirasBomba e Brigitte Bardot...O sol nas bancas de revista

Me enche de alegria e preguiçaQuem lê tanta notícia

Eu vou...Por entre fotos e nomesOs olhos cheios de cores

O peito cheio de amores vãosEu vou

Por que não, por que não...Ela pensa em casamento

E eu nunca mais fui à escola

Sem lenço e sem documento,Eu vou...

Eu tomo uma coca-colaEla pensa em casamento

E uma canção me consolaEu vou...

Por entre fotos e nomesSem livros e sem fuzil

Sem fome, sem telefoneNo coração do Brasil...

Ela nem sabe até penseiEm cantar na televisão

O sol é tão bonitoEu vou...

Sem lenço, sem documentoNada no bolso ou nas mãos

Eu quero seguir vivendo, amorEu vou...

Por que não, por que não...Por que não, por que não...

Desde o início da carreira, Caetano Veloso sempre demonstrou uma posição política ativa e esquerdista, ganhando por isso a inimizade do regime militar. Por esse motivo, suas canções foram freqüentemente censuradas neste período, e algumas até banidas. Em 27 de dezembro de 1968, Veloso e o parceiro Gilberto Gil foram presos, acusados de terem desrespeitado o hino nacional e a bandeira brasileira. Foram levados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio, e tiveram suas cabeças raspadas.

Ambos foram soltos em 19 de fevereiro de 1969, quarta-feira de cinzas, e seguiram para Salvador, onde tiveram de se manter em regime de confinamento, sem aparecer nem dar declarações em público. Em julho de 1969, partiram com suas mulheres, respectivamente as irmãs Dedé e Sandra Gadelha, para o exílio na Inglaterra.

Alegria, Alegria foi composta neste contexto. Por isso, mostra-se uma música carregada de ideologias e idéias que vão de encontro à cultura, ao regime e à ideologia vigentes.

Se, devido a o regime ditatorial, as pessoas devem andar na linha obedecendo e se submetendo a regras e metas previamente estipuladas, Caetano propõe uma caminhada “contra o vento”, ou seja, contra a ordem imposta das coisas. Além disso, “sem lenço e sem documentos” conota uma crítica à norma que proibia as pessoas de saírem às ruas sem portar documentos. Caetano Veloso, em seu livro Verdade Tropical, falou sobre o famoso e marcante verso “sem

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lenço e sem documento” correspondente à idéia do jovem desgarrado que, mais do que a canção queria criticar, homenagear ou simplesmente apresentar.

Alegria, Alegria não se caracteriza como uma canção de protesto igual a tantas outras compostas nessa época, como Apesar de Você, de Chico Buarque. Ao contrário, a música de Caetano questionava as idéias e as tensões daquelas que lutavam contra a Ditadura: enquanto o sol repartia-se “em crimes, espaçonaves e guerrilhas”, ele seguia, “sem lenço e sem documento”, “andando contra o vento”. Mesmo alguns elementos da música reforçam essa idéia; pode-se perceber que a música é formada por um compasso binário, por um andamento acelerado e por acordes dissonantes e maiores, encerrados por um consonante, – o que garante um ambiente alegre, ágil e dinâmico à música.

Retirado de: http://tropicaliaepoesia.arteblog.com.br/228548/Analise-da-musica-Alegria-Alegria-de-Caetano-Veloso/

Debaixo Dos Caracóis Dos Seus Cabelos

Roberto CarlosComposição : Roberto Carlos

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Um dia a areia brancaSeus pés irão tocar

E vai molhar seus cabelosA água azul do mar

Janelas e portas vão se abrirPra ver você chegar

E ao se sentir em casaSorrindo vai chorar

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos

Uma história pra contar de um mundo tão distante

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos

Um soluço e a vontade de ficar mais um instante

As luzes e o coloridoQue você vê agora

Nas ruas por onde andaNa casa onde mora

Você olha tudo e nadaLhe faz ficar contenteVocê só deseja agoraVoltar pra sua gente

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos

Uma história pra contar de um mundo tão distante

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos

Um soluço e a vontade de ficar mais um instante

Você anda pela tardeE o seu olhar tristonhoDeixa sangrar no peito

Uma saudade, um sonhoUm dia vou ver você

Chegando num sorrisoPisando a areia branca

Que é seu paraísoDebaixo dos caracóis dos seus

cabelosUma história pra contar de um

mundo tão distanteDebaixo dos caracóis dos seus

cabelosUm soluço e a vontade de ficar

mais um instante

Sim! A composição desta música é de Roberto Carlos. E não, ela não foi dedicada a nenhuma mulher. O “rei” Roberto compôs esta música para o amigo Caetano Veloso que estava exilado em Londres. Sabia das saudades que o amigo sentia de seu país e a dor e vazio por não poder voltar. Compôs então a música que, mais tarde se tornaria sucesso na voz do próprio Caetano.

Caetano já havia composto para Roberto algumas músicas que se tornaram clássicos. Com o amigo em desgraça, resolveu fazer algo para homenageá-lo. Roberto nunca teve problemas com a censura, muito menos com a repressão militar. Então, como fazer um texto que fosse ao mesmo tempo engajado politicamente, e romântico, como sempre foram suas letras? sAaída encontrada foi em nenhum momento citar o nome do Caetano, mas enfatizar sua marca registrada naquela época: seus enormes cabelos encaracolados. O clima romântico da melodia nos faz imaginar que é a saudade de uma pessoa apaixonada pela ausência da outra, e não o protesto de um amigo solidário. E na estrutura da letra o Roberto procurou colocar justamente aquilo que o Caetano possivelmente mais sentia saudade na fria Londres: o mar da Bahia, o que só ajudou para fixar a marca dos famosos caracóis de Caetano. No entanto, a música torce por

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uma volta ao Brasil como um todo, então estes versos podem também se universalizar e representar qualquer praia de nosso litoral. O trecho também diz que a volta de Caetano será festejada (“Janelas e portas vão se abrir pra ver você chegar”). Diz também que a saudade de casa é tão grande que ao retornar, irá chorar de felicidade.

Os versos “As luzes e o colorido/ que você vê agora/ nas ruas por onde anda/ na casa onde mora/ você olha tudo, e nada/ lhe faz ficar contente/ você só deseja agora/ voltar pra sua gente” reiteram a idéia da solidão e da saudade da pátria, dizendo que mesmo que ele esteja em um lugar diferente, colorido, melhor (com menos pobreza), isso não o faz feliz. O compositor e o homenageado estão tristes por este último não estar no lugar em que nasceu, lugar ao qual pertence. O maior desejo de Caetano é reencontrar-se com aquilo que deixou para trás.

Nesta época muitos brasileiros viviam no exílio, ou seja, tiveram que fugir do Brasil por conta da forte repressão sofrida pelos órgãos de repressão da ditadura militar. Assim, embora a música tenha sido destinada a uma pessoa específica, na verdade traduzia muitos corações brasileiros, já que a situação de exílio era comum durante a ditadura militar.

Retirado de: http://www.jorwiki.usp.br/gdnot10/index.php/Analisando_a_m%C3%BAsica_brasileira_do_per%C3%ADodo_da_ditadura_militar

E http://www.latinoamericano.jor.br/musica_brasil_mpb_ditadura.html

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Como Nossos Pais

Elis ReginaComposição : Belchior

Não quero lhe falar,Meu grande amor,

Das coisas que aprendiNos discos...

Quero lhe contar como eu viviE tudo o que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonharEu sei que o amorÉ uma coisa boaMas também sei

Que qualquer cantoÉ menor do que a vidaDe qualquer pessoa...

Por isso cuidado meu bemHá perigo na esquina

Eles venceram e o sinalEstá fechado prá nósQue somos jovens...

Para abraçar seu irmãoE beijar sua menina na ruaÉ que se fez o seu braço,O seu lábio e a sua voz...

Você me perguntaPela minha paixão

Digo que estou encantadaComo uma nova invençãoEu vou ficar nesta cidadeNão vou voltar pro sertão

Pois vejo vir vindo no ventoCheiro de nova estação

Eu sei de tudo na ferida vivaDo meu coração...

Já faz tempoEu vi você na ruaCabelo ao vento

Gente jovem reunidaNa parede da memória

Essa lembrançaÉ o quadro que dói mais...

Minha dor é perceberQue apesar de termos

Feito tudo o que fizemosAinda somos os mesmos

E vivemosAinda somos os mesmos

E vivemosComo os nossos pais...

Nossos ídolosAinda são os mesmos

E as aparênciasNão enganam não

Você diz que depois delesNão apareceu mais ninguém

Você pode até dizerQue eu tô por fora

Ou entãoQue eu tô inventando...

Mas é vocêQue ama o passado

E que não vêÉ você

Que ama o passadoE que não vê

Que o novo sempre vem...Hoje eu sei

Que quem me deu a idéiaDe uma nova consciência

E juventudeTá em casa

Guardado por DeusContando vil metal...Minha dor é perceberQue apesar de termos

Feito tudo, tudo,Tudo o que fizemosNós ainda somos

Os mesmos e vivemosAinda somos

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Os mesmos e vivemosAinda somos

Os mesmos e vivemosComo os nossos pais...

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Música escrita por Belchior e imortalizada na voz de Elis Regina,lançada no LP Falso Brilhante, de 1975. O Brasil vivia a era do conservadorismo e da intolerância à liberdade de expressão por parte do governo militar. A musica trata disso, e pede um novo contexto de vida... um novo mundo,com novos pensamentos e ideologias.A vanguarda vai sendo deixada de lado ao ser dito que as experiências de frases feitas de discos não valem de nada; o que conta mesmo são as experiências vividas,...quando a musica diz:"qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa” ela mostra uma referência (ou não) à censura, que fez o sinal estar fechado para os jovens pela falta de liberdade de expressão, fazendo com que a juventude da época caísse no comodismo forçado pelos militares.

A letra aparentemente é um romance, mas tem um fundo político enorme: ” Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos Nós ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais” – neste trecho Belchior critica o fato de apesar de tanta luta pra tornar o Brasil um país a frente de seu tempo, nós estagnamos e nos tornamos tão conservadores quanto a geração que nos antecedeu.Com toda certeza o eu lírico desta música é alguém cheio de lembranças boas mais muito dolorosas de um tempo em que muito se lutou por mudanças, mas que no fim pouco conseguiu alcançar. Belchior conseguiu falar do brasileiro como um todo, o brasileiro sofrido, esperançoso, enganado, cansado, romântico, sertanejo…

Também é perceptível a decepção de ver os movimentos sociais e da juventude caírem por terra como caíram, tendo forte referência, por exemplo, ao Maio Francês. Inclusive “Hoje eu sei que quem me deu a idéia de uma nova consciência e juventude. Tá em casa guardado por Deus contando vil metal” refere-se possivelmente ao Sartre, filósofo francês, cujos atos negaram sua filosofia.

Na opinião do professor Eliude A. Santos sobre a canção coloca uma análise ainda mais clara sobre a importância de sua letra. Segundo o professor, “Como os nossos pais é um hino à juventude que amadurece percebendo que o mundo é uma constante, porque é feito de homens que se acomodam e de outros que lutam por mudança”.

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O Bêbado e A Equilibrista

Elis ReginaComposição : João Bosco e Aldir Blanc

Caía a tarde feito um viadutoE um bêbado trajando luto

Me lembrou Carlitos...A lua

Tal qual a dona do bordelPedia a cada estrela fria

Um brilho de aluguelE nuvens!

Lá no mata-borrão do céuChupavam manchas torturadas

Que sufoco!Louco!

O bêbado com chapéu-cocoFazia irreverências mil

Prá noite do Brasil.Meu Brasil!...

Que sonha com a voltaDo irmão do Henfil.

Com tanta gente que partiuNum rabo de foguete

Chora!A nossa Pátria

Mãe gentilChoram Marias

E ClarissesNo solo do Brasil...

Mas sei, que uma dorAssim pungente

Não há de ser inutilmenteA esperança...

Dança na corda bambaDe sombrinha

E em cada passoDessa linha

Pode se machucar...Azar!

A esperança equilibristaSabe que o showDe todo artista

Tem que continuar...

Composta em 1979, tornou-se um símbolo da luta pela anistia. Pela volta dos exilados e pela abertura política do regime militar. Carlitos, personagem mais famoso de Charles Chaplin, representa a população oprimida, mas que ainda consegue manter o bom humor, denunciava as injustiças sociais de forma inteligente e engraçada. A Equilibrista dançando na corda bamba, de sombrinha, é a esperança de todo um povo.Henrique de Sousa Filho, conhecido como Henfil, foi um cartunista, quadrinista, jornalista e escritor brasileiro. Seu irmão, Herbert José de Sousa, conhecido como Betinho, foi um sociólogo e ativista dos direitos humanos brasileiro; concebeu e dedicou-se ao projeto Ação da Cidadania contra a Miséria e Pela Vida. Com o golpe militar, em 1964, mobilizou-se contra a ditadura, sem nunca esquecer as causas sociais. Mas, com o aumento da repressão, foi obrigado a se exilar no Chile em 1971.

Maria era mãe de Betinho (irmão de Henfil) e Clarice mulher do

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jornalista assassinado na ditadura Vladimir Herzog. Mas Marias e Clarisses, no plural, fazem referência às mães, talvez irmãs ou mulheres de pessoas que se foram, ou mesmo deixaram o nosso país, lutando por um ideal, um sonho, de ver o Brasil livre para a informação e para a expressão das artes.

Retirado: http://www.latinoamericano.jor.br/musica_brasil_mpb_ditadura.html

Nada Será Como Antes

Elis ReginaComposição : Milton Nascimento/Ronaldo Bastos

Eu já estou com o pé nessa estradaQualquer dia a gente se vê

Sei que nada será como antes amanhãQue notícias me dão dos amigos?

Que notícias me dão de você?Sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhã

Resistindo na boca da noite um gosto de solNum domingo qualquer, qualquer hora

Ventania em qualquer direçãoSei que nada será como antes, amanhã

Que notícias me dão dos amigos?Que notícias me dão de você?

Sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhãResistindo na boca da noite um gosto de sol

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Cartomante

Elis ReginaComposição : Ivan Lins / Victor Martins

Nos dias de hoje é bom que se protejaOfereça a face pra quem quer que seja

Nos dias de hoje esteja tranqüiloHaja o que houver pense nos seus filhosNão ande nos bares, esqueça os amigosNão pare nas praças, não corra perigoNão fale do medo que temos da vidaNão ponha o dedo na nossa ferida

Nos dias de hoje não lhes dê motivoPorque na verdade eu te quero vivoTenha paciência, Deus está contigo

Deus está conosco até o pescoçoJá está escrito, já está previsto

Por todas as videntes, pelas cartomantesTá tudo nas cartas, em todas as estrelas

No jogo dos búzios e nas profeciasCai o rei de EspadasCai o rei de OurosCai o rei de Paus

Cai não fica nada.(6x)

Conforme o próprio Ivan Lins, essa música chamava Está Tudo nas Cartas: “Uma jornalista da revista Veja usou uma declaração do meu parceiro, Vitor Martins, que ele deu em off, e ela publicou. Nessa declaração o Vitor não falava boas coisas sobre o chefe da Censura Federal, mas isso não fazia parte da entrevista. Essa jornalista traiu o Vitor. Ela fez isso com a intenção de prejudicá-lo e fazer sensacionalismo. Eu nem quero falar o nome dela, mas é uma pessoa bastante conhecida aqui em São Paulo. Depois dessa entrevista do Vitor, Está Tudo nas Cartas entrou na lista de “vetada definitivamente” pela censura. Só que a gravação já estava pronta na voz da Elis Regina. Alguém da gravadora Phillips foi à Brasília e conseguiu liberar a música, mas com uma condição: era preciso mexer no título. Mudamos pra Cartomante. A Rosalyn Carter, esposa do presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, recebeu cartas da presidente do comitê feminino dos Direitos Humanos falando sobre os direitos humanos no Brasil. O nome da música Está Tudo nas Cartas ficou parecendo que a gente estava insinuando alguma coisa sobre essas cartas que foram entregues pra Rosalyn. Na época, isso deu

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uma confusão danada. Misteriosamente, liberaram a música com a condição de alterarmos o título.”.

Retirado: http://www.latinoamericano.jor.br/musica_brasil_mpb_ditadura.html

Apenas um Rapaz Latino-Americano

Belchior Composição: Belchior

Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bancoSem parentes importantes e vindo do interiorMas trago, de cabeça, uma canção do rádio

Em que um antigo compositor baiano me diziaTudo é divino, tudo é maravilhoso

Tenho ouvido muitos discos, conversado com pessoas,caminhado meu caminho

Papo, som dentro da noite e não tenho um amigo sequerE não acredite nisso, não, tudo muda e com toda razão

Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bancoSem parentes importantes e vindo do interior

Mas sei que tudo é proibido aliás, eu queria dizerQue tudo é permitido até beijar você no escuro do cinema

Quando ninguém nos vê Não me peça que lhe faça uma canção como se deve

Correta, branca, suave, muito limpa, muito leveSons, palavras, são navalhas e eu não posso cantar como convém

Sem querer ferir ninguémMas não se preocupe meu amigo com os horrores que eu lhe digoIsso é somente uma canção, a vida, a vida realmente é diferente

Quer dizer, a vida é muito piorEu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no bancoPor favor não saque a arma no "saloon" eu sou apenas um cantor

Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirarMate-me logo, à tarde, às três, que à noite tenho um compromisso

E não posso faltar por causa de você Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco

Sem parentes importantes e vindo do interiorMas sei que nada é divino, nada, nada é maravilhosoNada, nada é sagrado, nada, nada é misterioso, não

Escrita em 1976, a canção de Belchior caracteriza o Brasil da época de forma irônica. “Apenas um rapaz latino americano” é um

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protesto contra a repressão que censurava os artistas e, principalmente músicos da época. Versos como “Por favor não saque a arma no "saloon" eu sou apenas um cantor / Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar / Mate-me logo, à tarde, às três, que à noite tenho um compromisso / E não posso faltar por causa de você” seriam quase como uma pergunta: O que vocês tanto têm a temer que não podem nem deixar que nós, que somos somente músicos, digamos e cantemos o que pensamos??

Retirado: http://www.latinoamericano.jor.br/musica_brasil_mpb_ditadura.html

Divórcio

Luiz AyrãoCompositor: Luiz Ayrão

Treze anos eu te aturoEu não agüento maisNão há "cristo" que suporteEu não suporto maisTreze anos me seguroE agora não dá maisSe treze é minha sorteVai, me deixa em paz

Você vem me infernizandoComo satanásVocê vem me enclausurandoComo alcatrazVocê vem me sufocandoComo o próprio gásAinda vive me gozandoAssim já é demais

Você vem me tapeandoComo um pente-finoE vem me conversandoComo ao bom meninoE vem subjugandoO meu destinoE vem me instigandoA um desatino

Um dia eu perco a timidezE falo sérioE faço as minhas leisCom o meu critérioE vou para o xadrezO cemitérioMas findo de uma vezCom seu império.

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Esta composição de Luiz Ayrão, de 1977, conseguiu burlar a censura da época pois aparentemente não trata de nenhum tema que incomodava aos militares, mas o Divórcio a que ele se refere é com a ditadura. Assim, a música inteira é uma grande metáfora, onde o sujeito quer terminar seu relacionamento com o próprio regime. Assim como as outras músicas deste grupo temático, há crítica à falta de liberdade individual e coletiva naqueles tempos, e esse é o motivo do falso divórcio.”Treze anos eu te aturo/ eu não agüento mais” são os versos que iniciam a canção, fazendo referência clara aos 13 anos de ditadura no país. A música ainda fala das medidas tomadas pelo governo para “tapar” os olhos da população e desviar a atenção da situação política, em “Ainda vive me gozando/ assim já é demais”.

“Você vem me tapeando/ Como um pente-fino/ E vem me conversando/ Como ao bom menino/ E vem subjugando/ O meu destino/ E vem me instigando/ A um desatino” é uma estrofe que insiste no assunto da alienação e desvio de atenção da população, mas considera que além dos militares desrespeitarem seus cidadãos, os subestimam. E esta situação está tão caótica que a reação parece ser inevitável e deve pegar a ditadura de surpresa. O pente-fino do trecho faz referência à peneira que o governo fazia em sua própria população.

Na última estrofe, o autor fala em um tom impaciente, e percebe-se que ele assim está com a situação. Ele ameaça rebelar-se contra o governo, já que vê nisso a única saída para conseguir o que quer, e não se importa com o que pode acontecer consigo mesmo, sendo a perfeita representação da juventude da época: Uma juventude que enxergava além daquele tempo.

Retirado: http://www.jorwiki.usp.br/gdnot10/index.php/Analisando_a_m%C3%BAsica_brasileira_do_per%C3%ADodo_da_ditadura_militar

Fé Cega, Faca Amolada

Doces BárbarosComposição: Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

Agora não pergunto mais pra onde vai a estradaAgora não espero mais aquela madrugada

Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amoladaO brilho cego de paixão e fé, faca amolada

Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranqüiloDeixar o seu amor crescer e ser muito tranqüiloBrilhar, brilhar, acontecer, brilhar faca amolada

Irmão, irmã, irmã, irmão de fé faca amoladaPlantar o trigo e refazer o pão de cada diaBeber o vinho e renascer na luz de todo dia

A fé, a fé, paixão e fé, a fé, faca amoladaO chão, o chão, o sal da terra, o chão, faca amolada

Deixar a sua luz brilhar no pão de todo diaDeixar o seu amor crescer na luz de cada dia

Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai se muito tranqüilo

“Fé Cega, Faca Amolada” é uma espécie de continuação de “Nada Será como Antes”, ou seja, uma canção de oposição ao regime militar brasileiro, escrita em

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linguagem bem mais agressiva, ao mesmo tempo em que mostra um entrosamento maior da parceria Milton Nascimento-Ronaldo Bastos: “Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada / agora não espero mais aquela madrugada / vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada / o brilho cego de paixão e fé, faca amolada...”

O título tem origem no super-grupo pop inglês Blind Faith, O único disco do Blind Faith era um dos favoritos de brasileiros, como Ronaldo Bastos e Gilberto Gil, que viviam em Londres na época. “Fé cega” é pois “blind faith”, tendo o adjetivo “amolada” o duplo sentido de “afiada” e “contrariada”.

A canção joga com as palavras e conclui o quão perigosa pode ser uma fé cega, mais perigosa e cortante até do que a faca. A música também passa uma idéia de despreocupação involuntária, de que o sujeito chegou a um determinado limite e agora já não importa mais a direção que ele está tomando.

A seqüência melódica relativamente simples e repetida de forma insistente em “Fé Cega, Faca Amolada” não seria suficiente para alcançar o brilhante resultado mostrado no disco. Para a obtenção deste resultado devem também ser creditadas as notas picadas do sax-soprano de Nivaldo Ornelas, criando um clima nervoso em perfeita consonância com o objetivo da canção, o interlúdio musical decididamente pop, a voz convicta de Milton, usando com perfeição o falsete, e a voz aguda de Beto Guedes, que soa às vezes como um eco ao canto de Milton.

Retirado de: http://cifrantiga3.blogspot.com/2006/06/f-cega-faca-amolada.html

Primavera Nos Dentes

Secos & MolhadosComposição : João Ricardo/João Apolinário

Quem tem consciência pra se ter coragemQuem tem a força de saber que existeE no centro da própria engrenagemInventa a contra mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotadoQuem já perdido nunca desespera

E envolto em tempestade decepadoEntre os dentes segura a primavera

"Primavera nos Dentes" é uma das canções do grupo Secos & Molhados, lançada no homônimo album de estréia. É uma poesia escrita pelo pai de João Ricardo, João Apolinário, e musicada por ele. É composta por uma longa introdução instrumental em Blues, composta por baixo, bateria, guitarra e teclado. O tempo e a introdução são levementes inspirados em "Breathe", faixa de Dark Side of the Moon do Pink Floyd. O vocal da canção, com as vozes de Ney Matogrosso, Gérson Conrad e João Ricardo desaguam em um grito, após versos poéticos e calmos.

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A ruptura com os valores estabelecidos, dando continuidade à mudança de comportamento iniciada pelos tropicalistas, o desejo de liberdade por um mundo justo e igualitário são apresentados por metáforas que compõem o Elemental, como o grito que estava sufocado na garganta, às vezes a esperança, às vezes o desespero.

O poeta João Apolinário lutou contra o fascismo em seus anos úteis e o poema serviu como base contra a Ditadura Militar no Brasil. A letra da canção sugere uma guerra contra o sistema, assim como outras canções do grupo. É considerada uma canção atual, mesmo depois de 37 anos do lançamento, portanto, também é a favor da liberdade do indivíduo em suas repressões, como diz no verso "inventa a contra-mola que resiste".

Retirado de: http://pt.wikipedia.org/wiki/Primavera_nos_Dentes

Metrô Linha 743

Raul SeixasComposição : Raul Seixas

Ele ia andando pela rua meio apressadoEle sabia que tava sendo vigiado

Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado

Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!Disse: O prato mais caro do melhor banquete é

O que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam

Porque quem pensa, pensa melhor parado.Desculpe minha pressa, fingindo atrasado

Trabalho em cartório mas sou escritor,Perdi minha pena nem sei qual foi o mês

Metrô linha 743O homem apressado me deixou e saiu voandoAí eu me encostei num poste e fiquei fumando

Três outros chegaram com pistolas na mão,Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos

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Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?Se é documento eu tenho aqui...

Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aíEu quero é saber o que você estava pensando

Eu avalio o preço me baseando no nível mentalQue você anda por aí usando

E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custandoMinha cabeça caída, solta no chão

Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vezMetrô linha 743

Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinhaE eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagreteMeu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiete

Fui posto à mesa com mais doisE eram três pratos raros, e foi o maitre que pôs

Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhadoMeu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado:

Quem será este desgraçado dono desta zorra toda?Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais

Mas o negócio aqui tá muito bandeiraDá bandeira demais meu Deus

Cuidado brother, cuidado sábio senhorÉ um conselho sério pra vocês

Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mêsAh! Metrô linha 743

Lançado em 1984, o disco Metrô linha 743, e sua faixa homônima, em uma narrativa agradável, resume bastante bem todo o período militar no que se refere, principalmente, à censura e à repressão. Começa já em ambiente hostil e típico de filme policial: Ele ia andando pela rua meio apressado/ Ele sabia que tava sendo vigiado; a pressa é característica de quem não pode perder tempo, neste caso, de alguém que sabe que não durará muito pelas ruas, pois é perseguido (ou acredita ser, tamanha a dureza das histórias que repercutem durante períodos de autoritarismo, o que causa verdadeiras paranóias), como tantos outros foram e muitos jamais foram vistos novamente. A situação é tão crítica (ou parece ser) que quando outra pessoa se aproxima o pavor aumenta, e ele é tão forte que impede a normal convivência entre as pessoas: Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?/ Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá pro outro lado/ Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!;

No jogo da censura e do combate aos insatisfeitos, os agentes militares são metaforizados em canibais que têm por objetivo aniquilar, nulificar aqueles que podem trazer problemas, não têm o nobre desejo de adquirir as forças, as características dos oponentes.

 

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Mais adiante, um dos personagens revela sua verdadeira, e perigosa, profissão: escritor. E as coisas iriam piorar. O que se vê a seguir é uma cena bastante comum nas ruas à época da ditadura, na qual o desrespeito impera e não há explicação nenhuma para as atitudes tomadas, o simples fato de estar inerte em via pública já era sinal de afronta ou de desacato, assim que constatado o ato ilícito de pensar, se fosse contra a corrente.

Como tantos outros que jamais foram encontrados, este tem seu corpo lançado fora como se fosse lixo, como se não merecesse consideração (Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha/ E eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete). Os apreciadores de tal iguaria são pessoas distintas, aparentemente de destaque social (militares de alta patente talvez). Vendo-se sem saída, encurralado, rende-se, mas não sem antes deixar claro que tal situação não o agrada e uma indagação que muitos certamente faziam:

 É possível ver um autor preocupado com as atitudes arbitrárias dos

governantes e ainda mais preocupado com a passividade de muitos cidadãos, Seixas mostra-se sabedor dos perigos que corriam aqueles que, como ele, falavam o que pensavam e mesmo com vigilância cerrada não se calou e tampouco perdeu o humor, a ironia ácida de que usava para satirizar situações absurdas típicas de anos de autoritarismo. Na conjuntura de repressão dos anos 70, a música popular desses poetas portadores do recado compreendeu talvez mais do que nunca a especificidade da sua força, e quiçá Seixas tenha sido daqueles que não apenas compreendeu seu papel como fez o que pode para executá-lo.

Retirado de: http://www.dacex.ct.utfpr.edu.br/8dilson.htm

Sapato 36

Composição: Raul Seixas

Eu calço é 37Meu pai me dá 36

Dói, mas no dia seguinteAperto meu pé outra vez

Eu aperto meu pé outra vezPai eu já tô crescidinho

Pague prá ver, que eu apostoVou escolher meu sapato

E andar do jeito que eu gostoE andar do jeito que eu gosto

Por que cargas d'águasVocê acha que tem o direitoDe afogar tudo aquilo que eu

Sinto em meu peitoVocê só vai ter o respeito que quer

Na realidade

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No dia em que você souber respeitarA minha vontade

Meu paiMeu pai

Pai já tô indo-me emboraQuero partir sem brigar

Pois eu já escolhi meu sapatoQue não vai mais me apertarQue não vai mais me apertarQue não vai mais me apertar

Por que cargas d'águasVocê acha que tem o direito

De afogar tudo aquilo que euSinto em meu peito

Você só vai ter o respeito que querNa realidade

No dia em que você souber respeitarA minha vontade

Meu paiMeu pai

Pai já tô indo-me emboraEu quero partir sem brigar

Já escolhi meu sapatoQue não vai mais me apertar (Êêêê)

Muito embora se possa dizer que Sapato 36 trata de questões familiares, o que é perfeitamente aceitável, uma vez que a auto-afirmação de um filho muitas vezes gera conflitos por haver falta de compreensão entre as partes ou, e principalmente, por não haver respeito; é inevitável pensá-la como crítica à ditadura. Logo no início quando lemos: Eu calço é 37/ Meu pai me dá 36, já se observa a falta de liberdade de escolher o que bem entender, aqui metaforizada no sapato (há uma pedra em meu sapato, diz a expressão popular) que causa desconforto e impede que se vá mais longe, que se progrida. Na seqüência:  Pai eu já tô crescidinho/ Pague prá ver, que eu aposto/ Vou escolher meu sapato/ E andar do jeito que eu gosto/ E andar do jeito que eu gosto; é o pedido de confiança que, após nove anos de AI-5 e treze de regime militar, já é o momento de poder-se caminhar sem que algo incomode, sem chateações, sem perseguições. Nos versos posteriores vem a indignação com a falta de consideração que a população sofre por parte dos governantes: Por que cargas d'águas/ Você acha que tem o direito/ De afogar tudo aquilo que eu/ Sinto em meu peito; tão forte é o descaso ) que atingi até os sentimentos, os sonhos, os desejos, tudo sufocado e reprimido em prol do bem do Estado que sempre exigiu consideração e, como não a tinha de todos, partiu para a violência, a canção mostra o caminho tão simples e eficaz para que qualquer conflito seja extinto: Você só vai ter o respeito que quer/ Na realidade/ No dia em que você souber respeitar/A minha vontade. O fim desta pendenga se dá, como era de se esperar, com a resignação da parte mais fraca que, no entanto, mostra-se mais racional e prudente (ou sensata), mas a conformação não se processa totalmente, pois mesmo sem ter a concordância da outra parte, sai em busca de algo que atendesse  melhor suas necessidades, é um clamor de liberdade: Pai já tô indo-me embora/ Quero partir sem brigar/ Pois eu já escolhi meu sapato/ Que não vai mais me apertar.

Retirado de: http://www.dacex.ct.utfpr.edu.br/8dilson.htm

Veraneio Vascaína

Aborto ElétricoComposição : Flávio Lemos/Renato Russo

Cuidado, pessoal, lá vem vindo a veraneioToda pintada de preto, branco, cinza e vermelho

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Com números do lado, dentro dois ou três taradosAssassinos armados, uniformizados

Veraneio vascaína vem dobrando a esquinaPorque pobre quando nasce com instinto assassinoSabe o que vai ser quando crescer desde menino

Ladrão pra roubar, marginal pra matarPapai eu quero ser policial quando eu crescer

Cuidado, pessoal, lá vem vindo a veraneioToda pintada de preto, branco, cinza e vermelho

Com números do lado, dentro dois ou três taradosAssassinos armados, uniformizados

Veraneio vascaína vem dobrando a esquinaSe eles vêm com fogo em cima, é melhor sair da frente

Tanto faz, ninguém se importa se você é inocenteCom uma arma na mão eu boto fogo no país

E não vai ter problema eu sei estou do lado da leiCuidado, pessoal, lá vem vindo a veraneio

Toda pintada de preto, branco, cinza e vermelhoCom números do lado, dentro dois ou três tarados

Assassinos armados, uniformizadosVeraneio vascaína vem dobrando a esquinaVeraneio vascaína vem dobrando a esquinaVeraneio vascaína vem dobrando a esquina

Veraneio Vascaína, em seu título, já nos remete ao velho modelo da Chevrolet Veraneio, usada como viatura militar, e apelidada de Veraneio Vascaína, por ter na pintura as cores preta, branca, cinza e vermelho, por coincidência, cores do time fluminense Vasco da Gama.     Vivia-se a época da repressão, da falta de liberdade de expressão, da opressão, enfim, da ditadura militar. Como todos devem saber, não se era fácil viver naqueles tempos. O governo, formado por militares, era inimigo do povo e, conseqüentemente, a polícia também. A primeira estrofe da canção poderia ser decodificada da seguinte maneira:     "Cuidado, pessoal! Lá vem vindo a viatura da polícia, aquele carro preto, branco, cinza e vermelho, aquele com os números do lado, que tem dentro alguns tarados, os assassinos armados e uniformizados, que são os nossos policiais.".     E a dura crítica não para por aí. Na terceira estrofe a crítica continua, sempre de forma mais forte e pesada que a anterior. Fala-se: Porque pobre quando nasce com instinto assassino, sabe o que vai ser quando crescer, desde menino: ladrão pra roubar, marginal pra matar.     Ou seja, fala-se que o pobre, quando nasce com a ânsia de matar e fazer o mal, transforma-se em policial, já que esse pode matar-te, roubar-te, bater-te, humilhar-te, estuprar-te... Tudo isso sem preocupar-se se você é inocente ou não, afinal, fazem eles o que querem. São eles senhores da lei, "homens do bem", são eles policiais e tudo podem (é o que diz a sétima e a oitava estrofe).     O importante, nesta música, é saber que ela retrata um período passado, o regime militar, e que não fala dos dias atuais. Muitos confundem o significado da letra deVeraneio Vascaína e o relacionam com os dias atuais. No entanto, apesar de ainda existir abuso de poder por parte da nossa polícia, não se pode relacionar a polícia na época da ditadura e a polícia dos dias atuais. Retirado: http://interpretacaopessoal.blogspot.com/2011/03/capital-do-inicio-ao-fim-veraneio.html