100 lendas do folclore brasileiro - a.s franchini.pdf
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NOTA
Otermo“lendas”utilizadonotítulodestaobraaplica-seemsentidoamplo,umavezqueolivroécompostoporlendas,contospopulareseperfisdepersonagens.Todosostextossãorecriaçõespessoaisdashistóriasqueatradiçãoconsagrou,comosacréscimosmínimoseinevitáveisdetoda“recontagem”,masque,emmomentoalgum,descaracterizamahistóriaoriginal.
Olivroestádivididoemtrêsseções:nasduasprimeirastemoslendasindígenasecontospopulares,enquantonaterceiraestãoesboçadososperfisdealgumasdasmaisimportantescriaturasmonstruosasouentidadessobrenaturaisdofolclorebrasileiro.
Nossofolclorepodeserdefinidocomoumaimensaobraaberta,enriquecidapelacontribuiçãodasmaisdiversasetnias.Quasenãohácontopopularcorrenteentrenós,porexemplo,quenãosejaumaadaptaçãodecontosdefadaseuropeusoudelendasafricanas.Como,porém,alémdeserembelaseengraçadas,essashistóriasestãodefinitivamenteincorporadasaoarsenaldanossaliteraturaoral,seriaumatolicepretenderexcluí-laspelosimplesfatodeseremimportadas.
Aquiloquepossuímosdemaisautênticoemnossofolclore,contudo,sãoasnossaslendasindígenas.Poressarazão,dediquei-lhesumaseçãoespecial,mesmoqueelassejampraticamentedesconhecidasdonossopovo.Estoucertodequealeituradestashistóriasdivertidaseoriginaisdaráaoleitorumanovaesurpreendentevisãodaextraordináriaculturadenossosverdadeirosancestrais.
Eassim,noconjunto,esperoterreunidoumbomapanhadodetudoquantoonossopovofoicapazdecriaretambémdeassimilardogranderepertóriouniversaldanarrativaoralepopular.
Umaboaleitura.
PARTEI
LENDASINDÍGENAS
OSFILHOSDOTROVÃO
(SAGADOSTÁRIAS–I)
Alendadaorigemdostárias,oufilhosdoTrovão(tambémditosfilhosdoSanguedoCéu)estálongedeseramaisfamosadasnossaslendasindígenas.Contudo,é,seguramente,umadasmaisinteressantes,razãopelaqualfoiescolhidaparaabrirestapequenamasrepresentativaamostradaextraordináriacapacidadeimaginativadosnossosverdadeirosancestrais.
Ostárias–outarianas–eramumatribodorioUaupés,situadonoAmazonas.Segundoosestudiosos,apalavra“tária”derivade“trovão”,elementogenésicoprimordialdessatribo.
Vamos,pois,àoriginalíssimalendaquecontaaorigemdostárias.Diz,então,quenumtempomuitoantigooTrovãodeuumestrondo
tãofortequeoCéurachouecomeçouagotejarsangue.Osanguecaiuemcimadelepróprio,Trovão–aquientendidocomoumentepersonalizado–,esecousobreoseucorpo.AlgumtemposepassoueoTrovãotrovejououtravez,eosanguequeestavasobreeleviroucarne.Maisadiante,umnovotrovejarfezcomqueacarnesedesprendessedoseucorpoefossecairsobreaTerra.Aotocarosolo,acarnesedespedaçouemmilpedaços,eestespedaçossetransformaramemgente–homensemulheres.
Assustadiçospornatureza,osfilhosdoTrovãocorreramlogoasemeternointeriordaprimeiragruta,assimqueanoiteceu(eleseramignorantesdascoisasdaTerra,então,aoveremosoldesaparecer,imaginaramqueelenuncamaisretornaria).
Quandocomeçouaamanhecer,porém,tiveramumagratasurpresa:océuvoltava,poucoapouco,atomarumacoloraçãovermelha,soboefeitodaluzdosol.
Elesobservaramosolsubiraocéue,quandoelechegouaozênite,sentiramfome.Noaltodeumaárvore,viram,então,umpássaroalimentando-sedeumfruto.
–Façamosomesmo!–disseumdosfilhosdoTrovão.Paraumaprimeirafrase,nãoestavanadamal.Demonstrava
prudênciaaliadaaumaboaobservação.Ostárias–jápodemoschamá-losassim–subiramnamesmaárvore
eforamcomerdosmesmosfrutoscomosquaisaavesealimentava.
Empanturraram-seatéanoitevoltar,quandotodos,assaltadosnovamentepelomedo,foramsemeternointeriordagruta.
Nodiaseguinte,bemcedo,treparamoutraveznaárvoreparasaciarafome.Debaixodela,surgiramdoiscervos,machoefêmea,quetambémcomeçaramasealimentardosfrutosquecaíam.Daliapouco,umdoscervosmontousobreooutro,eosdoisesqueceram-sedetudoomais.
–Oqueestãofazendo?–disseumdostárias,queaindaignoravaascoisasdestemundo.
Elesobservarambemeretornaramparaointeriordagruta.Ninguémconseguiaesqueceroquesepassaraentreoscervos,eestavamtodosextraordinariamenteinquietos.
Duranteanoite,aMãedoSono–umadastantasCys,asmãesdivinasindígenasdetudoquantohánamata–visitou-osemsuagrutaparacontar-lhesquemeleseram.Depois,transformou-osemcervos,eelesforamcorrendoparabaixodaárvorerepetiralegrementeoqueocasaldecervosdeverdadehaviafeito.
Quandoodiaamanheceu,osparesaindaestavamabraçados,umhomemparacadamulher.
Efoiassimqueostáriasderaminícioàsuagloriosadescendência.
OSTÁRIASAPRENDEMAFAZEREMBARCAÇÕES
(SAGADOSTÁRIAS–II)
Alendadostáriasétãointeressantequantoumasagaislandesa,ecomportaváriosepisódios.Comotantasoutraslendasextraviadasmundoafora,sónãogozadoreconhecimentouniversalporquelhefaltouquemadesenvolvesseemamplosevibrantespainéis.
Comovimosnoprimeiroconto,ostáriassurgiramdoTrovãoeaprenderamasereproduzirobservandoaspráticassexuaisdoscervos.(EleshaviamsidometamorfoseadospelaMãedoSononaquelesmesmosanimais,recuperandologodepois–éoquesesupõe–aantigaformahumana.)
Todasasnoitesoscasaisrepetiamaspráticasaprendidas,detalmodoquenãotardaramasurgirseusprimeirosfilhos.Aospoucos,elesaprenderamtambémaplantareacriaranimais.
Então,umdia,observandoorioAmazonas,elespensaramemcomopoderiam“andarcomopatossobreaságuas”.(Aexpressãoqueusaramfoiexatamenteesta,poisnãosabiamaindaoquefosse“navegar”.)
Todososdiaselessepostavamàsmargensdorioeficavamobservando,cheiosdeadmiração,oirevirserenodospatossobreaágua.
–Temosdeaprender,também,acaminharsobreaságuas!–disse,umdia,olídersupremodostárias.
Osíndios,deixandodeladoaobservação,passaramentãoàação.–Vá,mergulheefaçacomoeles!–disseocacique,atirandonaágua
umdostáriaspróximos.Opobreíndiocaiunaáguaeespadanoufeitoumdesesperado,e,se
nãofossemosdemaisretirarem-nodali,teriadescidoaofundocomoumapedra,semjamaisretornar.
Masostáriaserampersistentesecontinuaraminsistindo,atéqueumdiaumdeles,bafejadopelasorte,viupassarumpaudebubuiaflutuando.Numreflexofeliz,eleagarrou-seaotroncoeimediatamentesentiuquenãoafundavamais.Depois,comumpoucomaisdeprática,conseguiuguiarotroncocomasmãosmetidasdentrod’água.Então,elefoiparaondequis,eafelicidadeinundousuaalma.
Comonãohavianinguémporpertoparaadmirarsuafaçanha,oíndioretornouàmargemefoicorrendoàaldeiacomunicarasuafantástica
descoberta.–Descobri,irmãos,ummeiodecaminharsobreaságuas!–gritava
ele,cheiodeorgulho.Logoaoamanhecertodosforamveraproeza.Otáriaatirou-sena
águamontadoemsuaboiaimprovisadae“andou”portodooriosemjamaisafundar.
Efoiassimqueostáriasaprenderama“andarcomoospatossobreaságuas”e,logodepois,aconstruirasuaprimeiraembarcação,amarrandotroncosunsnosoutros.
APRIMEIRANAVEGAÇÃODOSTÁRIAS
(SAGADOSTÁRIAS–III)
Continuandocomadeliciosalendadostárias,vamossaberagoracomoosverdadeirospaisdanacionalidadeempreenderamasuaprimeiraegloriosanavegação.
Depoisdeteremaprendidoaconstruirumajangada,ostáriaslançaram-seansiosamenteaorio.Nãosesabeaocertosefoiapenasumaouseforammaisjangadas,masocertoéqueváriosindígenastomarampartenessaexpedição.Consigolevaramumfarneldeviagem.
Quandoosexpedicionáriospartiram,tudofoialegria.Porém,quandoaúltimamanchadeterrasumiu,elesengoliramemseco.
–Aterrasumiu!–disseumdosíndios,vagamentealarmado.Ochefedaexpedição,porém,nãoquisretroceder.–Adiante!–disseele,apontandoohorizonteplanodaságuas.Entãoacoragemretornouaosseuscorações,eelesseguiramalegres
econfiantesatéanoiteestreladadesabarsubitamenteaoseuredor,comoumacortinanegracheiadefuros.
Destavez,oânimodetodosdecaiuassustadoramente.–Alguémsabedizerondeestamos?–perguntouochefetária,
lutandoparadarumtomserenoàsuavoz.Naturalmenteque,naquelesprimórdiosdanavegação,aindanão
haviapassadopelacabeçadeninguémdividirtarefas,atribuindoaalguémafunçãodeguiaoupiloto.Justamenteporisso,todosresponderam,numaadmirávelconcordância,quenãofaziamamenorideiadeondeestavam.
Parapiorarascoisas,umventofortecomeçouasoprar,empurrando-osaindamaisparaashorrendasedesconhecidasvastidõesdorio.Emtrêsdiasacabouacomidae,quandoafomeapertouparavaler,umdostáriasavistoualgunstapurus(pequenaslarvas)nosinterstíciosdajangada.Eleencheuamãoeenfioutudonaboca.Acaretaquefezeradeagrado:acomidaeraboa.Asoutrasmãoscolheramavidamenteorestodostapurus,eassimosíndiossaciaramporalgumtempoasuafomeatroz.
Osviajantesvagaram,semremonemrumo,duranteváriasluas.Então,quandotudopareciaperdido,elesviram,aolonge,asombrada
terra.–Terra!Terra!–gritouumdeles,dandooprimeirogritonáuticoda
históriadostárias.Osíndiosdesembarcaramnumlugarermo,muitoparecidocomsua
própriaterra.Numaeuforiadedoidos,elespuseram-seabeijarosoloeacometeroutrasloucurastípicasdenáufragosresgatados.Depois,comeramalgunsovosqueencontraramedecidiramfundarumaaldeiaalimesmo.
“Trêsluasdepois,aaldeiaestavapronta”,dizacrônicaoriginal.
BUOPÉ,ONOBREGUERREIRO
(SAGADOSTÁRIAS–IV)
Aextraordináriasagadosíndiostáriaschega,agora,aoseuvibrantedesfecho.Destafeitaficaremossabendocomonossosancestraistornaram-segrandesconquistadores.
Ochefedaprimeiraexpediçãonáuticadostáriaschamava-seoriginalmenteUcaiari,passandodepoisaserconhecidoporBuopé.Eleeraumtuixaua,títulosupremodeumchefetária,ehaviachegadocomseushomensnumajangadaapósnavegarsemrumopelorioNegro.
Aocolocarospésemterra,onobreguerreirodecidiraseestabelecerali.
–Voltarcomo,senemsabemosparaqueladoseguir?–disseraeleaoscompanheiros.
Convictodisso,ochefeindígenamandou,então,construirumaaldeiaeseautoproclamousenhorabsolutodaterra,poisassimsefaziaemtodapartenosdiasantigos.
Emtrêsluas,anovaaldeiaestavapronta.Masnãodemoroumuitoeumdostáriastrouxeaochefeesta
péssimanotícia:–Grandetuixaua,encontreirastrosdepéshumanospróximosda
aldeia!ImediatamentenasceunopeitodeBuopéacertezadequeestavam
sendovigiados.–Vamos,então,espionarosespiões!–disseele,tomandooseu
tacape.Buopénãoqueriasaberdeninguémmaisemseusdomínios,mesmo
quejáestivessemalimuitoantesdele.Aquelaterra,agora,pertenciaaosfilhosdoSanguedoCéu.
Apóscertificar-sedequeaspegadaspertenciamaosmembrosdeumatribovizinha,Buopéreuniurapidamenteosseushomens.
–Alegrem-se,teremosguerra!–anunciouele,etodospuseram-seaconfeccionargrandesquantidadesdetacapes,arcos,flechas,fundaseorestantedearmasentãousadaspelosíndios.
Umaluadepois,ostáriasguerrearamcontraosseusinimigosnativos,derrotando-osfragorosamente.Alémdeconquistaremmaisuma
boaporçãodeterritório,osfilhosdoTrovãoconquistaramtambémumaporçãodemulheresdatribovencida.
–Agora,jápodemosmultiplicaronúmerodetárias!–disseBuopé,emjúbilo.
TrêsanostranscorreramatéqueBuopéeosseusvalorososguerreirospudessementenderalínguadaquelasmulheres.Quandoissofinalmenteaconteceu,elesdescobriramqueoutraporçãodagentedelasvivianumlugarnãomuitodistantedali.
–Levem-nosatélá!–ordenouotuixauaàsmulheres.Imediatamente,foiorganizadaumanovaexpediçãodeconquista.
Quando“fezmãodelua”,ouseja,dentrodecincoluas,Buopéeosseuschegaramaolugar.
Abatalhaduroutrêsdias,eaocabodelaBuopéera,denovo,ovencedor.
–Maisventresparaespalharanossaraça!–disseochefeguerreiro,tomandoparasioutravezasmulheresdosinimigosmortos.
EassimochefetáriafoiconquistandotodosospovosàsmargensdorioNegro,atétornar-sesenhorabsolutodaregião.Quandoseusfilhosficaramadultos,mandou-osiremguerrearcontraastribosdecanibaisacimaeabaixodorio.
Buopétinhaocostumede,apósmatarosseusinimigos,iratéasmargensdorioecuspirdentrodeumfunildefolha.Depois,lançava-ocorrentezaabaixo,afimdechamarmagicamenteasuagentedistante.
Então,osanossepassarameeleenvelheceu,perdendofinalmenteasforças.Umanoite,aMãedoSonolheapareceuoutravezeofezsonharquetinhamorrido.Buopéviu,porentreasnévoasdosonho,queoseucorpojánãofaziamaissombraeque,aoredordele,todoschoravam.
Eraoavisodofim.Onobretuixauareuniuseusfilhos,deu-lhesasúltimasinstruçõese,
quandoosolsurgiu,umbeija-florsaiudedentrodoseupeitoedisparouemdireçãoaocéu.
OcorpodeBuopéfoienterradonumagrutasecreta,cujalocalizaçãopermaneceignorada.Descendentealgumrecebeuautorizaçãodeostentaroseunomeglorioso,etodoaquelequepretendeuutilizá-lo,mesmosobformasdisfarçadaseridículas,sofreuamaldiçãoimplacáveldetornar-se,portodososdiasdasuavida,umpobre-diabofracassadoerosnadordemaledicências.
MAIRE-MONANEOSTRÊSDILÚVIOS
Ostupinambáscreemquehouve,nosprimórdiosdotempo,umserchamadoMonan.Segundoalgunsetnógrafos,elepodianãoserexatamenteumdeus,masaquiloqueseconvencionouchamardeum“heróicivilizador”.
Deusounão,ofatoéqueMonancriouoscéuseaTerra,etambémosanimais.Eleviveuentreoshomens,numclimadecordialidadeeharmonia,atéodiaemqueelesdeixaramdeserjustosebons.Então,Monaninvestiu-sedeumfurordivinoemandouumdilúviodefogosobreaTerra.
AtéaliaTerratinhasidoumlugarplano.Depoisdofogo,asuperfíciedoplanetatornou-seenrugadacomoumpapelqueimado,cheiadesaliênciasesulcosqueoshomens,maisadiante,chamariamdemontanhaseabismos.
Desseapocalipseindígenasobreviveuumúnicohomem,Irin-magé,quefoimorarnocéu.Ali,emvezdeconformar-secomopapeldefavoritodoscéus,elepreferiuconverter-seemdefensorobstinadodahumanidade,conseguindo,apósmuitassúplicas,amolecerocoraçãodeMonan.
SegundoIrin-magé,aterranãopoderiaficardojeitoqueestava,arrasadaesemhabitantes.
–Estábem,repovoareiaquelelugaramaldiçoado!–disseMonan,afinal.
Ahistória,comovemos,étãovelhaquantoomundo:umsersuperiorcriaumaraçaelogodepoisaextermina,tomando,porém,ocuidadodepouparumoumaisexemplaresdela,afimderecomeçartudooutravez.
Efoiexatamenteoqueaconteceu:MonanmandouumdilúvioàTerraparaapagarofogo(aquiodilúvioéreparador)eatornounovamentehabitável,autorizandooseurepovoamento.
Irin-magéfoiencarregadoderepovoaraTerracomoauxíliodeumamulhercriadaespecialmenteparaisto,edestauniãosurgiuoutropersonagemmíticofundamentaldamitologiatupinambá:Maire-monan.
EsseMaire-monantinhapoderessemelhantesaosdoprimeiroMonan,efoigraçasaistoquepôdecriarumasériedeoutrosseres–osanimais–,espalhando-osdepoissobreaTerra.
Apesardeserumaespéciedemongeegostardeviverlongedaspessoas,eleestavasemprecercadoporumacortedeadmiradoresedepedintes.Eletambémtinhaodomdesemetamorfosearemcriança.
Quandootempoestavamuitosecoeascolheitastornavam-seescassas,bastavadarumaspalmadasnacriança-mágicaeachuvavoltavaadescercopiosamentedoscéus.Alémdisso,Maire-monanfezmuitasoutrascoisasúteisparaahumanidade,ensinando-lheoplantiodamandiocaedeoutrosalimentos,alémdeautorizarousodofogo,queatéentãoestavaocultonasespáduasdapreguiça.
Umdia,porém,ahumanidadecomeçouamurmurar.–EsteMaire-monanéumfeiticeiro!–diziaocochichointensodas
ocas.–Assimcomocriouvegetaiseanimais,essebruxohádecriarmonstroseTupãsabeoquemais!
Então,certodia,oshomensdecidiramaprontarumaarmadilhaparaessenovosemideus.Maire-monanfoiconvidadoparaumafesta,naquallheforamfeitostrêsdesafios.
–Belamaneiradeumanfitriãoreceberumconvidado!–disseMaire-monan,desconfiado.
–Ésimples,naverdade–disseochefedosconspiradores.–Vocêsóterádetranspor,semqueimar-se,estastrêsfogueiras.Paraumsercomovocê,issodevesermuitofácil!
Instigadopelosdesafiantes,etalvezumpoucoporsuaprópriavaidade,Maire-monanacabouaceitandoodesafio.
–Muitobem,vamosaisso!–disseele,querendopôrlogoumfimàcomédia.
Maire-monanpassouincólumepelaprimeirafogueira,masnasegundaacoisafoidiferente:tãologopisounela,grandeslabaredasoenvolveram.Diantedosolhosdetodososíndios,Maire-monanfoiconsumidopelaschamas,esuacabeçaexplodiu.Osestilhaçosdoseucérebrosubiramaoscéus,dandoorigemaosraioseaostrovõesquesãooprincipalatributodeTupã,odeustonantedostupinambásqueosjesuítas,aochegaremaoBrasil,converteramporcontapróprianoDeusdassagradasescrituras.
Dessesraiosetrovõesoriginou-seumsegundodilúvio,destavezarrasador.
Nofimdetudo,porém,asnuvenssedesfizeramepordetrásdelassurgiu,brilhando,umaestrelaresplandecente,queeratudoquantorestaradocorpodeMaire-monan,ascendidoaoscéus.
***
Depoisqueomundoserecompôsdemaisumcataclismo,otempopassouevieramàTerradoisdescendentesdeMaire-monan:eleseramfilhosdeumcertoSommay,esechamavamTamendonareeAriconte.
Comonormalmenteacontecenaslendasenavidareal,arivalidadecedoseestabeleceuentreosdoisirmãos,enãotardouparaqueafogueiradadiscórdiaacirrasseosânimosnatriboondeviviam.
Tamendonareerabonzinhoepacífico,paidefamíliaexemplar,enquantoAriconteeraamantedaguerraetinhaocoraçãocheiodeinveja.Seusonhoerareduzirtodososíndios,inclusiveseuirmão,àcondiçãodeescravos.
Depoisdediversosincidentes,aconteceuumdiadeAriconteinvadirachoçadeseuirmãoelançarsobreochãoumtroféudeguerra.
Tamendonarepodiaserbom,massuabondadenãoiaaoextremodesuportarumadesfeitadessas.Erguendo-se,oirmãoafrontadogolpeouochãocomopéelogocomeçouabrotardarachaduraumfinoveiodeágua.
Aoveraquelarisquinhainofensivadeáguabrotardosolo,Aricontepôs-searirdebochadamente.
Acontecequearisquinharapidamenteconverteu-senumjorrod’água,enuminstanteochãosobospésdosdois,bemcomoosdetodaatribo,rachou-secomoacascadeumovo,deixandosubiràtonaumverdadeiromarimpetuoso.
Aterrorizado,oirmãoperversocorreucomsuaesposaatéumjenipapeiro,eamboscomeçaramaescalá-locomodoismacacos.Tamendonarefezomesmoe,depoisdetomaraesposapelamão,subiucomelanumapindoba(umaespéciedecoqueiro).
Eassimpermaneceramosdoiscasais,cadaqualtrepadonotopodasuaárvore,enquantoaságuascobriampelaterceiravezomundo–ou,pelomenos,aaldeiadeles.
Quandoaságuasbaixaram,osdoiscasaisdesceramàTerraerepovoaramoutravezomundo.DeTamendonareseoriginouatribodostupinambás,edeAricontebrotaramosTemininó.
AVINGANÇADEMAIRE-POCHY
AsagadosdescendentesdeMonannãoterminoucomosdoisirmãosdocontoanterior.Depoisdeles,vieramoutros,edentreessessobressaiu-seumcertoMaire-Pochy.
Apesardanobreascendência,Maire-Pochy,poralgumadesgraçadodestino,nasceravotadoàinfelicidade.Alémdeservodocacique,eleerafeioecorcunda.
Maire-Pochygostavadepescar,ecertodiatrouxedorioumbelopeixe.Aovê-lo,afilhadoseuamolambeuoslábiosdeapetite.
–Quebeleza!Tudofariaparasaboreá-lo!Maire-Pochycorreulogoapreparar,elemesmo,obelopeixeno
moquém,umaespéciedegrelhanaqualosíndiosassamacarne.Opeixedeviasermuitoespecial,poistãologoajovemocomeu,ficou
grávida.Omeninonasceucomumarapidezinaudita,elogoopaidajovemquissaberquemeraopaidacriança.
Masninguémseapresentou,oqueobrigouocaciqueaterumaconversacomopajé.
–Osmiseráveisestãocalados,eninguémquerassumirapaternidade!–disseomorubixaba.–Comoheidesaberqueméopaidacriança?
Opajé,porém,quetinhareceitasparatodososmales,tinhaumatambémparaeste.
–Éfácildescobrir–disseele,comumaempáfiaserena.–Reúnatodososhomensdatriboeosfaçadesfilardiantedajovemportandoseusarcos.Quandooverdadeiropaiseapresentar,acriançatocaráoseuarco.
Ocaciquefezcomoopajédissera,etodososhomenssaudáveisdatribodesfilaramdiantedajovemcomobebêaocolo.Maisdecemíndios,detodosostamanhos,passaramàfrentedobebê,maselenãotocouoarcodenenhumdeles.
Então,oterrorcresceunaalmadocacique.–SeráAnhangá,oespíritomau,opaidacriança?Mas,quandotodosjáestavamsedispersando,opajégritou:–Esperem!FaltouMaire-Pochy,ocorcunda!Umcoroderisosexplodiuentreosíndios.–Estábrincando?–exclamouocaciqueaopajé.
–Eleéumhomemsaudável,apesardaaparência–disseopajé.–Quedesfiletambém!
EntãoMaire-Pochydesfiloudiantedaíndiaedeseubebê.Assimqueelepassoudiantedosdois,portandooseuarco,ogarotoesticouobracinhoefezvibraracorda.
Umsomparecidocomodaharpasoou,fazendocalaratribointeira.–Afrontaevergonha!–gritouomorubixaba,fuzilandoafilhacomos
olhos.Nomesmodia,ocaciqueordenouqueatribointeirapartisse
daquelelugar,abandonandoafilhaeonetojuntocomMaire-Pochy.–Dehojeemdiante,nãotenhomaisfilha!–esbravejouocacique,
antesdepartir.Desdeaqueledia,atabaflorescenteconverteu-senumataba-
fantasma,habitadaapenaspelamulher,acriançaeMaire-Pochy.Malsabia,porém,ocaciqueque,aopartir,levaraconsigouma
maldição,poisnasnovasterrasverdejantesondeatriboseinstalounãocresciamaisumúnicotalodeerva,aáguahaviasecadoetodaacriaçãoperecera.
–IstosópodeserumamaldiçãodeMaire-Pochy!–disseocacique.Nasterrasondehaviampermanecidoocorcundaeaíndia,tudo
continuavaàsmilmaravilhas:asplantaçõesbrotavamporsimesmas,aáguacorriafrescaeestuanteeosanimaisprocriavamcomocoelhos.
Aosaberdosinfortúniosdocacique,Maire-Pochymandoudizeraelequepoderiamvirabastecer-senasterrasondeagoraeraosenhor.
–Maire-Pochydizquenãoguardamágoaalguma–disseoemissárioaocacique.
Omorubixabapensouumpoucoedisse:–É,nãotemoutrojeito,vamosterdenoshumilhardiantedaquele
miserável!Entãoapresentaram-sediantedocorcundaedajovem.–Abasteçam-sedetudoquantoquiserem–disseMaire-Pochy,com
umarpiedoso.Osesfomeadosselançaramàcomidafarta,espalhadapordúziasde
moquéns.Aoexperimentaremospitéus,noentanto,sobreveioimediatamenteadesgraça,poistudonãopassavadeumaarmadilha.Logotodoscomeçaramaseconverteremporcos,emgriloseemmaracanãs(espéciedeararamenor,deplumagemverde).Ocaciqueseconverteunumjacaré,enquantosuaesposavirouumatartaruga.
Cumpridaavingança,Maire-Pochyfezcomooseuantepassado
Monanesubiuàsnuvens,paranuncamaisretornaràTerra.
OCOCARDEFOGOEOSGÊMEOSMÍTICOS
OfilhodeMaire-Pochy,oíndiovingativodahistóriaanterior,viveualgumtempoentreostupinambásantesderegressaraoscéus,deonde,presumivelmente,viera.
OprosseguidordasagadosMonanpossuíaumcocardefogo,ouacangatara,quetinhaopoderdeincendiaracabeçadaquelequeresolvesseexperimentá-losemaautorizaçãododono.
Apesardisso,nãofaltouumimprudentedispostoaarriscar.Quandoaschamasenvolveramsuacabeça,elecorreuparaumalagoaemergulhou,convertendo-seinstantaneamentenumasaracura.Dizemqueéporissoqueessaavepossuiatéhojeobicoeaspatasvermelhas.
QuandoofilhoMaire-Pochyretornouàsuaverdadeiracasa,queeraoSol,deixounomundoumfilhoqueatendiapelonomedeMaire-Até.
Certafeita,Maire-Atéresolveufazerumaviagemcomsuaesposa.Masaesposa,alémdesermeiolenta,estavagrávidaenãoconseguia
acompanharospassosansiososdomarido.–Lentamesmo!–disseavozdeMaire-Até,sumindonamata.Apobremulhercaminhoudesatinadaatéperder-senocipoalda
floresta.–Maire-Até,ondeestávocê?–Elefoiporali!–disse,dealgumlugar,umavozfininha.Aíndiaestaqueou,assustada.–Quemdisseisso?–Sigaporaquelavereda,minhamãe!–disseavozinha,outravez.Sóentãoelacompreendeuqueavozvinhadedentrodasuabarriga.–Você?Entãojáfala?–disseelaparaopróprioventre.Umpica-pauqueobservavatudoparoudemartelarotroncoda
árvoreebalançouacabeça,desconsolado:–Outradoida!Maseraverdade,sim:ofetomiraculoso,antesmesmodenascer,já
tinhaodomdafala.–Vamos,minhamãe,alcancemeupai!–disseavozinha,impaciente.Amulherarremessou-senadireçãodaveredaecontinuouabuscar
Maire-Até,maselenãoeracapazdediminuiropassoecadavezdistanciava-semais.
Aopassarporumamoitacheiadefrutinhasvermelhas,avozinhagritou:
–Espere,minhamãe,junteaquelasfrutinhas!Masaíndiaestavacompressaenãoquispararpornadadeste
mundo.–Euqueroasfrutinhas!–esbravejouacriança,sapateandono
ventredamãe.–Elasnãoprestam,dãodordebarriga!–exclamouaíndia.Aochegaraumaencruzilhada,elabateunabarriga.–Paraqueladoseupaifoi?Infelizmente,desdeaqueleinstante,avozinhaemudeceu.Aíndia
tentoudetodososmodosfazerseuventrefalaroutravez,mastudooqueconseguiuextrairdeleforamalgunsroncosdefome.
Entãosuaalmaconheceuopânico.Perdida!Sim,agoraelaestavapositivamenteperdida!Nãotardaria
paraqueosmausespíritosouascriasmonstruosasdaflorestaviessematazaná-la!
Depoisdemuitoandar,acabouenxergandoumaocaperdida.–GraçasaTupã,estousalva!Pelomenoseraoqueelapensava,poisnatalocaviviaumíndioque
estavahaviaanossemverumaíndia.Assimqueelapediuasuaajuda,elepuxou-aparadentrodaocaefezcomelaoquebemquis.
Resultado:aesposadeMaire-Atéficougrávidaoutravez.Quandotudoterminou,elacobriuorostocomasmãos.Noseupeito
misturavam-seavergonhaeosentimentodevingança.Osentimentodevingançaelavotava,antesdetudo,aoseumarido,quenãoquiseraesperá-la.Quando,porém,decidiulevaracaboasegundavingança,contraoseuagressor,descobriuqueumcastigosobrenaturaljáhaviadescidosobreoele:naesteiraondeelahaviasidoabusada,restavaapenas,nolugardoíndio,umgambáfedorento.
Aíndiaabandonouaocacertadequesuasdesditashaviamchegadoaofim,masaindahaviaummalmaiorguardado.Nembemdeixaraolugarquandodeparou-secomumíndiocanibal.EleseapresentoucomoJaguaretêedissequepretendiacomê-la.
Etalcomodisse,assimofez,detalsortequeapobreíndiafoidevoradaatéoúltimobocadopelotalJaguaretêepelosdasuacomunidade,conhecendoali,finalmente,ofimdassuasdesditas.
Antesdedevoraraíndia,porém,ocanibalretiroudoventreasduascrianças–ofilhodeMaire-Atéeodoíndioqueahaviaatacado–eatirou-asnomonturo.
Nodiaseguinte,algumasíndiaspiedosasrecolheramasduas
crianças.Dizalendaque,aocrescerem,osdoisirmãosvingaramamorteda
mãeatraindooíndioeosseussequazesatéumailha,ondelhesprometeramfartaalimentação.Natravessiapelaágua,oscanibaissetransformaramemanimaisselvagens–possivelmenteemjaguares,jáque,segundoosestudiosos,onomedolíderJaguaretêremeteàfiguradojaguar.
Maire-Atécriouosdoisfilhos,olegítimoeoilegítimo.Oilegítimo,comonãopodiadeixardeser,eradiscriminadoemtodaparte,sendochamadode“ofilhodogambá”.
Maire-Atéeducou-os,porém,damesmamaneira,impondo-lhesasprovasrudesdaselva.Numadessasprovas,osdoisirmãosdeveriampassarporentreduasrochasquetinhamopoderdeesmagaraquelesquetentassempassarentreelas.Ofilhodogambáfoiesmagadoaotentaraproeza,enquantoofilhodeMaire-Atésaiu-sevitorioso.Penalizado,porém,domeio-irmão,ofilholegítimoressuscitou-o,poispossuíaosdonsmágicosdadescendênciadeMonan,osemideuscivilizador.
Mashavia,ainda,umaúltimaprova:furtarosutensíliosdepescadeAgnen,umsermíticocujaocupaçãoprincipaleraadepescaropeixeAlain,alimentodosmortos.
Decididoatersucessonoseufurto,ofilholegítimodeMaire-Atétornou-seumpeixee,depoisdedeixar-sepescar,furtoutudoquantoquisenquantoopescadorestavadistraído.
Ofilhodogambá,porém,saiu-semalaotentaromesmoestratagema,eacabousendomortomaisumavez.Felizmente,oseuirmãodemonstrounovamenteasuagenerosidadee,depoisderecolherasespinhasdofilhodogambá–lembremosqueelesemetamorfosearaempeixe–,assoprousobreelaseojovemretornou,destaforma,àvida.
Existemváriasversõesparaessasproezasdosgêmeosmíticos,quevariammuitoconformeatribo,masocertoéquesãodoispersonagensfundamentaisdareligiãoindígena.
AONÇAEORAIO
Osíndiostaulipangs,habitantesdoextremonortedoBrasil,contamalendaaseguir.
Certafeita,aonçapasseavapelamataquandoencontrouoraioafabricarumporrete.Aonçanãoconheciabemoraio,poisnuncatinhavistoumemterra,muitomenosafabricarporretes,eporissoimaginouquesetratavadealgumanimal.
Entãoelacomeçouapisarmacioe,depoisdedaravolta,semservista,pulousobreoraio.
Oraio,porém,escapoucomumpuloveloz,semsofrernada.Aonça,desapontada,indagou:–Quemévocê?–Souoraio,nãovê?–Vocêémuitoforte,nãoé?–Estáenganada,nãosounadaforte.Aoescutarisso,aonçainflouopeitoeengrossouavoz.–Poiseusouoanimalmaisfortedestasmatas!Quandoestou
furiosa,nãosobranadainteiro!Então,parademonstrarasuaforça,aonçatrepounumaárvore
enormeecomeçouadevastartudo,quebrandoumporumdosgalhos.Depois,desceuparaosoloecomeçouaescavá-lo,atirandoparacimatufosderelvaedeterraatéestartudorevirado,comoseumtatudoidotivessepassadoporali.
–Muitobem,queachoudisso?–disseaonça,arfante.Oraioescutou,masnãodissenada.–Vamos,querovê-lofazeralgoparecido!–desafiouaonça.–Comopoderia,senãotenhoasuaforça?–disseoraio,afinal.Infladaaindamaispelaconfissãodoraio,aonçaentregou-seanova
demonstraçãodeforça,revolvendotudooutravezatéterabertoumaclareiranapartedamataondeestavam.
Enquantoaonçasorria,esbaforida,oraiotomouoseuporreteecomeçourepentinamenteavibrá-lonochãoeportudoaoredor,fazendoaonçaquicarerebolarpelosolocomoumbichodepano.Umaverdadeiratempestade,seguidaderaioseventania,tornoutudoaindamaissério,apontodeaonçaacharqueomundoseacabaria.Quandoatempestade
finalmentecessou,aonçamalencontrouforçasparapôr-senovamenteempéeircorrendoesconder-seatrásdeumarocha.
Masoraiogostaradabrincadeiraearremessouumafagulhaquefezavoltanarocha,acertandocomprecisãoorabodaonça.Aonçadeuopulomaisaltodetodaasuavida,chamuscouacabeçanococardoSoledesceuàTerraoutravez,fugindoatodaavelocidade.
Oraiocontinuouavibraroseuporreteeaarremessarcoriscosefagulhascomtantaintensidadeparacimadapobrebichanaqueelaviu-seobrigadaaprocurarrefúgionatocadeumtatugigante.
Tudoemvão:oraiovarejouacovadotatueacertouemcheio,outravez,osfundilhosdaonça.Nãohaviajeito:ondequerqueaonçabuscasserefúgio,aliaalcançavaobraçolongodoraio.
Aomesmotempo,começouasoprarumventofrioeacairumachuvagelada,ecomoaonçajáestavaquasesempeloalgum,devidoàsqueimaduras,poucofaltouparaelacongelar-se.
–Depoisdofogo,ofrio!–ganiaela,batendoosdentes,todaenrodilhadanosolo.
Somenteaoverarivalarriadaecompletamentevencidafoiqueoraiosedeuporsatisfeito.
–Muitobem,agoradigaqueméomaisforteporaqui!Aonçatapouacabeçaparanãoterderesponder,enquantooraio
partia,agargalhar.Eaquiestá,segundoostaulipangs,arazãodeasonçastemerem
tantoostemporais.
KONEWÓEASONÇAS
Ejáquesefaloudeonças,nadamelhordoquereferiralgumasdisputasdeKonewócontraasonças,poisostaulipangs,especialmenteascrianças,parecemadorá-lascomseuritmoágildedesenhoanimado.
Konewóéumíndioquepareciaternascidoparadisputarcomasbichanas.Certodia,eleestavasentado,encostadoaumaárvore,quandoumaonçachegoueperguntou:
–Porqueestáaísentado,aescorarestaárvore?–Paraqueelanãocaia–respondeuKonewó,secamente.–Todasas
árvoresestãoporcair.Porquenãofazomesmoqueeucomaquelaoutraárvoreali?
Aonçaviuumaárvorequepareciaprestesaruireachouqueseriaumaboadistraçãoficarescorando-a,poisnãotinhanadamelhorparafazer.
Depoisdeencostar-seaotronco,aonçafechouosolhos,sentindo-sevagamentevirtuosa.
“Devezemquandoébomserútil”,pensou,vaidosadasuavirtude.Masavirtudelogotransformou-seemsono,e,quandoaonça
começouaroncar,Konewóergueu-see,ligeirinho,amarrou-aaotroncocomcordastrançadasdecipó.
Konewódesapareceu,areprimiroriso,eaonçasóacordoualgumashorasdepois,completamenteimobilizada.
Osdiassepassarameelajáestavaquasemortadefomequandoummacacosurgiu.
–Oquefazaí,todaamarradaàárvore?–Fuiamarrada,nãoestávendo?–rugiuafera.–Vamos,solte-mejá!–Ah,issoeunãofaço,não!Sesoltá-la,vocêmecome!–Nãocomerei,dou-lheminhapalavra!Omacaconãofoimuitoatrásdaonça,eelaprecisouinsistirvárias
vezesparaqueelefinalmentesedecidisseaarriscaropelo.Comtodaacautela,eledesamarrouaonça,esóporissoescapouvivo.Atento,assimqueviuapatapeludaeriçarasunhasnasuadireção,deuumpuloparalonge.
Omacacodesapareceudentrodamata,enquantoaonçaficoumaquinandoasuavingançacontraoíndioqueaaprisionara.Depoisdeandarmuito,farejandoorastrodeKonewó,elafinalmenteencontrouoseudesafeto,destavezescoradonumarocha.
–Ah!Aíestávocê!–disseela,pulandoàfrentedoíndio.–Destavezvocêmepaga!
Konewóolhouserenamenteparaaonça.–Oquequer?–disseele,friamente.–Vingança!Aoobservar,porém,acalmadoíndio,aonçanãopôdedeixarde
perguntar-lhe:–Ei!Oquefazescoradoaínessepedregulho?–Estouimpedindoqueelecaia.Todososrochedosestãoporcair.Konewó,então,olhouparaoladoeapontououtrorochedodezvezes
maior.–Sevocêfosseumaonçarealmenteútil,fariacomoeu,impedindo
queaquelerochedocaia.Umaespéciedenuvemestúpidadesceusobreamentedaonça,
obrigando-aairtomaroseulugar,masassimqueelaofez,oíndioergueu-se.
–Espereaí,sabichão,ondepensaquevai?–gritouela.–Tiveumaexcelenteideiaparapoupar-metrabalho.Vouprocurar
umtroncoparafazerumaescoraeassimlivrar-medeficarorestodavidaescorandoaminhapedra.
Aonçasentiuopedregulhochacoalharàssuascostasedeuumgrito:–Tragaumaescoraparamimtambém!Konewósumiuenuncamaisapareceucomescoraalguma.Quantoà
onça,dasduasuma:ouestáláatéhoje,escorandoopedregulho,outerminousepultadavivapelodesabamento.
***
Konewótambémgostavadepassaraconversanoshomensbrancos,poiseracrençademuitosíndiosqueasonçashaviamsidogenteantesdeviraremoquesãohoje.
CertodiaKonewóachouumgambáeintroduziudebaixodoseuraboumpunhadodemoedasdeprata.Depois,andandoporali,cruzoucomumhomembrancocarregandoumaredenovinhaemfolha.
–Belarede!–disseKonewó.–Quertrocá-laporumgambáquebotamoedasdeprata?
–Estámeachandocomcaradebobo,é?
Então,Konewóapertouabarrigadogambá,easmoedassaltarampordebaixodorabo.
Ohomembrancoficoupasmo.–Eessefedorentofazissomuitasvezespordia?–perguntouele.–Quantasvezeslheapertaremoventre–respondeuoíndio,
apertandooutravezobuchodogambá.Asmoedassaltaramoutravez,eohomembrancofezonegóciona
hora.Assimqueoíndioafastou-se,ohomembrancoergueuorabodo
gambáequaseenfiouoolholádentro.–Vamosveristo!–disseele,apertandocomtodaaforçaabarriga
docoitado.Sóque,destavez,aúnicacoisaqueespirroufoiumjatofedorentode
fezes.
***
Maisadiante,Konewóaplicouumgolpeparecidoemoutrocivilizado.Depoisdependuraralgumasmoedasemalgunsgalhosdeumaárvore,chamouoprimeiroqueenxergou.
–Veja,homembranco,estaárvoredádinheiro!–disseele.Ohomemembasbacou-se.Eleestavacheiodemercadoriasque
atraíramacobiçadoíndio.–Sevocêmedertodasassuasmercadorias,entregoavocêesta
árvoremágica.Ohomembrancoolhouparaoseufarneledepoisparaaárvore,
aindaemdúvida.–Quantasvezesporanoeladámoedasassim?Estouvendopoucas
ali.–Équeestounofimdacolheita–disseoíndio.–Masnãose
preocupe,poisestaárvoredámoedasoanotodo.Estajáéadécimacolheita!
Fechadoonegócio,oíndiotratoudepegarodinheiroedarofora,enquantoohomembrancoolhavaparaameiadúziademoedaspenduradasnosgalhosaltos.Impaciente,elecomeçouachacoalharotronco,eduasmoedinhascaíramjuntocomumaporçãodefolhas.
Aindamaisimpaciente,elecontinuouachacoalharatéqueumgalhodespencouequaserachouasuacabeça,eistofoitudoqueeleviucair,
depoisdoprimeirochacoalhão,daárvoreamaldiçoada.
***
MasosgolpesprediletosdeKonewóeramaplicadosmesmoàsonças.Certodia,eleestavasentadoàbeiradeumriodeáguasprofundas
quandoumaonçasurgiupordetrás.–Quefazaí,bobão?–disseaonça,maiscuriosadoqueesfomeada.–Estoupensandoemmergulharnorioparaapanharaquelebolode
tapiocaqueestálánofundo.Konewóapontouparaoreflexodaluasobreaágua.–Entãová–disseaonça,desconfiada.–Queroverseconsegue
apanhá-lo!Konewótinhaescondidodebaixodatangaumpedaçodeboloe
mergulhouparalogoemseguidaretornar.–Ah,aquiestá!–disseele,dandoumadentadanobolo.Aonçalambeuosbeiços,masoíndioenfiouligeiroorestonaboca.–Porquenãotrouxeobolointeiro?–disseaonça,frustrada.–Acontecequesoumuitoleve–respondeuoíndio.–Porquevocê,
queémaispesada,nãodesceetrazorestantedobolo?Aonçaestavatãoávidaporprovaraqueladelíciaqueaceitouna
horaodesafio.–Amarreestapedraaopescoço–disseoíndio.–Elaaajudaráa
descermaisrápido,poishámuitacorrentezanestaságuas.Aonçaaceitou,edepoisdeteropedregulhobemamarradoao
pescoço,mergulhou.Quandochegouaofundodorio,porém,constatouquenãohaviaboloalgumporali.Olhouparacimaeviuqueobolo–oualua–agoraestavaboiandonasuperfície.
Eessafoiaúltimacoisaqueadesgraçadaviuantesdemorrerafogada.
***
Maisumacomonça.Konewóiaandandonamataquandoviuumatrilhadeantas.No
mesmoinstante,umaonçasurgiu.–Oqueespiaaí?–perguntouabichana.–Nãoestávendo?–respondeuoíndio.–Éorastrodeumaanta
gorda.Aonçalambeu-setrêsvezesantesdevoltarafalar.–Achaqueestálonge?–Quenada!Veja,orastroaindaestáfresco!–Entãodeixecomigo!–disseaonça,preparando-separaumaboa
corrida.–Não,espere,tenhoumplanomelhor–disseKonewó.–Estávendo
aquelemorroelevadoecobertodevegetação?Foiporláqueelaseescondeu.Euvouatrásdela,evocêficaaquiembaixo.Vouassustá-laeencaminhá-labemnadireçãodasuaboca.
Aonçaadorouaideiaefoicolocar-senabasedomorro,enquantooíndiooescalava.Aochegaraotopo,Konewóencontrouumpedregulhoenormeerolou-oatéocomeçodadescida.
–Aívaiaanta!–gritouoíndio.Aoescutaroruídodealgopesadodescendo,aonçafirmou-senas
pernas.–Queantaenormedeveser!–disseela,lambendoosbigodes.Derepente,porém,surgiudomatagalinclinadoopedregulho
enorme,arolarfuriosamente,epassouporcimadaonça,deixando-aesmigalhadaefininhacomoumtapete.
Eessefoiofimdemaisumaonça.
***
Umaúltima.Konewóestavasentadoemumgalhoelevadodeumaenorme
árvore.Elehaviaencontradoumacolmeiaeestavasedeliciandocomomelquandoumaonçachegoueperguntou:
–Quefazaí?–Estousaboreandoestadelícia–disseKonewó,lambendoosdedos
douradosdemel.–Tambémquero!–disseaonça,apaixonadapormel.–Então,façamososeguinte:eudesçoecortoaárvore.Quandoela
cair,vocêaparaacolmeianosbraçoseficaorestododiasedeliciando.Aonçatopoueficouaguardandoenquantooíndiometiaomachado
naárvore.Quandoaárvorefinalmentecomeçouainclinar-se,aonçafez
mençãodesaircorrendo.–Idiota,fiquenolugar!–berrouKonewó.–Apareacolmeia,senão
elavaiseestraçalhar.Aonçaseencheudecoragemeesticouosbraçosnadireçãoda
colmeia.Sóqueatrásdelavinhaaárvoreinteira,efoiassimqueapobrefelinaviu-seesmagadaecobertadepicadasdeabelhas.
***
Konewó,segundoalenda,teveumfimgrotesco,masqueoamoraosaberobrigaacontar.
Certodia,eleestavasealiviando,noaltodeumaárvore,quandoumbesourovira-bostaaproximou-se,láembaixo.Konewóolhouparaoserzinhoedisse,apiedado:
–Gostou?Aquidentrotemmuitomais!–disseele,apontandoparaotraseiro.
Ovira-bostasubiu,entrou-lhetraseiroadentroecomeuorestodaporcaria,ejuntocomelaastripasetudomais,dandoumfimmiserávelaomaiortapeadordeonçasjásurgidonasmatasbrasileiras.
OUIRAPURU
Existemdiversaslendassobreessapequenaaveamazônica,cujocantodeslumbranteinspirouHeitorVilla-Lobosacomporumpoemasinfônico.
Estalendacontacomoduasamigastornaram-serivaispeloamordeummesmohomem.
Asduasmoçaschamavam-seMoemaeJuçara.Desdecrianças,elaseramapaixonadasporPeri,oíndiomaisbelodaaldeia.Nãohaviaíndiaquenãoseinteressasseporele,masasúnicasquetinhamcondiçãodedisputarocobiçadoprêmioeramasduasamigasinseparáveis.
Apesarderivais,asduasamigasnãoescondiamumadaoutraasuapretensão.
–AmoPeriperdidamente–diziaJuçaraaMoema.–Tambémsouloucaporele–diziaMoemaaJuçara.Ascoisasseguiramassim,numarivalidadeamistosa,atéodiaem
quedecidiramconsultaropajédaaldeiaparaveroquepoderiaserfeitopararesolverodilema.
–Perinãosabedizerqualdenósduasprefere–disseMoemaaopajé.
–Acontecequejáestamosemidadedecasar–disseJuçara.Entãoopajé,depoisdemeditar,elaborouaseguinteproposta:–Nãoháoutrojeito:vocêsterãodedisputá-loparaverquemfica
comele.Nodiaaprazado,asduasíndias,munidasdearcoeflecha,
apresentaram-senamata.–Quemacertaropássaroqueeuapontarseráavencedora–disse
Peri.Dearconamão,asduasíndiasficaramàesperadaordemdePeri.–Ali,atirem!–gritouoíndioaoverumaavebrancasurgirporentre
osgalhos.Duasflechasvelozespartiram,silvandonoar,massomenteuma
delasacertouapequenaave.–Aquiestá!–dissePeri,tomandonasmãosaavealvejada.Asduasflechasestavammarcadas,eaquelaqueestavaencravada
naavetinhaamarcadeJuçara.Desdeentão,JuçarapassouaseraesposadePeri.Quantoàpobre
Moema,decidiufugirdaaldeiaeirseescondernamataparalamentara
suainfelicidade.Tupã,apiedadodamoça,decidiu,então,transformá-lanumaavede
cantomaravilhoso.–Oseucantoserátãobeloqueteráodomdecurarasuaprópria
tristeza–disseodeus.Moema,convertidanouirapuru–queemtupisignifica“pássaroque
nãoépássaro”–,passouamorarnafloresta,edesdeentãotodaelasilenciasemprequeseucantocomeçaasoar.
OSURGIMENTODANOITE
Algumastribosamazônicascreemquenocomeçodostempossóhaviadia.Erasoldemanhã,soldetardeesoldenoite,esóquandoasnuvensapareciaméquesetinhaumdescansoparatantaluzecalor.
Masmesmosemsol,continuavasempredia.Équeanoite,diziameles,estavaadormecidanofundodorioAmazonas,eatéalininguémseanimaraadespertá-la.
Naquelesdias,aCobra-Grande,umdospersonagensmaisimportantesdofolcloreamazônico,nãosóviviaàsoltaporaícomotambémtinhaumalindafilha.
Oesposodessajovemandavamuitochateado,poiselanãoqueriadormircomeledejeitonenhum.Adesculpadaesposaerasempreamesma:
–Deitarporque,seaindanãoénoite?Opobretentavaargumentar,dizendoquenãoserianuncanoite,mas
nãotinhajeito.–Sódeitoquandoanoitecer–teimavaela.–Masequemvaidespertaranoitedofundodaságuas?–Minhamãesabeosegredo.Mandealguématélábuscarumcoco
detucumã.Nomesmoinstante,omaridomandoutrêsserviçaisatélá.Apesardemortosdemedo–poisnãoháíndioquenãosearrepieao
escutaronomedessaentidade–,osserviçaisforamatéaCobra-Grandeerelataram-lheopedidodafilha.
–Nãooabramemcircunstânciaalguma!–sibilouaserpente,entregandoococoaostrês.
Ococoforaseladocomumacoberturadebreu,afimdeevitaratentaçãodacuriosidade.
Osemissáriosretornarampelorionamesmacanoaemquehaviampartido.Duranteotrajeto,ocococomeçouavibrar,eumsombaixinho,aomesmotemporoucoefininho,escapoudasuacascalacrada.
–Oqueseráisto?–disseumdostrêsíndios,colandoaorelhaaococo.
–Oquenãoéparaservisto!–disseotimoneiro,arrancandoococodocurioso.
Masoterceirotambémestavacuriosoe,tomandoococo,colouneleaorelha.
–Temummontedecoisasaquidentro!–disseele.–Talvezsejamjoias!–disseoprimeiro.Aoescutaressaspalavras,otimoneirotambémacabouporrender-
seàcuriosidade.–Estábem,vamospararacanoaeveroqueháaquidentro!Acanoaparoubemnomeiodorio,eelesacenderamuma
fogueirinhaparaenxergarmelhor.Comosempreacontece,oquemaisdiscursaracontraadesobediênciarevelava-seagoraomaisimpacienteporpraticá-la.
–Vamos,quebredeumavezessaporcaria!–disseotimoneiro,deolhosarregalados.
–Não!...Vamosretirarapenasobreu!–disseoutro,maiscauteloso.Comumamechadofogoelesderreteram,então,acoberturae
finalmenteabriramococo.Derepente,umanuvemnegraescapoudedentroeenvolveuacanoa
eorioeomundotodoenquantoosíndioscobriamascabeças,abaixados.Aomesmotempo,milharesdesaposegrilospularamparaforadococoeseespalharammundoafora,dandoànoiteasuainconfundíveltrilhasonora.
Anoiteseespalharaportudo,indoalcançaracasaondemoravaafilhadaCobra-Grandeeseuesposo.
–Veja,meumarido!–disseela.–Algoaconteceu!Maselenãopodiavernada,sequerasuaamadaesposa.–Senãopossovê-laduranteanoite,entãojamaisteremosanoite!–
disseele,enfurecido.Então,elefezmençãodeagarrá-la,mesmosemvê-la.–Não,espere!–gritouela.–Agorateremosdeesperarodia!Omaridocaiudarede,dedesgosto.–Ehaverádia,outravez?–disseele,desolado.–Sim,elenãotardará–afirmouajovem,confiante.Eassimfoi.Logo,umaluzinhadespontounaescuridãodoscéus.–Veja,aestrelad’alva!–disseela,apontandoaestrelaqueanuncia
odia.–Agoravousepararanoitedodia,detalsortequeteremosasduascoisas,alternadamente.
Comosurgimentodanoite,haviaocorridoumasériedemetamorfosesnanatureza.Bichoseavesdetodaespéciehaviamsurgido,equandoelaolhouparaomaridoviuquetambémelehaviasofridoumamudança.
–Meuadorado!–gritouela,radiante.–Quecujubilindovocêestá!
Opobremaridohaviasetransformadonumagalinhapretadepenasesverdeadas.
–Quebesteiraéesta?–disseeleaoacordar,agitandoasasasefalandojápelobico.
–Oh,quemaravilha!–disseela.–Apartirdeagora,semprequeodianascer,vocêcantaráparamimemedespertarádeumanoitedeliciosadesono!
Ajovempareciamesmofeliz.Penaqueomaridonãoparecessetãoanimadocomamudança.
–Querdizerquevouserestaavehorrorosaorestodavida?–Horrorosa?!–exclamouajovem,ofendida.–Oh,Mãe-d’Água!
Semprereclamando!Nestemomento,ostrêsemissáriosdesastradosreapareceram.
Imediatamente,omaridopulounadireçãodeles.Masparouaoverqueostrêsemissáriostambémestavamcomoscorposcobertosdepelosnegros.
Ajovemcomeçouarirdesbragadamenteassimquealuzdaauroralhepermitiuvermelhornoqueostrêsimprudenteshaviamsidoconvertidos:trêsmacacosdedentesarreganhados.
–Muitobem,toleirões,aíestáoprêmiodasuaimprudência!–disseomarido,sentindo-semuitobemvingado.–Doravanteirãopulardegalhoemgalho,dediaedenoite!
Ostrêsmacacosderamdeombros,arreganharamosdentesoutravezesaírampulandoparadentrodaselva.Suasbocasestavampretasetinhammarcasamarelasnosbraços,umresquíciodobreuardentequeespirrarasobreelesquandoarrombaramococonomeiodorio.
ACABEÇAQUEVIROULUA
Osíndioskaxináuasexplicamdeumamaneirarealmentecuriosaosurgimentodalua.
Ahistóriacomeçacomumacaçadaàcutia,umroedordasmatas.Doisíndioshaviamacabadodecaçá-laeretornavamàocadeumdeles.
–Hojeireiapresentá-loàminhamulher–disseoprimeiro.Quandochegaramdiantedaoca,porém,osolteironãoquisentrar.–Tenhovergonhadeapresentar-meassim–disseele,todosuadoe
despenteado.Odonodacasamandoueleesperaraliforaeretornouemseguida
comalgunsitensdehigiene.Oíndiotímidodeuumalimpadanosuor,ajeitouoscabelosecolocoualgunsenfeites.
–Pronto,estáperfeitamenteapresentável–disseoanfitrião,introduzindooamigonaoca.
Omaridoordenourispidamenteàesposaquedessedecomeraoamigo.
–Dê-lhetodacomidaquehouver!Queroquecomaatéestourar!Ajovemíndiatrouxeumalguidarrepletodecomida.Haviamingau,
macaxeira,bananasdetodosostipos,cruaseassadas,inhame,pipocaeummundodeoutrascomidas.
Ovisitantecomeuoquantopôdeedepoisguardouorestonumfarnelparalevarparacasa.
–Muitoobrigadopelaacolhida,masjáétardeedevopartir–disseele,afinal.
–Voucomvocê–disseoanfitrião,tomandoumfacãoantesdesair.–Paraqueofacão?–Voucortarmadeira.Estoufazendoumaenxadaeprecisodeum
cabo.Osdoispartirame,nomeiodocaminho,oanfitriãodesfeztodasas
gentilezasaocortarforaacabeçadooutro,semqualquerexplicação.Acabeçaroloupelochão,masocorpopermaneceuempé,
recusando-seamorrer.Enraivecido,omatadorcaiudefacãosobreocorpoatéprostrá-losemvida.
Enquantoisso,acabeça,emboracaídasobreosolo,permaneciaviva.–Queestáolhando?–rugiuomatador.Acabeçanãodissenada,masaspálpebrasbateramváriasvezes.Diantedoquejulgouumaafronta,omatadorcortouumpedaçode
paucomofacão,aguçou-oeenfiouacabeçanaponta.Depois,colocouomarcomacabrobemnomeiodocaminhoedeunopé.
Logoemseguidasurgiuoutroíndio,tambémcaçador,quetomouumgrandesustoaoveraquelacabeçaespetadanaencruzilhada.
–Queroverdireitooqueéisto!–disseele,indopéantepé.Aochegarmaisperto,viuqueacabeçaaindabatiaaspálpebras,
derramandolágrimasenormes,eseucoraçãoencheu-sedeterror.–Anhangá!–gritouele,certodeestardiantedeumavisagem.Enquantofugia,porém,deu-secontadequeaquelacabeçapertencia
aummembrodesuatriboefoicorrendocontaraosrestantes.–Nossoirmãofoimorto,esuacabeçajazespetadanomeiodamata!Aosaberemdanotícia,todosdatribojuntaram-seeforamvero
prodígio.Umamultidãodeíndioscercouacabeçacomosefossemconsulentesávidosdeumoráculodasmatas.Sóqueaboca,apesardebateroslábios,nãoconseguiaemitirumaúnicapalavra.
Entãoumíndiomaisdestemidoarrancouacabeçadoposteeatirou-anumcesto.
–Vamosembora,naaldeiaveremosoquesehádefazer!–disseele,partindo.
Osíndiosseguiramatrásdovalentãodocesto,atéque,dadosalgunspassos,acabeçavarouapartedebaixodosamburáecaiuquicandonochão.Osquevinhamatráscomeçaramapular,esquivando-sedacabeçacomosefossedefogo,atéqueelaparouderolaraoalcançarumbarranco.
–Vamos,coloque-aemoutrocesto!–disseolíder.Acabeçafoiacomodadaeaprocissãorecomeçou,atéoinstanteem
queacabeça,apoderdedentadas,arrombouatramadofundooutravez.Umanovaefrenéticadançarecomeçouatéalguémsugerirquedeveriamretornarparaenterrarotroncodoíndiomorto.
–Enterradoocorpo,acabeçasossega–disseosabichão.Quatroíndiosretornarameenterraramocorpo.Aovoltarem,porém,
paraacompanhiadosdemais,encontraram-nosaospulos,poisagoraacabeça,alémdequicar,queriamorderatodos.
–Coloque-anumcestoforradoeleve-anascostas!–gritouochefeaumíndioparrudo.
Oíndiofezoqueochefemandara,eacomitivaretomouamarcha.Derepente,porém,escutou-seumberroagoniado.Todosvoltaram-
seeviram,estarrecidos,acabeçaensandecidacomosdentesnaorelhadoíndio.
–Socorro,acudam!–guinchavaopobrecoitado.
Então,ochefetomouumadecisãorealmentesábia.–Deixemessacabeçaaímesmo!Eladeveestaramaldiçoadaesóirá
espalharmalefíciospelaaldeia!Todosconcordaramaumasóvoz,menosacabeça,queaover-sesóe
abandonadacomeçouaquicarvelozmenteatrásdeles.Então,foiumespalhardeíndiosemtodasasdireções.Alguns
buscaramasalvaçãoaoavistaremumriodeáguasrevoltas–Mergulhemos!Cabeçanenhumasabenadar!Todoscaíramnaáguaebracejaramcomfúriaatéalcançarema
outramargem.Estiradosnarelva,ensopadosesemfôlego,elesrelancearamumolharparaacorrentezadorio.
–Éela!–gritouumdeles.–Anhangávemvindo!Evinhamesmo.Fazendodasorelhasduasnadadeiras,acabeça
avançavavelozmente,espalhandoáguaparatodososlados.Entãoosíndiosreuniramoquelhesrestavadefôlegoetreparam,
comaagilidadedeonças,numpédebacupari.Ládoaltoelesviramquandoacabeça,apóssairdaágua,sacudindo-seecuspindoáguacomoumchafariz,começouarolarsinistramenteatéabasedaárvore.
Naquelaárvorehavia,agora,maisíndiosdoquefrutosdependurados.
–Desçamousacudireiestaporcariaatécaíremtodos!–rugiuacabeça,adquirindo,subitamente,odomdafala.
Aoverqueninguémaobedecia,acabeçacomeçouadarmarradasnotronco,comoumcabrito,enquantoosíndiosbalançavamnoaltocomofolhasnumvendaval.
Derepente,porém,acabeçaparou,talvezmeiotontacomtudoaquilo.
–Antesdedescerem,deem-mealgumasfrutas,poisfiqueicomfome!–gritouela.
Instantaneamentecomeçaramachoverfrutossobreacabeçaesfomeada.Eladeualgumasdentadasnosfrutos,mascuspiutudo,enojada.
–Pfúi!Estãoverdes!Deem-meosmaduros!Desses,elagostou.Penaque,aoengoli-los,eleslhesaíampelo
pescoçocortado,semnuncamatar-lheafome.Mesmoassim,continuavacomendo-os.
Então,umdosíndiostrepadosteveumaboaideia.
–Joguemlongeosfrutos!Assimpoderemosfugirenquantoelavaibuscá-los!
Osfrutosforamarremessadosomaislongepossível,eacabeçasaiurolandoparaapanhá-los.
–Éagora!–gritouoautordaideia.Numasóvez,despencaramtodososíndios.Nembemseuspés
haviamtocadoosolo,puseram-seacorrerparaaaldeiafeitolunáticos.Aochegaremlá,encerraram-setodosemsuasocaseficaramesperandoopior,queeraachegadadacabeçamaldita.
Todosespiavamporentreasfrestasdasocas,atéqueseescutou,cadavezmaisnítido,umtum-tum-tumsinistrocrescerdedentrodamata.
–Anhangá!Éela!–gritaramvozesesganiçadasdetodosossexos.Acabeçafinalmentesurgiuefoipostar-senocentrodataba.Apenas
algumastochasiluminavamotétricocenário,poisnaqueletempoaindanãohavialumináriaalgumanoscéus.
–Toleirões!Senãomedeixarementraremsuasocasvoulançarumamaldiçãoquevaireduzirsuaaldeiaacinzas!
Osilêncio,porém,permaneceu,eentãoacabeçapassouagritarumamisturaincoerentedepromessaseameaças,quesóserviuparaaterrorizaraindamaisosíndios.
–Nãomedeixarãoentrar,então,malditos?Poissaibamque,apartirdehoje,subireiaoscéusemeconvertereinalua!Minhacabeçaseráalua,emeusolhos,asestrelas!Aparecereiemquartos,equandofizerminhaprimeiraapariçãoasmulheressangrarão,equandoestivercompletanoscéusoscãeseosdoidosseporãoauivarparamim!
Nesteinstante,umurubudesceudoscéus,farfalhandosuasasasnegras.Depoisdeenterrarsuasunhasaduncasnoscabelosdesgrenhadosdacabeça,aavesubiu,levando-aconsigo.
Todosviram,abandonandosuasocas,quandoourubugigantedepositouacabeçanoaltodocéu.Imediatamenteelacomeçouafosforesceremprateado,edassuasórbitasespocarammilharesdefaíscasdamesmacorque,apósseespalharemportodososquadrantes,seconverteramemestrelas.
Efoiassimque,segundooskaxináuas,aluasurgiu.
OFURTODOFOGO
Segundoosíndiostembés,nostemposmíticosofogotinhaumúnicodono:ourubu-rei.Comoourubueramuitoavarodasuapreciosidade,osíndiosnãopodiamfazerusodechamaalguma,equandoqueriamcomercarnesólhesrestavaoexpedientedeexpô-lalongamenteaosol.
Issofoiatéodiaemqueumíndiomaisdestemidoresolveudarumfimàquilo.
–Vamosatrairourubu-reieasuatropainteira–disseele,matandoumaantaenorme.
Depoisdesangrarembemobicho,elesdeixaramocadáverexpostoaosol,paraatrairosurubus.
Nãodemoroumuitoeourubu-rei,atraídopelofedordacarniça,desceusobreaanta.
–Viva,temoshojebanquetefarto!Vamoslá,companheiros,hácarniçaparatodos!–disseele,dandoumgrasnido.
Logoocéuanoiteceucomachegadadeumaverdadeiranuvemdeurubus.Abicharadacaiusobreaanta,masalguémteveaideiadeacenderumfogoeprepararacarnenagrelha,ounomoquém,comosedizentreosíndios.
–Carnemoqueadatambémtemlásuasdelícias!–disseourubu-rei,retirandodedebaixodaasanegraumtiçãomuitobemescondidoparaacenderagrelha.
Osurubus,naqueletempo,tinhamodomdesetransformaremgentee,assim,antesdeselançaremàcomilança,despiramasasaseficaramcomaaparênciadehomens(daí,talvez,ogostoquetinhamemassaracarne,aoinvésdecomerem-nacrua,comohojenormalmentefazem).
–Ufa!Quecalorão!–disseourubu-rei,despindoomantodepenas.Nusfeitogente,osurubusatiraram-sefinalmenteàcarne,ejusto
nesteinstante,irrompendodedentrodamata,surgiramosíndios,deolhoacesonofogoqueardianagrelha.
–Depressa!Apanhemumtição!–gritouovelhopajé,organizadordoassalto.
Umgritodealertadourubuquevigiavaavisou,entretanto,osdemais,elogotodosvestiramseusmantosnegrosdepenaselevantaramvooestabanadamente.Antesdepartir,ourubu-reitomouaúltimafagulhaqueardianagrelhae,depoisdeocultá-ladebaixodaasa,juntou-seàs
demaisavesnocéu.Opajécorreualucinadamenteatéagrelha,remexeunoborralhoe
encontrouumúltimocaquinhodecarvão,comumalistrinhalaranjacorrendopraláepracá.
–Aqui!Aqui!–gritoueleaosdemais.–Vamos,assoprem,nãodeixemapagar!
Quinzebocascercaramocarvãozinhoecomeçaramaassoprá-loagoniadamente,masofizeramcomtantaforçaquealistrinhalaranjaacabouporsefinar,eocarvãonuncamaisseacendeu.
–Idiotas!–exclamouopajé,irado.Quandoseacalmouumpouco,porém,viuqueaantaaindaestava
quaseinteira.–Elesvoltarãologo–disseele,animando-seoutravez.–Destavez,
vouficarbempróximodagrelha,evocêsdesapareçamesósurjamquandoeuordenaroataque!
Ostembésfizeramcomoopajéordenara,enquantoeletratavadecavarumburacobemaoladodacarniçaafimdeseenfiaralidentro.Omaucheirodaantadecompostaerainsuportável,masquemdissequefurtarfogoeracoisafácileprazenteira?
Daliapouco,osurubusvoltaram,loucosdefome.Apósdespiremseuscasacospretos,quefediammaisdoqueacarniça,reacenderamofogoerecomeçaramabanquetear-se.
Enquantocomiam,opajéaproveitouparairromperdasuatoca,ágilcomoumamarmota,emeteuamãodentrodagrelhaparaapanharumtição.
Assustados,osurubusapanharamsuasvesteselevantaramvoooutravez.Ourubu-reiaindatentouresgatarotição,oupelomenosextingui-lonamãodopajé,fazendoumaventaniadanadacomasasas,masovelhoíndiocerraraosdedoscomtantaforçaquenemumfuracãoteriacomoapagá-lo.
Nofimdetudo,osurubussumiramnoscéus,eopajéviu-sedonodotição,queaindaardiaemsuamão.QueAnhangáocarregasseseaquilonãoardiacomocemmilespetadas!
ComoumPrometeuenlouquecido,opajétratoudeatearfogoemtodasasárvoresdelenhoincandescentequeencontrava,afimdepreservarachama,eteriacolocadofogonamatainteiraseosdemaisíndiosnãotivessemcorridoparaapagaraquelaslabaredastodas.
COMOSURGIUOOIAPOQUE
OsíndiosoiampisexplicamdemaneiramelancólicaosurgimentodorioOiapoque,noextremonortedoBrasil.
Tudocomeçounumtempomuitoantigo,quandoafomeeadoençaestavamafligindoaaldeiadosoiampis.Tarumã,umabelaíndia,estavagrávidaedecidiuprocurarumlugarlivredamoléstiaedapenúriaparacriarseufilho.Comabarrigapesada,apequenaíndiacomeçousuaperegrinaçãosolitáriapelamata,maspassadosalgunsdiassentiuquenãoteriamaisforçasparairalugaralgum.
–Ó,Tupã,nãopossomaisdarumpassoemorrereicommeufilhonoventre!–exclamouela,sozinhaeesfomeadanomeiodamata.
EntãoTupã,apiedado,transformou-anumaenormecobra.Tarumã,convertidanessacobra,encontrouforçasparaseguir
adiante,levandosempreofilhonoventre,atéque,umdia,encontrouumlugaraprazível,ondehaviaáguaeterraboaparaplantar.
–Aquihaveremostodosdeviver!–disseela,pensandoemretornaràspressasparaavisaragentedasuaaldeia.
Antesderetornar,porém,eladeuàluzumamenina.–GraçasaTupãnãonasceuumacobrinha!–disseela,aninhando
nassuasdobrasopequenoser.Tarumãrefeztodootrajetocomameninanagarupaatéchegarde
voltaàsuaaldeia.Entretanto,viu-sesurpreendidapelapéssimarecepçãodosseus.
Enãoeraparamenos,jáqueTarumãaindaostentavasuafiguradecobragigante.
–ÉaCobra-Grande!–disseumíndio,apavorado.Desdetemposimemoriaisqueosíndiosamazônicosnutremum
medoatrozdaCobra-Grande,umserfrioedevastador,cujoúnicopropósitoéalimentar-sedeíndioseanimais.Imediatamente,umgrupodevalentessurgiucomarcoseflechasecomeçouaarremessarumaverdadeirachuvadesetasparacimadapobreíndia-cobra.
Tarumãnãofoiatingida,protegidaqueestavaporsuasescamas,massuafilhinhanãoteveamesmasorteeacabouvaradaporumaflechadacerteira.
Aoverafilhamorta,acobralançouparaoarumsilvodedore
tristezatãoaterradorqueosíndiossaíramcorrendoemtodasasdireções.Imediatamente,umverdadeiroriodelágrimasbrotoudaspupilasdacobra,preenchendotodoosulcoqueelaabriraduranteasuaviagemdeidaedevolta.Umrioimensoformou-se,eacobramergulhounassuaságuascaudalosas,desaparecendoparasempre.
OSPOTESDANOITE
Dizemosíndiostembésqueoutroraocéunãoeratãoaltocomoagora,equeumdiaospassarinhosetodasasavesdocéu,querendomaisespaçoparaassuasacrobacias,convocaramumareuniãoparapôroassuntoemvotação.EsseencontrofoiquasetãoconcorridoquantoafamosaAssembleiadosPássaros,ocorridaláparaasbandasdoOriente,etinhaavedetodososjeitos,atémesmocriaturasquedeavessótinhamasasas,talcomoomorcego.
Aliás,omorcegofoioúnicoserprovidodeasasquerepudiouaideiadesuspenderotelhadodocéu.
–Océujánãoestáaltoobastante?–disseele.Masasavesnãoqueriamsaberdecéubaixoeaprovarampor
esmagadoramaioriaaelevaçãodaabóbadadoscéus.Foiumatrabalheiraimensa,masasavesconseguiram,afinal,erguer
ograndetelhadoazuldetalmodoque,apartirdali,sobrouespaçoparaaspiruetasaladasdetodososseresamigosdoar.Omorcego,porém,foipunidoporsuacasmurrice,edesdeentãopassouadormirdeponta-cabeça.
–Dehojeemdiante,dormirácomocéudebaixodospés!–disseacoruja,aodecretarasentença.
Mas,seospássarosestavamfelizescomasuspensãodocéu,osíndioscontinuavamdesgostososcomascoisasdoalto.Océuforasuspenso,masedaí?Nemporissoaclaridadediminuíra,jáquenãohavianoite,ainda,empartealgumadouniverso.Ostembésnãoaguentavammaisdormircomluznorosto,eeraprecisofazeralgumacoisaparaterem,pelaprimeiravez,umanoitededescansoreal.
Atéqueumdiaumvelhoíndio,chegadodosfundosdamata,trouxeumagrandenovidade.
–AcabeidedescobrirolocalondeomauespíritoAzãescondeseusdoisgrandespotes!
Aquilopareciahistóriadeumvelhomaluco,mas,mesmoassim,ocaciquedecidiutiraradúvida.
–Estáfalandodospotesqueguardamanoite?–disseele.–Sim,sim,elesmesmos!–bradouovelhote,sapateandoospésnus
sobreopó.Nomesmoinstante,ocaciqueorganizouumaexpediçãoàmatapara
arrebatarosdoispotes.Eleseramnegroscomoanoitequeescondiame
estavammetidosentreosjoelhosdovelhodemônio,quenuncadormia.Quantomaisseaproximavam,maisescutavamoruídoquehaviadentrodospotes.Équedentroestavamguardados,alémdanoite,todososseresesparrentosqueapovoam,taiscomoosgrilos,ossaposetodaafaunagritonadastrevas.
–Tirarospotesdomeiodaspernasdodemôniojásevêquenãodá–disseocacique.
Então,chamandoseuarqueiromaishábil,ordenou-lhebaixinho:–Vareaquelesdoispotescomumaúnicaflechada.Oarqueirorastejounomusgoatéencontraraposiçãoideal.Quando
teveacertezadepoderespatifarosdoiscântaroscomumaúnicaflechada,eleabandonouaposiçãodecobrarastejanteeficoudejoelhos;depois,alçouoarcoecaprichoubemnamiraparasóentãodispararaseta.Umzumdeventocruzouamataepassouporentreaspernasdodemônio,espatifandoumdosvasos(ooutro,Azãconseguiuproteger,poisenganava-sequempensavaqueeledormia).Dequalquerjeito,umdospotesseespatifara,eseuscacossaltaramnacaradodemônio,deixando-omomentaneamentecego.
Comaexplosãodoprimeiropote,umjatovelozdetrevasjorrouparaforae,depoisdeengolirodemônioeseespalharportudo,continuouavançandoportodaaselva.Juntocomatreva,vinhamoshabitantesdanoite–onças,aranhas,cobras,morcegos,mosquitosepredadoresdetodaespécie,queseaproveitamdaescuridãoparaespalharoseureinadodeterroredesangue.
Aoveremaquilotudocrescerparacimadeles,osíndioslargaramacorrercomquantaspernastinham,poisanoiteserevelarapior,afinal,doqueodiasemfim.Elessópararamquandochegaramàsuaaldeia.Quasejuntocomeleschegouanoite,eentãoelesdesabaram,exaustos,sobreochão,poisnãohaviaquempudesseresistiràquelagostosaescuridãoparatirarumbomronco.Quandoestavam,porém,nobomdosono,abarradodiacomeçouaerguer-seoutravez,eumraiodesolferiuoolhodocacique.
–Danação!Quenoitemaiscurtaéesta?Defato,anoiteforamuitocurta.Então,elepercebeuqueteriade
quebrartambémosegundopote,queaindarestarainteironaselva.Oarqueiro,pressentindoochamado,apresentou-se,solícito.–Vocênão!–disseomorubixaba,expulsandooarqueirofajuto.Entãomandouchamarourutau,umdosajudantesdesuapredileção.
(Naqueledias,ourutaueraaindaumíndio,comotodososoutros.)–Vávocêatéamataequebreosegundopote!Urutautomoudoarcoesefoi,emborapressentissecoisaruim.Ao
chegarpertodeAzã,viuqueeleaindaesfregavaosolhosmagoadoseaproveitouparaarremessarasuasetasobreopote.
Resultado:ovasorachouinteiro,enovaondadetrevasseespalhouportudo.
Assustado,oíndio-urutauabriuocompassodaspernasecomeçouacorrercomtodaaenergia,masacabouenredandoospésnumemaranhadodecipós,indodardecaranarelva.Então,antesquepudesseerguer-se,atrevafinalmentealcançou-o.Oíndiodeuumgritoecobriuacabeçacomosbraços.Quandodestapou-se,porém,foicomumpardeasasqueofez.Tambémumbicoenormehaviacrescidonolugardaboca,eumpardeolhosamarelosearregaladosdavaagoraàsuacaraumarpermanentedeespanto.
Efoidesdeestediaqueourutaudeixoudeserumíndioparaconverter-senaavenoturnaquehojeseconhece.Denoite,ourutaugrita,eduranteodianãofazoutracoisasenãoestarempoleiradonumgalhoeacompanhar,deolhosarregalados,amarchadosolpeloscéus.
OGAVIÃOEODILÚVIO
Havia,numtempoantigo,doisirmãoscaçadoresdatribodostembés.Certafeita,decidiramsubirnumaárvoreparapegaroninhodogaviãoUiruuetê.Depoisdeimprovisaremumaescadadevaras,chamadamutá,omaisvelhoprontificou-seasubir.Eofez.Embaixoficaramsuaesposaeoirmãomaisnovo.
Derepente,algocaiudoaltoefoienroscar-senoscabelosdoirmãoqueficaraembaixo.
–Deixequeeudesenrosco–disseaesposadoíndioquehaviasubido.
Comdedoshábeis,abelaíndiapôs-seavasculharocabelodocunhado.Aovertudoissoládecima,oirmãomaisvelhoficoucheiodeciúme.
–Estoutonto,subavocê!–disseeleaoirmão,descendo.Osdoistrocaramdelugar.Oirmãomaisnovosubiu,enquantoo
outro,jánochão,cortavaascordasqueuniamosdegrausdaescada,desconjuntando-atoda.Depois,tomandoaesposapelobraço,arrastou-aparacasa,deixandoojovemdependuradonoalto,semmeiosdedesceroutravez.
Ojovemgritou,masoirmãomaisvelhodeixou-oentregueàprópriasorte.
–Estavocêhádemepagar!–disseele,brandindoopunho,ládoalto.
Então,semtermaisnadaparafazer,decidiuvasculharoninhodogavião.
–Háapenasumfilhote–disseele,aoinspecionaroespaçosoninho.Derepente,porém,chegouaesposadoUiruuetê,agitandoas
grandesasas.Umpequenotufãoquasederrubouoíndio,queficouparalisadodemedo,poisagoraeraogaviãoouoabismo.
Numprimeiromomento,elepreferiuarriscarcomaesposadogavião.
–Oquequeraqui,criaturapelada?–disseaave,encostandoobicoaduncononarizachatadodoíndio.
Oíndioconfessouquetinhaidoaliparapegaralgunsovos.–Poisdaquinãosairámais–disseaave,empurrando-ocomasasas
paraofundodoninho.Oíndiosorriuamareloedissequefaziamuitogostoemficarporali.–Comgostoousemgosto,éassimqueserá–disseaesposado
Uiruuetê,atirandoaospésdoíndioocadáverdeummacaco.–Esfoleobugioatéeleficarparecidocomvocê.
Oíndiocomeçouaesfolaromacaco,maseratãodesajeitadoquelevouumtempãoparaarrancarapenasumpedaçodopelo.
–Olhelá!–disseaave,derepente,apontandoparaocéu.–Agoravocêvaivercomosefaz!
EraoUiruuetêchegandopelosarescomoutromacaco.Ogaviãomachopousouefincoulogoseusolhosarregaladosno
intruso.–Porquetrouxeestacomidaimprestávelparaonossofilhote?–
disseeleàesposa.–Nãosabequeacarnedessaraçaimundanãoagradanemaosurubus?
–Eleéonossonovoesfolador–disseela,semseintimidar.–Oquê?!–Éissomesmo.Estoufartadepelarbugiosenquantovocêvoa
alegrementeporaí.Atélogo.Ensine-oapelarosmacacosqueeuvoudarumavolta–disseela,levantandovoo.
Uiruuetêeoíndiopassaramorestododiacobertosdepeloedesanguecoaguladoenquantoofilhotinhodogavião,aosseuspés,nãoparavadepiar,loucodefome.
–Vocêgostariadetornar-seumgavião?–disseoUiruuetê,aofimdotrabalho.
–Estábrincando?–disseoíndio,nauseadodospésàcabeça.–Émuitomelhordoqueserhomem–disseogavião.–Nãogostaria
devoar?Oíndiopensounisso,edepoisnoirmãoqueoabandonaraali,eem
todaaraçahumanaquenãovaliamuitomaisdoqueoirmão,etomoufinalmenteadecisão.
–Muitobem,sereiumgavião!NomesmoinstanteoUiruuetêergueuvoo.–Espereaí,eujávolto!Oíndioolhouparabaixoedisseasimesmo:–Queoutracoisapossofazer,semasaouescada?Daliapouco,ogaviãoretornoucomumbandodeseuscolegas.O
índiosentiuosanguegelaraoimaginarqueestavaprestesaser
transformadonãoemgavião,masnopratoprincipaldessaespécie.Osgaviõespousaramnoninhoecomeçaramumadança,atéqueo
índiosentiucrescer-lheportodoocorpoummantodepenas.Seusbraçosviraramasaspossantes,esuaspernasconverteram-seemdoismembrosásperosqueterminavamempatasdededoscomunhasaduncas.
–Oquehouvecomigo?–disseele,apalpando-setodocomasasas.–Vocêagoraéumdenós!–disse,triunfante,oUiruuetê.Oíndiograsnoualgoquenemmesmoosgaviõesentenderam.–Agoravamostiraradesforradoseuirmão!Oex-índioaprovouaideianahoraelançou-sejuntocomosoutros
nadireçãodaaldeia.Quandochegoupróximoaela,viuoirmãopintando-separaumagrandefestaqueiriaacontecernataba.
Aoveremobichopousado,osamigosdoíndioalertaram-no:–Vejaqueenormegavião!Acerte-ocomumaflechada!Oíndiogabolatomoudoarcoedisparouumaflechada,masogavião
desviou-secomnotáveldestreza.Outraflechafoiarremessada,edenovoogaviãodesviou-se.Então,fartodobrinquedo,ogavião-índioavançousobreoirmãoeenterrouasgarrasnoseucabelo.
–Socorro!–gritouodesgraçado,aomesmotempoemqueerasuspensonoar.
Aoalcançarumaboaaltitude,todososoutrosgaviõeslançaram-sesobreapresa,picando-ovivoemplenoar.Umachuvadeossosfoitudooqueretornoudoíndiomortoàsuaaldeianatal.
–Agoratratederetirarseuspaisdaaldeia,poisvamosatacá-la–disseoUiruuetê.
Ogavião-índiochegouàocadospaisedisseparaviremcomele.–Nãovamos!Vocêconverteu-seemdemônio!–responderam.Entãoogaviãocresceuemtamanhoe,depoisdeagarraraocacomo
bico,suspendeu-anosares.Aoveremaquilo,osdemaisíndiostentaramimpedirafugadaoca
voadora,pulandoeestendendoosbraços.Ospajéstomaramdosseuscachimbosepuseram-seaassoprarafumaçanadireçãodaoca,masistosóserviuparaempurrá-laaindamaisparalonge.
Assimqueaocadesapareceuporentreasnuvens,umachuvaradaequivalenteadezriosTocantinssendodespejadosdoaltocomeçouadesabarsobreaaldeia,submergindotudoemminutos.
Alguns,porém,conseguiramescapar,escalandopalmeiras.Duranteváriosdias,imersosemtrevas,eleslançaramcoquinhossobreaságuasparaverseelashaviambaixado,masoruídosoavasemprepróximo.
Então,começaramachamar-seunsaosoutros,paraverseaindaviviam,etantogritaramqueoseuvozerioroucoacabouportransformá-losemsapos.
Alendanãoespecificasetodososíndiossobreviventessetransformaramemsapos,masdevemoscrerquenão,poisdoutraformaostembés,hoje,seriamtodoshabitantesdosrios.
ACONVERSÃODEAUKÊ
AukêéumpersonagemdatriboKrahó,dasmargensdorioTocantins.Mesmoantesdenascer,essesersingularjáandavaaprontandoporaí,comoveremosagora.
Équeelenãoquerianascerdejeitonenhum.Assim,osmesesdagestaçãosepassavam,eelepermaneciaescondidonoventredamãe.Sóànoiteéqueeledavaumasaidinhaparavercomoeraomundo,transformadonumapreáounumapaca,maslogoaoamanhecerretornavaligeirinhoparaasuamoradanaturaleaconchegante.
Atéqueumdianãotevemaisjeito,eopequenoAukêfoiobrigadoafazerasuaentradaoficialnomundo.Todosoacharamumbelomenino,maselecresciamuitorapidamente.Alémdisso,tinhaodomrealmenteimpressionantedeficarigualzinhoatodososquedeleseaproximassem.
Assim,certafeita,aoreceberavisitadomembromaisvelhodaaldeia,umvelhotedecostasencurvadas,omolequetransformou-seinstantaneamentenumanciãoigualzinhoaele.
–Comovaionossomenino?–disseele,gengivando.–Seuvelhosujo!–respondeuomoleque,quetinhaviradooutro
velhosujo.Quandoovelhosaiu,chegouumhomembranco,debarbanacara.
Instantaneamenteumabarbapretacresceunorostodoindiozinhoatéeleficarcomacaraidênticadohomembranco.
SóquandocorriaparaosbraçosdamãeéqueAukêvoltavaaserumindiozinhonormal,pequenoepraládemoleque.
Essasmetamorfoses,porém,enchiamdeterroraaldeiainteira,elogotrataramdeenxergarnomeninoumaencarnaçãoqualquerdeAnhangá,ouoDiabodoshomensbrancos.
Então,quandoomedoestavabementranhado,passou-seestaconversaentreopaieoavôdeAukê,doisíndiosmuitomalvados:
–QuefaremoscomestacriadeJurupari?–disseopai.–Sóháumjeito–disseoavô,assoprandoamãocomoquemsopra
umrestodepó.Paraquemnãoentendeu,elestramavamamortedomenino.Assim,
namanhãseguinte,oavôavistouAukêbrincandonobarroelhedisse,comoquemconcedeomaisaltoprivilégiodaTerra:
–Venha,meunetinho!Venhapassearnamatacomovovô!Aukêlevantou-seeseguiu-o.Destavez,opequenoAukê,poralguma
razãoquesóaslendasexplicam,nãosetransformounumacriaturaigualaoavô.
Osdoiscaminharammataadentroatéchegarempróximoaumabismo.
–Olhesócomoébeloeprofundo!–disseovelho,conduzindoomeninoatéabeira.
Aukêolhousuperficialmente,sóparasatisfazeroavô,poisnãoachavagraçaalgumanaquilo.
Nesteinstante,ovelhoempurrouogurievoltoutrotandoparaaaldeia.
Felizmente,nembemcomeçaraacair,ogarototransformou-senumafolhasecaefoidescendodemansinhoatépousar,sãoesalvo,nosolo.Nomesmodia,Aukêvoltouparacasacomosenadativesseacontecido.Aovê-lo,oavôcorreuparaabraçá-lo.
–Meunetinho!Penseiquetivessecaídoemorrido!Todosnóslamentávamosodesastre!
Atribointeiraestavaconsternada,sim,maseraporteromeninodevolta.
Nodiaseguinte,oavôlevouAukêparaumnovopasseionamata.Aochegaremnasbrenhas,ovelhomandouonetinhojuntarmadeiraefazerumafogueirabemgrande.
–Fogueirapraquê?–perguntouomenino,torcendoaboca.–Vamosmoquearumacarne!Ogarotoficouolhandodesconfiadoparaovelho.Moquearcarne
paraque,seoavônãotinhamaisnenhumdentenaboca?Ofatoéque,quandoafogueiraestavabemaltaecrepitante,ovelho
chegoupelascostasdeAukêeempurrou-oparadentrodaslabaredas.Destavez,nãohouveprodígioalgum:ogurientrounaschamasenão
saiumais.Apartirdaqueledia,olugarondeAukêmorrerasetornoulugarde
maldição,easpessoassóiamláemgrupos,afimdesaciaremasuasededemorbidez.
Numadessasexcursões,osvisitantesderamdecaracomumacasinhaerguidanolugarondearderaafogueira.Haviaalguémládentro,poisecoavavozdegente.
Assustados,osindígenasvoltaramcorrendoparaaaldeia.–Aukêressuscitoueestámorandonumacasa!–disseumdos
fugitivos.–Onde?–gritouoavô.Umsegundoíndio,quenãoreconheceraovelho,esclareceu:–Láadiante,ondeoavômalvadoqueimouvivooneto.Todosreuniramcoragemevoltaramaolugar.Defato,láestavaa
casa,e,aoseuredor,umagrandeplantação.DedentrodacasasurgiuAukê,umíndioadulto,agora.Eleestavacasadocomumaíndiaeambospassavammuitobem.
–Vovô,comoestá?–disseAukê,aoreconhecerovelho.Emsuavoznãohaviaomenorsinalderancor.–Podeentrarsemsusto,meuavô,poisnãoguardorancoralgum.
Tornei-mecristão.Ovelhoficoudesconfiado.EntãoAukêlevoutodosatéabeiradorio,paralhescontaruma
parábola.Depoisquesetornaracristão,eleaprenderaapregarmoraleachouqueaquelaeraumaexcelenteocasiãoparaisso.
Aukêtomouumapedraelançou-aàágua.–Viramcomoelavaiaofundoaocair?Todosbalançaramobedientementeacabeça.–Assimseráaalmadevocêsquandomorrerem.Cairánopoçoda
morteenãosubiránuncaaocéu.Todosengoliramemseco.Aukêtomououtrapedra,envolveu-anumafolhasecaearremessou-
atambémnaágua.Apedratambémfoiaofundo,masafolhadestacou-seesubiuligeiroàtona.
–Aquelafolhaéaminhaalma.Apedraéocorpoquedesceàsepultura,masaalmacristãsobeimediatamenteaocéu.
Depoisdapregação,osíndiosforamlevadosdevoltaparaacasadeAukê.TodosderamgraçasaTupãqueocastigoselimitaraaumaameaçavaga.Aukêpresenteou-osricamente,dando-lhesespingardas,facões,pólvora.Àsuamãeeledeuumcaldeirão.Depois,despediu-sedetodos,fazendo-lhesosinaldacruz.
–Voltemsemprequequiserem,meusirmãosemCristo,equeDeusosabençoe!
KOIERÉ,OMACHADOCANTANTE
Osíndioskrahós,dorioTocantins,possuíamoutroraummachadomágicochamadokoieré.Sualâminaerafeitadepedra,emformatodeâncora,eeleerausadotantonaguerraquantonascerimôniasreligiosasdatribo.
Oskrahósviviamemguerracomseusvizinhos.Oseumaiordesafetoeramoskrolkametrás,umatriborival.
Certafeita,asduastribosestavamseenfrentando,quandoumaflechadacerteiraabateuoportadordomachadocantante.Ovalenteguerreirokrahócaiuparaumlado,eomachado,paraooutro.
Comoumraio,omatadorcorreueapoderou-sedaarma.–Agoraokoierépertenceaoskrolkametrás!–urrouele,brandindo
noaromachado.Findaamatança,todosvoltaramsatisfeitosparaassuascasas,cada
ladolevandoosinimigosmortosparaseremassadosnasgrelhas.Masquemiafelizmesmoeraonovoportadordokoieré,queera
casadocomumabelaíndia.Antesmesmodechegaremcasa,decidiuque,agoraquesetornaraumpersonagemimportantedaaldeia,deveriaarrumarcoisaaindamelhordoqueasuabelaíndia.
Nãodemoroumuito,apareceuumacandidata,eoíndiosemudouparaaocadela.Napressa,porém,acabouesquecendoomachadodependuradoemcimadasuarede.
Duranteanoite,aíndiaabandonadaescutouporentreosintervalosdosseussoluçosomachadofalar-lhe:
–Mamãe,vamospassear!Índiassãomuitomaternais.Poralgummotivo,omachadopassaraa
chamá-lademamãe,ebastaraissoparaelaficarenternecidacomoobjeto.Tomando-onosbraços,elasaiuportaaforaparapassear.
Duranteanoiteinteiraaíndiaenjeitadaembrenhou-sepelasmatas,enquantoomachadolheensinavatodasascançõesdeamoredeguerradoskrahós.
Logo,todaaaldeiaficousabendodocaso,eanotíciaseespalhou,chegandoàaldeiadoskrahós.Então,oirmãodoprimitivodonodomachadodecidiurecuperá-lo.
Aestaaltura,onovodonojáhaviaretomadooobjetoefoicomraivaquerecebeuavisitadoemissário.
–Deformaalgumaorestituirei!–bradouele.
Masocaciquedatribodissequehaviaregrasqueoobrigavamarestituiroobjetoaosinimigos.
–Anhangáemaldição!–rosnouonovodono.–Poissaibamquesóorestituireiàquelequemevencernacorridadetoras!
Corridadetoraseraumacompetiçãoqueosíndiosdisputavamtendoatravessadaàscostasumatorademadeiradecercadeummetrodecomprimento.
–Quemmevencerpoderánãosólevardevoltaomachadocomomematarecomeracarnedomeucorpo!–disseodesafiante,seguríssimo.
Oemissárioretornouaoskrahóserepetiuaopretendenteodesafio.–Corridadetorasnenhuma!–disseeste.–Vamosreaverokoieréà
força!Entãooskrahósarmaram-sedeflechaseporreteserumaramparaa
aldeiadoskrolkametrás,prontosparamaisumabeladançadasflechas.Quandochegaramàdivisadaaldeiainimiga,foramlançadosaoarosbradosdeguerradasduastribosvalorosas,easflechasassoviaramdenovo,paravaler.Masquemmaistrabalhoufoi,comosempre,omachadomágico,quenãoparoudecantarumsegundoenquantolevavaadianteasuaobraguerreiradeceifarvidas,destavezasdoskrahós,seusantigosdonos.
Acertaaltura,porém,onovodonodomachadoviu-secercadoporalgumasdezenasdeadversáriosenãotevealternativasenãocorrercommachadoetudo.Nãosabemosqueespéciedecançãoomachadoentoounafuga,masofatoéque,aoenfiaropénumburacodetatu,okrolkametráfoiaochãoeperdeu,alémdomachado,aprópriavida,estraçalhadopelaslançasadversárias.
Efoiassimqueokoierévoltouàtribodosíndioskrahós.
PORQUEONÇANÃOGOSTADEGENTE
Osíndioskayapósexplicamdaseguintemaneiraarazãodeaonçadetestargente.
Tudocomeçouquandoumíndioviu-seabandonadonoaltodeumninhodeararas.Elesubiraláparapegaralgunsovos,masterminaraabandonadopeloirmãodepoisde,pordescuido,ter-lhejogadopedrasemvezdosovos.
Otempopassou,eoíndio,quesechamavaBotoque,jáestavaquasemortodefomequandoumaonçaapareceu.
–Querumaajudaparadescer?–disseapintada,aoveroíndiosozinholánoalto.
Apesardeesfomeado,oíndioachoumelhornãoirnaconversadaonça.
–Não,obrigado.Vocêquerémecomer!Aonçajurouquenãoofaria.Depoisdemuitanegociação,Botoquefinalmentedesceu,eaonça,
casoraroemepisódiosdestanatureza,nadafezparacomeroíndio.Emvezdisso,deixouqueelemontassenassuascostas.
–Vamosparaaminhacasa.Látemcarneassadaàvontade!Botoque,maismortodoquevivo,foisacolejandodebruçosnas
costasdaonçaatéacasaondeelamorava.Amulherdaonça,contudo,nãogostoudeBotoque.–QualBotoque!–disseela,antipatizandologocomoforasteiro.Depois,voltando-separaoesposo,alertou-o:–Deixedeseringênuo,queeuconheçoessagente!Essaéumaraça
mofinaeingrata!Masaonçafezouvidosmoucoseinstalouoíndionacasaemandou-o
servir-seàvontadedacarneassadaqueabundavaporcimadasgrelhas.Botoque,quenuncatinhavistocarneassada,adorou.Naverdade,a
suagentenãoconheciasequerofogo,efoicomgrandeespantoqueeleviuaonçaacendê-lonumtroncodejatobá.
Eamulhersemprereclamando.–Deixadeserbobo,olhaqueessaraçaétraiçoeira!Então,nodiaseguinte,quandoaonçasaiuparacaçaroutravez,a
fêmeacomeçouaazucrinaroíndio,tratando-odapiormaneirapossível,obrigando-oaesconder-seatéavoltadaonça.
Quandoofelinovoltou,resolveuensinaraoafilhadoousodoarco.
–Olhasó!–exclamouafêmea,levandoasduasmãosàcabeça.–Ficouloucodevez?
Masaonçagostavacadavezmaisdacompanhiadojovem,eensinou-lhetodasasartesdoarcocomtamanhogostoquelogoBotoquetornou-sequasetãohábilquantooseumestre.
Então,quandoamulherdaonçacomeçouapersegui-lonovamente,naausênciadoesposo,Botoquenãotevedúvidaearremessouumaflechadacerteiranopeitodela,matando-anahora.
Depoisdisso,Botoquefugiu,nãosemanteslevarumfarnelinteirocomacarneassadadagrelha.Aochegarnasuaaldeia,contoutudoquantosepassaranocovildaonça.
–Elasabemanejarofogoeassarcarnecomoninguém!Abocadosíndiosencheu-sedeágua,etodospediramaBotoqueque
oslevasseatélá.–Nósprecisamosdofogo!–disseocacique.Entãoelesretornaramàspressasàcasadaonça.Comoelaainda
deviademorar,osíndiospuseram-searecolhertodaacarneassada,alémdeassaremasqueaindaestavamcruasegotejantesdesangue.Depois,ensacaramtudoenãodeixaramnadaparaaonça.
Masopiorfoiteremcarregadoconsigootroncodejatobáondeaonçacostumavaacenderoseufogo,nãodeixandonadaalisenão,pordescuido,umapequenabrasinha,queopássaroazulãorecolheucomobicoparalevaraoseuninhoafimdeesquentá-lonasnoitesfriasdeinverno.
Quandoanoitecaiu,aonçafinalmenteretornouedescobriuquenãohaviacarnenemfogo,equeasuamulherestavamorta,varadaporumaflecha.
–Pobreesposa,vocêestavacerta:essaraçaémofinamesmo!–disseele,envergonhado.
Desdeentão,detantodesgosto,aonçaficousemfogoalgum,eumbrilhoamarelonassuaspupilasfoitudoquantodelerestou.Desaprendeu,também,asartesdoarcoedaflecha,detalmodoquesuasarmaspassaramaserapenasassuaspresaseassuasgarrasdeunhaslongaseaduncas.
OSAPOEAONÇA
EstalendavemdatriboKayapóeéumexemplarprimitivodaespécie“auniãofazaforça”.
Tudocomeçouquando,certodia,aonçaencontrouosaponumcharco,tambémchamadonoBrasildeigapó.Aonçaestavafuriosadesdequelhehaviamroubadoofogoenãoqueriaconversacomninguém,muitomenoscomumrelessapo.
–Bomdia,donaonça–disseosapo.Aonçaestavacommuitaraiva,dispostaaabocanharqualquerum
queseatravessassenoseucaminho,esónãoengoliuosapoporachá-lomuitoasqueroso.
–Comoousadirigirapalavraamim,serrepugnanteedesprezível?–rosnouela.
–Meuamigo,tudoéquestãodeopinião–respondeuosapo,fleumaticamente.–Assapinhasnãomeachamnadarepugnante,enãoconheçoninguémquemedespreze.
–Poiseuodesprezo!–Porfavor,nãobanqueatola.Semedesprezasse,nãoestariaaíme
ofendendo.Diantedisso,aonçaficouaindamaisfuriosa.–Desprezível,sim!Quemolhaparavocêcomrespeito?Ninguém!–Todosmerespeitam.Meugrito,porexemplo,éoqueinfundemais
terroremtodaafloresta.Pelaprimeiravezdesdequelhehaviamsurrupiadoofogo,aonça
arreganhouosdentessemserderaivaedespejouumagargalhada.–Riaeomundorirácontigo–disseosapo,superiormente.–Querdizerqueoseurugidoéomaisapavorantedafloresta?–
disseaonça,apósrecuperarofôlego.–Poisestaeupagoparaver!Entãoaonçatrepounumapedraelançouaosaresoseuurromais
tétricoedesafiador.Instantaneamente,umaalgazarradecoisasfugindoporterra,céue
águaagitouafloresta.Foitamanhaabalbúrdiaque,durantecercadecincominutos,sóseescutouoecohorrendodaferaedascriaturasseatropelandonafuga.Somentequandooúltimoecodoseugritosedesfeznoaraonçadesceulentamentedoseupedestaldeglória.Suacabeçaestavaerguida,eumbrilhoinsuportáveldesoberbafaziacomquesuaspupilasamarelascuspissemfaíscasderegozijo.
Entãofoiavezdeosapodemonstraropoderdasuavoz.Depoisqueaonçaabandonaraoseuposto,osapogalgounumpuloapedra,encarapitando-senotopo.
–Muitobem,agoraourrodosapo!–anunciouele,comoummestrebalofodecerimônias.
Oruídodorisodaonçaobrigouosapoaaguardaralgunsinstantes.Somentequandotudofezsilênciooutravezfoiqueosapoencheubemopapoatétorná-lotranslúcidoearremessou,finalmente,oseucoaxarroucodesapo.
Então,aconteceuumaespéciedereverberaçãototal,comosealguémhouvesseespalhadopelaselvainteiramilharesdecaixasdesomamplificadasaomáximo.Asárvorestremeramdesdeasraízesatéasfolhas,enquantoosolochacoalhava.
Incapazdesuportarazoeiraterrificante,aonçalevouasduaspatasàsorelhas,tentandosuportardignamenteaquelecoaxarcolossal.Mas,quandoviuquenãopodiamaissuportar,atiroutudoparacimaetratoudedarnopé.
–Ei,espere!–gritouosapodoaltodapedra.–Querapostarcomosoutambémmaisveloz?
Masaonçajánãoescutavamaisnada,desaparecidaqueestavanasbrenhasdamata.
Sóentãoosapolançouumsegundocoaxar,quefoiaordemexpressaparacessaremtodososoutros,jáque,naverdade,nãosóelehaviagritado,mastodosossaposeassemelhadosdafloresta,taiscomoasjias,asrãs,aspererecas,oscururuseorestantedavalorosadinastiadosserescoaxantes.
Dizalendaque,duranteafuga,aonçaacabouperdendoumolhonumgraveto–umdetalhemórbidoquenãotemamenorimportânciaparaodesfechodesteconto,masquetemparaocomeçodoseguinte,noqualveremoselucidar-seumsurpreendenteenigmadanossafauna.
ASPERNASCURTASDOTAMANDUÁ
ouPORQUEONÇANÃOGOSTADETAMANDUÁ
Sealguémsempreteveacuriosidadeemsaberporqueotamanduátemaspernascurtas,échegadaahoradematá-la,poisosíndioskayapós,desdesempre,sabemperfeitamentearazão.
Estessenhoresdescobriramque,empriscaseras,otamanduápossuíapernastãolongasquantoasdagarça.
Ninguémnamata,nemmesmoocoelho,podiavencerotamanduánumacorrida.
Alémdaspernascompridas,elepossuíatambémumgênioperverso,frutotalvezdasuavaidade.Foiestedefeitoqueofezpraticaroatoperversoquedáinício,deverdade,aestanarrativa.
Diz-se,pois,que,aofugirdosrugidosassustadoresdeumsapo–ou,antes,deumexércitodesapos,masqueelaimaginavaserapenasum–,aonçaacabouperdendoumdosseusolhos,aoroçá-lonumgalho.Caolhaeassustada,elafoisurgiraalgunsquilômetrosdeondesaíra.
–Ai,ai!Humilhadaesemumolho!–queixava-seela,quandootamanduáaescutou.
–Oquehouve,donaonça?–disseele,espichandooseunarigãoenxerido.
–Como“oquehouve”?Nãoestávendo?Perdiumdosmeusricosolhos!
–Nãosepreocupe–disseotamanduá,assumindoumarprofessoral.–Vourestituí-loparavocê.
Aonçasabiaperfeitamentequeotamanduánãoeramédiconemtinhadomsobrenaturalalgum.Nãohaviaqualquercomentárioemtodaaselvaquepudesselevá-laacrernisso.
–Otamanduánãopassadeumpatusco–diziamtodasasvozes.Acontecequeodesesperofazcresceraesperançaaténaspedras,e
foicomestesentimentodesatinadoqueaonçaseentregouàsartes
médicasdotamanduá.–Porfavor,devolvameuolhoelhesereieternamentegrata!–disse
afelina,efezmuitíssimomalemdizer,poisqualquerumnasmatassabequegratidãonãoécoisadeonça.
Semperturbar-se,otamanduáespichouassuasunhasempinçaeordenou:
–Fecheoolhosão–falouele.–Quandoacordar,teráoutravezosseusdoisolhos.
Aonçafechouosolhos,expectante,esentiuumadoragudanaórbitacheia.
Quandoabriu-a,novamente,nãotinhamaisolhoalgum.Nesseponto,entraemcenaoazulão,aquelamesmaavequeficara
comoúltimotiçãodefogoarrebatadoàonçaporumíndioingrato(veroconto“Porqueonçanãogostadegente”).Oazulãosempreforaamigodaonça,eporisso,penalizado,decidiufazeralgoparaajudarabichana.
Ligeirinho,oazulãosaiuvoandoportudoedescobriuosdoisolhosperdidos.(Otamanduá,depoisdetercegadoaonça,trataradedarnopé.)Depois,retornouatéafelinaedisse:
–Fiquequieta,vourecolocarosseusolhos.–Oh,azulãoquerido!Sereieternamentegrataavocê!–choramingou
aonça.Numtrabalhodealtíssimaprecisãocirúrgica,oazulãoreintroduziu
osdoisolhosdaonçaemsuasrespectivasórbitas,colando-oscomumaresinadeárvore.
–Pronto,aíestá!–disseoazulão.Aonçaabriuosolhoseviutudoclarooutravez,inclusiveaavezinha,
quejáestavatrepadanotopodeumgalhoaltíssimo(poiselanãoerabobanemnada).
–Agoraaquelecanalhadotamanduámepaga!–rugiuaonça,disparandoatrásdoseumalfeitor.
Otamanduácorriafeitoumpédevento,masaonça,mesmoestandomuitoatrás,nãodesistia,etantoperseguiuoinimigoqueesteacaboucansando.
–Ojeitoémeescondernesteburacodetatu!–disseele,arfante,seenfiandonochão.
Misériaeraqueoburacofosseinfinitamentemenorqueele,eporissosuaspernascompridasacabaramficandodefora.Quandoaonçachegou,foiumafesta.
–Estaspernasmepertencem!–disseela,enumsaltoabocanhoue
cortoupelametadeaspernasdotamanduá.Depoisdisso,otamanduápassouaandarcomaquelaspernascurtas
quetodomundoconhece.Mas,emcompensação,acaboudesenvolvendoosbraços,eécomoseufamoso“abraçodetamanduá”queessevalorosomamíferosedefende,desdeentão,daonçaedosseusinimigos.
COMOSURGIRAMASDOENÇAS
Osíndiosumutinasexplicamosurgimentodasdoençascomoumasoluçãoparaevitarasuperpopulaçãodasaldeias.Naquelesdiasantigos,osvelhosnãomorriamdecoisaalguma,nemficavamdoentes,nemperdiamosdentes.Comotinhamtodososdentesnabocaeumapetitedeleão,comiamodiatodosemproduzirnada,tirandooalimentoatédascrianças.
Certafeita,trêshomensdecidiramencontrarumasoluçãoparaoproblema(semsedaremcontadequeumdiaelestambémseriamtratadoscomoumproblema).Foram,então,fazerumavisitaàLua,queentreosíndioséhomemesechamaHári.
–Quesoluçãovocêtemparaquenãoacabefaltandocomidaparatodos?–disseumdostrêsfuturosvelhos.
Hári,queeratambémumfeiticeiro,coçouacabeçaedisse:–Infelizmentenãopossoajudar.ProcuremMini.MinieraoSol.Ostrêsíndiosforamparaacasadele.Depoisdemuito
caminhar,chegaram,afinal,aoseudestino.–Bomdia,Mini.Dê-nosovenenomaisfortequetiveremseu
herbanário.OSolergueuassobrancelhas.–Venenoparaquê?–Queremosumvenenoparaacabarcomosvelhosdanossaaldeia.–Vocêsestãoloucos?–Não,nãoestamos.Éprecisofazerissoounossaaldeiainteira
morrerádefome.EntãooSolreconsiderouetrouxedasuasalademoléstiasuma
flechamágica.Juntocomelavinhamváriasdoenças.Osíndiosescutaramatentamenteepareceramsatisfeitos.–Mas,cuidado–alertouoSol.–Sóatiremaflechadepoisdese
esconderematrásdeumaárvore,poiselacostumavoltarparaatingiroseuarremessador.
Comosempreacontece,oavisofatalentrouporumouvidoesaiupelooutro.Tudoquantoelespensavameraemdarumjeitonosvelhosdatribo.
Ostrêsíndiosandarameandaramatéchegarem,enfim,àaldeia.–Vamosexperimentarestaflechadeumavez!–disseumdostrês.Apóstomardoarco,oarqueirofezpontariaemumvelhoqueestava
sentadoembaixodeumaárvoredesdeoraiardodiacomendomandiocae
milhoverde.Antesdesuspenderoarco,oarqueiroescolheuumadoença.Entãoaflechanãotardouavoardiretonovelho.Elavarouoventre
deleeretornounadireçãodoarqueiro,quesónãofoiatingidoporquelembrou,noúltimoinstante,doavisodoSol.
Ostrêsficaramescondidosparaveroefeitodaseta.Emmenosdemeiominuto,ovelhocomeçouasesentirmaleacaboumorrendo.Eassimostrêsíndiossaíramescondidospelaaldeia,dandoflechadasnosvelhos.
Então,certodia,outroíndioresolveupediremprestadaaflechamágicaparacaçaranimais.
Napressa,ostrêsíndiosesqueceramdeavisaraelesobreovaievoltadaflecha,eocaçadorpartiualegremente,semdesconfiardoperigo.
Nomesmodiameteu-senaselvaeprocurouamelhorcaçaquepôde.–Temdeserumbichodaqueles!–disseasimesmo,enquanto
espreitava.Nãodemoroumuitoesurgiuumveadoenorme,maiordoqueum
cavalo.Oíndioassestouaflechaesoltouacorda.Asetafoiatéoveado,cumpriucomoseupapeldeabatê-loeretornouatéoarqueiro.Comoesteestavadesavisadodavolta,emvezdeesconder-seatrásdeumaárvore,ficouparadonomesmolugar,recebendoaflechadadavoltabemnomeiodopeito.
COMOSURGIRAMASESTRELAS
Tudocomeçouquandoumgrupodemulheresandavanaflorestasocandomilhoparafazerpãesebolosparaosseusmaridos,queestavamnacaça.Umindiozinhoqueestavaporalisurrupioudamãeboapartedomilhoefugiu,escondido.Aochegaremcasa,pediuàavóquepreparasseumpãodemilhoparaeleeseusamiguinhos.
Obolofoisovadoeassado,eascriançascomeramatésefartar!Depois,commedodeserempunidos,resolveramcortaralínguadavóparaqueelanãopudessedenunciá-los.
Emseguida,fugiramparaamata,ondeamarraramunsnosoutrostodososcipósqueencontrarampenduradosnasárvores.
–Chamemocolibri!–gritouumdeles.Ocolibrisurgiu,pequenino,batendoasasas.–Tomeestapontanobicoesubaatéomaisaltocéu!–ordenouo
garoto.Aavezinhatomouapontadocipógiganteesubiuatésumirnas
nuvens.Imediatamente,osindiozinhoscomeçaramasubirpelacorda,
enquantoocolibriasustentavadoalto.Nestemeio-tempo,asmãesjátinhamchegadoàtabaedescobertoo
quetinhaacontecido.Aoolharemparalonge,avistaramosmeninossubindoaoscéuspelocipó.
Juntas,correramparaamatapedindoaelesquedescessem,poistemiamquecaíssem.Aoveremqueelesnãodesceriamjamais,asmulherespuseram-seasubirpelomesmocipó.
Derepente,umsompavorosoecoounoscéuseacordacaiu,trazendojuntotodasasmães.Antes,porém,dechegaremaochão,elastransformaram-seemferas,efoiassimquepassaramaviversobreaterra.Osindiozinhos,porsuavez,comojáestavamnocéu,nãoconseguirammaisvoltar.Desdeentãosãoobrigados,comseusolhinhosbrilhantes,aassistirládecimaodesfileperpétuodasmãesconvertidasemanimaisferozes.
OBATISMODASESTRELAS
Comonamaioriadaslendasindígenas,tudosepassanumclimameiodesonho:numpassedemágica,arraiassetornamjatobás,edejatobássetornamestrelas.
Diz-se,pois,quecertafeitaumíndiofoipescarcomseufilho.Osdoisestavamvasculhandoaságuasdeumrioquandoogarotogritou:
–Veja,papai,umaarraia!Opaiavistouobichoe,apósfazerrápidapontaria,lançouaflecha.–Pimba!–gritouomenino,pulandodealegria.–Vamosassá-la,
papai!Estoucommuitafome!Opaimandou-o,então,acenderumafogueira,enquantoenrolavaa
arraianumasfolhas.Depoisdeajeitá-labemnopequenofornoimprovisado,oíndioretornouaorio.
–Vouversepescomaisalgumacoisa–disseele,enquantooindiozinhovigiavaoassado.
Umtemposepassou(nãomuito)atéqueogarotoberrou:–Papai,aarraiajáassou!Masoíndiosabiaqueeracedodemais.–Não!Éprecisoesperarmuitomais!Daliapouco(bempouquinhomesmo),omeninodenovo:–Papai,aarraiajáassou!–Assounada!Esperamaisumpouco!Masomeninotantoincomodou,loucodefomequeestava,queo
índioapareceucomcaradepoucosamigos.Depoisderetiraraarraiadoseuinvólucro,constatouque,defato,elaaindaestavacrua.
–Estávendo?Coma-acrua,agora!Oíndioatirouaarraialongeevoltousozinhoparacasa.Oindiozinhocomeçouagritareachorar.Nomesmoinstante,gritos
assustadoresexplodiramportodaamata,enchendo-odeterror.Então,sentindo-seindefeso,abraçou-seaumpédejatobáegritou:–Jatobá,meuavô,sobecomigo!Opé,queerapequeno,começouacrescercomoopédefeijãodo
João,levandoconsigoomenino.Quandoestavaaltíssimo,tãoaltoqueogarotopodiatocarocéu,ojatobáparoudecrescer.
Sóqueagritariadaflorestanãocessara.Quemapromoviaeramuns
espíritoschamadosKogai,queestavamsempreaoredordojatobá.Então,anoitedesceu,e,umaauma,asestrelascomeçaramasurgir
comopirilamposaoredordomeninoempoleirado.Cadavezqueumasurgia,escutava-sedosespíritosalgoparecidocomumassovio,queéamaneiradeestesentessecomunicarem.
Quandoaprimeiraestrelasurgiu,oassobiolhedisseoseunome,edepoisfoidizendoonomedetodasasoutras,inclusivedasconstelações.
–AConstelaçãoAkiri!AsPequenasGarças!ATartarugadaÁgua!OsRastrosdaEma!
Ogarotoiaretendonamemóriacadaumdosnomes,epassoutodaanoitenessebrinquedo,atéqueaaurorasurgiu.Então,omantonegrodanoitefoirecolhidorapidamenteparaasprofundezasdohorizonte,levandoconsigotodasassuasjoiaseosseusadornos.
Asvozescessaram,eogaroto,sentindo-sesóeinfeliznaquelavastidãosemestrelas,pediuaojatobáquedescessecomele.Aárvoreobedeceu,eogarotopulou,feliz,paraochão,indolevaràsuaaldeiaoconhecimentoqueadquiriradurantetodaanoite.
APESCARIADASMULHERES
Estalenda,umaverdadeirafarsasilvícola,tambémédosbororosenarraumadivertidadisputaentrehomensemulheres.
Tudocomeçouquandooshomens,perdendoasorteouahabilidadenapesca,começaramaretornar,todososdias,demãosabanandodorio.Aquilojávirararotina,eerasoboolhardecensuradasmulheresdaaldeiaqueeleschegavamdecabeçabaixaesamburávazio.
–Aíestá,nadadepeixe,outravez!–disseumaíndiavelha.–Oquehouve,seustolos,desaprenderamapescar?
Oshomensnãosabiamoquedizer,mastantodesaforoescutaramqueumdiaocaciqueresolveudesafiá-las.
–Vocêsfalam,falam,masnãoseriamcapazesdepescarnemumlambarimorto!
Entãoasmulheres,despeitadas,resolverammostrardoquantoeramcapazes.Tomandoosarcosdasmãosdosesposos,elaspartiramparadentrodamata,soborisogeral.
Aochegaremàbeiradorio,elascomeçaramachamarpelaslontras.–Venham,lontrasamigas,precisamosdasuaajuda!Aslontrasaparecerameforamrapidamenteinformadasdetudo.–Tragamomáximodepeixesquepuderem!–dissealíderdas
mulheres.Ignora-sequeespéciedetratofoifixadoentreasmulhereseas
lontras,masofatoéqueaslontrasmergulharamnaságuasecomeçaramacaçartodosospeixes,atirando-osparaamargem.Foiumaverdadeirachuvadepeixes,queasmulheresaparavamnossamburásatéelestransbordarem.
Quandoodiaestavaterminandoelasretornaram,enfim,paraaaldeia.Homemalgumfoicapazdeacreditarnoqueseusolhosviam.
–Vejam,ossamburástransbordam!–Sim,equepeixões!Nodiaseguinte,oshomensregressaramaorio,certosdequeamaré
viraraedequeelestambémseriamcapazesdeencherem-sedepeixes.Masretornaram,maisumavez,demãosabanando.–Dácáisto!–dissealíderdasmulheres,tomandonovamenteo
arco.Asmulheresvoltaramaorio,celebraramnovopactocomaslontras
e,nofimdodia,retornaramcomtantospeixesquetodososmoquénsda
aldeiativeramdeseracesosparaevitarquetodaaquelacarneacabasseseestragando.
–Precisamosdescobriroqueelasfazemparaarranjartantopeixe!–disseocacique.
Ovelhomorubixabatemia,acimadetudo,queasmulheresvoltassemacomandarosdestinosdataba,talcomosediziateracontecidonosvelhosdiasdeopressãofeminina.
–Elassãoespertasenãopermitemquenosaproximemosenquantopescam–disseumíndioquetentouespiá-las,masacabouatingidoporumaflechanopé.
Entãoopajé,senhordossegredosdamata,foiincumbidodeencontrarumasolução.Depoisdeingerirumapuçangadeervaseentoarversosmágicos,elevidrouosolhosedisse,numtomcavernoso:
–Chamemaquituiréu!Quituiréueraumapequenaeprosaicaave,hábilnaespionagem.–Sigaasmulheresedescubraporqueelaspescamcomtanta
facilidade–disseomagoindígenaàavezinha,quesumiulogo,numpédevento,paradentrodamata.
Nofimdodia,antesqueasmulheresregressassem,apequenaaveespiãretornou.Todososíndiosacocoraram-seaoredordopajéenquantoaquituiréucochichavanacovadasuaorelhamarromograndesegredo.
Assimqueopássaroterminoudepipilar,opajéarregalouosolhoseanunciou:
–Asíndiastrapaceiamjuntocomaslontras!Entãoocaciquesepronunciou:–Nãofaçamnadaquandoelasvoltaremdapesca!–Comonão?–bradoualguém.–Vamosdar-lhesumaboasurra!–Nadadisso–insistiuocacique.–Façamosdecontaquenada
sabemos.Nãodemonstremossurpresanemcólera.Issoasdeixaráintrigadas,eéoquantonosbasta,porora.
Eassimsefez.Quandoasmulheresretornaramdesamburáscheios,oshomensnãoderamamínimaecontinuaramemsilêncio,deolhosfitosnoarounochão.
–Oquehouve?–disseaíndiavelha.Namanhãseguinte,oshomensanunciaramqueiriamtentarnova
pescaria.–Podemir–disseamulher,certadequeseriaoutrofracasso.–
GraçasaTupãtemospeixesuficienteparaaspróximastrintapescariasfracassadasdevocês.
Malsabiamelas,porém,queoshomenslevavamconsigocordasrecobertasdevisgo,umaresinagrudenta.Aochegaremnabeiradorio,oquituiréuchamou,comsuavozfininha,aslontras.
Aslontras,imaginandotratar-seoutravezdasmulheres,surgiramdaságuasalegremente.
–Agora,atiremascordas!–gritouocacique.Osíndiospularamsobreaslontrasecomeçaramagarroteá-lasuma
auma.Somenteumaescapou,fugindoparadentrodaáguacomosolhosarregaladosdomaispuroterror.
–Muitobem,agoraquejádemosumjeitonessesbichosenganadores,podemosvoltarparaaaldeia–disseocacique.
–Nãovamospescar?–dissealguém.–Não–disseocacique.–Antesqueroveracaradasíndiasquando
vierempescareforemobrigadasaretornardesamburásvazios.Nodiaseguinte,asmulheresretornaram,defato,àpescariae,ao
chamaremassuascúmplices,viramsomentealontrasobreviventeemergirdaságuas.Acoitadasóamuitocustoconseguiurevelartodasasatrocidadespraticadaspeloshomensnodiaanterior.
–Miseráveis!Elesirãopagarbemcaroporisso!–bradouaíndiavelha.
Ora,acontecequeessaíndiatambémeraentendidaempuçangas,enomesmoinstantedeterminouquesuasamigasrecolhessemdasmatasumafrutachamadapequi.Essafrutinha,produtodasmatasbrasileiras,possuinumerososespinhosquerodeiamocaroço,pordebaixodapolpa.
–Preparemabeberagem!–disseaíndia,easoutraspassaramorestododiapreparandoapoçãovenenosa.
Quandoodiaacabou,elasretornaramàaldeia.–Ah!Ah!Ah!Ondeestãoospeixes,hoje?–gritavamoshomens,
rindomuito.–Orionãoestavaparapeixe,entãopreferimosgastarotempo
fazendoestabebidarevigorante–disseaíndiavelha,mostrandoabeberagemqueelastraziamemgrandescumbucas.
–Passemissoparacá!–disseramelesrepentinamente,arrebatando-lhesabebida.–Estamosloucosdesededetantorir!
Oshomensingeriramabebidaenãodemoroumuitoparacomeçarematossir,desesperados.Enquantoseengasgavam,grunhiamfeitoporcos,tentandoselivrardosespinhosencravadosnagarganta.
Efoiassimqueoshomensdaaldeiaacabaramsetransformandoemporcos.
ACURADAVELHICE
Osíndioskadiuéuscontamquehavia,certafeita,umpadrequetomaraaresoluçãodecurarosvelhosdetodasassuasdoenças.
–Cure-osdavelhice,eosterácuradodasdoenças–corrigiu-lheumdiaumpajémaisastuto.
Essepadre,porém,nãotinhatantopoderassimedecidiuirprocurarquemotivesse.ErasabidoentreoskadiuéusqueumcertoGô-Noêno-Hôditinhaopoderdepôrfimaostormentosdavelhice.
–Vouprocurá-lo!–disseimediatamenteosantohomem,esquecidoatédoseudeus.
–Ninguémsabedireitoondeelevive–respondeuopajé.–Poisireidescobri-lo!–insistiuopadre,determinado.Opadreentroupelamataefoiembuscadolocalondediziamviver
esseserpoderoso.Enquantoandava,iaconversandocomasárvores,poisreceberadoscéusestedom.Aoavistarumaárvoresecaevelha,parouparadirigir-lhealgumaspalavras:
–Comovai,minhaamiga?–Mal,muitomal!–gemeuaárvore.–Sóaguardo,agora,oincêndio
quehádevirnaflorestaparavermeusdiasseacabarem!–Issonãohádeserassim,poisvouembuscadeGô-Noêno-Hôdi.
Podemedizercomofaçoparaencontrá-lo?Então,aárvorefezobomhomementraremcontatocomumespírito
dasmatas,queoguiouatéoesconderijodoxamãdafloresta.Nãohavianadaalidefabuloso,etudopareciacomonasoutrasaldeias.Amulherqueseaproximoudopadreeradomesmofeitiodasoutras.
–Oquedeseja?–disseela.–Vocênãoédaqui.Opadreexplicouqueprocuravaotaumaturgodasmatas,eela
apontou-lheumachoça.Imediatamente,opadrefoiatéláedeudecaracomumvelho.–OsenhoréGô-Noêno-Hôdi?–Não–respondeuovelho.–Sigaadianteatéchegaràquelacasa.Opadrefoieperguntou:–OsenhoréGô-Noêno-Hôdi?–Não,souapenasocabelodele.“Háalgumabrincadeiraaqui!”,pensouopadre,jáirritado.Opadrepassouporquatrooucincocasasmais,escutandosempre
respostasparecidas.
“Pelojeitoessesujeitofoideixandoumpedaçodesiemcadacasa”,pensouele,jáconvictodeque,quandoencontrasseafinalGô-Noêno-Hôdi,nadaencontraria.
Entãoavozdoespíritolhedissequeapróximacasaeraatal.–Mascuidado!–alertouavozinha.–Nãofumenadaqueelelhe
oferecer!Opadreentroueavistou-se,finalmente,comosermisterioso,ea
primeiracoisaqueelefezfoilheoferecerotalcachimbo.Opadrefezquenãoviuecomeçouafalar.
–Grandesábio,venhoembuscadeconhecimento.Gô-Noêno-Hôdinãorespondeu,maslheofereceuumcigarrode
palha.Avozinhaqueestavaabrigadanacovadaorelhadopadrelhedisse
quetambémnãoaceitasse,eopadretambémfezquenãoouviuessenovooferecimento.
Diantedisso,omagosilvestrerendeu-se.–Parabéns,vocêescapouduasvezesdevirarumafera–disseele.–
Ocachimbotinhaexcrementodeonça,eocigarrotambém.Então,osábioperguntouaopadreoqueelequeria.–Queroumremédiopararejuvenescerosvelhosetambémas
árvores.Osábioolhouparadentrodasuachoçaegritou:–Minhafilha,tragaospentes.Entãoavozinhainteriorgritouaopadrequenãoaolhasse,pois
doutromodoaengravidaria.Amoçaentroucomostaispentes,masopadredesviouosolhosparaopódochão.
–Penteieoscabelosdomortocomumdestespentes,eelevoltaráaviver.Masfaçaissonomesmodiadasuamorte.
Opadreiaresponderquenãopediraumremédiopararessuscitar,maspararejuvenescer,masachoumelhorsecalar.Decertoque,aoressuscitar,omortovoltariaaserjovem.
–Equantoàsárvores?–disseopadre.–Minhafilha,tragaaresina–disseotaumaturgo.Afilhatrouxe,eopadrecolouosolhos,denovo,nochão.Quandoos
ergueu,porém,viuqueachoçasetransformaranumacasabonita,nocentrodaqualhaviaumamesaenorme.
–Passenelaaresina–disseomago.Opadrelambuzouamesa,edamadeiracomeçouabrotaruma
vegetaçãoespessa.Daliapouco,amesaseconverteunumaárvoreque
cresceudesmesuradamenteatéfurarotetodacasa.Agorahaviaumaárvoreencravadabemnomeiodosalão.
Entãoopadreachouquejáerahoradepartir.Tomandoospentesearesina,eleganhouapicadaquelevavaparaforadamata,ejáiabemadiantequandoescutouàssuascostasavozdafilhadobruxo.
–Espere,espere!Osenhoresqueceuofumo!Pressentindoumacilada,opadreapertouopasso,semvoltar-se
paratrás.Ajovem,noentanto,foimaisrápidadoqueeleeconseguiuirpostar-seàsuafrente.
–Tomeoseufumo!–disseela.Opadredesceuosolhos,outravez,paraochão,sóquedestavez
enxergou,porinadvertência,odedodopédajovem,efoioquebastouparaelaengravidar.
Opadrefoiinformadodequeestavaproibido,desdeaqueleinstante,dedeixaroslimitesdaaldeia,masmesmoassiminsistiuempartir.
–Deixem-meir!Tenhodecurarosvelhoseasárvoresdavelhice!Dizalendaqueelepartiu,masque,logoemseguida,morreu,tendo
deretornaràaldeiamisteriosaparacriaroseufilho.Elácontinuaatéhoje,prisioneiroperpétuodeumsonhovão.
COMOSURGIRAMOSBICHOS
Houveumtempo,segundoosíndiosofayés,emqueoSolviviadependengacomoshomens.Oprincipalmotivoeraafaltadecaça.Nãohaviabichoempartealguma,eoshomensreclamavamotempotodocomoSolparaqueestelhesarrumasseoquecomer.
Oconflitoevoluiuatéque,certafeita,enfurecidos,osíndiosarremessaramtodasassuasflechascontraoSol,masnadaconseguiram,poiseleeraindestrutível.Noutraocasião,tentaramqueimá-lovivonumincêndionamata,masoSolsóconseguiuachargraçanaquilo,poiselejávivianaschamas.
Acoisafoiassimatéque,certodia,fartodaquilo,oSolresolveupuniroshomens.
–Elesqueremcaça?Poisentãoaterão!Nodiaseguinte,eleconvidouoshomensparairemconsigoàfloresta.–Quehaveremosdefazerlá?–disseramosíndios.–Lánãotem
nadaparacaçarmos!–Mastemárvorescarregadasdefrutosmuitosaborososqueeufiz
nascerduranteanoite–respondeuoSol.Osíndios,queandavamcommuitafome,decidiramirver,afinal.–Aquiestá–disseoSol,apontando-lhesumaárvoreenorme.–Essa
árvoreéumajabuticabeira,edelapodeisdesfrutardosfrutosmaissaborosos.
Osíndiostreparamnosgalhosecomeçaramachuparasjabuticabas.Empoucosminutosnãohaviamaisnenhumafrutinhaemtodaaárvore.
–Ondetemmais?–perguntaramosíndios,agoniados.OSollhesapontouumasegundajabuticabeira.Osíndiospularam
dosgalhosecorreramatéaoutraárvore,começandoaescalarosseusgalhos.
Denovooruídodosíndioschupandoasjabuticabasencheuafloresta.SóquedestavezoSol,postadoembaixodaárvore,agarrouotroncoecomeçouabruptamenteachacoalhá-lo.
Osíndios,assustados–poishaviamsubidomuitoalto,atéotopodaárvore,paraalcançaremasúltimasfrutinhas–,agarraram-sedesesperadamenteaosgalhosecomeçaramagritar.
–Pare!Quernosmatar?
Nessemomento,oSollançouumfeitiçosobreeles,ecadaqualcomeçouasetransformaremumanimalantesdedespencarem.Oprimeiroanimalacairfoiumaanta.Depoisveioumacutia,eumveado,eumapaca,eumaonça,e,assim,umasériedeoutrosanimais.
Apesardetudo,porém,muitosíndiosaindaconseguiramsemanterpresosaosgalhos,eestesacabaramsendotransformadosemmacacos.
OsmacacosarreganharamosdentesparaoSol,lançandosobreelemilmaldições.
–Doquereclamam?–disseoSol,partindoparaocéu.–Nãoqueriamcaça?Agorajáhácaçaabundanteportodaafloresta!
Entãoumdosmacacos,enfurecido,desceuatéaterraecomeçouapuxardochãoasoutrasárvores,queeramtodasbaixinhas,elogoaflorestaencheu-sedeárvorestãograndesquantoajabuticabeira.Osmacacospuseram-seaentrelaçarascopasdasárvores,cerrandootetodaflorestacomummantoverde.
EfoidesdeessaépocaqueoSolviu-seimpedidodeentrarnafloresta.
AESCADADEFLECHAS
Osíndioskaingangs,doextremosuldoBrasil,contamumalendainteressanteacercadeumaescaladaaoscéuspraticadaporelesemdiasmuitoantigos.
Naqueletempo,asonçascomiammuitomaisgentedoquehoje,eosíndiosnãoaguentavammaisvivernessaapreensão.Nãosepassavaumdiasemquealgumdelesfossecomidovivoporelasousimplesmenteraptadosemdeixarvestígios.Velhosecriançaseramaspresasmaiscomuns,masaverdadeéqueíndionenhumpodiasevangloriardeestarasalvodessespredadoresvorazes.Osíndioscolocavamvigiasnastabasefortificavam-nascompaliçadas,masasonçasacabavamcomendoosvigias.
–Chega!–disse,então,certodia,ocacique.Depoisdeconvocarofeiticeiro-mordaaldeia,exigiuqueele
apresentasseumasolução.–Soluçãoboasóháuma:fugir–disseopajé,semmaisrodeios.Ocaciqueenterrouosdedosnococar.–Fugir?Fugirparaonde?Defato,nãohavialugarnaterraondeasonçasnãopudessem
alcançaroshomens.–Sósenosmetermosdebaixod’água–disseochefedaaldeia.–Ousubirmosaoscéus–completouopajé,muitoseriamente.Ocaciquepensouqueopajéestivessebrincando,maseraverdade.
Apóstomarumaaljavacheiadeflechas,opajéfoiparaumdescampadoearremessouaprimeiraflechaemdireçãoaocéu.Todososdemaisencolheram-se,comreceiodequeTupãdevolvesseaflechacomumraiofulminante.
Felizmente,nadadissoaconteceu.Masomaisespantosoéqueaflechaficouencravadanocéu.
–Acertenela–disseopajé,entregandooarcoaoutroíndio,bomdepontaria.
Oíndiomiroueacertoubemnaextremidadedasetaencravada,encompridando-a.Eassimforamtodosarremessandoumaflechaapósoutra,atéteremformadoumaescadaquedesciadocéuatéaterra.
–Amanhãbemcedo,subiremostodosporestaescadaeiremosvivernocéu,bemlongedasonças–decretouocacique.
Osíndiosvoltaramàtaba,afimdeseprepararemparaaescaladadodiaseguinte.
Quandoosolraiou,játodaaaldeiaestavaaospésdaescadadeflechas,quehaviasetransformadonumaescadadecipós,cheiadedegrausparafacilitarasubida.
–Vejam,Tupãnosajuda!–disseopajé,etodosseanimaram.Aocolocar,porém,opénoprimeirodegraudaescada,ocacique
escutouorugidoinequívocodeumaonçalánotopodocéu.–Serápossível?–exclamou.–Háonçastambémnocéu?Não,nuncahouvera,pelomenosatéanoiteanterior.Aconteceque,
enquantoosíndiosdormiam,umcasaldeonçasaproximara-sesorrateiramentedaescadaetreparanela.
Aquestãoagoranãoeramaisbuscarrefúgionocéu,umlugartambémpovoadodeonças,massaberquemiriaatéoaltocortaraescadaparaqueasonçasnãopudessemmaisdescerparaaterra.
Demorouumpoucoatéqueumcasaldevalentesseofereceu.Elessubirame,aochegaremaotopo,cortaramrapidamenteaescada,quefoiembolar-seaospésdosíndios.
Ocasal,porém,jamaispôdedescer,eacredita-sequeatéhojevivanocéu,juntocomocasaldeonças.
AVITÓRIA-RÉGIA
Umadasplantasmaistípicasdavegetaçãoaquáticabrasileirafoiassimbatizadaemhomenagemaumarainhainglesa.“Vitória-régia”significa“RainhaVitória”.Amoçaquedeuorigemàlenda,porém,eraumaíndiainfinitamentemaisbelaesimpáticadoqueaquelarainha,eécomelaquecomeçamosesteconto.
Aracieraumaíndiaquetinhaumúnicopropósitoemsuavida:odetocaralua.Todasasnoites,quandoaluasurgianoscéus,especialmentequandoestavacheiaeresplandecente,Aracisubianaárvoremaisaltaqueencontravae,napontadospésdogalhomaiselevado,tentava,portodososmeios,tocarafacedograndeastroprateado.
Aracitevemuitasorte,escapando,maisdeumavez,dedespencarparaamorteemsuastentativasvãs.Masnadadissoaimpressionava,poisteimava,atodopano,emtocaralua.
Então,certanoite,elaresolveusubirnumaárvorequeficavanabeiradeumrio.Aoescalaroúltimogalho,Araciviualuarefletidanaságuaseimaginouqueelabanhava-senorio.
–Viva,hojevoupodertocá-la!–disseela,preparando-separamergulhar.
Aracidesceuatéofundo,masnãohavialuaalgumaali.Aovoltaràtona,elaviuoreflexodaluaaindanaságuas.Sóqueele
estavacadavezmaisafastadodesi.Aracinadou,masaluaeramaisrápida,enadadealcançá-la.A
jovemnadou,nadouenadouatéestarmuitolongedasduasmargens.Sóentãodescobriuquenãotinhamaisfôlegonemforçaspararetornaràterra.Nesteinstante,elasoubequeseudestinoseriaodeperecernaságuas.Sabendoinúteistodososesforços,abelaíndiarecolheuosbraçosedeixou-seafundar.
EassimpereceuabelaAraci,semalcançaralua.Alua,porém,queerahomem,sentiuremorsospornãoterajudadoa
jovem.–Jáquenãopossotrazê-ladevolta,ireiaomenoshomenageá-la–
disseoastro.Nomesmoinstante,brotoudaságuasumaplantaesverdeada,que
passouaboiaremcimadaágua.Elapareciaumaenormebandejaetraziaconsigoumaplantamuitobonita,decoloraçãobrancaerosa.
Desdeentão,todasasmoçasdaaldeiapassaramaenfeitar-secomas
pétalasdaplanta,consideradasinfalíveisparaatrairnamorado.
BAHIRAEORAPTODOFOGO
Históriassobreraptosdofogosãotãoantigasquantoohomem.Jávimosanteriormenteaversãodosíndiostembésparaotema,nalenda“OFurtodoFogo”.Agora,éavezdeconhecermosaversãodosparintintinsparaesseepisódio.Talcomonaprimeiralenda,tambémaquiourubuéconsideradoodonodofogo.Elenãooconcediaaninguém,eoshomensnãosabiamoqueerautilizar-sedaschamasparacozinharumacomidaouaquecer-sedofrio.Osoleraaúnicafontedecalor,eeranelequeoshomensbuscavamremediarasuaprivação.Masmesmoassimelessentiamanecessidadedeterememseupoderousodiretodaschamas.
Issofoiassim,atéqueumdiaelesresolveramrecorreraBahira,umsemideuscivilizadordasmatas.
–Traga-nosofogoqueourubu-reinãonosquerconceder.Penalizadodoshomens,Bahiraarmouumplano.Apósdeitar-seno
meiodafloresta,fingiu-sedemorto,cobrindoocorpocomsinaisfalsosdeputrefação,afimdeatrairoapetitedoSenhordoFogo.
Quemchegouprimeirofoiamoscavarejeira.Apóspassearportodoocorpoinertedosemideus,elafoilevaranotíciaaourubu-rei.
Semhesitar,ourubuenvergouseucasaconegrodepenasemergulhounadireçãodaterra.AoverocorpodeBahira,pousouecomeçouaprepararofogoparaassá-lo.Bahira,comumolhoentreaberto,viuquandoourubudepositouapreciosachamasobreosgravetose,numpulo,apoderou-sedela.
–Ladrão!–gritouaave,agitandoasasas.Bahiradisparounacorridaenquantoourubudavaaoscéusoseu
gritodealerta:–Aqui,todos!Umanuvemdeurubusdesceudoscéus,etodossepuseramno
encalçodosemideus.Bahiraenfiou-senumtroncoocoesaiupelooutrolado.Osurubusfizeramomesmo.Depois,meteu-senumabrenhadetaquaras,ealiosurubusnãoconseguirampenetrar.
–Ufa,achoqueconsegui!–suspiroubaixinhoosemideus.Então,depoisqueosurubusjátinhamsedispersado,resignados
comaderrota,eleabandonouoseuesconderijoefoiatéabeiradorio.Aoverumacobrad’águapassar,apanhou-ae,depoisdecolocarotiçãodefogonassuascostas,disse:
–Vá,minhaamiga.Atravesseorioeleveofogoatéosíndios.
Acobracomeçouanadar,masofogoemsuascostasardiatantoqueelaacabousucumbindonomeiodajornada.Acorrentezatrouxeoseucorpoenegrecidodevoltaàmargemondeestavaosemideus.
Ocamarãopassavaporali,eBahiraoapanhou.–Vocêéomensageirocertoparaconduzirofogo!–disseele,
encravandoachamanascostasdocrustáceo,quepôs-seanadarrioadentro.
Quasenofimdotrajeto,porém,eletambémsucumbiuàterrívelardência.
–Maldição!–exclamouosemideus,aoreceberdevoltaocadáververmelhodocamarão.
Então,aoergueremdesesperoosolhosparaocéu,avistouasaracura.
–Éisto,ofogoirápeloscéus!Aaverecebeuofogonascostaselevantouvoo,mas,antesdechegar
àoutramargem,faltou-lheofôlegoeelacaiudentrod’água,queimada.Nessemomento,Bahiraavistouomensageiroideal:osapo-cururu.
Dizia-sequeessacriaturadosbrejostinhaohábitodeingerirbrasas,pensandotratar-sedevaga-lumes.Bahiraofezengolirabrasaejogou-onaágua.
Destaveztudocorreubem,eosaporegurgitouabrasaassimquepulouparaaterra,entregando-aaosíndiosparintintins.Emrecompensa,foipremiadocomasupremahonradetornar-sepajédaaldeia.
AMÁSCARADASUCURI
Nosdiasantigos,osíndiosparintintinscaçavamtodoequalqueranimalàmão,poisdesconheciamousodaflechaoudequalqueroutraarma.Assim,quandosaíamparacaçar,namaioriadasvezesseviamtransformadoselesprópriosnacaça.
Então,certodia,Bahira,osemideusdessatribo,decidiudarmaisumaajudaaosseusprotegidos.Cortouumacascagrandedeárvoreecomeçouamodelá-lacomasmãosatétorná-laumamáscaracomasfeiçõesidênticasàdeumasucuri.Aojulgá-lapronta,colocouoartefatonacaraeviuquetodososmacacostrepadosnasárvoresfugiram,comosdentesarreganhadosdepuroterror.
Bahiramergulhouentãonaságuasedesceuacorrentezaatéalcançarumatribovizinharival.Oshabitantesdaquelaaldeiaeramexímiosfabricantesdeflechaserecusavam-seaensinarsuaarteaosíndiosrivais.MasBahiraestavadecididoaarrancar-lhes,senãoosegredodaconfecçãodasflechas,pelomenosalgumasdelasparaqueosseusprotegidospudessemdispordessasarmastambém.
Bahiradeslizoumaisumpouco,sobacorrente,atépassarbemaoladodaaldeia.Então,suspendendoacabeçamascarada,começouasibilarcomoumaverdadeirasucuri.
Osíndios,aoveremaquelacobramonstruosa,correramatéosseusarcosecomeçaramaalvejá-lacomumaverdadeirasaraivadadeflechas.
Osemideusdeixouqueasflechasseencravassemtodasnasuamáscara,detalsorteque,quandoeleretornouparaasuaaldeia,maispareciaamáscaradeumporco-espinhodoqueadeumacobra.
Osparintintinspegaramasflechasecomemoraramofeitocomumagrandepajelança.Nomeiodafesta,porém,umíndiodecidiuquepoderiarepetiraproezacommuitomaissucesso.
“Voufazerumamáscaraparaocorpointeiroevoltarcobertodeflechas!”,pensouele,antegozandoosabordotriunfo.
Nomesmoinstanteeleabandonouafestaefoiparaamatafabricarasuamáscara,ejánamanhãseguinte,bemcedinho,mergulhavanaságuasdorioparaperpetrarseufeitoaindamaior.
Quandochegouàaldeiarival,oíndiopôs-seasilvareespadanaráguaparatodososlados.
–Vejam,outrasucurimaldita!–gritouocaciquedatribo.Então,tomandodeumaflechapontuda–amaispontudaemortífera
dasquehavianaaldeia–,elearremessou-abemnacabeçadoíndiofantasiadodecobra.Asetaatravessouasuacabeçaeelecaiumortodentrod’água,semanecessidadedemaisnenhumaoutraflecha.
Seucorpofoiretiradoimediatamentedorioeassadonagrelha.Nessemeio-tempo,chegaraàaldeiaBahira,poisjádescobriratudoo
queoíndiotramara.–Grandecacique,venhobuscarumhomemimprudentedaminha
tribo–disseosemideus.Ocaciqueapontouparaagrelha,ondechiavamospedaços
esquartejadosdopobreíndio.–Podeescolheropedaçoquemaislheagradar–disseo
morubixaba.Bahirafoiatéagrelhaeencontrouapenasalgunspedaçosque
haviamrestadodofestim.Nãoeramuitacoisa,masBahira,decididoalevaracoisaatéofim,começouaassoprá-los,afimdequetornassemàvida.Deumaisoumenoscerto:sópartedocorpodoíndiosurgiu.Infelizmente,orestantedocorpojáhaviasidodevoradopelosindígenas.
Nofimdascontas,Bahirameteutudonumcestoe,duranteocaminhoderetorno,foilançandoosrestosdoíndiopelamata.Aocaíremnosolo,elesforamsetransformandoemanimais,taiscomoacotiaeoquati.
COMOSURGIUODIA
OsíndiosdoXingutêmumalendamuitodivertidaeoriginalparaexplicaraorigemdodia.Aoriginalidadecomeçapelofatodeosolnadateravercomaluminosidadeoucomodia,talcomoacontecenaBíblia.TantooSolquantoaLuaestavamimersosnamesmatrevadoshomens,sendoosvaga-lumesaúnicafontedeluznaquelesdias,ouantes,naquelasnoites.
Masaverdadeéquealuzdosvaga-lumeseramuitopoucaerarefeita,eninguémaguentavamaisvivernastrevas.Então,certanoite,doisgêmeoschamadosInaêePorãresolveramcolocarumpontofinalnesseproblema.
–Vocêsabeperfeitamentequeourubu-reiéodonodaluz–disseInaêaoSol.–Atéquandovaipermanecerinerte,semfazerumacordocomele?
OSol,imersonatreva,coçouacabeçaedisse:–Ascoisasnãosãotãofáceisassim.Terapropriedadeexclusivada
luzfazdourubu-reiumsermuitopoderoso.Ninguémabremãodeumpoderporsimplesliberalidade.
–Ora,ourubunãoficarásemluz,apenasadividiráconosco!–exclamouInaê.
–Eperderá,assim,otrunfosupremodaexclusividadedaluz–completouoSol.
–Ora,masaluzéparatodos!–Muitobem,seourubu-reinãoquiserdividirporbemaluz
conosco,iremostomá-laporoutromeio!–exclamouoSol,determinado.Osgêmeosexpuseramentãoumplanoe,namesmanoite,trataram
deconfeccionarumaantademadeira,colocandodentrodelaummontedeesterco.Nãodemoroumuito,eosescaravelhoscomeçaramaentrareasairdaantapelasfrestas,carregandosuasbolasfedorentas.
–Muitobem,játemosobastante!–disseoSol,mandandoembrulharosescaravelhos.
OSolconvocou,então,asmoscasparaquelevassemoembrulhoparaourubu-rei.
–Oquequerem?–disseourubuaumadasmoscas.Comonãoentendiaoqueasmoscasdiziam,oSolmandoubuscaro
japim.Ojapiméumpássaroversadonocantodetodasasaves,doqual,
maisadiante,leremosumalenda.Infelizmente,nestecaso,comose
tratavamdemoscas,opássarotradutornadapôdefazer.–Melhorchamarmeuprimo–disseojapim.Ourubu-reifezcarafeiaemandouchamarotalprimo,umcerto
joão-conguinhoque,apesardesermenordoqueojapim,diziaentenderoidiomadosinsetos.
Aavezinhaveioe,nahora,decifrouozumbidodamosca.–ElastrazemumpresentedaTerradasTrevasparaoSenhorda
Luz.–Muitobem,digaentãoqueopresenteestáaceito,equevoemtodos
devoltaparaastrevas!–disseourubu-rei,apoderando-seavidamentedoembrulho,poisumodordepodridãohaviaatiçadoaquelamáscaraquerecobreoorifícionasaldourubuedamaioriadasaves.
–Escaravelhoscombolinhosdeesterco!–exclamouele,devorando,emquestãodesegundos,todooembrulho.
AquiloforatãobomqueosoberanodecidiuconvocarumareuniãodeemergênciadoseuConselho.
–LánaTerradasTrevasdeveter,porcerto,muitomaisdessesquitutessaborosíssimos!–disseourubu-reiaosconselheiros,umbandodeurubusquesósabiambalançaracabeçadecimaparabaixotodavezqueoreifalava.
NamesmahoraourubuorganizouumacomitivaparairatéaTerradasTrevas.Juntocomeleiriamavesdetodosostipos,enãosóurubus.
Enquantoisso,naaldeiatrevosa,oSoleaLuajáestavamdentrodaantademadeira.
–Tudopelaabençoadaluz!–diziaoSol,atéqueourubu-reichegou,afinal,comasuacomitiva.
–Queremosmaisquitutesdaqueles!–ordenouele,comoumconquistador.
Imediatamenteasmoscaslheapontaramaantagigante,todacobertadeescaravelhosesuasbolinhasdeesterco.Todasasavessearremessaram,numvooalucinado,nadireçãodoboneco.
Nesteinstante,oSolaproveitouparaespiarnoburacodestinadoaosolhos,paraverseourubutambémvinha.Masogavião,queficaranoar,fiscalizandotudo,percebeuoperigoedeuoalerta:
–Cuidado,majestade!Obonecomexeuosolhos!Masagulaeratantaquenemmesmoourubu-reiteveouvidospara
escutaraadvertência.Logo,todasasavesestavamsobreaantade
mentira,abocanhandotodososescaravelhosqueenxergavam.Então,quandoacomilançaestavanoauge,oSolespichouobraço
paraforaeagarrouapernadourubu-rei.Umgrasnidoaterradorescapoudasuagarganta,fazendoasoutrasaveslevantaremvooedesapareceremnoscéus.Sóourubu-reipermaneceuprisioneironadesoladaTerradasTrevas,juntocomojacubim,umaavezinhavalentequenãocostumavafugirdalutaquandoascoisasiammal.
–Solte-me!–gritavaourubu-rei.–Dê-nosodiaepoderávoltarparaoseureino!Ourubu-reirenitiuoquantopôde,masteve,afinal,deceder.–Vábuscaraararavermelha!–disseourubu-reiaojacubim.Aararavermelhaeraaportadoradaluze,depoisdealgumashoras,
retornoujuntocomojacubim.Assimqueaavedepenasescarlatespousounumgalhoalto,odiacomeçouaraiarpelaprimeiravezparaosíndiosdaTerradasTrevas.
Umcorodeespantosubiuaoscéus,eoSolfoicolocar-senoseulugar.
–Quandoodiaterminar,seráasuavezdeirocuparolugardoSol–disseourubuàLua.
OsíndiosdoXinguficaramtãoagradecidosaourubu-reique,desdeessedia,passaramadepositaroferendasregularesdecarneapodrecidanoslugaresaltosdaaldeiaaogenerosodoadordaluz.
PORQUEATERRATREME
Osíndioskaiapóscontamumalendaqueexplicaarazãodostremoresdeterra.
Havia,certafeita,umaíndiaqueeramuitomácomseusfilhos.Entãoopajé,decididoapôrumfimàsuamalvadeza,transformouaelaeaosfilhosemporcos.(Naqueletempoajustiçaerameioprimitiva,emuitasvezespunia-se,aomesmotempo,malfeitorevítima.)
Estaraçadeporcoseradiferentedasoutrasexistentes,ejustamenteporteremtidoumaorigemmágicaosíndiosdecidirampreservá-los,colocando-osdentrodeumacaverna.
Acavernafoilacradacompedraseninguémmaisbuliucomosporcos,atéqueumdiaaquelemesmopajédecidiudescobrirquegostoteriaasuacarne.
–Jáestoufartodessescaititus!–disseele,aproximando-sedacavernacomumafaca.
Caitituseraaúnicaespéciedeporcoexistentenaaldeiaantesdesurgiremosoutros.
Opajématoudoisporcos,levou-osescondidosparaaaldeiaecomeu-osinteirinhos.
Osoutrosíndios,porém,desconfiandodoodordiferentedoassado,foramfalarcomofilhodopajé.
–Essesporcosqueoseupaicomeusozinho,deondevieram?Ofilhodesconversou:–Delonge.–Mostre-nosonde.–Nãoposso,estoucomopémachucado.Entãoumíndiocolocouomeninonascostaseordenou:–Agoraleve-nosatélá!Umgrupodeguerreirosseguiu-osatéchegaremàentradada
caverna.Começaramadesobstruirapassagem,deslocandoaspedras.–Queremosprovartambémacarnedessesbichos!Quandoterminaramdeabrir,porém,osporcosarreganharamos
dentes.–Corram!Fujam!–gritaramosguerreiros,atirandoaslançasparao
alto.Todomundocorreuparaapartemaiselevadadaserra,maso
menino,queestavacomopémachucado,nãoteveamesmasorteeacabou
apanhadoedevoradopelosporcos.Sósobraramseusossos.Opajé,aosaberdadesgraça,correuatéláe
conseguiuressuscitaromenino,assoprandosobreosossos.–Essesporcosvãoversó!–disseele,recolhendo-osecolocando-os
outraveznacaverna.Sóque,destavez,eleescavouumsubterrâneoprofundo,obrigando
osporcosadescerematéasprofundezas.Umavezláembaixo,elecomeçouasurrarabicharadacomtantaganaqueprovocouumtremordeterraemtodaaaldeia,devastandotudo.
Desdeentão,semprequeumnovotremordeterraacontecenaaldeia,todosjásabemquesãoosporcosdopajéfazendosuascorreriasloucaspordebaixodaterra.
APRIMEIRACOBRA
Nestalenda,conta-seaorigemdeumaautênticacobraindígena,damesmaestirpedaCobra-Grande,serbrutoeirracionalquesópensavaemcomeredevastar.
Eiscomo,segundoosíndioskaiapós,acobraveioaomundo.Ahistóriacomeçouquandoumcasaldeíndios,fartodeviverna
aldeia,resolveuemigrarparaoutrasterras.Depoisdemuitoandarem,acharamumlugaridealealiseestabeleceram.
Certatarde,oíndiofoibanhar-senumigarapé,queéumpequenorio.Acontecequeriozinhoeraencantado,eelelogoseviutransformadonaprimeiracobradomundo.
Aoretornarparacasa,ohomem-cobradeuumsustonamulher,quenuncatinhavistonadaparecidonavida.
–Socorro!Acuda,meumarido!–berravaela,histérica.–Sossega,soueu!–sibilouacobra.Amulhercustouaaceitarofatodequeteriadeviverparasempre
aoladodaqueleserhorrorosoquematavaecomiaosanimaisdamata.Otempopassou,eosíndiosdaantigaaldeiamandaramum
mensageirosaberoqueforafeitodocasal.Oíndiochegoueencontrousóamulher.
–Comoestãoascoisas?–disseele.Amulherprocurousorriredissequeiatudobem.Masomensageiro,sentindoqueelaescondiaalgo,insistiu:–Ondeestáoseumarido?–Opobremorreu!–disseaíndia.–Vamos,faleaverdade!–disseomensageiro.Entãoelaconfessou,deumavez,queomaridoviraraumacobra.
Destavez,apobrezinhachoravadeverdade.–Poisqueroverseéverdade!–disseomensageiro,acomodando-se
narede.Daliapouco,escutou-seoruídodealgoquesearrasta.Eraacobra
devoltadassuasmatanças.Acriaturahaviaaumentadodezvezesdetamanhodesdeoseusurgimento.
Oíndioficoutãoapavoradoquefugiudevoltaparaaaldeia.Daliaalgunsdias,apareceuoutroíndio.
–Querovercomoéacobra–disseeleàesposadoofídio.Efoiesconder-senumjirau,dentrodacasa.Assimqueacobra
entrou,espichoualínguafendidaecaptouoodordapresençahumana.–Estousentindocheirodegente!–sibilouacobra.Acobra,mesmotendorecémcomidoumboiinteiro,pediuàmulher
quelhetrouxessemaiscomida.Elatrouxe,eacobracomeuatéempanzinar-se.Depois,pôs-seacantarolarumcantomeiohipnóticoqueobrigouoíndioescondidoaacompanhá-lo.
–Eusabiaquetinhamaisalguémaquidentro!–exclamouacobra,furiosa.
Oíndio,aterrado,surgiucomasduasmãosespalmadas.–Calma,amigo,soudaaldeiaevimapenasparavercomoestão.Masacobranãoestavaparafalasmansaseabocanhouoíndio
inteiro.Otempopassou,eosíndiosmandaramumgrupodeguerreirospara
exterminaracobra.Péantepé,elesadentraramacasadaíndiae,quandoacobradormiaasonosolto,caíramderijoemcimadelacomlançasetacapes,matando-a.
Aíndiachorouelamentou,masocrimejáestavafeito.Elafoilevadadevoltaparaaaldeia,aosprantos,masoqueelesnãosabiaméqueelaestavagrávidadeumaninhadadecobrinhas,quedeuàluzassimquechegouàaldeia.Quandoosíndiosdescobriram,muniram-sedecacetesparaabaterosfilhotes,masaíndiaespantou-ostodosparaamata.
–Vão,escondam-senamata!Desdeentão,ascobrasandamàsoltaporaí.
COMOOSKAIAPÓSDESCERAMDOCÉU
Oskaiapóstêmumaexplicaçãoparaosurgimentodasuaraça.Segundoeles,omundosempreestevedivididoemtrêspartes:océu,
aTerraeosubterrâneo.Sóque,nosdiasantigos,osseresvivossóviviamnocéuenãodesconfiavamdaexistênciademaisnada.
Então,umdia,umcaçadorceleste,correndoatrásdeumtatu,viuabrir-sesubitamenteochãodocéu.Acaçadespencounoabismo,emdireçãoàTerra,deixando-oboquiaberto.
–Oquehaveráláparabaixo?–disseele.Então,pendurou-senaextremidadedeumaraizeviutudooque
haviaaquiembaixo.Ocaçadorficoutãoeufóricocomoqueviuquecorreuparaasuaaldeiaparatransmitiranovidade.
–Háummundomaravilhosoláembaixo!Háflorestas,riosecamposparaplantaçãoecriação!
Avidadeviasermuitochatalápelocéu,jáqueseushabitantesnãopensaramduasvezesantesdedecidiremmudar-separaaTerra.
–Mascomofaremosparaalcançaraquelaprofundeza?–dissealguém.
Depoisdepensarumpouco,ocaçadorachouasolução.–Vamosfabricarumacordabemgrossaeresistente!Parafabricaracorda,porém,eraprecisoantesplantaralgodão.As
mulhereslançaram-seàplantaçãoe,daliaalgumtempo,fez-seacolheita.Osfiosforamtrançados,eacordaimensaeresistentefoilevadaatéobalcãosuspensodocéu.
–Joguem-na!–disseocaçador.Apontadacordafoiatiradanoabismoeveiosedesenrolandoaté
alcançarochãodaTerra.Imediatamenteosíndiosmaisaudaciososcomeçaramadescer,umporum,comoformigasnumbarbante.
Entretanto,aoperaçãonãoaconteceusemincidenteseinfortúnios.Muitosdosantigoshabitantesdocéu,porexemplo,sóchegarammortosàTerra,poisduranteadescida,pordescuidooucansaço,acabaramdespencandodoalto.Quandoessasnotíciaschegaramláemcima,muitosdosqueaindafaltavamdescersentiram-setomadospelomedoenãoquiserammaisfazê-lo.
–Estábem,covardes,fiquemaí!–disseramosoutros,ecortaram
comumafacaacorda.Desdeentão,cessouadescidadosíndiosdocéu,eosvalentesque
conseguiramchegaràTerrapassaramaserchamadosdekaiapós.
OSURGIMENTODAPLANTAÇÃO
Estalendatambéméprotagonizadaporumacriaturacelestequesalvouumaaldeiademorrerdefome.
Nostemposantigos,segundooskaiapós,avidanaterraeramuitodifícil.Aspessoasnãotinhamoquecomer,senãolagartas,raízes,orelhas-de-pauecoisasdestetipo.Frutosnãoexistiam,nemninguémsabiaplantar.Quantoàcaça,eraimpraticável,poisoshomensnãosabiamempunharnemumavarademarmelo.
Certodia,umíndioqueandavapelamatadebarrigavaziafoisurpreendidoporumachuvaradadaquelas.Opéd’águaduroupouco,masbastouparaencharcartudo.Oíndio,agachando-se,começouabeberdaspoçasparaencher,pelomenoscomágua,abarriga,quandoescutoualguémchamá-lodoalto.
–Psiu!–diziaumavozmaviosa.Eleolhouparaoaltoeviuumaíndialindíssimasentadanogalhode
umaárvore.Elaestavanuaepareciaesconderalgoentreaspernas.Afomedoíndioeratantaqueelenãopensounoutracoisasenãoem
comida.–Porfavor,moça,medêessafrutaqueestáescondendoaí!Aíndianãodemorouaentenderoequívocoecomeçouarir.Oíndioestranhouasformasroliçasdajovem,poisnaaldeiatodasas
índiasestavammuitomagras.–Quemévocê?–disseele.–Nuncaaviporaqui.–Descidocéu,juntocomachuva–disseela,torcendooscabelos
reluzentes.–Porquê?–Mecanseideviverlá.Meuspaisnãotempaciênciacomigonemeu
comeles.Tomadoporumapaixãoinstantânea,oíndiodecidiucasar-secom
ela.–Venhacomigoparaaaldeia–disseele.Então,elesesperaramanoitecaireelelevou-a,àsescondidas,para
asuacasa.–Sóapareçaquandoeumandar–disseele,escondendo-adentrode
umaenormecabaça.
Oíndiomoravacomamãe,umavelhacomcaradeespectro.Seutemperamento,contudo,eraamável,equandoeladescobriu,certodia,ajovemdentrodacabaça,nãopensouuminstanteemfazermalaela,edisse:
–Quejovemlinda!Deondeveio?Então,aíndiacontouquemeraefoilogochamadaportodaaaldeia
deFilhadoCéu.Elacasou-secomoíndio,eambosficaramvivendonacasadavelhaíndia.
Entretanto,apesardobomtratamento,logoajovemcomeçouasentirosefeitosdapenúria,emagrecendoaolhosvistos.
–Istonãopodecontinuarassim.Vouvoltarparaocéuetrazerdeláalgumassementes.
–Mascomopoderáfazerisso?–Ora,eudouumjeito!–disseela,seguradesi.–Venhacomigo!Ocasalatravessouamataatéencontrarumaárvoredegalhos
resistenteseflexíveis.–Ótimo,estaéperfeita!–disseela,começandoaescalarotronco.Oíndioficouobservando-asonhadoramente,arelembraroseu
primeiroencontro.–Oqueestáesperando?Subacomigo!–ralhouela,doalto.Osdoisencarapitaram-senogalhomaisalto,quecomeçouavergar
atéatingirochão.–Agora,desça–disseela,comamesmasegurançadesempre.–Masvocêpodesemachucar!–gemeuele.–Ah,quebobagem!–disseela,botando-opraforadogalhocomum
empurrão.Assimqueoíndiocaiu,ogalhocatapultouajovemparaoalto,numa
velocidadeespantosa.–Meaguarde,euvoltarei!–disseela,misturadajácomasnuvens.Otempopassouatéque,noprimeirotemporal,oíndiocomeçoua
correrpratodolado,esperandoadescidadaamada.Daliainstantes,enxergou-apenduradanumgalho.
–Meajude,istoestápesado!–disseaíndia.Elaatiroudoaltoumsacoenormecheiodesementesquequase
esmagouomaridoedepoisdesceu,numpulo,comasuavidadequelheerapeculiar.
–Oqueestáfazendo?Omaridoestavacomendoassementescomasduasmãos.–Istonãoéparacomer,masparaplantar!
Entãoelaensinouokaiapóafazerumaroça,edepoisasemeá-la.–Vocênãovaiacreditarnoquevaisurgirdaqui!–disseela,vaidosa.Nãodemoroumuitoecomeçouasurgirumaplantaçãoenormede
milho.–Puxa,quelindo!–exclamouele.–Masedestasoutras,porque
nadanasceu?–Vocêquepensa!–disseela,arrancandodedebaixodosolo
tubérculosenormesdebatata,inhameemandioca.–Maistardenascerãoasárvoresfrutíferas,emuitasdelíciasmais!
Osdoisseabraçaram,felizes,edesdeentãoafomedeixoudeafligiroskaiapós.
OSURGIMENTODOSPEIXES
TudocomeçoucomoaparecimentonaaldeiadeumcertoBirá.Eraumíndiosedutor,oterrordahonradetodososhomens.Eleeraumaameaçaconstante,comoseusorrisodepermanentedesafioaosrivais.
Então,numbelodia,osíndiospediramaopajéparalançarumfeitiçosobreokaiapósedutor.
Aconspiraçãoevoluiu,eopajéfezopobreBirátomarumapoçãomalditaduranteumapajelançaqueotransformouemumaanta.
–Nãobasta,éprecisomataraanta!–disseochefedaconjura.Então,depoisdemataremopobreBirá,levaram-noparaaaldeia
comosefosseumacaçacomum.–Hojetemmoquémdeantacomfarinha!–anunciouocacique,
pondooseucocarmaisvistoso.Todasasmulheresforamobrigadasaseservirdospedaçosdaanta.Então,quandoaceiatribalterminou,ocaciqueergueu-seefeza
hediondarevelação:–Mulherespérfidas!VocêsacabaramdecomerBirá,osedutor
maldito!Instantaneamente,aspobrezinhascomeçaramavomitareachorar.Nodiaseguinteoshomensforamcaçar,deixandonacompanhiadas
mulheressomenteosvelhosincapazes.GraçasaTupãnãohaviamaisBiráparaaproveitar-sedaausênciadeles!
Asíndias,contudo,reuniram-seedecidiramfugiresejogarnorio.Antes,pintaramseuscorposdasmaneirasmaisdiversas,compintas,riscasemanchasdetodasascores.
Aochegaremàbeiradorioepularem,transformaram-seempeixes.–Oqueestãofazendo?–gritaramosvelhos,aochegarem,depois.Muitosdeleslançaram-senaágua,tentandosalvá-las,masacabaram
transformadosemsaposearraias.Quandoosíndiosretornaramesouberamdadesgraça,ficaram
duplamentedesolados.Alémdeperderemasesposas,sofreram,ainda,aafrontadeverem-setrocadospelasaudadedeummorto.
Semmaismulheres,osíndiosficaramloucosecometeramsuaúltimatolice,pois,emvezdeseatiraremaorio,juntando-seassimàssuasmulheres,foramtodosparaamata,ondeacabaramsetransformandoemmacacos,cutiasetodaespéciedeanimaissilvestres.
OJACARÉEOMUTUM
Oskanassas,comotodasastribos,possuemváriaslendasetiológicas,ouseja,queexplicamarazãodeserdascoisas.Nesteconto,ficaremossabendocomoojacaréganhouasuacauda,eomutum,umapequenaavedasmatas,oseutopete.
Primeiro,ojacaré.Diz-sequeumdiaumpajékanassachegouàterradojacarée
encontrou-oralandomandioca.Foradaslendas,umjacaréralandomandiocaseriacoisamuitocuriosadesever,masopajéachoutudomuitonaturalefoilogoperguntando:
–Mediga,jacaré:ondeéquevocêguardaoraladordepoisdeusá-lo?
Ojacarélançouumolharfrioaopajé.–Euoguardonascostas.–Deixeeuvercomofica–disseoíndio.Ojacaréolhouparaoíndio,quaseincrédulo,masresolveu,afinal,
fazeroqueooutropedia,sóparaselivrardoimportuno.–Não,nãoficanadabem–disseopajé,apósobservá-lodetodosos
ângulos.Ojacaréretirouoraladordascostas,aborrecido,evoltouaralar
mandioca.–Experimentecolocaremcimadorabo–falouopajé.Perdendofinalmenteacalma,ojacaréexclamou:–Vocêestádegozaçãocomigo?–Ponhaemcimadorabo,vamosver–insistiuooutro.–Sóseprometerque,depoisdisso,iráembora.Opajéprometeuqueiria,esóentãoojacarépegouoraladore
colocou-oemcimadorabo,umrabolisinhocomoacaudadaslagartixas.–Ótimo,ótimo!–disseopajé,subitamenteentusiasmado.–Ficou
perfeito!Então,antesqueojacarépudessefazeralgo,opajélançouumfeitiço
sobreele.Desdeentão,ojacaréficoucomoraboásperoecheiodefraturas,
comoumraladordemandioca.
***
Agora,alendadomutum.Omesmopajéandoumaisumpoucopelamataatéencontraro
mutum.Estesertambémestavatodoatarefado,preparandoumpequenoenfeitedepenas.
Opajéachouqueinterromperotrabalhodooutroeraumaboamaneiradedemonstrarasuasimpatiaeasuacordialidade,eperguntouaomutum:
–Oqueestáfazendoaí?–Umenfeitedepenasparaafastaríndioschatos–disseomutum.Opajé,imperturbável,sentou-seeesperouomutumterminarasua
obra.–Vamosverquetalvaificar.Omutumolhouparaopajécomimpaciência.–Vaipôrnacabeça?–disseopajé.–Sim–disseele.–Entãoponha,oqueestáesperando?Derepente,omutumtemeuestardiantedeumloucoeresolveu
fazeroqueoíndiodizia.Depoisdecolocaroenormepenachonoaltodacabeça,ficouparado,comcaradebobo.
–Parecebom–disseopajé.Acalmadoporessepequenoafagonavaidade,omutumcomeçoua
voardeláparacá.–Maisrápido!Omutumvoouemtodosossentidos,atédeponta-cabeça.Nesse
ponto,otopetesedesprendeuecaiumiseravelmente.–Aíestá!–disseoíndio,dandoumapalmadanacoxa.–Ponhade
novo!Omutumrecolocouopenacho,eopajéaproveitouparalançarsobre
eleumfeitiço.Nomesmoinstante,openachoenraizou-senococurutodaavezinhaedalinuncamaissaiu.
OÍNDIOQUEQUERIAMATAROSONO
Certanoite,umíndioconcebeuodesejoextravagantedematarosono.
–Graçasaeledeixodefazermuitascoisasúteis,perdendometadedashorasdaminhapreciosavida–disseeleaosdaaldeia,antesdepartirparaasuaextravagantecaçada.
Osíndiosfizeramdetudoparademovê-lodasandice,maseleteimouepartiuparaafloresta.
–Dizemqueosonovemdelá.Poiséláqueomatarei.Oíndiometeu-senocoraçãodaflorestaamazônicae,agachadoecom
umtacapeenormenamão,passouaesperarachegadadoinimigo.Quandoanoitecaiuelearregalouaindamaisosolhos.Erapreciso
estaralerta.Abarulheiradossapos,dosinsetosedosanimaiscaçandoesendocaçadoserainfernal.Aindaassim,oíndiosentia,cadavezmais,queasuapresaseaproximava.
Então,quandoosonofinalmentechegou,oíndiodesabounosolo.Quandoacordou,viu,desolado,queasuapresatinhafugido.
–Maldição!Estavaquasenasminhasmãos!Entãopreparou-separa,nanoiteseguinte,terasuadesforra.–Destavezelenãomeescapa!Oíndiofezumchábemforteparamanter-sedesperto,masasua
presa,adivinhandoaartimanha,sófoiaparecerquandoodiaestavaquasenascendo.
Quandoosonochegouoíndiodesabououtravez,comotacapenasmãos.
Dizemqueoíndioteimosoestáatéhojemetidonoscafundósdaflorestatentandomatarosono.
AVIDAHUMANA
Certafeita,segundoosíndiosbororo,apedraeataquaraderaminícioaumdebateparasaberqualdasduasseassemelhavamaisàvidahumana.
–Semdúvidaalguma,avidahumanaseparecemaiscomigo–disseapedra,categoricamente–,poisavidahumanaétãoresistentesobreaTerraquantoaspedras.
Nesteponto,ataquaracontestou:–Deformaalguma,amigapedra.Avidahumanaseparececomigo,e
nãocomvocê.Oshomensmorremcomoastaquaras,aoinvésdeduraremperpetuamentecomoaspedras.
Apedraalterou-seligeiramente.–Ora,tolices!Avidahumanaseparececomigo!Nãovê,então,como
elaresisteaofrioeaocalor,nãosedobrandonemaovento,nemàsintempéries?
–Não,não,enganas-te–disseataquara.–Ohomem,naverdade,tembempoucodepedra.Elemorrecomonós,astaquaras,morremos,porémrenascenosseusfilhos.
Então,mostrandoàpedraosseusfilhos–ataquaraestavadentrodeumenormeeruidosotaquaral–,elapôs,porassimdizer,umapedrasobreaquestão:
–Vejacomosomosparecidoscomoshomens:somosmaleáveis,temosapelefrágile,finalmente,nosreproduzimossemparar.
Entãoapedra,reconhecendoaderrota,ficoumudaenuncamaisdissepalavra.
OJAPIMPLAGIADOR
Ojapim,tambémchamadodexexéu,moravanocéujuntocomTupã,odeusdotrovão.
Diz-seque,certaépoca,umadoençaterrívelseabateusobreosíndiostupis,causandomuitasmortes.EntãoelesclamaramaTupãparaquemandassealgumaajuda.
–Vá,japim,ecure-osdadoença–disseodeus,espantandoaavezinha.
Ojapim,umabelaaveazuleamarela,desceudocéuefoipousarnaaldeiainfectada.Imediatamente,elecomeçouaentoaroseucantobeloeoriginal,queaprenderanocéu.
Osíndiosficaramabismadoscomabelezadocanto,emboraachassemaquilomuitopouco.
–Ébelo,sim,mascantorianãocuranossosmales!–reclamouaoscéusopajé.
Aospoucos,porém,ocantodaavefoiinfundindopoderescurativossobrenaturaisnosdoentes,curando-osumporumdamoléstia.
Então,quandoadoençafoiextinta,ojapimanunciouqueretornariaaoscéus.
–Oh,não,permaneçaconosco!–clamaramtodos,e,maisdoquetodos,opajé.
Tupã,doaltodasuabondade,decidiu,afinal,deixarojapimentreosíndios.
Houvefestaemtodaaaldeia,eaavezinhamilagrosafoicelebradaduranteumasemanainteira,comosefosseopróprioTupã.Nãodemoroumuitoeojapim,vaidoso,começouaseconsiderarumaavesagrada.
Apartirdaí,passouadesprezaracompanhiadasoutrasaves,eatémesmoaridicularizá-las,debochandodequalquercantodeavequenãofosseoseu.
Quandoasoutrasavesseencheram,afinal,dessahistória,foramqueixar-seaTupã.
–Ninguémaguentamaisasoberbadojapim!Graçasaela,seucantoperdeutodasaspropriedadescurativas.Jánãohámaisrazãoalgumaparaalguémdesejarasuapresençanaterra.
Então,Tupã,dandorazãoàsaves,decidiupunirojapim.–Poisapartirdeagoraeleperderáoseucanto,sópodendoimitaro
cantodosoutros!
Masasavesacharampouco,poisqueriambemlongeojapimeseusdeboches.Então,destruíramseuninhoequiseramcorrê-lodaaldeia,obrigando-oapedirproteçãoaosmarimbondos.
–Porfavor,deixem-meconstruirmeuninhopertodasuacasa!–disseaavezinha.
Osmarimbondosaceitaram,desdequeojapimnãoarremedasseozumbidodeles.
Desdeentão,ojapimviveprotegidodoataquedasoutrasaves,emborajamaistenhareadquiridoodomdecantaroseuprópriocanto.
PARTEII
CONTOSTRADICIONAIS
ARAPOSACARENTE
Umaraposamortaque,emvida,tiveraumapaixãoporserobsequiadaresolveuforçarofavordeumhomembom,indopostar-senomeiodaestrada.
–Oh,umaraposamorta!–disseohomembom,penalizado,aoverapobrebichanadeolhosvidradoselínguadefora.–Pobrezinha,vouenterrá-la!
Araposaestavamorta,masaindaassimsentiuumaondadeprazeraover-sealvodaquelefavor.
Ohomembomenterrouaraposaeseguiuadiante.Masaraposacarentegostoutantodonegócio–houveatéumabênçãosobreoseutúmulo,imagina!–quesedesenterrouàspressasefoicorrendopostar-seoutraveznocaminhodohomembom.
–SantoDeus,outraraposamorta!–disseeleaoverabichanaestrebuchadasobumanuvemdemoscas.
Apósexpulsaromosquedo,ohomembompegouocadáverdaraposa,cobriu-odefolhasedepoispartiu.Assimqueelepartiu,ofocinhodaraposamortasurgiudafolharada.Elapareciaumpouquinhofrustrada,destavez,poisaquelasepulturadefolhasnãoforacomoogloriososepultamentosobaterra.Mas,aindaassim,foraumaltofavor,consolou-searaposacarente,contentando-secommenos.
–Defavoresnãoheidemecansarjamais!–disseela,enquantoohomembomseafastava.
Apóslivrar-sedasfolhas,elacorreuporumatalhodentrodamataefoiesparramar-senovamente,bemmaisadiante,nocaminhodohomembom.
–Serápossível?–disseele,jácontrariado.–Alguémandaexterminandoraposasporaqui!
Destavez,haviaumanotadeirritaçãonavozdohomembomquandoelearredouadefuntacomopéatéasombradescobertadeumaárvoreantesdepartir.
Assimqueohomembomdesapareceu,araposacarenteabriuumolhoedisse:
–Ascoisasjáforambemmelhores,éprecisoadmitir.Mas,enfim,foisempreumfavor!
Oh,comoelaambicionavaseramada!Cegaporessedesejo,araposacarentefoicorrendoencontraroutroatalhoparasaborearnemquefosse
aúltimamigalhadoafetoalheio.Destavez,porém,aoavistararaposamorta,ohomembomjáestava
fartoedeuumchutenocorpodaraposa.–Dane-sevocê!–exclamouele,irritado.Araposacarenterodopiouefoicairdentrodamata,enquantoo
homembom,apassosfirmeseraivosos,foisermauemoutraparte.Esfolada,araposadescobriu,então,queforçaroafetoéforçaro
enfado.
OPEQUENOHOMEM
Haviaumavezumpríncipequegostavadecaçar.Certafeita,eleentrounaflorestacomseusirmãoseacabouperdendo-sedeles.
–Eesta,agora!–disseele,olhandoparatodososlados.Semosseuscães,opríncipeeraumzeroàesquerdanafloresta.
Desorientado,errouemtodasasdireções,sóparadescobrirque,emtodososquadrantes,continuavaperdido.
Então,apóstomarumrumoàscegas,foidarnumaterradegigantes.Issoelesoubequandoviuumacasaquemaispareciaumamontanhademadeira.
Apósbaternaporta,eleviu-sediantedeumhomemgigantesco,quelheperguntouquemeleera.
–Estouperdido,meuamigo,eprecisodeabrigo.Ogigante,quenãoeramuitoamigodeintrusos,fingiuser
hospitaleiroaoreconhecernafiguradohomenzinhoperdidoopríncipedoreinovizinho.
–Podeentrar–disse,demávontade.Juntocomogigantemoravamsuaesposaesuafilha.Afilha,que
tambémeragigante,chamava-seGuimara.Opríncipeficouabrigadonacasacolossal,àesperadequeviessem
buscá-lo.Enquantoosirmãosnãoapareciam,acabouapaixonando-sepelaprincesagigante.Ela,porsuavez,tambémachouqualidadesbastantesnaqueleserminúsculoparaporeleseapaixonar.
OpaideGuimara,noentanto,nãogostoudissoeresolveucomplicaravidadopríncipe.
–Chegou-meaosouvidosquevocêpretende,numasónoite,erguerumnovopalácioparamim–disseogigante.–Seforverdade,querovê-lofazer.Senãofor,querovê-lomorrer.
Apavorado,opríncipetevedeconfirmartudo.–Certamentequeofarei–balbuciouele.–Isso,amanhãveremos–respondeuogigante,desaparecendo.Ohomenzinhofoichorarasmágoasparaasuaamada,quetratoude
acalmá-lo.–Deixacomigo,belohomenzinho.Souumamaga,epossofazertudo
issonumestalardededos.Edefato,duranteanoite,elaconstruiuummajestosopalácio.Namanhãseguinte,aoveropalácio,ogiganteficoucomcarade
palhaço.–Aquitemtruque!–disseele,massóparasi.Então,ogiganteprocuroudenovoohomenzinhoeodesafioua
limparaIlhadasFerasBravias,tornando-aumjardimamenoeaprazível.–Seforverdade,querovê-lofazer.Senãofor,querovê-lomorrer.Ohomenzinhocorreu,então,novamente,àamada,quetratoude
limparaIlhadasFerasBravias,transformando-anumverdadeiroJardimBotânico.
Ogigantetorceuabocaaoveroresultado.–Oqueestáfeito,estáfeito,masoquehádeserfeito,tambémháde
serfeito.Oqueelequeriadizercomsuacharadaéquepretendiamatar
naquelamesmanoitetantoohomenzinhoinsolentequantoasuaprópriafilhadesobediente.
Guimaraeohomenzinho,porém,fugiramdoquartoantesdachegadadopai,deixandosoboslençóisduasbananeiras,umagiganteeaoutrapequena.
Osdoisfugitivosganharamanoitemontadosnumcavaloveloz,levandoconsigoumaespingarda.Aodescobrirologro,ogigantemontounoutrocavalovelozepartiunoseuencalço.
Ora,acontecequeocavalodogiganteeramaisveloz,enãodemoroumuitoparaqueosfugitivosseconvencessemdequelogoseriamalcançados.
–Vamospassar-lheoutrologro–disseamulhergigante.Quandoogigantechegouàbeiradeumrio,foiistoqueencontrou:
Guimaratransformadanumriacho;ohomenzinho,numpretovelho;ocavalo,numaárvore;aseladocavalo,numaréstiadecebolas;e,finalmente,aespingarda,numbeija-flor.
Opretovelhobanhava-senorio.–Digalá,nãoviupassarporaquiumcasaldefugitivosacavalo?Opretovelho,jogandoáguasobreoscabeloscomacovadasmãos,
disse,olhandoparaascebolas:–Oqueeuseiéqueplanteiestascebolas,masnãoseisemesairão
boas!“Quemaluco!”,pensouogigante,desviandooolhar.Então,aoverobeija-flor,correuatéele.Masaavezinhaestavatão
bravaquequasefurou-lheosolhos,oqueoobrigouavoltarcorrendoparacasa.
–Danação,perdiapistadosdois!–disseeleàesposa.
–Vocêéumbobo,mesmo!–disseela.–Entãonãovêqueétudotruque?
Pontoporponto,amãegigantedeslindouostruquesdafilha,fazendocomqueogigante,enfurecido,montassenocavaloepartissenovamentenoencalçodosfugitivos.
Aovê-lo,afilhaseconverteunumacatedraletransformouoamadonumpadre,aselanumaltar,aespingardanumlivroderezaeocavalonumsino.
Aoveracatedralresplandecente,ogiganteseatirouparadentro.–HomemdeDeus,osenhorviuporaíminhafilhaeum
homenzinho?Opadre,comonarizenterradonomissal,respondeuemfeitiode
poesia:
Nadavi,não,Queestouemoração,EquemmeazucrinaEntraemdanação.
Assustado,ogiganteretornou,persignando-setodo,efoicontartudoàesposa.
–Seubobo!–disseela.–Étudoenganaçãodamarota!Elásefoidenovoogigante,sedentodavidadafilhaedo
homenzinho.Destavez,noentanto,Guimararesolveumudardetática.Apóstomar
umpunhadodecinzas,atirou-asparaoaltoeumaneblinaescandinavadesceu,comopormágica,sobreafloresta.
Ogiganteperdeu-sedevez,enquantoocasalchegava,finalmente,aocastelodopríncipe.Antesdeentrar,porém,agigantelhefezestaestranhaadvertência:
–Quandoentrar,nãobeijeamãodesuatia,oumeesqueceráparasempre.
Éclaroqueaprimeiracoisaqueopríncipefezfoiircorrendobeijaramãodatia,oqueprovocouoimediatoesquecimentodasuaamada.Desdeentão,Guimaraconverteu-senumamulherzinhapequenaetriste.Comodoida,elapassouaperambularnoiteediapelascercaniasdopalácio,natentativainútildeconvenceropríncipedequeumdiaforaasuaamada.
AMOURATORTA
EsteéumdoscontosmaispopularesdovastorepertórioquecirculapelointeriordoBrasil.Comoaimensamaioria,nãoécriaçãobrasileira,masumaadaptaçãodeumdoscontosmaisdivulgadosdaliteraturaoraldetodoomundo.
Havia,pois,certafeita,umreiquemandouofilhocorrermundo.Opríncipeganhouaestradae,depoisdeencerarmeiomundo,topoucomumavelhinhadobradaacarregarumfeixedelenha.Acadapasso,elagemiasoboseufardo,oqueencheudedóopríncipe.
–Deixe,boavelhinha,queeucarregooseufeixe–disseopríncipe.Avelhadeuumsuspiroearriouacarga.–Obrigada,meujovem–disseela,aliviada,porémsemendireitaras
costas,poiseracorcunda.Então,elaretiroudeseualforjetrêslaranjasnovinhaseentregou-as
aoseubenfeitor.–Comaestaslaranjassemprequesentirsede–disseela.–Mas
cuidado:sóascomaquandoestiverpertodeumcursod’água.Opríncipejurouqueassimofaria,embora,desdejá,saibamosque
assimnãoofará.Defato,aosentirsedepelaprimeiravez,eledescascouumadas
laranjasnumdescampado.Dedentrodelasaltouumabelajovem,dizendo:–Dá-meáguaoumorrerei!Comonãohaviaáguaporperto,apobrezinhamorreudesedefeito
ummosquitinho.Daliadoisdiasopríncipe,quedeviasermuitoesquecido,sentiu
sededenovoedescascouasegundalaranjasemteràvistaqualquercórregod’água.Umasegundajovem,aindamaisbeladoqueaprimeira,saltoudedentroerepetiualadainha:
–Dá-meáguaoumorrerei!Morreurealmentedesede,apobre.Naterceiravezemquesentiusede,opríncipelembrou-se,
finalmente,doavisodavelhaeprocurouabeiradeumrioantesdedescascaraterceiralaranja.
–Vejamosdestavez!–disseele,metendoafaca.Entãoumaterceirajovem,maisbeladoqueasoutrasduas,surgiu
comomesmopedido:–Dá-meáguaoumorrerei!
Eletomou-anosbraçoselevou-a,àspressas,atéasmargensdorio.–Beba,lindajovem!–disseopríncipe,instantaneamente
apaixonado.Comoestavapertodecasa,opríncipedecidiucasar-selogocomela.
Mascomoajovemestavanua,nãohaviacomolevá-la,assim,aopalácio.–Subanoaltodestaárvoreemeaguardeenquantovoubuscaruma
roupa!–disseele.Nuacomoestava,ajovemtrepounogalhomaisaltoealificou
sentada,àespera.Umabrisafrescapassandoporentreasramagensrefrescavaseucorpo,eelaachouaquilomuitobom.
Odiapassouatéque,derepente,umamulhermuitofeiaaproximou-sedasmargens.ErachamadadeMouraTorta,pois,alémdefeíssimaecaolha,tambémeracorcunda.
AMouratinhaidobuscarágua,poiseraacriadamaisrelesdopalácio.Aodebruçar-senorioelaviu,porém,oreflexodealgonaágua.Primeirolhepareceuqueumaromãmaduraedepolparosadaflutuavanaágua.Elatentouapanhá-la,masafrutadesapareceu.
–Irra,afundou!–esganiçouaMoura.Depoisqueaáguaserenou,elaviuaimagemdeumrostobelíssimoe
embasbacou-se.–Nossa,comosoubela!–gritouela,dealegriaesurpresa.Jogandoparaoaltoocântaro,elavoltouaopaláciodispostaaser
tratadadeacordocomasuabeleza.–Dehojeemdiante,queroomelhorquartodacriadagemeodireito
deserconcubinadorei!Umcoroderisosededesaforosdesceusobreela.–Tomaoutrocântaroevaibuscarágua,Mourahorrorosa!–disseo
chefedacriadagem.Apobrevoltouàmargemdoriocertadetersofridoalgumdelírio,
mas,aoabaixar-seoutravezparaapanharágua,viuaimagemdamesmajovemasorrir.
–Aíestá!Soueuounãosou?–disseela,pondoasmãosnasancas.Denovo,voltouaopaláciocomomesmoaranzeldequeeraa
criaturamaislindadomundo.–AMouraficoudoidadevez!–diziamtodospeloscorredores.Entãolhederamumterceiropoteeaameaçaramdemortecaso
voltassesemaáguaecomaquelemesmoteterémdealuada.Nabeiradorio,aMouraviu-selindaoutravez,sóque,destavez,a
imagem,antesmuda,rompeunumagargalhada.
–Ah,entãoeravocê,lindafadinha!–guinchouaMouraaoveramoça.–Desça,meninanua!Querovertantabelezadeperto!
Ajovemdesceu,eaMouracomeçouaelogiá-la.–Muitolinda,você!Masdeixeeuajeitarmelhorosseuscabelos!Então,pegandoumalfinetemágico,espetou-onacabeçadajovem,
quevirouimediatamenteumapomba.–Xô,desavergonhada!–disseaMoura,enxotandoaavezinha.Aover,porém,queoprínciperetornava,aMouradespiu-seinteirae
subiuligeiraaotopodaárvore.–Voltei,meuamor!Agora,vistaisto!–disseele,carregandovestes
dignasdeumaprincesa.Masalgoaconteceracomaprincesa.Suapelealvaficaraescurae
mosqueada.–Oquehouvecomasuapele,antestãoclara?–disseele,frustrado.–Oh,meuamor!Vocêdemoroutantoquequeimei-meinteiraaosol!
–respondeuaserva.–Eesseolhovazado?–Foiumespinho,meuadorado!–Eessesdentesestragados?–Comiumafrutapodreeassementesarruinaram-meosdentes!EntãoaMourapediuqueelealevasseaopalácio,queláela
recobrariaseuestadoanterior.Opríncipeconsentiu.–Estábem,láveremosoquesehádefazer.Umaveznacorte,aMouraobrigouopríncipeacumprirsua
promessadecasar-secomela.–Recobreounãoaminhabeleza,vocêdevecumprircomasua
palavra!–insistiatodosantodia.Nãoteveoutrojeito,easnúpciasforammarcadas.Então,quandotudopareciaperdido,apombinhaencantada
aproximou-sedopríncipe,nosjardinsdopalácio,bemnodiadocasamento.Eladeuváriasvoltasaoredordopríncipeatéqueeleatomounasmãosecomeçouaacariciarasuacabeça.
–Lindapombinha,seminhafuturaesposafosseaomenosparecidaconsigo!
Derepente,porém,sentiuquehaviaumcaroçonacabeçadaave,edescobriuacabeçadeumalfinete.Aopuxá-lo,agrandesurpresa:apombavoltouasetransformarnasuaantigaamada.
–Você,adorada!–exclamouele,abraçando-aperdidamente.Nofimdascontas,tudoexplicado,opríncipecasou-secomaamada,
enquantoaMouraTortafoilançadavivanumafogueira,restandodesiapenasumamontoadodecinzas.
ARAPOSINHA
Estecontonarraasperipéciasqueumpríncipepassouparaarrumarumremédioparaoseupaicego.
Diz-se,então,queopríncipe,depoisdemuitoandar,chegouaumlugarondeumgrupodehomensocupava-seemsurrarumdefuntocomumpau.
–Monstros!Porquecometemtalatrocidade?–gritouele,indignado.–Estehomemeraumcaloteiro!–explicouochefedobando.–Maseleestámorto!–Edaí?Emnossacidade,aleiéseveraparacomoscorruptoseos
desonestos,enemmesmoosmortosescapamàpunição!–Quantoeledevia?–disseopríncipe,epagouoqueodefuntodevia.
–Agora,enterrem-nocomoaumcristão.Depoisdisso,opríncipeseguiuadianteatédarcomumaraposinha.–Aondevai,meupríncipe?–dissearaposa.–Vouembuscadeumremédioparaosolhosdomeupai.–Poissaibaqueremédioparaolhodereicegosóháum:cocôde
papagaio.–Eondeencontrococôdopapagaio?–disseopríncipe.–NoReinodosPapagaios,naturalmente–respondeuaraposa.–Ondeficaessereino?Araposaensinouocaminhoedepoiscompletou:–Chegueláàmeia-noiteeescolhaopapagaiomaistristedagaiola
maistoscaquehouver.Opríncipefoieencontrouotalreino.Aoentrarnele,viugaiolasde
todosostiposeformatospenduradasportodaparte.Todaseramdeouro,ecadaqualtraziadentroumpapagaiomaissaudável,felizetagarelaqueosoutros.Nãoéprecisodizerqueopríncipeagarrouagaiolamaisbonitaqueviu.
Lánofimdacidade,nobairrodospapagaiospobres,estavaumagaioladepau,cobertadeexcrementosecomumpapagaiotodotristenoseuinterior,queopríncipenemviu.
Opríncipejáiacruzandooportãodacidadequandoopapagaiodagaioladeourogritou,alertandoosguardas.
–Muitobem,espertinho,oquelevaaí?–disseoguarda,umenormepapagaio.
Opríncipeexplicouoseudramaatécomoveropapagaião.
–Muitobem,massólevaráagaiolasetrouxerantesumaespadadoReinodasEspadas.
Opríncipesuspiroue,depoisdelargaragaiola,foiembuscadotalReino.
–Sempreessasrepetições!–disseele,chutandoumapedraquequaseacertouofocinhodaraposa,queandavaperambulandopelaestrada.
–Oqueresmungaaí,meupríncipe?–disseela.Eleexplicou,earaposa,desgostosa,abanouacabeça.–Tsc,tsc,tsc!Eunãodisseparapegaragaiolamaistosca?Pois
agoraváaoReinodasEspadasefaçacomoeudigo:entreàmeia-noiteepegueaespadamaisfajutaquehouver.
Nãoéprecisodizerqueopríncipefoiepegouaespadamaisbelaquehavia,todadeouro,deixandodeladoamaisfeia.Nasaída,aespadadeuumestalo,eoguardabarrouapassagemdopríncipe.
–VáaoReinodosCavalosemetragaumdelá.Sóentãopoderálevaraespada.
Opríncipequasedesmaiouderaiva.Eatirou-se,deumavez,paraoReinoAmaldiçoadodosCavalos.Aestaaltura,jásabemostudooquesepassou:opríncipecruzou
comaraposa,ouviudelaumanovarepreensãoeescutouoconselhodeescolheropangarémaisfeioquehouvessenoreino.
Algumashorassepassaram,evemos,agora,opríncipemontadonomaisbelopuro-sangue,adeixaroReinodosCavalos.Então,ocavalorelinchou,ecomeçoutudooutravez.
–Aondevaicomnossomelhorcavalo?–relinchouoguarda.Opríncipeexplicou.–Poissópodelevarocavalosefurtarafilhadorei–retrucouo
cavalo.Opríncipepartiu,muitoaliviado.Opesadelodasrepetiçõesparecia
ter-seacabado!Nocaminho,elecruzoupelaúltimavezcomaraposa.–Aondevai?–disseela.Opríncipeexplicoumaisumavez.Araposaolhoubemopríncipenosolhosedisse,muitosolenemente:–Muitobem,chegouahoradarevelação:eusouaalmadaquele
caloteiroqueoscobradoressurravam.Infelizmente,vocênãoouviumeusconselhos,eporissotodaessaconfusão.
Então,araposadisseaopríncipeoqueeledeveriafazer,edestavezelefezdireitinho.Paracomeçar,furtouaprincesa.Depois,pegouopangarénoReinodosCavalos,aespadaferruginosanoReinodasEspadaseopapagaiotristenoReinodosPapagaios.
Quandojáianocaminhodecasa,encontrouseusirmãos,unsmalvadosquelogoconceberamumplanoparaseapossaremdetudooqueeletrazia.
–Oqueestáfazendonestaestradacheiadeladrões?–disserameles,falsamentezelosos.–Tomeaqueleatalho,poissóassimchegaráaonossopaláciosãoesalvo.
Aotomaroatalhodeserto,eleencontrounovamenteosirmãos,queoamarrarameolançaramnumacovaparamorrer.
–Essascoisasnósmesmoslevaremos!–disserameles,carregandoaprincesa,ocavaloeorestantequeopríncipetrouxera.
Aochegaremdiantedorei,porém,aprincesaficoufeia,opapagaioficouaindamaistriste,aespadadesmanchou-seeocavalocobriu-sedesarnas.
–Patifes!Quegracejoéeste?–disseorei,queapesardecegonãoerabobo.–Prendam-nosnamaisprofundamasmorra!
Logoqueosmausfilhosforamaprisionados,opríncipedeambuladorchegou,radiante.Araposa,numúltimoatodegratidão,libertara-odacova,eeleagorajápodiaapresentar-sediantedopai.
Assimqueopríncipecolocouospésnopalácio,aprincesavoltouaserbela,aespadatornou-sedeouro,ocavaloengordou,eopapagaiodeixoudesertriste.
Oreicegoteveseusolhosbesuntadosepassou,desdeentão,aenxergar.
Quantoaopríncipe,casou-secomaprincesaeviveucomelafelizparasempre.
JOÃOGURUMETE
Estecontotambéméimportadodofolcloreeuropeu,constituindoumavariantedo“AlfaiateValente”dosIrmãosGrimm.Comoemtantasoutrasterras,oMata-SetetambémseaclimatoumuitobemnoBrasil.
Ocontocomeçadizendoquehavia,certafeita,porestessertões,umsapateiromuitomedroso.Umdia,elederramouumpoucodecolanamesae,daliapouco,setemoscasacabaramgrudadasnameleca.
Umdosseuscolegas,muitoamigodegracejos,inventoulogoestebordãoparaoamigo:
–JoãoGurumete,quedeumgolpematousete!Desdeessedia,osapateiromedrosoganhouafamadevalentepor
todoosertão.Então,certodia,apareceuumaferadevastandotudo.Elacomia
qualquercoisaquerespirasse.E,maisquetudo,adoravaonúmerosete:tinhasetecabeças,setelínguas,ecomiasuasvítimasdeseteemsete.
Umdosreisdosertão–naqueletempohaviareisespalhadosportodoosertão,chamados“coronéis”–mandousetetropasparaliquidarcomobicho,maselecomeutodasassete.
Então,alguémdisseaoreiqueJoãoGurumeteeraasalvação.–Aquelequedeumorteasete?–Sim,elemesmo.Joãofoichamadoeintimadoamatarsozinhoafera.–Aíestáoquevocêfoiinventar!–queixou-seopobreJoãoaoamigo
gozador.–Queroveragoracomoheidemehavercomessemonstro!Oamigo,porém,tinhaumasolução.–Façacomolhedigoederrotaráomonstro.Joãoescutouefoiemfrente.Apósatrairaferaatéumaigrejavelha,
entrouparadentroesaiupelaportadosfundos,cerrando-acomcadeadosetrancas.Nãotendooutromeiodesair,obichoseesvaiudefome,esóentãooGurumeteentrouláparacortarforaassetecabeçasdafera.
–Setevezesvalente!–disseorei,aoreceberassetecabeçasdomonstro.
JoãoGurumetevirouconde,porobradorei,eviuchovermuitodinheirosobresi.
***
Otempopassouatéquesurgiuumnovomonstropelossertões.Naverdade,novosmonstros,jáqueeramtrês.Elesroubavamematavam.
–JoãoGurumete,éteuodesafio!–disse-lheorei,outravez.Osapateirocovardeencheuascalçasantesdeirtercomoseu
amigo.–Eesta,agora!Seumjáeradifícil,quedirátrêsmonstros!Destavez
estouperdido!Masoamigosabiatodasasmanhasparaderrotarmonstros.–Façacomodigoesesairábemoutravez.Gurumetefoiefez.Depoisdedescobrirolocalondeosgigantes
descansavamdasuaruindade,àsombradeumaárvoreenorme,aproveitouaausênciadelesependuroutrêspedraspesadíssimasnoalto.Quandoostrêsretornarameforamdescansardebaixodaárvore,Joãocortouacordadaprimeirapedra,quefoicairnacabeçadoprimeirogigante.
–Começaramasgraçolas?–disseeste,aosentirumapoeirinharoçar-lheatesta.–Ésempreassimquandovoutirarumapestana!
Osoutrosdoissefizeramdesurdos,elogoostrêsroncavamàvelasolta.
Gurumetecortouasegundapedra,quefoidarnatestadosegundogigante.
–Quemfoiocretino?–disseele,alisandoatesta.–Bemsabem,idiotas,quenãotoleroperturbaçõesnomeusono!
Quasehouveumabrigadaquelas,mas,graçasaocansaço,logoostrêsvoltaramadormir.
Então,Joãocortouaterceiracorda,eopedregulhoacertoubemnomeiodosolhosdoterceirogigante.Acontecequeesseterceirogigantenãoeradeameaças,masdebrigamesmo,elogoaconfusãocomeçouparavaler.Depoisdaluta,ostrêsestavamestendidosemortossobaárvore.Joãodesceuecortouforaacabeçadecadaumdostrês,levando-asparaorei.
JoãoGurumetefoiagraciadocomumnovotítuloeganhoumaisummontãodedinheiro.
–Quantomais,melhor–disseoamigo,embolsandoasuaparte.
***
OúltimodesafiodeJoãoGurumetenãofoivencermonstroalgum,massubstituirumgeneraldoreiquemorreraemcombatenumaguerra
feroz.–Sevenceraguerra,lhedareiminhafilhaemcasamento–disseo
rei.OamigodeGurumetelhedissequesevestissecomoele.–Vistasuafardaemonteemseucavalo.Ajacomoele,etudosairá
bem.Noacampamento,soldadoalgumsabiadamortedogeneral,pois
temia-sequeoanúnciodamortedispersassetodooexército.JoãoGurumetemontounocavaloesurgiudiantedatropa.
–Ogeneralvoltou!–gritavamtodos,emêxtase.Nesteinstante,ocavaloassustou-secomagritariaelargouacorrer
nadianteiradatropa.TudoissoiamuitocontraavontadedeJoão,quepôs-seagritareaespernearfeitodoido.
–Ouçam,éogritodeguerradogeneral!–disseramossoldados,eufóricos.
Imediatamenteatropajuntou-seeseguiucomentusiasmooseugeneral,destroçandoemmenosdeumahoraoexércitoinimigo.
JoãoGurumete,vitorioso,casou-seafinalcomaprincesae,nanoitedenúpcias,depoisdebebermuitovinho,começouasonhareafalarbobagensdoseutempodesapateiroemplenoleitomatrimonial,comoseestivessenasuaoficina.
–Casei-mecomumrelessapateiro,enãocomumguerreiro!–reclamouaprincesaaorei.
Nodiaseguinte,Joãofoiavisadopeloamigofieldequeiriateracabeçacortadacasocontinuassecomaquelasconversasrelesdesapateiro.Então,JoãoGurumetedeitou-secomumchanfalhodolado,queeraumaespéciedeespada,efingiuanoiteinteiraqueguerreavacomoumcavaleironotável,esónãomatouaesposaporqueestasaiu,descabelada,correndodoleito.
–Meumaridoé,deveras,umgrandeguerreiro!–disseela,entreassustadaeadmirada.
Desdeentão,JoãoGurumeteaprendeuasonharemsilêncio,efoiassimquecontinuouacortareremendardocementeocouronosseusmaislindossonhos.
ARAPOSAEOTUCANO
Certafeita,araposadecidiupregarumapeçanotucano.–Ó,amigotucano,venhacomerláemcasa!Envaidecidopeloconvite,otucanoaceitounahora.Quandochegouà
casadaraposa,estalheserviuummingaunumaesparrelacompridaerasa.
–Comaàvontade!–dissearaposa,preparando-separarir.Opobretucanotentoucomeromingauespalhado,masoseubico
nãoconseguiarecolhernadaanãoserumasrelesgotinhase,detantobicaraesparrela,acaboucomobicoenormerachado.
Otucanopartiu,masdecidiusevingar.–Adoreiasuahospitalidade–disseele,diasdepois.–Agora,éasua
vezdeaparecerláemcasa.Araposa,tornando-sesubitamenteingênua,aceitou.–Muitobem,láestarei,nahoramarcada.Quandochegouodia,araposafoiobsequiadacomomesmomingau,
sóqueelefoiservidonumajarradegargaloestreito.Otucanoenfiouobicoládentroesedeliciouàvontade,enquantoaraposa,comseufocinhocurto,nãoconseguialambernemumagotinha.
Nofimdascontas,adesgraçadaficoucomofocinhoentaladoeacaboumorrendosufocada.
Efoiassimquearaposa,metidaagraciosa,levouoseutroco.
OPADREDESPREOCUPADO
Havia,certafeita,umpadredespreocupado.Suadespreocupaçãoeratamanhaquenadaeracapazdetirá-lodesuapaz.Naentradadesuacasa,mandaragravaratéestedísticoparaquetodossoubessemoquantoprezavaadespreocupação:“Aquinestacasamoraopadredespreocupado”.
Asuafamacresceutantoquechegouaosouvidosdorei.–Nãoépossívelquenummundocomoonossoessehomemnãose
preocupecomnada–disseele,quenãosabiafazeroutracoisanomundoanãoserpreocupar-se.
Oconselheirorealtinhaumateoriaarespeito.–Estepadreéumhomemsembensesemmulheroufilhos,daía
suatotaldespreocupação–disseele.–Quemnadatemaperder,denadasearreceia.
–Seforassim,entãoninguémémaisfelizdoqueosmortos,poisnadamaistêmaperder–disseorei.
–Felizesnão,alteza.Despreocupados,talvez.Entãooreidecidiutiraraprovadopadredespreocupado.–Convoque-oaopalácio.Digaquevenhadentrodetrêsdias
responder-meatrêsperguntasqueheidelhefazer.Casonãoasresponda,teráasuacabeçacortada.
Ummensageirofoienviadoatéopadrecomaconvocação.Apóslerapartefinaldamensagem,opadreconheceu,pelaprimeiraveznavida,apontadaagudadapreocupação.
–Arre!Morrerécoisaséria!–disseele,coçando,nervoso,acoroaraspada.
Desdeessedia,opadredespreocupadonãosoubemaisoqueeradormirnemcomer,atéque,aodespontaroterceirodia,acordouemverdadeiropânico.Apósvestiràspressasabatina,bateuasineta,chamandoocriado.Explicou-lheoseudramaepediuaoserviçalumconselhoquenemtodasasluzesdasuareligiãohaviampodidolhedar.
–Seomeuamoquiser,ireinoseulugar–disseoservo,muitosegurodesi.
“VirgemSantíssima!Aíestáalguémrealmentedespreocupado!”,pensouopadre,admirado.
–Estádisposto,então,amorreremmeulugar?–Nãomorrerei,bomamo–respondeuooutro,imperturbável.
Oservovestiuabatinadopadre,raspouococurutoefoitercomorei.
–Évocê,então,otalpadredespreocupado?–disse-lheorei.–Exatamente,majestade.–Continuadespreocupado?–Perfeitamente,alteza.–Então,merespondaisto:quantoscestosdeareiaháalinaquele
monte?Numcantodosalãoreal,haviaumapequenamontanhadeareia
empilhada.–Háali,alteza,umúnicocestodeareia.–Umcesto,só?–Sim,poisbastafazerumcestograndeobastanteparacontertoda
aareia.Oreicoçouacabeçaporbaixodacoroaeaplaudiu,afinal,aresposta.–Muitobem,agoradiga-me,senhordespreocupado,quantas
estrelashánocéu?Opadrefalsodeuumnúmeroexatoedesproporcional,nacasa
quebradadoscinquentilhões,setalcoisaexiste,deixandooreiembasbacado.
–Impossívelalguémsaberonúmeroexato!Opadredearaque,porém,respondeu,imperturbável:–Tãoimpossível,alteza,quantoalguémsabernãoseresteonúmero
exato.Oreicoçououtravezacoroaedeu-seporvencido.–Vá,passa!–disseele,cerzindoosolhos.–Agorarespondaaúltima
emaisdifícilpergunta:oqueestoupensandonesteexatomomento?Ocriadotravestidodepadreempertigou-setodoefulminou:–VossaAltezapensaestarfalandocomopadre,masfalamesmoé
comoseucriado.
ACAVEIRAFALANTE
Certavez,iaumcaçadorpelamataquandosedeparoucomumacaveiraadescansarsobrearelva.Aoverqueelacontinuavaviva,perguntou-lhe:
–Quemtetrouxeatéaqui?Acaveirabateuamandíbula,comoumbonecodeventríloquo,e
respondeu:–Minhabocagrandemetrouxeatéaqui!Ocaçador,assombrado,foicorrendofalarcomorei.–Majestade,encontreiumacaveirafalantenomeiodomato!Orei,desconfiado,olhouocaçadordecimaabaixo.–Éverdade,majestade!Atéfaleicomela!Oreidecidiumandarumsoldadojuntocomocaçadorparaverificar
seahistóriaeraverdade.–Seestivermentindo,passe-lheaespada!–disseorei,amanteda
severidade.Ocaçadoreoguardapenetraramoutraveznamata.Chovia.Depois
dechapinharnalama,ocaçadoravistouacaveiranomesmolugarondeadeixara.
–Láestáela!Acaveira,lavadapelachuva,reluzia.Ocaçadoraproximou-se,
chamandooguarda.–Fala,caveira!–disseele,numrasgodecoragem.Masacaveira,nada.Umruídorascantedeespadasendoretiradadabainhagelouo
sanguedocaçador.Numavertigemdedesespero,elelembroudaperguntaquefizeranaoutraocasião.
–Quemtetrouxeatéaqui,caveira?Diga!Silêncio,denovo.Então,opânicoapoderou-sedaalmadocaçador.–Fala,desgraçada!Quemtetrouxeatéaqui?Masacaveiranadadisse,eaquiseacaboutudoparaocaçador.O
guarda,manuseandoaespadacomadmiráveldestreza,cortouforanumzás!acabeçadomentiroso.
Depoisqueocarrascopartiu,acaveira,virando-separaacabeça,lhedisse:
–Agora,digalá,minhaamiga:quemtetrouxeatéaqui?
Acabeçadecepadavirou-seedisse:–Minhabocagrandemetrouxeatéaqui!
APRINCESADEBAMBULUÁ
Havia,hámuitotempo,umagrutasituadaentreduascidades.Elaeraassombrada,etodanoiteacabeçadeumadonzelameigasurgiaparapediraoshomensquenelaseaventuravamqueadesencantassem.Ajovemintitulava-se“princesadeBambuluá”efaziaseupedidoaosprantos.
Muitostentaram,masoresultadoerasempreumasériedeprovasrudesqueacabavamporfazeropretendentefugirmataafora.
Certodia,surgiuporaliumsujeitinhoamareloeenfezado.Eleestavaexaustoenãosabiamaisoquefazerdavida.Depoisdesentar-seàentradadagruta,começoualamentar-se.
–Estoucansadodeserfeioefraco!Então,derepente,surgiuflutuandoacabeçadaprincesa.–Nãoquerdesencantar-me,belojovem?–disseela,namaismaviosa
dasvozes.Osujeitinhofeioso,quesechamavaJoão,estavatopandoqualquer
coisa,aindamaisumpedidofeitoporumacabeçatãolinda.Imediatamenteeleaceitouaproposta,mas,antesdedesencantá-la,pediuparacomerebeberalgo.Acabeçalindalevouosujeitinhoparaointeriordagruta,ondeumamesafartapôsfimàsuafomeeàsuasede.
–Agoraváatéoaltodaserraedeite-sedebaixodaárvoremaisaltaqueláhouver–disseabelacabeça.–Hajaoquehouver,suportetudoatéofim.
JoãoAmarelofezoqueeladissee,quandoestavadeitadodebaixodaárvore,viuchoversobresiumatempestadedepauladas,atéqueeleroloudevoltaparaagruta.
Parasuasurpresa,descobriuqueaprincesaestavadesencantadadeumterçodocorpo,podendo-severjáafiguradesdeacabeçaatéobustopudicamentecoberto.
Aprincesatratoudosferimentosdojovem,masjánanoiteseguinteeletevederetornaraoseucalvário,noaltodaserra.
–Nãoseesqueça,suportetudosemreclamarougemer!–disseobusto.
JoãoAmarelofoiesuportouasovaoutravez,voltandoparaagrutacomoumapedraquerola.Paraseuconsolo,aprincesajáestavadesencantadaatéacintura,combraçosetudo.
–Maisumanoiteeestareicompletamentedesencantada!–disseela,enquantoJoãomordiaoslábiosrachadosdeapreensão:seráque
aguentariamaisumasova?Aguentou,sim,masnãofoifácil.Destavez,osagressoresinvisíveis
meteram-nodentrodeumbarrilcheiodeespinhosecacosdevidroerolaram-nopelanoiteinteira.Aover-sedevoltaàgruta,porém,todoomartíriofoirecompensadocomavisãodaprincesadeBambuluátotalmentedesencantada.
***
AsegundapartecomeçacomumaviagemqueJoãoeaprincesafizeramatéumacidadevizinha.
–Agorapartoparameureino–disseela.–Enquantoestiverlá,vocêdeveráinstruir-seaquinalinguagemdospássaroseemtodososdemaissaberesdeumhomemquepretendesermeuesposo.
Joãoprometeuqueestudariatudooquefossepreciso.–Deanoemanovireivê-lo,atécumprirem-secincoanos–
acrescentouaprincesa.–Minhavisitaanualserácurtíssima,durandoapenasumahora.Adeus.
Joãoficounacasadeumapreceptoravelhaehorrível,masquepossuíaduasfilhasjovenselindas.Logonosprimeirosmeses,aoverqueojovem,apesardefeioeamarelo,eramuitoestudioso,avelhadecidiucasá-locomumadasfilhas.
–Aprincesaquearrumeoutro!–disseela.Quandofechouoprimeiroano,aprincesaveioverJoão,masavelha
havialhedadouma“dormideira”,queécomosechamam,noscontosdefadas,aspoçõesparaadormecer.
Resultado:Joãonãopôdeverasuaadoradaprincesa,eelaretornou,muitofrustrada,àcorte.
Nosanosseguintes,acoisaserepetiu,eaprincesavinhaepartiasemverseupretendente.Então,aocumprirem-seoscincoanos,elachegouàconclusãodequeeleahaviaesquecido.
QuandoJoãosoubequeaprincesanãoqueriamaisvê-lo,entrouempânicoefugiudacasadavelhaparaencontraroreinodaamada.Depoisdeandarportudo,foidarnumacasinhaàbeira-mar.
–Ódefora,entrejáeagora!–disseumavozinhanointerior.Joãoentrouedeparou-secomumvelhovelhíssimo.–Sente-se–disseofiodevoz,queeraquaseumpipilar.JoãocontouqueprocuravaoreinodeBambuluá.–SouoPríncipedosPássaros–respondeuovelho.–Podeserque
algumdemeussúditossaibalheindicarocaminho.Ovelhotomoudeumamatracaecomeçouagirá-la,réc-réc-réc,e
surgiudoscéusumatamanhanuvemdepássarosqueodiaquasevirounoite.Asavesentrarampelasjanelaseportodososvãosdacasa,ecomeçaramaatacarojovem,julgando-ouminimigo.
Depoisqueovelhoacalmouasaves,fezuminquéritoparasaberqualdelassabiaocaminhoparaoreinodeBambuluá.
Nenhumasabia.–Entãosólherestairamanhãbemcedoperguntarameupaionde
fica–disseovelho.–Seupai?–exclamouJoão,incrédulodequeaquelevelhoainda
pudesseterpai.–EleéoReidosPássarosemoralá,emtallugar–disseoPríncipe
dosPássaros,que,peloandardacarruagem,pareciaquejamaischegariaaserrei.
AcasadoReidosPássarosficavanaencostadeummorro.Otalreieratãovelhoquemaispareciaumaboladepenasencolhidajuntoàlareira.
–ReidosPássaros,precisosaberondeficaoreinodeBambuluá–disseovisitante.
Dentreosdedosrecurvosdovelhopássaroestavaumapitodeprata,queelelevouàboca.Umassovioestridenteescapoudoapito,enovanuvemdeavestapouosoleocéu.Apassaradaquisbotar-seinteira,também,contraoforasteiro,masoReiimpediuomassacre.
–Digamondeficaoreinoqueojovemprocura–ordenouovelho.Infelizmente,ninguémsabia,esórestouaoReidosPássarossugerir
aovisitantequefossefazerumavisitaaoseupai,oImperadordosPássaros.
–Como?–disseojovem,nolimitedaincredulidade.–Asuacasaficaemtallugar–disseoRei.–Eleéimperador,e
imperadoressabemdetudo.Joãosaiuesubiuumacolinaenormeatédeparar-secomuma
casinhabranca.Destavez,ninguémmandou-oentrar,oqueelefezporcontaprópria.Napequenasala,nãohavianadasenãoumacabaçasuspensanumganchoemcimadofogo.Joãoolhouparadentroeviuumpequenopássaro,todoenroladoemramasdealgodão.EraopoderosoImperadordosPássaros.
–SenhorImperador,peloamordetodasasavesdomundo,diga-meondeficaoreinodeBambuluáouvoumorrerdedesgostoeexaustão!
OImperador,movidopelapiedade,tomoudasramasdoalgodãoumossodeemaeassoprouporentreosfuros.Umruídofinomasestridentecortouosares,efoitudodenovo,obandodepássaros,depoisasbicadasnointruso,atéqueconfessaramnãosaberdenada.
Umurubuvelhoedepenado,noentanto,queficaranumcanto,pareciasaberfinalmentearesposta.
–OreinodeBambuluáficaparaalémdoInferno,masanteséprecisosobrevoaracaldeiradoDiabo.
OImperadordosPássarosordenouaJoãoquedesseumboiinteiroparaourubucomer,poisseriaeleasuamontariaparatransporofogodoInferno.
–Ele?–disseJoão,aoverourubuquasepelado.–Dê-lhedecomereamanhãestarácomoumgavião–disseo
imperador.Ourubucomeuoboiinteiroereadquiriu,comopormágica,todasas
suaspenas.Nomesmoinstante,Joãomontounascostasdaave,epuseram-seacaminhodoreinodaamadaprincesa.
Joãofechouosolhos,etudooqueconheceudoinfernotranspostofoiumcalorenormenotraseiro.Então,quandosentiuumabrisadivinamenterefrescante,reabriuosolhoseviu-senumacampinaverdeeamena.Ourubudeu-lheadeus,eJoãoseguiusozinhoatéavistar,notopodeumamontanha,umpaláciorealmentedeslumbrante.Nocaminhodopalácio,eleparounacasadeumavelhasolícita.
–Façaumpousoaqui,jovemandarilho–disseela.Então,semdizernada,avelhasacouumviolinoestropiadoe
começouatocarumamisturaestridentedevalsaemazurca.Joãopediuparaavelhalhedaroinstrumento.
–Tenhocordasnovas–disseele,poisaprincesalhederaumconjuntoantesdepartir.
Joãotrocouascordasecomeçouatocarelemesmo.Ascordaseramencantadas,elogoavelhacomeçouarequebrar-sefeitodoida.Empoucotempo,todomundoquepassavanaruaentravaepunha-setambémadançarfreneticamente.
Umamensageiratinhasidoenviadaaopalácioparapedircomida.Aochegardevolta,porém,elaatirouotabuleiroparacimaesaiudançandojuntocomosoutros.Enquantoisso,nopalácio,mandaramoutramensageiracommaiscomida,imaginandoqueaprimeirativesseseperdido.Resultado:asegundatambémcaiunadança,etodosnopalácioficaramaindamaisintrigados.
–Quealaúzasepassaláembaixo?–perguntouarainha,afinal.Apósjuntar-secomassuasdamasdecompanhia,adigníssima
senhorafoiverpessoalmenteoquesepassavaeterminou,elatambém,caindonadança.Logoemseguida,oreifoiveroquehouveracomarainhaenãodeuoutra,caindoeletambémnafesta.
TodosestariamdançandoatéhojeseJoãonãotivessepostoumfimàsuaarte.
–Minhafilhasecasaamanhã–esbravejouorei.–Vocêhádetocarnafestaouentãoterásuacabeçacortada!
QuandoJoãochegouaopalácio,aprincesareconheceuneleimediatamenteoantigobenfeitor.Sempestanejar,elaanunciouaopaiquenãosecasariamaiscomoseunoivo,umoficialenfadonhodebigodesenceradoscomoganchos,mascomoseuprimeiroeverdadeiroamor,otocadorderabeca.
AMENINADOSBRINCOSDEOURO
Aindahojecirculaporaíestecontosaboroso,quecomeçaassim.Haviaumameninaquegostavadeirbuscaráguanafonte,sempre
comseusbrincosdeouro.Todaadelíciadasuavidaeraver-serefletidanaáguacomaquelesdoispingentesdourados,umemcadaorelha.
Certodia,elaresolveutirá-losumpouco,parabanhar-senaágua,poistinhamuitomedodeperdê-losnacorrenteza.Aosair,porém,esqueceu-sederecolocá-los,eelesficaramlánamargem.
Aochegaremcasaeverqueesqueceraosbrincosamados,elavoltoucorrendoàfonte.Aoretornarlá,porém,deparou-secomumvelhoasqueroso.
–Oquequer,fedelha?–rosnouovelho.–Osenhornãoviuporaíunsbrincosdourados?–Não,masestouvendoumabelameninadecabelosdourados!Apesardevelho,eleaindatinhaforçaobastanteparafazer
ruindadee,comumarapidezespantosa,tomouameninaeenfiou-anumsaco.
–Agora,vocêvaificarquietinhaaídentrodosurrãoatéeumandarvocêcantar!–disseovelho,levando-anascostas,aomesmotempoemquelheensinavaumacantigaqueeladeveriarepetirsemprequeovelhofossefazerseuspeditórios.
Eledizia:“Canta,canta,meusurrão,senãotemetooporretão!”,enquantoelatinhaderesponder:“Metidanosurrãodecouro,neleheidesofrer,porcausadeunsbrincosdeouro,quenafonteacheideperder!”.
Osdoisandarampracimaeprabaixoodiainteiro,eacadanovopedidodovelhoumabordoadanosacofaziaapobremeninarepetirasualadainha:
–Metidanosurrãodecouro,neleheidesofrer,porcausadeunsbrincosdeouro,quenafonteacheideperder!
Certodia,asandançasdovelholevaram-noàcasadamãedameninadosbrincosdeouro.Aoreconheceravozdafilha,amãe,aflitíssima,convidouovelhoparapassaranoitenacasa.
–Osenhorestámuitocansado.Coma,bebaedepoisponha-seadescansar!
Ovelhoencantou-secomtantacaridade,especialmentecomaquelenegóciodebeber.Depoisdeentornarquaseumapipadevinho,eleseatirounumaesteiraecomeçouaroncarfeitoumbugio.
Entãoamãe,expedita,tratoudeabrirlogoosurrãoeretirarafilha,quasemorta,doseuinterior.
–Filhinhaamada!–disseamãe,enternecida,aoverameninaaindacomosbrincosdeouroqueelalhederanoseuaniversário.
Enquantoovelhodormia,amãeencheuosurrãodeexcrementosdosporcosegalinhasdacasa,edeixou-opartirnodiaseguintecomoselevasseaindanosurrãoapobremenina.
–Adeus,masvoltarei,poisaquipasseimuitobem!–disseovelho.Depoisdeandarumquartodehora,afomevoltouaroerastripas
dovelho.–Prepare-se,menina,poiséhoradecantar!Aochegaraoutracasa,bateupalmaseumasenhoraapareceu.Como
sempreeledisseaosurrão:–Canta,canta,meusurrão,senãotemetooporretão!Sóquedestavezosurrãoficoumudo.–Querapanhar,fedelha?–disseele,repetindoorefrão:–Canta,
canta,meusurrão,senãotemetooporretão!Nadaoutravez.Então,tomandooporrete,ovelhoaplicouumapauladacomtalforça
nosurrãoqueeleexplodiu,enchendo-odetiticadeporcoedegalinha,dospésàcabeça.
Ovelho,depoisdisso,foipresoeenforcado,paraaprenderanuncamaisandarporaíraptandomeninascomousembrincosdeouro.
OSQUATROLADRÕES
SegundoCâmaraCascudo,ocontoquevamosleragoraétãoantigo“quefaziariraoscruzados”.“Osquatroladrões”,defato,éumdoscontosmaisdisseminadospelomundo–suaprimeiraapariçãosefeznaÍndia,namaisremotaAntiguidade,atéencontrarnoBrasilasuamodernaversãotropical.
Diz-se,pois,quequatroladrõesestavamdescansandocertodiadebaixodeumaárvorequandovirampassarumsujeitogordolevandoconsigoumboienormeerechonchudo.
–Vejam,amigos!–disseoLadrãoUm.–Alitemoscarneparaoanotodo!
–Psiu!Vamospassarlogoapernanobobo–disseoLadrãoTrês.OLadrãoQuatro,quenãoerademuitaconversa,simplesmente
seguiuosdemais.JáestavamquasechegandoquandooLadrãoUmteveumaideia
melhor.–Mesmoestandoemquatro,estegorduchoaindapodenoscriar
problemas.Vamosnossepararefazeroseguinte.Eleexplicoudireitinhooplano,elogoosquatroestavamespalhados
pelamata.OproprietáriocontinuouseucaminhocomoboiatéoLadrãoUmlhe
aparecerpelafrente.–Bomdia,senhorcachorreiro!–disseele,sorridente.Ogorduchoapertouosolhosparaverquemeraoautordabobagem.–Cachorreiro,dissevocê?Ondehácachorroporaqui?OLadrãoUmfezumardepasmoeretrucou:–Ora,eestecãozinhofelpudoaqui,oqueé?–epassavaamãono
cachaçodotouro,enquantoassoviava.Ogordo,meioassustado,deuascostasesaiuligeiro,puxandooboi
pelacorda.–Sódáloucoporaqui!AndoumaisalgunspassosesedeparoucomoLadrãoDois.–Lindamanhãparapassearcomofila!–disseeste.–Estámaluco?Quefila?–exclamouogorducho.–Ocãofila,aí.Meusparabéns,devesercaçador,edosbons!–Seeleéumfila,vocêéumvira-lata!–exclamouogorducho,
levandooboi.
AndoumaisumpoucoatétoparcomoLadrãoTrês.–Ora,viva–disseeste.–Jávaicedopracaça?–Ah,meuDeus!Quecaça?Nãovê,então,quelevoumboi?OLadrãoTrêscaiunagargalhada.–Ah,ah!Boa,esta!Masqueécão,é!Ecãodosbons!OLadrãoTrêscomeçouaalisarasfuçaschatasdoboi.–Estefocinhopontudoaquinãoengana!Devefarejarumacutiaa
quilômetrosdedistância!–Adeus!–disseogorducho,levandooboidearrasto.Noseuíntimo,porém,cresciacadavezmaisadúvida.–Seráboimesmo?–disseele,parando,acertaaltura,paraconferir.Elehaviacompradoobichonafeira,masagoracomeçavaa
desconfiardealgumlogromuitobemengendrado.Nestepontooboimugiualto,paradesfazeradúvida,eo
proprietárioacalmou-se.–GraçasaDeus!Éboi,mesmo!Equemugido!Seguiuadiante,certodequeumaepidemiadeloucuragrassavapor
perto.Derepente,porém,surgiu-lhepelafrenteoLadrãoQuatro.–Ah,aíestá!–disseele,asorrir.–Pelolatidobemviqueeraum
senhorperdigueiro!–Queloucura!–exclamouogordo.–Ondehácachorroalgumpor
aqui?Nãovê,então,queéumboi,estrupício?Oboiabanouacauda,nervoso,eoLadrãoQuatroarreganhouainda
maisosdentes.–Ah,ah!Abanaoraboquenemcachorromateiro!Evemmedizer
queéboi!Aestaalturaoboi,apavorado,pressentindoqueiavirarumassado
antesdotempo,começouadeitarpelabocaumaespumabranca.–Oh,masquepena!–disseoLadrãoQuatro.–Parecequeoseucão
estáhidrófobo!Depoisdesta,ogorduchonãoquissaberdemaisnada:atiroua
cordapracimaesaiucorrendomataaforaantesqueobuldogueraivosooestraçalhasse.
Assimqueogorduchosumiu,osquatroladrõessereuniramepassaramafacanoboi.
Aoqueconsta,estãocarneandoobichoatéhoje.
AVENTURASDEPEDROMALAZARTEI
PedroMalazarteéumpersonagemladino.EleemigroudaEspanhaedePortugalparaoBrasileacabouseaclimatandomuitobemporaqui.ÉoreidaespertezaecontinuapopularíssimoportodoointeriordoBrasil.
Certafeita,Pedrofoitrabalharemumafazenda.Opatrãogostavadearrancar,literalmente,ocourodosseusempregados.(Pedrotinhaumirmãoquevoltaraparacasasemumatiradecouronascostas.)
AssimqueMalazartechegouàfazenda,oproprietáriolhedeuumacadelinha.
–Jáviu,hein!Váparaaplantaçãoesóvolteparaalmoçarquandoacadelinhaquiser!
Jáeramduasdatardeeacadelinha,esparramadanasombra,nãofaziamençãodesemexer,eabarrigadeMalazarteroncandodefome.Entãoeleassobioueapontouparaacasa.Acadelinhaabriuumbocejodeengoliromundo.Depois,mastigouoartrêsouquatrovezeserecaiunamodorra.
–Jáviatapeação!–dissePedro,injuriado.Tomandoumpedaçodepau,eleaplicouumalambadadaquelasnos
quartosdacadela.Comoumraio,abichasaiuganindoecoxeandonadireçãodacasa.
PedroMalazarteapareceu,emseguida,navarandadoproprietário.–Tambémquerocomer–disseele,sisudo.Oproprietário,refesteladoàmesa,torceuonarizedisseparaPedro
iràcozinha“seaviarcomoquehouvesse”.Malazarteraspouosrestosdaspanelasevoltouàplantaçãocoma
cadela.Alipelasoitodanoite,quandoatéosoljádesmaiaradeinsolação,Pedroviuacadeladeitadadebarrigaparacima,semdaramenormostradequererretornar.
Entãoeleaaçoitoucomopau,outravez,eacadelavoltoudeolhosarregaladosparacasa.
Antesdedeitar,Pedrofoicomunicadodatarefadodiaseguinte.–Jáviu,hein!Amanhãvailimpararoçademandioca!Malazartepagouospecados,maslimpouinteiraaroçamaldita.–Estálimpa,meupatrão–disseele.Ofazendeirofezcarafeiaelatiuoutraordem,queparaissoeleera
bom.–Jáviu,hein!Amanhãvaitrazerocarroçãocarregadodepausem
nó!Malazartecortoutodoobananal,queépausemnó,eentregoutudo.Então,nodiaseguinte,opatrãomandoumeterocarrodeboispara
dentrodeumcasebrezinho.–Põetudoládentro,masvêlá,hein,sempassarpelaporta!Opatrãoeraprecavido.Antesdeirdeitartratoudepassarachave
naportadocasebre,sóparasegarantir.Depoisescondeumuitobemachave.
Aochegaraocasebreeverqueaportaestavasemjeitodeabrir,Pedrotomoudeummachadoefoipracimadacarroçaedosboisepicoutudoempedaços.Depoisfoiatéajanelaeatirouparteporparteparadentrodocasebre.
–Estátudoládentro,meupatrão–disseeleaofazendeiro.–Entãoprepare-sequeamanhã,antesdosol,vocêvaiàfeiravender
porco.Nesteponto,odiaboroncounastripasdeMalazarte,eeledecidiu
queerahoradeaprontar,também,pracimadofazendeiro.Aochegaràfeira,cortouorabodosporcosantesdevendê-los.Depois,enterrou-os,àsescondidas,numlamaçal,napropriedadedofazendeiro,efoitercomele.
–Acuda,senhor,queaporcadaestáatoladanobarro!Ofazendeiro,apavorado,foicorrendosalvaroprejuízo,enquanto
Malazartetomavaemprestadodinheirodacaseiraparacompraraspásparadesenterrarabichada.
–Dê-melogo,foiopatrãoquempediu!–disseele.Opatrãoarrancoudalamasóorabodosporcos,eficoucertodeque
orestoaterracomera.Ficoudecamatrêsdias,consoladounicamentecomofatodequeodesgosto,tirando-lheoapetite,lhediminuíatambémoprejuízo.
Malazarteaprontououtrasparaopatrão,eacadadiaeraumnovoprejuízo.Então,opatrãodecidiuqueomelhoreraliquidardeumavezcomopatife.
–Umladrãoderêsandaporaí–disseeleaMalazarte.–Jáviu,hein!Amanhãvoumontarguardanocurral.Àmeia-noiteemponto,venhamesubstituir!
Nahoraaprazada,Pedro,farejandoatocaia,correuatéaesposado
fazendeiro.–Rápido,seumaridoaesperanocurral.Leveestebacamarte,pois
háladrãoporaí.Avelhatomouobacamarteesefoiaocurral.Aoseaproximardo
cercado,apanhouumatalcargadechumboevidromoídopelacaraquedesaboumortaporterra.
Nesteinstante,Malazartesurgiu,acusadoramente.–Aqui!Acudamtodos,queopatrãomatouaesposa!Todagentecorreuparaveradesgraça.Oproprietário,sentindoa
cordadaleinopescoço,ofereceuumalforjecheiodedinheiroparaMalazartesumirenuncamaisfalarnadaarespeito.
EfoiassimquePedroMalazartevoltouricoparacasa,ecomtodaapelenocorpo.
AVENTURASDEPEDROMALAZARTEII
Malazarteandouàsvoltascomumurubuadivinho.Comotudoissoaconteceu,saberemosagora.
Andandopelaroça,PedroMalazartetopou,umdia,comumurubutodomachucado.Tinhaumaasapartida,umapernaquebrada,easpenasnocorpocontavamumasim,outranão.
–Paraalgoaindahádeservir–disseele,enfiandoobichomoribundoparadentrodeumsaco.
Pedroseguiuviagematéchegar,noitealta,aumacasamuitobonita.–Ô,decasa,temcomidaparaumviajante?–disseele,batendo
palmas.Umamulherderostotodopintadosurgiunovãodeumapersiana.–Nãotemcomidanenhuma,dêofora!–ralhouela.Malazartesubiunumaárvoreeviuamulherescondendonum
armáriováriastravessascheiasdecomida,alémdequatrobotijasdeumvinhogostosodefazerbico.
Malazartedesceuevoltouàcarga,batendopalmas.–Senãotemcomida,dê-meabrigo.–Eia,fora!Meumaridonãoestáemcasa!–disseela,azeda.–Não
heidereceberpelaportadafrenteumhomemestranho,comoumadesavergonhada!
Daliapouco,chegououtrohomem,todoembuçado.Estenãoeraestranhoefoirecebidopelaportadosfundos.
Ojantarianoaugequandoomarido,chegandoderepente,desceudocavaloeentrounacasa.Assimqueaportadafrentesefechou,adosfundosseabriueovisitantediscretosumiu.
Malazarteachouqueeraahoracertaparavoltaracarga.–Ó,meusenhor,dá-mecomida!Destavez,elefoilevadocondignamenteatéasaladejantar.A
comidaqueveio,porém,eraumalavagemdeporcopertodaquelaqueelevirapelajanela.Então,aoselembrardourubu,elecomeçouacochicharalgocomele.
–Comquemoamigoconversa?–disseodonodacasa,revirandonopratoomingaufedorento.
–Oh,nãoénada,não–disseMalazarte,indiferente.–Ésóumurubu
adivinho.–Urubuadivinho?Estaéforte!Nuncavital!Faça-oadivinharalgo!EntãoPedrocochichoucomobichomoribundo,queseremexeu
dentrodosaco,lançandoumgrasnidolamentável.–Eledizquedentrodaquelearmáriohácomidaebebidadedeuses.–Mulher,abrajáessearmário!–ordenouodonodacasa.Torcendoabocadetodasasformas,aaltíssimadamaescancarouos
batenteseretirouacomidaapetitosacomaqualelaeovisitantediscretohaviamserefesteladoumpoucoantes.
–Oraviva,esteurubuérealmenteprodigioso!–disseodonodacasa.
Malazartecomeuebebeudobomedomelhore,antesdeseretirar,aindavendeuourubuprofetaaodonodacasaporumapequenafortuna.
Antesdepartir,ourubudeuumsilvo,eodonodacasaquissaberoqueera.
–Eleacaboudeprofetizaracoisamaisimportantedavidadele.Malazartepicouamulae,logodepois,ourubudeuocouroàsvaras,
ouseja,morreu.
AVENTURASDEPEDROMALAZARTEIII
MaisduastrapaçasfamosasdoMalazarte.Naprimeira,vinhaeleporumapicadanamataquandoviuumcocô
daquelesdepositadonochão.Homematentoaossinaisdouniverso,decidiuquealihaviaumparaele,bemevidente.
Apóstirarochapéu,colocou-oemcimadonegócio,comoquemprendealgomuitovalioso,eassimesteveatéveravançarpelapicadaoprimeirobobododia.
Osujeito,bemvestidoecomumarsimplório,aproximou-se,curioso.–Oquetemaídebaixodochapéu?Malazarteenterroucommaisforçaochapéu,comoquemtenta
impedirafugadealgo.–AcabeidecapturaropássaromaisraroevaliosodetodooBrasil!Osujeitosentiuáguanaboca.–Nãodiga!Deixaeuver!–Nãotemver,nemmeiover!Querqueobichofuja?–Valemuito,é?–PoisnãodissequeéopássaromaisrarodoBrasil?–Entãoeuocompro,agora,devocê!Quantoquer?Malazartemirounaluaepediuumapequenafortuna.–Fechado,passeaavepracá!Malazarterecebeuodinheiroedepoisdisse:–Espereaqui.Voucomprarumagaiolaparaquevocêpossalevaro
pássarocomsegurança.Ohomemficouencantado.–Oh,émuitagentileza!Euficoaguardando!Malazarteapertoubemoscadarçosdasbotinasedeuasdevila-
diogo,comosediziapraládeantigamente,queéomesmoquedizerquesemandouparanuncamaisaparecer.
Ootárioficouumtempãodecócorassobosol,pressionandoochapéucontraochão,mas,aoverqueooutronãoretornavadejeitonenhum,decidiulevaraaveparacasanaprópriamão.
Erguendomuitodeleveaabadochapéu,eleintroduziuamãoatétocaremalgo.
–Ah,maganão,tenho-tepreso!–disseele,cerrandooscincodedosaoredordacoisa.
Entãosentiu,aterrorizado,queacoisaseesmigalharatoda,feito
sabão.–Mãedascorujas,esmagueiobichinho!Esóaoretirarochapéufoiqueeleviuococôfedidoqueagarrara.
***
AsegundatrapaçadoMalazartefoiaseguinte.Estavaeleviajandopelointeriorquandodecidiupararnocaminho
parasaborearumasopadeguisadinhocombatata,coisamuitodasuapredileção.
Depoisdepegarsuavelhapanelinha,acendeuumfogoemandoubrasanafervura.Nãodemoroumuitoeasopacomeçouaborbulharealargarumafumacinhabrancadedargosto.
Nesteinstante,aproximou-seumbandodematutosnumacarroça.Ligeirinho,Malazartedesmanchouafogueiraaténãorestarqualquervestígiodefogo.Apanela,aindafervente,ficousobreopórasodochão.
Quandoosmatutospassarameviramaquelapanelafervendosemfogoalgumporbaixo,deixaramcairosqueixosdeestupor.
–Ó,cumpadre,quepanelaheregeéessaquecosesemfogo?Malazartecontinuoumexendocomacolher,espalhandoafumaça
olorosa.–Éumapanelamoderna,importadapelomar–disse,comdesdém.–Ecomodiachocosesemfogo?–Éometal.Largoucoisadentro,eleferveporsi.Osmatutosficaramtãoabismadosqueresolveramfazerumaoferta
pelapanela.–Ematutolátemfundosparapagarumbrincodesses?–exclamouo
Malazarte.Osmatutosretiraramdosbolsososseuslençosdequadradose
começaramapalmearosníqueis,enquantoMalazartebufavadedesprezo.–Éescusadocontar,quenãopaganemacolher!Entãoumdeles,retirandodosocultosdacarroçaumacanastravelha
ecarunchada,extraiudelaumembrulhocheiodenotasverdesegraúdas.–Vaientregarosguardadostodos?–disseumdosmatutos,coçando
ococuruto.–Ósevou!–disseodacanastra.–Umapaneladessasvaleouro,
cumpadre!Omatutopegouosmaçosdenotasemaisosníqueisdosoutrose
despejoutudoaospésdeMalazarte.
–Aítemdinheiroquechegue?Malazartedeuumaolhadadeesguelhaedepoissuspirou,comoum
mártirdomundo.–Vá,édevocês,massódepoisdeeuterminaraminhasopa.Quandonãotinhamaisumrestinhodecomidanofundodapanela,
foiqueeleentregouaosmatutosasuapreciosidade.–Adeus,efaçammuitobomproveito!Malazartecaiunaestradaesumiu.Quantoaosmatutos,estariam
comendocomidacruaatéhojesenãotivessemseresignado,depoisdeinfinitastentativas,ameterumasbrasinhasdebaixodapanela.
OCOELHOEATARTARUGA
Umdosgênerosmaisapreciadosdaliteraturaoralmundialéodadisputadevelocidadeentrebichosougente.Pode-sedizerqueacoisavemdesdeascavernas,nãohavendopartealgumadomundoondenãosecontealgumavariantedafábulaque,tambémnoBrasil,conheceumaisdeumaversão.
Diz-se,pois,queocoelho,semtermaiscoisaparafazer,decidiudesafiaralguémparaumacorrida.Comodetestavaperder,escolheuadedooseuadversário:atartaruga.
Parasuasurpresa,noentanto,arivalaceitouonegócionahora.–Quandoquiser–disseela,serena.–Euvoupelatrilha,evocêpelo
mato.Aoouvirisso,ocoelhoarreganhouosdentõesderaivae
desconfiança.–Ah,quermoleza,é?Poissóhaverácorridaseeuforpelatrilha,e
vocêpelomato!–Poisseja–respondeuatartaruga,aparentandogrande
contrariedade.Ocoelhosorriudiantedasuaprimeiravitória.Mas,porviadas
dúvidas,decidiucomerumaporçãoextradecenourasantesdacompetição.
Namanhãseguinte,quandochegouaolocaldoencontro,atartarugajáoaguardava.
–Penseiquenãovinhamais–disseela,dandoumbocejo.Ocoelho,então,foipostar-senatrilhadechãobatido,enquantoa
tartarugameteu-senomato.–Já!–gritouodesafiante.Ocoelhocorreucomoumraiopelatrilha,levantandoumpóde
furacão.Quandojáestavaamaisdametadedopercurso,olhouparaoladoegritouparadentrodamata:
–Eaí,moleirona,ondeestá?Umavozdetartaruga,muitoadiantedele,respondeu:–Seapresse,dentuço!Maisumpoucoecruzoalinha!Brancodeterror,ocoelhoapertouopassoecorreucomoumraio.
Quandofaltavamalgunsmetros,viuumchacoalhardearbustos,muito
adiante,dooutroladodamata.–Andoucomendocenourademais,gorducho!–disse,outravez,a
mesmavozfanhosa.Loucodepânico,ocoelhocriouasasnaspatasatéalcançaralinhade
chegada.Quandoseaproximava,porém,enxergouovultodatartaruga,ládooutrolado,encostadanomarcoedepernatrançada.
Derrotadoehumilhado,sórestouaocoelhoabandonaraflorestaparanuncamaisaparecer.
Quandoocoelhofanfarrãohaviadesaparecido,atartarugaergueuavoz,paratrás,esaudouasseteoutrasamigasque,dispostasaolongodopercurso,haviamfeitoasvezesdelaparaorival.
Eaquiestácomoatartarugavenceuocoelhosemsairdolugar.
OTOUROEOHOMEM
Estecontopossuiváriasversõesmundoafora.Emvezdotouro,comonaversãoqueagoraleremos,aparece,dependendodolugar,olobo,oleopardo,otigre,oleãoouqualqueroutroanimalcélebrepelasuaforça.
Diz-se,então,que,certafeita,otouro,metidonasprofundezasdafloresta,sóouviafalardohomemedesuasproezas.Comonãooconhecia,decidiu,umdia,tiraraprovadaforçadeambos.
Depoisdepercorrerquilômetrosdentrodamata,ganhouaestrada,afinal.
–Muitobem,agora,certamente,havereidedeparar-mecomumhomem!–disseotouro,deventasarreganhadas.
Andouumpoucopelaestradaatéavistarumserbípedeetodoencurvado.
–Este,certamente,nãoéumhomem–disseotouro,avistando,naverdade,umpobrevelho.
Mas,porviadasdúvidas,eledecidiuperguntar:–Évocê,porventura,umhomem?Ovelhocustouaergueracabeçaerespondeu,batendoasgengivas:–Jáfuiumhomem,mashámuitodeixeideser!Otouro,cheiodedesprezopeloex-homem,insistiu:–Então,diga-meondepossoencontrarumhomem!–Sigaadiante,elesestãoportodaparte–disseovelho,
desencantado.Otouroempertigou-seeseguiuadianteatéencontrarumamulher
feiaeazeda.–Certamentequevocênãoéobichohomem!–disseotouro,com
ironia.–Sósevocêforavaca–disseamulher,quenãoandavaparagraças.Otourofuzilou-acomumolharirritado.–Digalogoondeencontroobichohomem!–Sigaadiante,chifrudo,evaidardefocinhocomumadezenadeles!Maisadiante,otourodeparou-secomummolecote.–Évocêobichohomem?–disse,logodecara,otouro.–Aindanão,massereiembreve!–disseomoleque,estufandoo
peito.–Acontecequeeunãotenhotempoparaesperar–respondeuo
touro,dandoadeus.
Quandootourojácomeçavaaacharqueaquelahistóriadebichohomemnãopassavadeumainvenção,apareceu,finalmente,nofimdaestrada,umbichohomeminteiroeacabado.
Algonoíntimodotourolhedissequeencontraraoseurival.Depoisdefirmar-sebemsobreaspernaseprepararoschifresparaumaboamarrada,estavaprontoparaoconfronto.
–Muitobem,fanfarrão!Évocêobichohomem?–bufouele.Ohomem,queestavacomumbacamartenamão,olhouparaotouro
econfirmou:–Decertoquesouobichohomem.Porquequersaber?–Porquequeroquemeprove,agora,queéomaisfortedosanimais!Aoescutarisso,ohomemempinouobacamarteedespejouuma
cargadechumbonacaradotouro,quesaiucorrendodevoltaparaamatacomquantaspernastinha.
Algumtemposepassouatéqueotourosecurassedasferidas.Então,recebeuavisitadeumacomissãodeanimaisparasaberquecoisaacharadotalbichohomem.
Apesardetantotempopassado,otouronãopodiaesconderoassombroquealembrançadoencontroaindalhecausava.
–Defato,obichohomeméomaisforteetemíveldosanimais!–gemeuele.
Depois,mostrandoasferidasnacara,acrescentou:–Poissesócomumespirromefeztodoesteestrago...!
ODECRETODAPAZ
Diz-se,pois,quenotempoemqueosanimaisaindafalavam,todosbrigavamesecomiamaindamaisdoquehoje,numadisputaperpétua.
Então,certodia,ogalo,doaltodoseupoleiro,avistouaraposaaproximar-se.Elejápreparava-separadarseugritodealertaaogalinheiroquandoaraposa,abanandoacauda,gritou:
–Nãocarecemaisdealerta,compadregalo!Oleão,reidaselva,acaboudepromulgarumdecretoestabelecendoapazuniversalentreosbichos!
Ogalonãoacreditounumapalavraecontinuoulimpandoagargantaparaabriroberreiro.
–Vamos,compadre,desçadaíevenhalercomseusprópriosolhos!–insistiuaraposa.–Tragocomigoumacópiadomaravilhosodecreto!
Masaúltimacoisaqueogalopensavaemfazereradescerparaleroquequerquefosseaoladodamaiordevoradoradegalináceos.
–Vamos,compadre,nãosejamedroso!Acha,então,queeuserialoucaapontodedesrespeitarumdecretodoreidosanimais?
Nestemomento,ocãodeguardadogalinheiro,ummastimdotamanhodeumaonça,surgiuninguémsabedeonde,dedentesarreganhados,numacorridavelozparacimadaraposa.Umacachoeiradesalivasederramavapelosqueixosdocãozarrão,oqueobrigouaraposaapassarsebonasquatropatas.
Aoveraraposafugir,ogalo,doaltodopoleiro,começouentãoagritarearir:
–Nãofuja,comadreraposa!Mostreaocãoodecreto!Efoiassimquefurou-seologrodaraposa.
OADIVINHO
Havia,pois,umsujeitoque,cansadodepassarnecessidade,decidiuumdiafazer-seadivinho.Depoisdeseapresentarnopaláciodoreieprovarsuashabilidadesdivinatórias,conseguiutornar-sehóspedereal.Apartirdaí,osabichãopassoualevarumavidaboaecheiaderegalos.
Certodia,porém,oreidecidiupôràprovaosdotesfabulososdoseuadivinho.
–Grandeadivinho,precisodosseusserviços!Algummiserávelfurtouaminhacoroareal!
Oadivinhoergueu-sedoseuleitodesedase,depoisdeenvergaroseumantoestreladoecolocarsobreacabeçaochapéubicudodemago,mandoureunirnosalãorealtodososcriadosdopalácio.
Aochegaremlá,depararam-setodoscomumapequenacriaturacolocadasobreumpoleiro.Elaestavaenvoltanumpanotambémestrelado.
–Aquiestáogalocarijódesuamajestade–anunciouoadivinho,numtomcavernoso.–Doravante,cadaumdevósdeveráintroduziramãopordebaixodomantoeacariciarascostasdogalo.Aquelequeofizercantarseráoculpadodofurtodacoroa.
Umaum,oscriadosforamalisarogalo.Cadavezqueumdelesintroduziaamãopordebaixodomanto,oadivinhogritavaalgumaspalavrasextravagantescomoestas:
–Carijóreal,apontaoladrãoassimqueolarápiometer-lheamão!Ficaramnissoodiainteiro,atéque,encerradasasalisações,o
adivinhomandoutodososcriadosestenderemamãocomaqualhaviamalisadoocarijó.
Detodososcriados,apenasumnãotinhaamãosujadefuligem.–Muitobem,éesteoladrão–disseomagoaorei,apontandoo
sujeitodasmãoslimpas.Umoh!deassombrosubiuatéaabóbadadosalãoedesceucomoum
eco.–Comofezparadescobrir?–disseorei,curiosíssimo.–Muitosimples,alteza.Ascostasdocarijóestavambesuntadasde
fuligem.Todososqueaalisaramficaramcomasmãossujas,maseste,temendoserdenunciado,apenasfingiualisá-la.
Efoiassimque,pelaprimeiraveznaquelereino,umladrãoteveacabeçacortadaporterasmãoslimpas.
OCASAMENTODAMÃE-D’ÁGUA
Havia,pois,umpescadorquedepescador,ultimamente,sótinhaonome,poisnãoconseguialevarparacasapeixealgum.Então,certodia,obstinando-seemderrotaramarédeazar,eledecidiupermanecerpescandonoiteadentro,atéarrancarqualquercoisaquefossedaságuas.
–Daquisósaiocomumpeixãodeencherosolhos!–anunciouele,lançandooanzol.
Osolsefoi,anoitechegou,enadadepeixe,atéque,derepente,lápelastantasdamadrugada,umclarãosefeznomareumacantoriademulhersubiuharmoniosadaságuas.
Aquilotinhatodojeitodevisagem,eopescadorseencolheutodo,dandoquaseparaseesconderatrásdosamburávazio.Masacantorianãocessava,atéqueumacriaturaesplendorosamentebelaemergiudaságuasefoiacomodar-senumadaspedras,umpoucodepoisdarebentação.
Bem,seopescadorqueriaalgodeencherosolhos,realmenteconseguiuoquequeria,poisacriaturaerarealmentedeslumbrante.Dacabeçaàcinturaelaeramulher,edacinturaparabaixoerapeixe.
Opescador,quenãotinhamulhernempeixe,sentiu-seduplamenterecompensado.
–Deusémesmomaravilhoso!–disseele,depoisdeblasfemaranoitetoda.
Derepente,amulher-peixemergulhoueopescadorentrouempânico.
–Espere,volte...!–gritouele.Fez-seosilêncio,atéqueacantoriarecomeçou,destavezbem
próxima,apontodeopescadorficarmeiohipnotizado.Eleentrounomar,ficandocomaáguapelacintura,atéqueamulher-peixeapareceubemnasuafrente.Comoscabelosmolhadoseotorsocompletamentenu,eraumavisãodesonhooudepesadelodeleitoso,oqueacharemmelhor.
–Quemévocê?–balbuciouele.–SouaMãe-d’Água,evouensiná-loapescar–disseasereia
tupiniquim.Opescadorapanhoutantopeixenaquelanoitequeosamburá
vergoudepeso.
***
Apartirdaí,começouumromanceentreopescadoreaMãe-d’Água,queculminounumpedidodecasamento.
–Sim,euquero!–disseela,donzelaingênuaesedentadosprazeresdomatrimônio.
–Vocêirávivercomigo?–perguntouopescador.–Estábem,vouviveremterracomvocê–disseela,cedendo.–Mas
imponhoumacondição.Opescadorfranziuatesta,poiseraumtipotruculento.–Sóvivereicomvocêenquantonãodesfizerdaminhagentedomar.Opescadorsuspiroualiviado!–Éclaro,jamaisfalareimaldasuagente!–disseele,esquecendo-se
logodoqueprometera.Apartirdessedia,osdoisforamvivernacabanadopescador.
QuandoaMãe-d’Águachegouao“ninhodeamor”,entretanto,tevedefazerumesforçoenormeparaesconderasuadecepção.
“Quepobreza!”,pensouela,aoadentrarocasebrededuaspeças.Ummormaçosufocantepairavaalidentro.Nãohaviacamanemrede
paradeitar,sóumaesteiraatiradanochãobatido.Amesa,porsuavez,nadamaiseradoqueumatábuacompridadeitadasobreduaspilhasdetijolos.Doislatõesvaziosdeóleodecozinha,postosdecadaladodamesa,completavamamobília.
Masoquerealmenteaincomodaraforaamudançanocaráterdoesposo.Desdeachegada,elaperceberaqueosmodosdogalantepescadorhaviamsealteradoradicalmente.
–Deite-seaí!Temaesteirainteirinhadandosopaali.Iaraaproximou-secautelosamentedaesteiratodadesfiada.Quando
estavaaumpassodela,porém,retrocedeuinstintivamente:umalufadadeurinasecaexplodiranassuasnarinasrosadascomoumabofetada.
–Águaesabãotêmporaí,peixinha.Tratedelimparacasa.AMãe-d’Águavirou-separaoesposo,maselejásaíra.Efoiassim
quecomeçouoseumartírioterrestre.
***
Otempopassou,eomaridodasereiafoificandocadavezmaisgrosseiro.
Jánosegundodia,otratamentoafetuosomudou.Odiainteiroeraumtalde“façaisso!”ou“façaaquilo!”quedavaengulhosnapobremoça.
Diaapósdia,aMãe-d’Água,obrigadaavivernaquelamalocajunto
comumhomemtãogrosseiro,foiperdendotodooencantopelocasamento.–Então,éistoviveremterra?–diziadesiparasi.–Oqueestáreclamando,agora?–perguntouomarido.Eladesvencilhou-se,enojada,maseleagarrou-abrutalmente.–Escuteaqui!Comigonãotemchoradeira–disseele.“Ondeestáaquelepescadoringênuoeadorável?”,pensouela.Então,eladecidiuque,quemsabetornandoomaridorico,pudesse
torná-lonovamentegentil.Graçasaosseusdonsmágicos,asbênçãoscomeçaramachoversobreocasal,elogoelesestavammorandonumpalácioàbeira-mar.Penaqueelativessedelimparsozinhatodosostrezentosaposentos.
–Nãovoupagarcriadaalgumatendoumamulheremcasa!–disseopescador,commodosaindapioresdoqueosdotempodapenúria.
Entãoeladesesperou-sedetudoe,apartirdaí,nãofezmaisoutracoisanavidasenãopostar-se,diaenoite,nojanelãodopalácioquedavaparaomareentoarseuscânticosaquáticosdesaudade.
Infelizmente,assuasáriasdelicadasepungentessóconseguiamirritaraindamaisomarido.
Umdia,finalmente,eladecidiuvoltarparacasa,custasseoquecustasse.
***
AMãe-d’Águasofreumuitonasmãosdomaridoaocomunicaroseudesejo,mas,perdendotodoomedo,resolveuenfrentá-lo.
–Nãosuportomaisestavidaemterra!Querovoltarparajuntodosmeus!
–Oquequerjuntodospeixesmalditos?Nesteinstante,umalívioabençoadodesceusobreaMãe-d’Água.Ela
estavafinalmenteliberta,poisomiserávelacabarademaldizerosseusparentesdomar!
Derepente,océuficounegroeumaondamedonhacomeçouaformar-senalinhadohorizonte.Opescadorarregalouosolhosaoveramassad’águaavançarnadireçãodopalácioe,abandonandoaesposa,correucomoumalucinadoparaomorromaisalto.
Aságuasinvadiramtudo,cobrindoopaláciodouradoatéotopo,equandorefluíramparadentrodomararrastaramconsigoajovemsereiaeopaláciointeiro,atéasuaúltimapedra.
EfoiassimqueaMãe-d’Águavoltouamorarnosseusadorados
domínios,enquantoopescadorvoltouaserumpobre-diaboazaradoesolitário.Nuncamaisconseguiutirarcoisaalgumadomar,nemmesmoastatuírasdaareia,quelheescorriamágeispelosdedos,semjamaisdeixarem-seagarrar.
OSTRÊSGIGANTESNEGROS
Alémdeterdeixadoinfluênciamarcantenoscultosreligiososbrasileiros,osafricanosnoslegaramtambémalgumaslendasdeliciosamentefantásticas,talcomoestadostrêsgigantesnegros.
Havia,certafeita,porestessertões,umvelhocomtrêsfilhas.Umdia,asjovensseencheramdeviveralieresolveramdarumlustronomundo.Apóspercorreremmeiosertão,foramdarnumlugarermoedesconhecido;exaustas,entraramnumcasebreabandonadoealificaramparacurarasbolhasdospés.
Nestemeio-tempo,chegaramtambémaolugartrêsgigantesferozes,osdonosdatapera.Umdelestinhatrêsolhos,ooutro,dois,eoterceirotinhaapenasumolho.Aoperceberemquehaviagentenocasebre,quiseramlogosaberquemeramasintrusas.
–Quemestáaí?–disseoGiganteTrês.Aoverorostodogigante,asjovensmodularamtrêsgritosperfeitos
dehisterismo.Osgigantes,queestavamabsolutamentecalmos,disseramparaelas
tambémseacalmarem.–Nãolhesfaremosmal–mentiudescaradamenteoGiganteDois.Paracomprovarabondadedeles,oGiganteUmlhesofereceuuma
bebidaquematavaqualquersede.Nesteinstante,amaisjovemdasmoçaslembrou-sedoavisoquerecebera,ameiocaminho,deumpássaro.
–Nãobebacoisaalgumaoferecidaporgiganteshorrendos!Umavisotãodesnecessário,pensaraela,queseesqueceraatéde
avisarasirmãs.Acontecequeasirmãseramduastolasetomaramlogoabeberagem.
Resultado:asduasadormeceram.Nomesmoinstante,ajovemdesperta,numímpetoaudaz,começouaentoarumcânticomágicoafricanoquefezosgigantesfugiremcomasmãosnosouvidos.
Felizcomotriunfo,elaacordouasirmãs,etodassaíramcorrendocatingaafora.
Nembemhaviamcomeçadoacorrer,porém,ejáostrêsgigantessurgiramvelozesatrásdelas,comotrêsmontanhasnegrejandoaosol.
–Corram!–disseairmãmaisjovem.Oproblemaéquenãohaviamaisondeserefugiaremsenãonuma
únicaárvorequeconseguiraresistiraosfragoresescaldantesdaseca.–Subam!–disseajovem.
Asduasobedeceram,elogoastrêsestavamencarapitadasnotopo.GraçasàsuaMãeOxum,asjovensdescobriram,aliviadíssimas,queosgigantesnãoeramtãoaltosquantoaárvorenaqualelashaviamtrepado.
Entãochegou,emprimeirolugar,oGiganteTrês.Apesardetertantosolhos,elenãoviunenhumadastrêsfugitivasescondidasnasfolhagensralas.
–Asdesgraçadasfugiram!–disseele,seguindoadiante.Ochãotremeuenquantoelepartia,evoltouatremerlogoem
seguidacomachegadadosegundogigante.OGiganteDoismiroubemseusdoisolhossobreaárvore,mastambémnãoviucoisaalguma.
Ochãotremeu,seacalmouevoltouatremeroutravezcomaspisadasdoterceirogigante.Este,quesótinhaumolhoparaenxergaroóbvio,viulogoastrêsmoçoilasescondidasnacopadaárvore.
–Aquempensamqueenganam?–rugiuele.–Desçamjádaárvore!Elasnãoobedeceram,claro,nemteriamporquê.–Desçam,covardes,elutemcomoverdadeirasmeninas!–gritou,
agarradoaotronco.Sacando,então,deummachado,ogigantecomeçouagolpearo
troncocomfúria.Asjovenschacoalharamnoaltocomobambus,masnenhumacaiu.
–Canta!Cantadenovo!–imploraramasirmãs.Entãoairmãcantorapuxoudamemóriamaisumacantigaancestral
iorubaecantounoouvidodogigante.Destavez,porém,ograndalhãogostouecomeçouaacompanhá-la.Acoisafoilonge,equandoacantoriacomeçavaasetornar
realmenteinsuportável,aquelemesmopássaroquederaoalertadabeberagemsurgiudoscéusefoipousarnacopadaárvore.
–Depressa,leveumadelas!–disseairmãcantora,entreaspausasdoseucanto.
Opássarotomounobicoumadasirmãselevou-aembora.Depois,voltouelevou,damesmaforma,asegundairmã.Então,aoretornarparalevarairmãrestante,opássarosetransformou,subitamente,numlindopríncipenegro.Portandoumalfanje,elecortouforaacabeçadogiganteetomounosbraçosajovemcantora.
Opríncipeeajovemcasaram-seeforameternamentefelizes.Quantoaoquefoifeitodasirmãsedosoutrosgigantes,istoninguémjamaissepreocupouemsaber.
COBRA-NORATO
Certavez,umamulherficougrávidadoBoto,omaisfamososedutordaságuasparaenses.Umcasaldegêmeosnasceu.Eraumlindocasal,sóqueumcasaldecobrasd’água.
Amãenãoquissaberdelesefoipedirinstruçõesaumpajé.–ElessãocriadaCobra-Grande!–disseela,assustada.Opajé,depoisdeconsultarseusmanes,dissequeeladeveria
abandoná-losàsmargensdoTocantins,eassimfoifeito.Otempopassou,eascobrinhasgêmeasviraramduascobras
gigantes.UmadelassechamavaHonorato,ousimplesmenteNorato,eeraumacobramachoboaecordata.Suairmã,porém,tornou-semáevingativa,egraçasaoseugênioruimfoichamadaMariaCaninana(malchamada,jáquecaninana,nalínguatupi,querdizer“cobranãovenenosa”).
Durantemuitotempo,Cobra-Noratotentoudemoverairmãdapráticademaldades,maselanãosabiafazeroutracoisasenãoafogarbanhistaseafundarembarcações.
–Minhairmã,destavezvocêpassoudoslimites!–disse-lheNorato,certafeita,depoisqueelaforabulircomumacobraencantadaquemoravadebaixodoaltardeumaigrejaemÓbidos.
Elasabiaqueseacobrasaíssedaliaigrejainteiraruiria.Mesmoassim,mexeucomelaeacobraremexeu-se.Parafelicidadedasvelhasbeatas,aigrejanãoruiu,masganhouumarachaduradealtoabaixo.
–Tomatento,encrenqueira!–disseNorato.–Quetento,nemvento!Quempensaqueé?–silvouaCaninana.EntãoNoratoatracou-secomairmãe,depoisdeumalutatitânica
naságuas,matou-a.Desdeentão,passouahaverapenasumacobrasobrenaturalno
Tocantins,queeraCobra-Norato.Apósestraçalharairmã,elerecuperouaalegriadeviver,tendoadquiridoatéohábitodefazeralgumasvisitinhasàsaldeiaspróximasdorio,especialmenteànoite,talcomoseupaiBotocostumavafazer.
Cobra-Noratoadoravadançare,semprequehaviaumbaile,saíadaságuasparaseduziralgumamoçaribeirinha.Eletinhaodomdesetransportarmagicamentedeumlugarparaooutro,eeraassimquepodia
servisto,numamesmanoite,emquatrooucincolugaresmuitodistantes.Quandoeleabandonavaorioparafazersuasincursõesterrestres,
costumavadeixarnasmargensasuapeledecobra.Dedentrodelasurgiaumrapazbeloecharmoso,irresistívelàsmocinhas.
Noratogostavatantodassuassurtidasnoturnasquedesejoutornar-seumserhumanocomoosoutros.Havia,porém,umsortilégioqueoimpediadeabandonaraságuas.
Certodia,numbaile,elepediuaumamoçaquequebrasseamaldição.
–Ésimples–disseele.–Bastaquevocêdespejealgumasgotasdeleitesobreaminhacabeçaedepoisdêumgolpesobreela,osuficienteparatiraralgumasgotasdesangue.
–Jamaispoderiaferi-lo!–disseela,emprantos.Norato,porém,arrastou-aatéasmargensdorioeteimouparaque
elaolivrassedomal.Antes,porém,eledeviaassumirsuaformaoriginaldecobra,efoiaíquetudodeupratrás.Aoveracobramonstruosa,apobremeninasaiucorrendodevoltaparaacidade.
Norato,desconsolado,pediuatodomundoqueolivrassedamaldição,maserasempreamesmacoisa.Nemmesmoasuamãetiveracoragemobastanteparaencararomonstroelivrá-lodamaldição.
Certafeita,porém,duranteumadasfestasàsquaiselecompareceu,umsoldadovalenteseprontificouacolocarumfimaosortilégiodoamigo.
OsoldadoacompanhouNoratoatéasmargensdorio,levandoconsigoumagarrafadeleiteeasuainseparávelespada.
–Podevestirapele!–disseele,aochegaremaorio.Noratoentrouparadentrodapeleesetransformou,outravez,na
temívelcobra.Osoldadoficoupálidocomoalua,masnãorecuou.Depoisdeabriragarrafa,despejoualgumasgotasdeleitenacabeçadacobrae,emseguida,aplicou-lheumavalentecutiladanacabeça.Algumasgotasminaramdaferida,misturando-seaoleite,e,comopormágica,Noratotornou-sedefinitivamentehomem.
Desdeentão,ofabulosoCobra-Noratodeixoudesercobra.Oquefoifeitodeledepois,ninguémsabe.Háquemdigaquevirousoldadoefoiservirnomesmobatalhãodoamigoqueodesencantou,masistodeveserpatranhadealgumcaboclomalicioso.
AFESTANOCÉU
Estecontoéumdosmaisfamososdogêneroetiológico,ouseja,daquelequeexplicaoporquêdeascoisasseremcomosão.Apesardasuafaunaabundantesugerirumcontopuramentebrasileiro,écertoquesetratadefábulaimportadadesdeomaislongínquoOriente.Esopo,Fedro,LaFontaineequasetodososfabulistasdomundorecontaramestalendaquepretendeexplicararazãodeosapo–ou,dependendodaversão,atartarugaouojabuti–terocorpocheioderemendos.
Diz-se,então,que,certafeita,anunciou-seumafestanocéu.Todasasavesforamconvidadas,masosapo,aosaberdacoisa,tambémquisir.
–Você?–disse-lheumgrou,numtomdedeboche.–Ecomopensachegaraocéu?
Osapopiscouosolhosarregaladosváriasvezes,comoquemésurpreendidoporumaboapergunta.
–Bem,eudouumjeito–disseele,deixandoaquestãoparadepois.Masqueeleiria,iria.Nomesmodia,osapofoivisitarourubu,queeraotocadordeviola
oficialdosbailescelestiais.–Olá,compadreurubu–disseele,saltitando.–Comovai,compadresapo?–respondeuourubu,enquantoafinava
asuaviola.Ourubutiroualgunsacordes,quasesemdarpelapresençado
amigo,etornouafalar.–Éverdadeoqueandamdizendoporaí?–Dizendooquê?–Quevocêvaiàfestanocéu.–Sim,comtodaacerteza.Ourubudedilhouascordasmaisumpoucoenãotocoumaisno
assunto.Daliapouco,osapofezmençãodepartir.–Bem,jávouindoparaafesta.–Já?!Umdiaantes?–Claro.Comonãotenhoasas,devopartirbemantesqueosdemais.Osapopartiu,saltitando,enquantoourubuficouasorrirdepiedade.–Coitado!Nemtodosconseguemseconformarcomsuaslimitações!Verdadeéqueelepoderiateridoalémdacomiseraçãoeoferecido
umacaronaaosapo.Masissoseriaumaamolação,afinal,eelenãoeratãoamigodosapoassimparaincomodar-seporele.
Aover,então,queselivraradosapo,ourubulevantou-separairfecharacasa.Nessemomento,porém,osapo,quenãotinhaidoemboracoisanenhuma,retornouescondidoeentroudenovopelosfundos,indometer-seligeironointeriordaviola.
–Pronto,agoraéficarbemquietinho!–disse,encolhendo-setodonofundodoinstrumento.
Namanhãseguinte,ourubulevantouvoonadireçãodocéu,levandoatiracoloaviola.Osapofeztodaaviagemalidentro,semsemexer,efoiassimquechegouaocéujuntocomoamigocarniceiro.
Quandoafestaiacomeçar,ourubudeuosprimeirosacordesnaviolaeumroncogrotescosefezouvirdedentrodoinstrumento.
–Ora,maseuafinei-adireitinhoontemànoite!–disseourubu,desculpando-se.
–Essetaldeurubujáfoivioleiro!Jáfoi...!–disse,debicoempinado,umagarçaantipática.
Ourubufuzilouagarçacomumolhare,depoisdeafinarnovamente,umaporuma,asdezcordasdaviola,começouumanovamodinha.
–Coach!–fezalgonotampo,quebrandotodaaharmoniadosacordes.
Umcoroviperinoderisosecooupelocéu.Sóentãoosapo,surgindoporentreascordas,fezasuaaparição
triunfal.Ourubu,feridonomaisprofundodasuavaidadeartística,sentiu
ganasdeestrangularointrusonascordas,esónãoofezporqueosapofoimuitobemrecebidoportodos.
Ah,ah,ah!,istoéqueeraserengraçado!,diziamtodos,vertendolágrimasderiso,enquantoourubu,depernatrançada,entortavaobico.
Quandotudocessou,porém,afestacomeçoueseestendeuportodoodia,entrandonoiteadentro.Obailefoiumsucessotremendo:todomundodançou,comeu,bebeuàvontade,atéque,chegadaahoradoencerramento,cadaqualtratoudepartir.
Quantoaosapo,retornoudomesmomodoqueviera,dentrodavioladourubu.
–Podevir,amigão!–disseovioleiro,comoquemjáesqueceraomaugracejo.
Quandoretornavam,porém,emplenoar,ourubutomouaviolaetocoualgunsacordes,chacoalhandooinstrumentocomtantaforçaqueosaposaltouparafora,caindonoabismo.
Opobresapoveiorebolandopeloaratéesborrachar-senaspedras,partindo-seemváriospedaços.Diz-se,porém,queDeusficoutãosentidocomasuasortequerejuntoutodasaspartes,recosturandoocouroporcima,eéporistoqueosapotem,atéhoje,apeletodaremendada.
ONEGRINHODOPASTOREIO
Semdúvidaalguma,alendamaispopularnoextremosuldoBrasilaindaéadoNegrinhodoPastoreio,umahistóriatristeeviolenta.
OescritorgaúchoSimõesLopesNetofoiomaiordivulgadordalenda,aqualreconta-seagora,emoutraseinferiorespalavras.
Havia,nostemposidos,umestancieiroperversoqueadoravamaltratarosescravos.Naestânciadessedemônio,viviaumnegrinhochamadosimplesmentedeNegrinho.Nãotendomãenempai,ninguémselembraradebatizá-lo.Graçasaisso,dizia-sequeeraafilhadodeNossaSenhora.
Certodia,oestancieiroperversoresolveuorganizarumacorridadecavalos.ONegrinho,bomdecavalhadas,deveriaconduzirocavalodopatrão.
–Seperderacorridajásabe!–ameaçouoestancieiro,mostrando-lheopunho.
Deu-se,então,acorrida,eoNegrinholevouapior.Masapior,mesmo,eleaindaestavaporlevar.Oestancieiroperverso
haviaperdidomilonçasdeouro,equeriasevingarnomenino.–Essetiçãomepaga!–diziaele,vibrandoorelhonoar,emjurasde
ódio.Nembemopovaréuseespalharaaoredordosespetosdecarne
gorda,oNegrinhoviu-seamarradonumaestaca,naquallevouumahorrendasurra.Láficouanoiteinteira,esóquandoamanheceufoiretiradoelevadoaumpedaçoermodecampo.
–Vaificaraquipastoreandoogadodurantetrintadias,poistrintaquadrastinhaacancharetaondeperdeuacorrida!–disseopatrão,deixandooNegrinhosobosolescaldante,sobogranizofurioso,sobofrioenregelante,esobtudooquehádemolestonamãenatureza.
Duranteasnoites,oNegrinhoprovavaoutracolheradacheiadoinferno:cercadoporcorujas,onças,lobos,javalisououtrosbichosquehaviaentãopelospampas,sóencontravaalgumsossegoaolembrardasuaMadrinha,eaíadormeciacomumsorrisonoslábios.
Efoijustonumadessaspausasdosofrimentoqueasuaruínasecompletou:umbandodeladrõesdegado,aproveitandoosonodopequenovigia,levouconsigotodoogado.
Nãoéprecisodizerque,nodiaseguinte,oNegrinhoprovououtrasurradaquelas.
–Agoravaiprocurarogadoquedeixoulevarem!–disseopatrão,mandando-o,noitefechada,paraoscamposabertos.
ONegrinhopassouantesnacapelinhadasuaVirgemMadrinhaelevouumavelaparaalumiaroscaminhos.Enquantoavançavapeloscampos,deixavacairumpoucodaceraincandescente.Ospingosficavamqueimandopelochão,comopirilampos,enquantoeleavançava.
Então,detantoavançar,elefinalmenteachouocampodopastoreio.Ogadoestavalá,eelesedeitouparadormir,agradecendoàMadrinhaCeleste.Nomeiodanoite,noentanto,ofilhodoestancieiro,umrapazaindapiordoqueopai,veiodemansinhoeespantou,outravez,osanimais.
Olaçocantoudenovo,edestavezoNegrinhonãoresistiuemorreu.Acoisatodasedeuemcampoaberto,eopatrãodesgraçadoachou
queoNegrinhonãomerecianemmesmoumacova.–Atire-oalinoformigueiro!–disseaofilho.OcorpodoNegrinhofoipostosobreoformigueiro,easformigas
caíramemcima,comendotudo.Quandochegouemcasa,oestancieirosonhouqueeleeramil
estancieiros,equetinhamilfilhos,emilnegrinhosparamaltratar,emilmilonçasdeouroparagastarembobagens.
Durantetrêsnoites,oestancieirosonhouomesmosonho.Então,naterceiranoite,tomadopeloremorso–oupelomedodeserdescoberto–,resolveuvoltaraoformigueiroparaverseasformigashaviamcomidotodoocorpo.Aochegarlá,porém,deparou-secomafiguradoNegrinho,empésobreoformigueiro,sãoesemmarcaalgumadeferida.Aoseulado,estavaasuaSantaMadrinha,todaserenaefosforescendoemazul.Osbichosperdidostambémestavamtodosali.
Oestancieirocaiudejoelhosemãospostas,arrependido,masoqueelesentiamesmoeraummedoterríveldequealgumcastigocaíssesobresi.
Enquantooestancieiroseenchiademedo,oNegrinhomontou,empelo,emcimadeumdoscavalosesaiuatocaralegrementeatropapelascoxilhas.
Apartirdaqueledia,oNegrinhopassouaserchamadodeNegrinhodoPastoreio.Encarregadodeencontrarcoisasperdidas,elefazabuscadebomgrado,massemprepedindoumavelaparaasuamadrinha.
OQUERO-QUERO
PássarotípicodoRioGrandedoSul,oquero-querodesfrutadamaisamplasimpatiaeconsideraçãodosgaúchos,apesardopapelingratoquelhecoubenalendaqueexplicaarazãodepossuirestenome.
Diz-se,pois,que,duranteafugadaSagradaFamíliadoEgito,JoséeMariaforambuscarrefúgionumoásis,emplenodeserto.Enquantodescansava,Mariapediuaospássarosdooásisquefizessemsilêncio,afimdenãoatraíremaatençãodosseusperseguidores.
–Silêncio,avezinhas!–disseela,comodedonoslábios.MariatinhanosbraçosoDivinoBebê,enquantoseuesposo,José,
vigiavatudocomolhosdeáguia.Diantedoseudivinopedido,todasasavesforamsilenciandooseucanto,umaauma,atéquesórestouocantoensurdecedordeumaúnicaave.
–Porfavor,avezinha!–insistiuMaria.–QuerqueossoldadosdeHerodesnosencontrem?
–Quero!Quero!–continuouaaveaberrar,aplenospulmões.Joséavistou,então,umgrupodesoldadosavançandonasuadireção
edeuumjeitodeesconderMariaeobebêatrásdumasfolhagens.OssoldadosdeHerodeschegaramecomeçaramainvestigarolugar.
Porém,comoestavamexaustosdemais,preferirampararasbuscasebanhar-senaságuasdeumpequenocórregoquepassavapelooásis.Enquantoisso,opássaronãodavatrégua,umsegundo,noseucanto.
Organizou-seumacaçadaàave,masninguémconseguiuespantá-la.Porfim,tantoelaincomodouqueossoldadosresolverampartir.
Quandoelesdesapareceram,aVirgemlançou,então,estamaldiçãoaopássaroberrador:
–PorquaseteresprovocadoamortedoDivinoRedentor,oteucantoserá,parasempre,omesmo!
Edesdeentãoaaveteimosanãofazoutracoisasenãorepetiroseuperpétuorefrão:
–Quero-quero!Quero-quero!
OPULODOGATO
Ocontoqueencerraestapequenacoletâneadanarrativaoralbrasileiraé,semdúvidaalguma,umadasfábulasmaisengenhosasqueoespíritohumanojáconcebeu.Elacontacomoogatoensinou,certodia,ocachorroapular.
Estava,pois,ogatoadescansarquandooseueternorival,ocachorro,apareceu.
–Lávemvocêdenovo!–disseobichano,mostrandoasunhas.–Calma!–disseocão,tentandoacalmarogato.–Digalogooquequeredesapareça!Ocãofezumacaretaimplorativaedisse:–Nãobriguecomigo,velhoamigo,poisvimestabelecerumapaz
definitivaentrenós.Obichanoacinzentadomoveuacabeçaparaolado,descrente.–Ésério!Ecomoprovadaminhaamizade,prometoensinar-lhe
todasashabilidadesdeumcão!–Equemdissequeeuqueroaprenderalgodevocê?Masocãoconseguiuconvenceroantigorivaldequetinha,defato,
muitacoisaalheensinar,eministrou-lhealgumasliçõesutilíssimas.Diantedisso,ogatoconsentiuemensinaraocão,também,algumas
desuashabilidades.–Queroapenasquemeensineapular!–disseocão,esperançoso.–Muitobem,conheçotodosospulosdafloresta–disseogato,de
boavontade.Ogatopassouodiatodoensinandoaocãotodosospulospossíveis,
detodososanimaisdafloresta.–Bem,éisto–disseele,depoisdeensinaroúltimopulo.Nesteinstanteocãoarreganhouosdentese,depoisdeescolhero
pulomaisvelozaprendido,mergulhounadireçãodogato.Este,porém,saltouparaoaltofeitoumamoladepelos,fezumaespetacularacrobaciaaéreaefoipousar,sãoesalvo,muitolongedocão.
–Seutratante!–ralhouocachorro.–Estepulovocênãomeensinou!Entãoogato,empertigando-setodo,explicou:–Esteéopulodogato,bobão.Esteeunãoensinoaninguém.
PARTEIII
PERFIS
ALAMOA
AAlamoaéumaadorávelprincesa-fantasmaquehabita,desdetemposimemoriais,asgrutasdolitoraldeFernandodeNoronha.Éassimchamadaporque,noentendimentodopovo,elaéloiracomoumaalemã.
Pelosimplesdetalhedonome,vê-selogoquesetratadeummitoimportado.Princesasloirasquevivemencantadasnaentradadecavernasermasequaseinacessíveissãocomunsnofolclore,emespecialoeuropeu.
Quandootempoestáparatempestade,elaabandonaagrutaevaidançarnuanasareiasdapraia,afimdeatrairaatençãodosmatutos.Nãodemoramuitoeaprimeiravítimaseapresenta,vencidanãotantopelosdotesartísticosdajovemquantoporsuaenormebeleza.
EspéciedeIarasedutora,aAlamoatambémcostumalevaradesgraçaaosseusapaixonados.Sobopretextodedesenterrarumtesouroescondidonamaisaltadasgrutas,elaosconduzatéaentrada,comoseestivessemhipnotizados.
Umaveznointeriordagruta,oincautovêocorpodaAlamoasederreterdiantedosseusolhos,restandoapenasumacaveiradedentesarreganhados.Comumarisadatétrica,ademôniaarrasta,então,ocaboclodesgraçadoparaasprofundezasdacaverna,ondeamorteouumarondaperpétuadetorturasselvagensoaguarda.
Napróximatempestade,aAlamoa,reconstituídaemtodaasuabeleza,voltaaexecutarnasareiasdapraiaoseuchamadosedutor.
ALMA-DE-GATO
Entidadequaseabstratadonossofolclore,esteAlma-de-Gatooriginou-senosarredoresdoRioGrandedoNorteedaParaíba.Osterroresqueeleespalhavanostemposantigos,especialmenteentreacriançada,operavam-sequasequeexclusivamentepelaforçasugestivadoseunome,jáquejamaissedeixavaavistar.
Aolongodosanos,porém,eleacabouassociadoàfiguradogato,geralmentedecorpreta.
Emsetratandodequalquermitobrasílico,porém,hásempreumaavenasredondezasparaexplicá-lo,poisafloresta,desdesempre,foiviveironaturaldemitos.
Aaveque,segundoalgunsestudiosos,originouoAlma-de-GatoseriaumacertaTinguaçu–literalmente,“Bico-Grande”–,avedemauagourofamosapordarorigem,depoisdemorta,aumaplantacapazdeconcederodomdainvisibilidadeaquemmascasseumadassuasfolhas.
Masquecoisasterríveisfaz,afinal,esteAlma-de-Gato?Concretamente,nada.OAlma-de-Gatooperademodo
exclusivamentepsicológico,nãoexistindonenhumrelatoacercadosatosquecometeoudosfinsqueelebusca.Omáximoquealgumaimaginaçãoinfantilexacerbadaconseguiuatéhojefoientrever-lheovulto,escurocomoodetodososvultos,eumpardeolhosaofuscaremnomeiodanoite.Porém,açãoconcreta,nenhuma.
OAlma-de-Gato,dizemtodososseusestudiosos,nãosequestracriançasnemtampoucoasdevora.Nãoexisterelatoalgumdeviolênciacometidacontraquemquerqueseja.Noentanto,nossosmolequesinterioranoscontinuamavotar-lheummedosistemático,diantedoanúnciovagodesuapresença–umapresençaque,detãosutil,équaseumaausência.
ANHANGÁ
EntidadesobrenaturaldossilvícolasqueosjesuítaselevaramàcondiçãodeDiabo,oAnhangáéumdosespíritosmaistemidospelosíndios.RivaldeJurupari,oespíritodospesadelos,aquemosjesuítastambémaplicaramapechadedemônio,esteAnhangá(ouAnhanga,semacento)era,naverdade,oespíritodacaçadasflorestasamazônicas,esómetiamedomesmonosdesafetosdasmatas.
Suafiguraégarbosa,apresentando-sesobaformadeumcervobrancodeolhosembrasa,comodetalhedoschifrescobertosdepelos.Aoqueparece,oscatequistastambémderamumtoquepiedosonasuafigura,jáque,emalgummomento,ocervopassouapossuirumacruzbemnomeiodatesta(dequalquermodo,algoestranhonatestadeumdemônio).Apesardasuabelaaparência,nãoémuitoaconselháveltentaravistaroAnhangá,poisdiz-sequeasimplesvisãodestecervofantasmaéobastanteparadeixarumapessoalouca.Esealguém,aindaassim,pretendercaçá-lo,émelhoresquecer:oAnhangáéumacriaturatãoseguradesique,emvezdefugirdocanodeumaespingarda,põe-seamastigá-lotranquilamente,comosefossecanadeaçúcar.
Segundoosmelhoresestudiosos,oAnhangácervo,consideradocomonumeprotetordafloresta,foiconfundidocomoutroserdemesmonome,associadoàsassombraçõeseaosmalefícios.
Repetiu-se,destemodo,nasAméricas,amesmametamorfoseocorridanasflorestasdavelhaEuropapagã,quandoCernunoseoutrasdivindadespré-cristãs,tambémdotadasdechifres,passaramaencarnar,noimagináriocristão,oDiabo.Aquinãofoidiferente,eosprópriosíndios,fascinadosmaispelomedodoquepelabeleza,passaramaprivilegiarahistóriaqueapontaAnhangácomoumaversãocabocladeSatanás,relegandoocervobrancoaumsegundoeindignoplano.
MasolegítimoAnhangácontinuaráasersempreocervoguardiãodasflorestas.
BOITATÁ
ChamadomuitasvezesdeMboitatá,estacriaturaéoutrodospersonagensobrigatóriosdequalquercoletâneafantástico-zoológicadoBrasil.
Apesardonome,oBoitatánadatemavercombois,mascomumacobratransparentequeirradiaumaluzofuscantenasnoitestristesdasmatasbrasileiras(istonãoimpediu,porém,queelefossedescritocomoumtourodeolhoscoruscantes,constituindoesteumdosexemplosmaiscuriososdopoderdemutaçãooperadopelaspalavras).Felizmente,mesmoaqui,hálimites:noNordeste,emborasendochamadodeBatatão,ninguémaindaselembroudelhedarumaconformaçãodebatata.
Boitatásignifica“Coisadefogo”,emrazãodofogoquedeleemana,constituindo-seoanimal,naverdade,numarepresentaçãofiguradadofogo-fátuo.Tambéméidentificado–ouconfundido–comaBoiúnaeaCobra-Grande,mitosaquáticosassemelhados.
Apesardosfogos-fátuosexistirememtodoomundo,oBoitatáoriginalresistiurelativamentebemaoassédiodainfluênciaeuropeia,permanecendosemconformaçãofísicaoupsicológicahumanaalguma.Eleéumacobra–ou,maisexatamente,umespectrodecobra–,cujafunçãoúnicaéadecomereatemorizar.
Somentequandoomitoabandonaasmatas,ganhandoascidades,équeoBoitatácomeçaadegeneraremsuapureza,recebendoadendosextravagantes,importadosdosmaisdiversosfabulários(masque,mesmonestecaso,nãoforamsuficientesparadesfigurá-locompletamente).
OBoitatá,dizem,alimenta-sesomentedosolhosdassuasvítimas,apontodeoseucorpotranslúcidoficarrepletodeolhoschamejantes.Paraescaparàsuafúria,ocorajosodevemunir-sedeumaboadosedesangue-frio:permanecerparadoedeolhosfechadoséoquebastaparafazeraserpentesedesinteressardele.Senãofuncionar,sugere-seatáticamaisrudedearremessar-lheumobjetodeferro.
Indoadianteadeturpação,chegou-se,enfim,àsmutaçõescompropósitosmoraiseecológicos:oBoitatátransforma-se,dizem,numpedaçoardentedemadeiraafimdepunirosagressoresdasmatas.
Apesardetudoisso,podemosnosdarporfelizespelofatodeninguém,nofimdascontas,terconseguidotransformaroBoitatáemmaisumsátirodaságuas,comosucedeuaoBoto,ounumasereiasuspirante,comosucedeuàCobra-Grande,rebatizadade“Iara”.
BOTO
OBotoéumaespéciedegolfinhoque,segundoalendaamazônica,nasnoitesquentessaidasuamoradaaquáticaparairseduzir,nosbailesribeirinhos,asmulheresincautas.
AssimcomoaIara,oBotoéumadasnossaslendasmaispopularese,aomesmotempo,menosautenticamenteindígenas.Praticamenteoúnicotraçoarestardomitooriginaléofatodeacriaturaemergirfantasticamentedaságuasparaentraremcontatodiretoeterrenocomoshomens–ou,maisexatamente,comasmulheres.(Sefosseumalendaautenticamenteindígena,semmescladecorrupção,oBotosairiadaságuassimplesmenteparadevorareespalharadevastação,semrecorreraosestratagemassensuaisimportadosetípicosdasraçasvestidas.)
AexemplodaCobra-Norato–outradeturpaçãodomitodaCobra-Grande–,oBoto,despindo-sedesuaaparênciaaquática,transforma-semagicamentenumgalantesedutor,trajadodebrancoecomumchapéudoqualjamaissedesfaz(artefatoimprescindívelparaesconderoorifícioderespiraçãoqueohomem-golfinhopossuinotopodacabeça).Seuúnicoobjetivo,umavezforadoseuelemento,éseduzirasmoçaseengravidá-las,gerandoumaestirpedaqualseignoraoresultadofinal(nãosabemosseosfilhosherdamascaracterísticasdopaiousenascememorremcomohumanosquaisquer).
Oolhosecodoboto-tucuxiéusadoatéhojecomotalismãparaatrairoamordasmulheresqueserecusamacairnalábiadoshomensdespidosdequalquerencanto.
BRADADOR
OBradadorpertenceàmesmaespéciequaseabstratadoAlma-de-GatooudoPédegarrafa,sendoconhecidoapenaspelaverdadeirapaixãoquenutrepeloescândalo.
Defato,nenhumaoutracriaturadonossofolclorepersonificamelhoressetraçoespalhafatosodosnossosentessobrenaturaisdoqueessepersonagemhabitantedoCentro-SuldoBrasil.
Espécieanômaladeassombração–jáque,segundoaboadoutrina,nãosetratadeumfantasma–,oBradador,mesmoassim,costumafazersuasapariçõesàmeia-noiteempontodetodasassextas-feiras.Sóque,emvezdearrastar-seemsilêncio,preferelançar-senumacorreriadesatinada,aomesmotempoemqueberrafeitoumdoidovarrido.
DesdeoinstanteemqueoBradadorcomeçaasuarondahistérica,criaturanenhumaconseguemaisdormir,genteouanimal,devidoàestridênciadosseusgritos.
AquestãodeoBradadorserounãoumaalmapenadapareceestarresolvidaapartirdomomentoemquesebuscaasuaorigem.Segundoamaioriadosestudiosos,oBradadororigina-se,emregra,docorpomumificadodealgumcadáverincorrupto,sendo,poristomesmo,chamadotambémde“corpo-seco”.Tratar-se-ia,pois,deumcorpoandante,comooszumbishaitianosouasmúmiasegípcias,enãodeumaalmapenada,queéumsersutileincorpóreo.
OfolcloristaparanaenseFranciscoLeiteafirmatervisto,emsuajuventude,umadessasmúmiasdesenterradaeencostadanumpédeimbuia,“acompletaroseufadomaterialsobreosolo”.(Seviumesmo,devetersidoduranteodia,enquantoeladormia,poiséconsensoabsolutoentreosestudiososqueasimplesvisãodoBradadoracarretaamorteimediatadoenxerido.)
AexemplodaCabra-Cabriola,estemitoparecetambémtersidoimportado,emborasejadifícilimaginarumlugardaTerraondenãopossavicejar,espontaneamente,umparentequalquerdaespécie.EmPortugal,porexemplo,existeumaversãofemininadonossoBradador,aZorraBerradeira,umacriaturapossivelmentedezvezesmaisescandalosa.NoValedoSãoFrancisco,temosoGritador.
BRUXA
Personagemonipresenteemtodososrecantosassombradosdomundo,abruxa,noBrasil,tambémconheceuumaprósperadivulgação.Modelodoqualpartemtodasassuasparentas–dasquais,poraqui,aCucapareceseramaisfamosa–,demodogeralelasurgecomoaspectoclássicodavelhahorrendatrajadadenegro,onarizcompridocomverruganaponta,olhosremelentos,vassouraempunho,ogatopretoaopé,ocaldeirãofumeganteetc.
Esta,porém,éabruxaclássicaeuropeia.Anossatemalgunsadendosparticularesdesconhecidosdamaioriadaspessoas.
Nemtodossabem,porexemplo,queabruxatemopoderdesetransformaremcoruja,morcego,oumesmoemumamariposanegra.Poucosdenóssabem,também,queasétimafilhadeseteirmãsestáfadadaaserbruxa.Tambéméparcamentesabido–especialmentenasregiõesurbanas,lamentavelmentedesinformadasdestasquestõestranscendentes–queabruxatemopoderdeseinfiltrarnasmenoresfrestas,nãoadiantando,porisso,passarachavenaportasemmeteralgodãonasfrinchas.
Criançasdeatéseteanosqueaindanãoreceberamobatismosãoumdosalvosprediletosdessacriaturanojenta,poiselaadorasorverosanguedebebêpagão.
Segundoacrendice,háumamaneirainfalíveldeseidentificarumabruxa:seelacumprimentarsemprecomamãoesquerda,podemosestarcertosdesetratardeumadasconcubinasdoDiabo,mesmoqueacriaturaseapresentecomumaadorávelaparência.
NonortedoBrasil,nãosedizbruxa,mas“feiticeira”,oquenãodiminuiemnadaasuapericulosidade.Felizmente,porlá,nãoacontecemosfamosossabásnoturnos,nosquaisasbruxas,montadasnuassobrevassouras,cruzamoscéus,tendoaofundoasilhuetaprateadadalua.
Paradefender-sedabruxa,osestudiososindicamumasériedetalismãs.Aestreladecincoouseispontas,aspalhassecasdoDomingodeRamos,postasemcruz,ouentãoummolhodefios,queabruxanãopodedeixardecontarantesdeoperarosseusmales,sãoosmaislembrados.Muitoútil,também,éespalharfacasoutesourasabertas,alémdepunhadosdesal,portodaacasa.
CABEÇADECUIA
NoPiauí,temorigemumacriaturabastanteoriginal.OenteterrificantesechamaCabeçadeCuiaetemfeitooterrordemuitosnadadorespiauienses.
Umdosseustraçosmaismarcanteséaonipresençadonúmero7nasuabiografia.Estenúmeropareceestarligadoaoseudestinocomoumamaldiçãobabilônica.
Masonde,exatamente,habitaestemonstrodoPiauí?EleseescondenaságuasdorioParnaíba,efoipararalidepoisde
termaltratadoaprópriamãe.Elaoamaldiçoou,obrigando-oapassar49anosseguidos(7x7)dentrodorio,comosepeixefosse.
OCabeçadeCuiaémagérrimo,temocabeloescorridonatestaesuacabeçatemaforma,evidentemente,deumacuia.Elechegamansamente,comoquemnãoquernada,epuxarepentinamenteparaasprofundezasomatutodesprevenidoqueestiver,então,sebanhando.
DizalendaquedeseteemseteanoseletemdecomerumamoçavirgemchamadaMaria.Quandonãoaparecenenhuma,elesecontentaempescarqualquerumqueestiverporali.
QuandotivercomidosuasseteMarias,afirmamosentendidos,oencantosedesfaráeoCabeçadeCuiavoltaráaserummoçoestudiosoefilhoexemplar.
CABRA-CABRIOLA
Comestenomequesoavagamenteaumainocentecantigaderoda,podemos,naverdade,identificarumadascriaturasmaisviolentaserepulsivasdonossofolclore.
Importada,aoqueparece,aCabra-Cabriolaaclimatou-semelhornoNordeste,ondecomeçouaempreenderoseureinadodeterror.
Comoopróprionomediz,aCabra-Cabriolaéumsermonstruosoqueadoracabriolar,ouseja,darsaltoserequebros.Poroutrolado,aomenosnoBrasil,elanãopossuiqualquerfeiçãoingenuamentecaprina,umavezquesuacarasedestaca,acimadetudo,pelapresençadeumasérieafiadíssimadedentesedeumpardeolhoschamejantes.Suabocaesuasnarinastambémexpelemfogoefuligem.
Seualimentoprediletosãoascrianças,enãosóasdesobedientes.Ànoiteelagostadeespreitaracasaondeasmães,poralgumarazão,estãoausentese,pormeiodeestratagemassolertescomoodeimitaravozdasmesmas,induzascriançasaabriremaporta.Umavezconseguidoointento,acriaturainvadeacasaaosberros,sórestandoàssuaspequenasvítimaspularempelasjanelasouinvocaremoauxíliodoseuanjodaguarda.
***
Conta-seque,certafeita,aCabra-Cabriolaestavaàespreitaparamaisumataquenasredondezasdeumacasaondeumamãedeviasairànoiteparatrabalhar.
Amulhersaiu,afinal,eacriaturanefastaesperoualgumashorasantesdeiràportapediràscriançasqueabrissem.
–Abram,filhinhos!Soueu,asuaqueridamamãe!–disseaCabra.Como,noentanto,nãotivessetidoocuidadodedisfarçaravoz,viu-
selogoexpulsapelosgritosdascriançasdentrodacasa.–Fora,Cabramaldita!Bemsabemosquenãoéanossaquerida
mamãe!Nodiaseguinte,acriaturainfernalprocurouumferreiroemandou
martelarasualínguaatéelaganharumacompleiçãomaismaleável,capazdereproduziramaviosavozdamãedascrianças.
Namesmanoite,elaretornouàscercaniasdacasae,depoisdeamulhersaireumbompedaçodanoitetertranscorrido,foibateroutravez
àporta.–Abram,filhinhos!Soueu,asuaqueridamamãe!Destavez,asuavozsooutãoperfeitamentematernaefeminilqueas
pobrescrianças,sematentaremparaafiguradequemlhesfalava,escancararamaporta,aliviadas.
MasquemficoualiviadamesmofoiaCabra-Cabriola,aover-sesenhoradasituação.Eofinalterrível,dignodosirmãosGrimm,émaisumaprovaseguradaimportaçãodomito.
CACHORRADAPALMEIRA
QueopadreCíceroespalhabênçãosportodooNordeste,ésabidodetodos.Mas,comoemtodasascoisassagradas,hánele,também,umladoperigoso,comoqualnãoconvémmexer.
Ora,certafeitaumajovemresolveubrincarcomeleeacaboumal.Acoisasedeualgumassemanasdepoisdopassamentodosanto
padredosertão.Umajovemacabaradevermorrersuacachorrinhaeandavamuitochateadaquandoumavelhabeata,aindainconsolávelcomamortedoseumentorespiritual,travouumaconversacomela.Asenhoraestavatrajandolutoe,questionadapelajovemdarazãodaquilo,disse,muitoindignada:
–Ora,porquê!EstoudelutopelamortedomeuPadreCíceroRomãoBatista!
Entãoajovem,meiodebicando,retrucou:–Poisdeveriabotarlutoerapelaminhacachorrinha!Dizemque,nomesmoinstante,apobrecriaturaviroucadelaesaiu,
feitodoida,acorrerpelosertão.Dizemalgunsestudiososqueseuirmãoconseguiucapturá-laeque
atéhojeelaviveenjaulada.Presanoiteedia,passaotempolatindoeuivando,semcomernadafeitoempanela(sabe-seláarazão),massomentecarnedecabritonovo,istoquandonãoróiosprópriosossos.
Estaassombraçãoécoisarelativamenterecentenosanaisdonossofolclore:datade1934etemsemantidocomrazoávelsaúdenacrônicaassombrosadoNordeste,ajulgar-sepelonúmerodepoemasdecordelquecirculamsobreotema,emtodasasfeirasnordestinas.
ACachorradaPalmeiraéummitoqueversa,aomesmotempo,sobreotabureligiosoeopreconceitomoral,jáqueacadelaremete,especialmentenossertõesnordestinos,àprostituta.
CAIPORA
Paramuitosestudiosos,oCaipora(ouCaapora)éumasimplesderivaçãodoCurupira.Pertencenteàmesmaclassedosentesprotetoresdafloresta–maisexatamente,dacaça–,eledesenvolveu,contudo,umtipoprópriobastantediferenciadodoCurupira:enquantoesteseapresentacomoummolequefranzinoedepésinvertidos,oCaiporatomaafiguradeumbrutamontescomocorpocobertodepelosemontadonumgigantescoporco-do-mato.(NoNordeste,porém,oCaiporatemoaspectodeumindiozinhoperneta,havendoaquiumacuriosafusãodoSaciedoCurupira.)
Caapora,emtupi,significa“habitantedomato”,denominaçãofieldesteserque,nosprimórdiosdacolonizaçãoportuguesa,foiignoradopelosjesuítas,tãohábeisemrecensearosmildisfarcesdequesevaleuoDiaboparaintroduzir-senasmatasbrasileiras.Omáximoque,naquelesdias,sepôdeevocardelefoiumaespéciedeespectrosilvestreesemforma,semnadaquelembreaespetaculosidadedehomenspeludoscavalgandojavalisouporcosgigantes.
Emalgumasregiões,oCaiporatrocadesexo,epassaaser“a”Caipora,umamulher,tambémprotetoradacaça,masquenãosefurtaaentraremintimidadescomoscaçadores,chegandoapraticarsexolivrementecomeles.Depoisqueoromanceengata,porém,elasetornaciumentaepossessiva,capazdepuniramenortraiçãocomumasurraletaldecipóespinhento.
Assimcomooseuconfrademasculino,aCaiporatemohábitodecavalgarporcoseressuscitaracaçaabatida.(Conta-seque,certafeita,umgrupodecaçadoresestavaassandoumtatunamataquandoaCaipora,passandoderepente,montadanumporco,deuogrito:“Vambora,João!”,eotatu,tostadoesemvísceras,pulouagilmentedoespetoesaiu-lhenoencalço,vivinhodasilva.)
ApesardeoCurupiraserpopularnoRioGrandedoSul,nemporissooescritorgaúchoSimõesLopesNetodeixoudemencionar,também,o“homemagigantado”,dando-nosoconhecimentodequeaversãoexpandidadoCurupira,apóspercorrertodooBrasil,chegouaalcançaroextremosul.
Aexpressão“caipora”comosinônimodeazaradoprovémdestepersonagem.Dizia-seantigamentedetodocaçadorinfeliznacaçaqueele“estavacomoCaipora”,equetodoaquelequeseencontravacomoser
monstruosoestavavotado,apartirdeentão,afracassaremtodacoisaqueintentasse.
CAPELOBO
OCapeloboéumamisturagrotescadequasetodososmonstrosdonossofolclore.
EletemorigemnoParáenoMaranhão.NorioXingu,asuafamaestátãoarraigadaquequasenãoháíndiovivoquenãolheguardeomedomaisprofundo.Aexplicação,decerto,estánacrençadequetodoíndio,depoisdemuitovelho,terminasetransformandonesteentebizarro.
Capeloboquerdizer“lobotorto”,umloboforadoesquadro,eéoqueeleparecejustamentesercomasuaconformaçãoesdrúxula.Suaformavariaconformeolocaldasuaaparição.NoMaranhão,alémdeteronomeligeiramentealterado(alielesechamaCupelobo),elepossuiumfocinhodetamanduá,aocontráriodasoutrasregiões,ondeseapresentacomofocinhodeumaantaoudeumcachorro.
Orestantedoseucorpotambémestáenvoltoemcontrovérsias:enquanto,paraalguns,elepossuiocorpodeumaanta,paraoutrospossuiumcorposemelhanteaodohomem,sóquerecobertodepelos.
Háaindaoutraexcentricidade,queaproximaoCapelobodoSaci:segundoalgunsestudiosos,elepossuiapenasumaperna–ou,pelomenos,umaúnicapata–,queéredondacomoadoPédegarrafa.
Comoamaioriadosnossosmonstros,oCapelobotambémanunciaasuachegadapormeiodeumagritariainfernal.
OCapelobocostumaabraçar-seàsuavítimacomoaumvelhoamigo.Sóqueasamabilidadesterminamquandoeleintroduzrepentinamenteasuatrombaagudanocrâniodavítimaepõe-seasugaraquelequepareceseroseualimentopredileto:océrebrohumano.
OCapelobo,noentanto,nãoésomenteantropofágico:elealimenta-setambémdefilhotesdecãesedegatos,epodesermortoseforatingido,talcomooMapinguari,bemnomeiodoumbigo.
CARBÚNCULO
OCarbúnculoéumaespéciedelagartomágicoquevivenoRioGrandedoSul.
DizalendaqueumsacristãodaigrejadeSãoToméviusairacriatura,certodia,daságuasdeumalagoavizinha.Elaeraparecidacomumlagarto,sóqueenorme,levandonacabeçaumapedratãobrilhantequefaziaofuscarasvistas.Apesardadificuldadeemcapturá-lo,osacristãoconseguiuapoderar-sedeleelevá-loparacasa.Ali,eledescobriu,deliciado,queoCarbúnculotinhaopoderdedarriquezasinfinitasaoseupossuidor,alémdetransformar-se,ànoite,numalindamulher.
Osacristão,então,passouadevotartodososseuscuidadosàcriaturasobrenatural,esquecidodeDeusedoshomens.
Ainveja,porém,faloumaisforte,eoshomensdebemdacidadedecidiramprenderoex-sacristão,condenando-oàmorte.OCarbúnculo,porém,veioemseusocorroe,depoisdeespalharamorteeadevastação,raptouoamigodasmãosdosseuscarrascos,desaparecendocomele.
Dizalendaqueosacristãoviveatéhoje,nocerrodoJarau,emmeioàsriquezas,juntodoseuamigodopeito,queànoitecontinuaasemetamorfosearembelaninfa.
Opersonagem,porém,nãoécrianativadosgaúchos.Segundoosestudiosos,eleestáespalhadopelasregiõesandinas,eatémesmoFlaubertchegouainvocá-loemATentaçãodeSantoAntão.Pertenceaociclodascriaturasmágicasocultadorasdetesouros,tradiçãoquevemdesdeosmourose,aindamaisremotamente,doantigoOriente.Naslendasmaisantigas,oCarbúnculosódespertadecememcemanos,quandoapedraluminosacaidasuatesta.
CAVALO-MARINHO
OCavalo-marinhoémaisumadastantascriaturasemersasdorioAmazonas,umriotãopródigodelas.Aocontráriodamaioriadosseuscolegas,porém,estacriaturanãoéferoznemtemohábitodesairporaíexercitandoosseusdotessensuaisdeconquistador.
Seupeloéalvíssimo–umatestemunhaocularafirmaqueelepossuitantopelonasancas“queparecemumcolchão”–,esuacrina,assimcomoacauda,étecidadomaispuroouro.Osolhossãotristescomoosdoserhumano,enasuatestabrilhaumaestrela,quetambéménaturalmentedourada.
NossohipocampobrasileironãoestásubmetidoaNetunonemadeusalgum.Éumserdiscretoepacífico,queemergeevoltaparaaságuasdoAmazonasaseubel-prazer.
Segundoosestudiosos,oCavalo-marinhonãopodesercriaçãoindígenajáqueosnativosnãoconheciamocavaloatéachegadadosportugueses.Porém,incorporadorapidamenteàslendasnativas,oCavalo-marinhotornou-sepopularnasregiõesamazônicas,ondecontinuaafazersuasapariçõesfugazesmasinesquecíveis.
Ninguématéhojeconseguiuextrairumsófiodeourodasuacrinaoudasuacauda.
CHIBAMBA
OriundodeMinasGerais,oChibamba,emboraestejaassociadoàmitologiaindígena,temumnomequetraisuaorigemafricana(“chibamba”,nodialetobantu,éonomedeumamodalidadedecanto).
Sejacomofor,oqueprecisamossaberacercadestepersonageméqueeleéumsertodorecobertoporfolhasdebananeirasequesuafunçãoterrenaéadefazersossegaremascriançaschoronas.
Naverdade,talcomoacontececomaCucaeoBicho-Papão,oquefazcomqueascriançaschoronascessemoseuberreiroéaameaçadaapariçãodoChibamba,enãopropriamenteasuaaparição,coisaqueasfaria,certamente,redobrardeintensidadeasuaalaúza.
OChibambanãofalanemgrita,apenasroncacomoumporcoeseapresentaexecutandoospassosdadançaquedeuorigemaoseunome.
Osseusmeiosdeatuaçãosãodesconhecidos.Sabe-seapenasqueadorasaborearumacriançachorona,emborasuspeite-sequeistotambémnãopassedemaisumtruqueidealizadopelospaisparaveremseusfilhoscessaremoalarido.
CHUPA-CABRA
OChupa-CabraadquiriuumanotoriedadetãograndedesdeoseuaparecimentorecentenaregiãoSudestequeadquiriuodireitodefigurarnacondiçãodepersonagemfolclóricodestaedeváriasoutrascoletâneas.Nempoderiaserdiferente,jáqueofolclore,nãosendoalgocompletoeacabado,comosãoasmitologias,estásempreaptoagerarnovosseresenovaslendas.
Primeiroentesobrenaturaldofolclorebrasileiroatirarsuaorigemdeumavidaextraterrena–talcomoaentendemos,modernamente–,oChupa-Cabraaindaguardaemsiapurezaferozdosmitosrecém-criados,bastandoatentar-separaoseunomedesaborautenticamentebárbaro.
OChupa-Cabra,segundoacrença,éumseralienígenaferoz,oriundodealgumplanetadesconhecido.Possuiolhosvermelhos,trêsdedosdeunhasafiadaseascostascravejadasdeespinhos.Suamaiorpaixãopareceseradechuparosanguedascabrasoudeoutrosanimaismenores,comocãesegalinhas,atéprivá-losdavida.Poucomaissesabeacercadele,poisaindaestamosnaprimeirapercepçãobárbaradomito,dosermisteriosoeterríficoque,surgidoabruptamentederegiõesignoradas,parecenãoquereroutracoisasenãosaciarafomeedevastarimpunemente.Nessesentido,aindaguardaapurezadaBoiúnaedasserpentesaquáticassimilares,simplesmáquinasdematar,singelaseamorais.
Dequalquerforma,écertoque,comachegadadoChupa-Cabra,ofolclorebrasileirodáumsaltogigantescoparaofuturo.Apartirdele,osmonstrospassamacairtambémdoscéus,comoemergiamantesdaságuasedaterra,antigoseinesgotáveisviveirosdeaberrações,ampliandoextraordinariamenteaspossibilidadesdainvençãopoética.
CUCA
Espécieanômaladebruxa,aCucaéumapersonagemimportadadePortugaledaEspanha.NoBrasil,gozadegrandepopularidadegraças,emgrandeparte,àvelhacantigadeninarcomqueseapavoram,aindahoje,ascriançasdoBrasil(Nana,nenê,queaCucavempegar).
AversãomaisprosaicacostumaapresentaraCucacomoumavelhacorcundaemagérrima,cujoofícioprincipaléoderaptarascriançasqueserecusamadormir,enfiando-asdentrodeumsaco.
Existe,porém,umaversão,muitomaiscriativa,queenriquecesuafiguradedetalhesexóticos.Aquielaéapresentadacomoumaespéciededragão–oujacaré,comosevianosvelhosepisódiostelevisivosdoSítiodoPicapauAmarelo–,compernasesquálidasdegrilo,asasestendidaseumacaudaenorme.(NaGalíciaounoMinho,exibia-seumacriaturaidêntica,nasprocissõesdeCorpusChristi.)
Cuca,segundoosestudiosos,provémde“cabeça”,ou“coca”,docastelhanoantigo,umespectroquecostumava,nostemposidos,assombrarosniñosdelá.
CURUPIRA
TalcomooSaci,oCurupiraéumdospersonagensmaispopularesdonossofolclore.Apesardeter-seoriginadodealgunsmitosindígenas,aolongodotempoomolequedospésviradosfoiganhandopredicadosimportados,apontodetransformar-senumhíbridodeduendeeuropeucommitobrasílico.
Doistraçosseussãofundamentais,enãoháquemnãoosconheça:osjáreferidospésinvertidoseacabeleiravermelha,traçoaproximativoqueoligaaoSaci,comsuacarapuçadamesmacor.Existem,porém,outrascaracterísticasmenosconhecidas.Umadelaséofatodeelenãopossuirorifícioalgumnocorpo.
OCurupiraéumaespéciededuendeguardiãodasflorestas.Quandootempoestáparachuva,elecostumabatercomumbordãonostroncosdasárvoresparaalertá-lassobreachegadadastempestades.Outrosdizemqueéparaconfundirosintrusosdasmatas,tirando-lhesorumodecasa.
QuandoAnchietaeseusamigoschegaramaoBrasil,oCurupirajáeraconhecidopelasmatascomooterrordosíndios(apesardeprotegerafloresta,elenuncafoimuitoamigodossilvícolas,quelhedevotamgrandemedo)esóeraaplacadoemsuaperversidadeporgenerosasofertas.
Curupirasexistemportodoomundo,comváriosnomes.Ondehouverumafloresta,torna-seinevitáveloseusurgimento.Nummesmopaíselepodesurgircomváriasdenominações.ÉassimqueoCurupira,saindodaAmazônia,passaachamar-seCaiporaemoutrasregiões,sofrendo,nestaviagem,algumasrudesmutações.(EsteCaipora,ouCaapora,segundoalgunsestudiosos,éumbrutamontespeludomontadonumporco-do-mato,podendoser,também,umamegeraciumentacomosmesmosatributosdefiscaldacaça.)
Seutraçomaismarcante,ospésvirados,éumacaracterísticaclássicaextraídadosbestiárioseuropeus,queospadresportuguesestrouxeramnabagagemjuntamentecomTomásdeAquinoeSantoAgostinho.
Apesardehábilnasartesdeenganar,oCurupiratambémpodeserfeitodebobo.Sealguémestiversendoperseguidoporele,bastalargarpelocaminhoalgunscipóstrançados.Elenãoresisteaodesejodepararparadesfazê-los,umaum,situaçãoqueremete,outravez,aosvelhosmitos:Atalanta,emsuacorrida,temdepararpararecolherosfrutos
douradosqueorivalHipomenesdeixacairaochão.Mesclaquesejademitosindígenaseeuropeus,averdadeéqueo
Curupira,talcomootempoeopovooplasmaram,continuaaserumadasfigurasmaisqueridasdonossoimagináriocoletivo.
GORJALA
OGorjalaéumgigantetodopretooriundodoNortedoBrasil.Suafiguraestáassociadaàdosgigantestradicionaisdofabulário
universaleseconstituinumaespéciedePolifemooudeumGoliasbarrocamenteexacerbado,provavelmenteimportadoeaclimatadoàsnossasflorestas,jáquenossosíndiosnuncaforamapaixonadosporgigantes.
OpróprionomeGorjalaremeteàindumentáriamedievaleuropeia:gorjaleraumapeçadaarmaduradoscavaleirosandantes,destinadaaprotegeragarganta,ouagorja,comosediziaarcaicamente(“Mentespelagorja,vilão!”,eraumdosreptospreferidosdasvelhasgestasportuguesas).Dessaassociação,passou-seinevitavelmenteàimagemdeumsercomabocadesproporcional.
Elecostumaocultar-senasserrasenospenhascoscobertosdefraturaseescarpaspoisadora,nosseusmomentosdeação,empreenderlongascaminhadassobreosabismoseosprecipícios,vencendo-osemlargaspassadas,comosenadafossem.
Espéciedeguardiãoancestraldasflorestas,temfunçãosimilaràdamaioriadosseuscolegasdeofício,queéadeperseguiratéamorteosinvasoresdosseusverdesdomínios.
TalcomooMapinguari,oGorjalatemohábitohorripilantedeenfiarasuapresadebaixodosovacoeircomendo-aaospedacinhos.Estapresaégeralmenteumcaçadorextraviado,eseusgritoslancinantessoamparaonossocolossodeébanocomoocantoharmoniosodamaisafinadadasaves.
IARA
IaraéumadeturpaçãopseudoindigenistaquesefezàfiguradaCobra-Grande,umdosmitosfluviaismaisimportantesdaAmazônia.TambémchamadadeMãe-d’Água,elaassumiuquasetodasascaracterísticasdeumasereia,chegandoaserapresentada,muitasvezes,comoraboescamadodelas.
OmitodoIpupiara,umhomem-marinhoquesaíadaságuasparamatarosíndios,parecetambémterexercidoinfluêncianaconformaçãooriginaldaIara.Criaturassaindodedentrodaságuasparaespalharadevastaçãoéumaconstantenoimaginárioindígena.Osacréscimosfantásticos,porém,comocantoriaslúbricaseofertasdetesourosocultosparaatrairasvítimas,sãosempredesenvolvimentosposteriores,frutodamiscigenaçãooperadaentreomitoindígenaeaslendastrazidaspelocolonizadoreuropeu.
Demodogeral,aIaraéapresentadacomoumacriaturaloiraedeolhosacintosamenteazuis(emboraalguémtente,vezporoutra,dar-lheaspectosindígenas,ateimosiapopularretrocedesempreaopadrãoclássicodamulher-peixedetraçosgermânicos).Dotadadevozmaviosa,écomseucantoarrebatadorqueasereiatentaatrairoscaboclosparaofundodaságuas,ondehabitaumcastelosubmersorepletoderiquezas.
Écertoqueatradiçãodasmourasencantadas,guardiãsdetesourossubmersosouescondidosemgrutas,popularíssimaemPortugal,tambémexerceugrandeinfluênciasobreanossaIara.
Tambémnãosepodeesquecerainfluênciaafricana:IemanjáeOxum,divindadesaquáticas,nãoraroseapresentamsobafigurademulheresdecorbrancaevestesvaporosamenteazuis,queremetem,deumaformaoudeoutra,àfiguraobsessivadasereia.
IPUPIARA
SeformosdarcréditoaumcertoBaltazarFerreira,oIpupiara,monstromarinhodevoradordegente,deixoudeexistirem1564.Essesenhorafirmacategoricamentetermatadoomonstro,aespada,nalocalidadedeSãoVicente,naqueledistantealvorecerdanacionalidade.
Paranãodeixardúvida,eledescreveacriaturacomotendo“quinzepalmosdecomprido”,todarecobertadepelos,alémdeternofocinho“umassedasmuigrandescomobigodes”.
JosédeAnchieta,sempreinteressadonosdisfarcesdodemo,tambémouviufalarnosermonstruoso,emborajamaisotenhavisto,emuitomenoslutadonumcorpoacorpocomele.
OIpupiara,segundoomelhorentendimento,pertenceàclassedosseresmarinhosdevastadores,comoaCobra-GrandeeaBoiúna.Semserumacobra,eleparticipadamesmaespécienamedidaemquesetratadeumasimplesmáquinadematar,apesardoepítetoquelheaplicaramde“homem-marinho”.
UmtraçosingularéqueoIpupiara,depoisdevirarosbarcosouascanoas,sósealimentadosolhosedonarizdassuasvítimas,lançandoforatodooresto.(Umcronistamaisantigo–opadreFernãoCardim–afirmaqueoIpupiaratambémsealimentavadagenitáliaedaspontasdosdedosdospésedasmãosdassuasvítimas.)
OIpupiarapossuifêmea,também,segundoessemesmocronista,decabeloslongoseformosa,umapossívelantecipaçãodaIaraloiracomfeitiodesereia,quetantosucessoaindafaria.Paraessepadre-cronista,ohomem-peixematadaseguintemaneira:surgidoabruptamentedaságuasremansosas,eleseabraçaàsuavítima,numespaventoderespingos,“beijando-a”tãofortementequeadeixa“todaempedaços”.Depois,dando“algunsgemidos,comodesentimento”,fogecomapresa,ouabandona-a,semmesmodelasealimentar.
Assimcomomata,porém,oIpupiaratambémpodesermortodequalquermaneira,oquenoslevaadaralgumcréditoàpretensafaçanhadosr.BaltazarFerreira.
JURUPARI
Segundoosprimeiroscolonizadoresportugueses,antesmesmodeeleschegaremaoBrasiloDiabojáreinavacomplenasoberaniaemtodasasnossasmatas.DisfarçadosobopseudônimodeJurupari,eraelequemarrastavaparaoinfernoossilvícolas,algoquesócomeçouaterfimquandoCabraldesembarcouemnossaspraiastrazendoconsigoaCruzRedentora.
Segundoamaioriadasversõesindígenas,oJuruparié,defato,umaentidademaléfica,cujoâmbitodeaçãoprediletoéopesadelo–segundoalgumasfontes,seupróprionome,Jurupari,significa“oquevemaoleito”–,oquenãoimplicadizerqueelesejanecessariamenteoDiabodoscristãos.
ExisteumasegundaversãoquecolocaoJuruparicomoumaespéciedelegisladordivinobenéfico.Segundoessamesmaversão,JurupariseriafilhodoSoledeumavirgem,tendovindoaomundocomamissãodeprocurarumaesposaparaopai.
MasaversãomaispopularcontinuaasituaroJuruparicomoumdeusmaléfico,antítesedeTupã,espéciedeespíritodotrovão,queosjesuítastambémfalsearam,transformando-onoDeusdocatecismo.
Quantoaoseuaspecto,ninguématéhojesepreocupouemlhedarumaformaprecisa.Algunsilustradoresmodernos,nafaltadedadosmaisprecisos,costumampintá-locomoumsercobertodefolhasoudeflores,umavezqueeleprovémdasprofundezasdasmatas.
Comoquasetudo,porém,nasflorestasestáassociadotambémàsaves,Juruparinãoescapoudeterumaligaçãoestreitacomelas.Ostupinambás,porexemplo,acreditamqueelemantinharelaçõessexuaisfrequentescomcertasavesdemauagouro,equeelasdepoischocavamosseusovos.
LABATUT
Casoraríssimodeentidademonstruosaderivadadeumserhumanorealeplenamenteidentificável,oLabatutéumahomenagemqueonossofolcloreprestouaumadasfigurasmaisviolentasquejápisaramonossosolo,ogeneralfrancêsPierreLabatut,oficialdeNapoleão.
Antesdemorrereconverter-seemmonstro,Labatutexerceudiversoscargosnacortebrasileira,aindasoboreinadodeD.PedroI.Dentreoutrasmissões,LabatuttomoupartenaschamadasGuerrasdaIndependência,naBahia,alémdeterchefiado,posteriormente,umaexpediçãodesastradaaoRioGrandedoSul,duranteaGuerradosFarrapos.
Muitossoldadosqueserviramsoboseucomandosofrerammaus-tratos,detalformaque,pormaisdeumavez,omilitarfrancêsviu-seobrigadoaenfrentaredebelarrebeliões.
Segundoodepoimentodosseuscontemporâneos,Labatutpossuíacaracterísticasfísicasexacerbadasquejáprenunciavamomonstrodofuturo:tamanhoagigantado,pésenormeseavozretumbante.
MasfoisódepoisdemortoqueLabatutfoiconvertidopelaimaginaçãopopularnumenteferoz,consideradomaisperigosodoqueopróprioLobisomem.
Segundoosmaisfidedignosestudiososdoassunto,oLabatutéumogrodeporteavantajadoecabeloscompridosedesgrenhados.Seucorpoestácobertodeespinhostãodurosquantoosdoporco-espinho,eseuspéssãoredondoscomoosdeumelefante.Nesseúltimoaspecto,eleguardaumasimilitudeevidentecomosinistroeinformePédegarrafa,umadascriaçõesmaissutilmentesurreaisdonossopanteãonacionaldemonstros.
Seurostoemolduradopelasgrenhasrevoltassedestaca,acimadetudo,peloúnicoolhoquetemfincadonocentrodatesta,emboraaspresaslongaseaguçadasquelheescapamdosdoiscantosdabocaexerçam,numsegundomomento,umimpactoaindamaisdilacerantesobreassuasvítimas.
LabatutmoraemumaregiãosituadaentreoCearáeoRioGrandedoNorte,ealiviveemestadodefomepermanente.Seualimentoprediletosãoascrianças,esuamaneiradeatacarésutileinsidiosa.Labatutpreferecolaroouvidonasportasouintroduziroseuolhopeloburacodafechaduraantesdeefetuaroataque.
LOBISOMEM
OLobisomemdispensamaioresapresentações.Nãoháquemnãooconheçadassuasterrificantesapariçõescinematográficasouliterárias:ohomemtransformadoemloboque,nasnoitesdeluacheia,saiparaabastecer-sedasuaraçãoregulardesanguehumano.
Há,contudo,algunsdetalhescuriososquepoucosconhecem.Porexemplo:queocaçuladeumafamíliadesetefilhoshomensserá,
infalivelmente,umlobisomem,assimcomoasétimafilhadeseteirmãsestáfadadaaserbruxa.Diz-se,também,queaosofrerodesencanto,bemnahoraemqueogalocanta,ohomem-lobopodedeixardefinitivamentedeserlobo,bastandoquealgumcorajosotire,nestahoramágica,umpoucodoseusangue.
OLobisomem,naverdade,éumserimportadodasregiõeseuropeiasondeolobo,muitomaisdoqueaqui,abundaportodasasflorestas.(Nãoseconhecenasnossaslendasindígenasalgumsilvícolaque,nasnoitesdeluacheia,tenhaviradoloboparairsaciarasuasededesanguehumano.)
Enquantonãoviralobo,eleseapresentasemprecomoaspectodeumhomemmagérrimo,detezamareladaeaspectodoentio.
Àsvezes,nosfundõesdoBrasil,onossocaipiratrocaolobopeloporco,maisbrasileiro.No“InquéritodoSaci”promovidoporMonteiroLobato,em1917,háodepoimentodeumsenhorquejuratervistoumhomemtransformar-seemumporco“calçadodebotinas”esairporaíacomersabãoelambertachosdegordura.Aindaassim,odepoentepersisteemchamá-lodeLobisomem.
Nãoexistemulher-lobisomem.Omáximoqueseconseguiu,nessesentido,foramaproximaçõesinócuas,comoaMulasemCabeçaouaCachorradaPalmeira.
LOIRADOBANHEIRO
Outrainvençãorecentíssima,emtermosfolclóricos.JuntocomoChupa-Cabra,aintriganteLoiravemacrescentarnovosecuriosíssimoselementosaofolcloreurbano,estapartetãonegligenciadapelosestudiososacadêmicosdoimagináriooralepopular.
Masqueméessafigura?ALoiradoBanheiro,comoopróprionomediz,éumaentidade
misteriosa–possivelmenteumespectro–quetemseuhabitatnaturalnosbanheirospúblicos,preferencialmenteosescolares.
TambémchamadadeMulher-Algodão,pelofatodeterabocaeasnarinasentupidasdealgodão,elacostumaaparecernosbanheirosfemininossemprequealgumafrequentadoradesavisadaesolitáriaaliseintroduz(elanuncaapareceamaisdeumapessoaejamaistornacategóricaasuaexistência).
AsvestesdaLoirasãobrancas,decertoparamisturar-semaiseficientementeaosladrilhoseàslajotas.
Háummeioconsideradoinfalívelparainvocá-la.Assim,todagarotaquequisertravarumconhecimentomaisíntimocomaLoiradeveráentrarnaúltimacabinedobanheiroepuxaradescargaportrêsvezes,dizendosolenemente:“Loiraum,Loiradois,Loiratrês!”.Oporquêdastrêsrepetiçõesnãosesabe.
Quandoainvocaçãoéfeitacomsucesso,diz-sequeaLoirasurgerefletidanoespelho,tentandoatrairparadentrodeleasuavítima,afim,decerto,depovoarasuasolidão.
Suapresença,porenquanto,estárestritaaSãoPauloeaoCentro-Sul.
MAPINGUARI
CriadoAmazonas,oMapinguariéumdosmonstrosmaisoriginaisdanossaextravagantegaleria.Asdescriçõesacercadelevariammuitopoucodeautorparaautor,demodoquepodemostraçarumquadrorazoavelmentesegurodassuasexorbitânciasfísicas.
Suaformabásicapareceseradeumgrandemacaco.Ummacaconaturalmentepeludo,masnãointeiramente,jáqueelenãopossuipeloalgumnaregiãodoumbigo.Este,aliás,éoseucalcanhardeAquiles,poisumMapinguarisópodesermortoseforatingidonesselocal.
Logoacimadoumbigo,maisexatamentenaalturadoestômago,ficaasuaboca.Parafecharoquadrodasdescrições,éprecisodizer,ainda,queelepossuiumpardecascosdeburrovoltadosparatrás.(DaíaorigemdoseunomeindígenaMapinguari,ouseja,“aquelequetemospésvirados”.)
Quantoàsrefeições,oMapinguaricostumafazê-lasduranteodia,preferencialmenteporocasiãodopôrdosol.Antes,porém,quecaiamosnatentaçãodeenxergaraquialgumlirismoecológico–acriaturagenuinamentenacionaladevoraroseuhonestorepastoàluzdodeslumbrantecrepúsculoamazônico–,saibamosdesdejáquenós,sereshumanos,somososeupratopredileto.
Umdetalheimportante:oMapinguarisócomeacabeçadaspessoas.Osantropólogosnãodescartamapossibilidadedehaveraquialgum
simbolismopsicológicoancestraldotipo“aíestáoqueacontecequandoosujeitovirabichoeperdeacabeça”–,masomaisprovávelmesmoéqueoMapinguarisimplesmentegostedecomercérebro.
MULASEMCABEÇA
Nãoháquemnãosaiba,portodosestessertõesdoBrasil,quemulherquesecasacompadre,cedooutarde,viraMulasemCabeça.
Essaéagêneseclássicadeumadascriaturasassombrosasmaispopularesdoimagináriobrasileiro.Asuacontrapartidamasculina,oCavalosemCabeça–ouseja,ohomemquesecasacomumafreira–,nemdelongegozoudamesmapopularidade,comprovandootriunfodopreconceitomachista.(OBrasilpareceserumdospoucoslugaresdomundoondeatransformaçãodamulheremmulaououtroanimalqualquerestáassociadadiretamenteaumapuniçãomoral.)
Apesardenãopossuircabeça,nolugarondeeladeveriaestarpode-sever,nasnoitesapavorantesemqueacriaturasurge,oexpeliriradodejatosdefogo.Alémdelançarfogopelasventasinvisíveis,elarelinchademaneiramilvezesmaisaudíveldoqueumamulanormal.
Outrodetalhenotáveléofatodeelacarregarnopescoçoimaginárioofreiodeferro.Quemconseguirarrancá-lo,quebraofeitiço,voltandoaternosbraçosamulheroriginal.Antes,porém,detentaraproeza,éprecisotomarocuidadodeesconderbemasunhaseosdentes,pois,poralgumarazão,elaodeiaestasduascoisas.(Háquemdigaqueelasealimentadessasduascoisas,pormaisabsurdoquepareça.)
Suaspatadassãomortíferas,eseugalope,quaseimpossíveldeserdetido,daíarazãodeninguémaindaterconseguidoextrair-lheofreioorladodesanguedosdentesinvisíveis.
Opelo,segundooentendimentodamaioriadosestudiosos,énegro.Àsvezes,acrescentam-lhe,porornato,umacruzdecabelosbrancos,paraevidenciarasuaorigemsacrílega.Jáoraboéumaespéciedefaroltraseiro,reluzindonanoitecomoumfachodeluz.
AMulasemCabeçanosveiodePortugalearredores.Arazãodeoanimalserumamulapareceseradequeospreladoscostumavamseguir,emsuasandançaspiedosas,trepadosnumamula,montariaidealparavencerterrenosacidentados.
PAIDOMATO
OPaidoMatoéumacriaturadonossofolclorequelembramuitoodeusPãdosgregosou,maismodernamente,osents,aquelesguardiõesdasflorestascomformatodeárvoreecaradegente.
OPaidoMatoémaiordoquequalquerárvoreconhecida,andatododespenteado,possuiumabarbicha,orelhasdecavaloepatasdecabrito.Suacoloraçãoéamesmadeumporcopretoenlameado,esuaurinapossuiumatonalidadesurrealmenteazul.
Masoseutraçomaismarcanteé,semdúvidaalguma,otamanhodisparatadodassuasunhas,quepodemalcançaratédezmetrosdecomprimento,emborasuafinalidadepareçasermeramenteornamental.
AexemplodoMapinguari,eletemoseupontofraconoumbigo,queanatureza,poralgummotivoabsurdo,resolveudestacarcomumcírculo,tornando-o,assim,umalvoperfeitoparaamiradoscaçadoresoudequalquerumqueseanimeaenfrentá-lo.(Nãoestádescartada,contudo,apossibilidadedetratar-sedealgumaartimanhanaturaldestinadaaatrairapresunçãodooponente,jáque,segundoacrençaarraigada,nembala,nemfacaomatam.)
OPaidoMatoébarulhentocomoamaioriadosnossosmonstros,sóqueadoratambémgargalharestentoreamente,sabe-seládoquê.
ÉorigináriodePernambucoedeRondônia.
PISADEIRA
OestadodeSãoPauloeosarredoresdeMinasGeraissãoasduasregiõesondeaPisadeira,estaverdadeiracriadanoite,costumasurgirparaespalharoseucortejohorrendodepesadelos.
HojeécoisafirmadaentreoseruditosqueaPisadeiraéummitoimportadodePortugal,comnomeetudo.Masnãoéexclusivodelánemdelugaralgum,poisdesdesempreospovosseacostumaramàpresençaincômodadessesermaléfico,cujadistraçãoprediletaéadesentar-sesobreoestômagodoadormecido,impedindo-lhearespiração.
Versãopopulardosdemôniosnoturnos,aPisadeiraéumaalegoriaevidentedaindigestão,moléstianoturnaqueainsaciávelfantasiahumanadotoudecausassobrenaturais.(Nãoéporacasoqueapalavrapesadeloprovémde“peso”.)
OlocalpreferidodaPisadeirasãoostelhadoseaschaminés,porondeelaseintroduzlogonocomeçodanoiteparadarexercício,maistarde,àssuasatividadesnoturnasdeperturbadoradosono.
Prima-irmãdoFradinhodaMãoFurada–tambémesteumentegenuinamenteportuguês–edonossobrasileiríssimoJurupari,ambosversadosnasartesdopesadelo,aPisadeiratemasfeiçõesclássicasdabruxa:narizaduncocutucandooqueixoapontadoparacima,osolhoschispanteseasgadeiasesparramadas.Apesardemagricela,elasabebemfazer-sepesarquandoseacocorasobreoestômagodasuavítima(algoquefazcomperfeitanaturalidade,jáquepossuiaspernascurtas).
OutroatributofundamentaldaPisadeirasãoassuasmãosenormes,dededosaduncoseunhasafiadas.Quandoelapousaessasverdadeiraspatasdemegerasobreoestômagodoglutãoadormecido,éaíentãoqueprincipiaparaeleomartírionoturno.
Masacoisapodeseraindapior:quandoaPisadeiraquermesmoatrapalharavidadasuavítima,elalhepressionaoestômagocomfirmezaaindamaior,afimdeprovocarumvômitoque,pelaposiçãodoadormecido,podelevá-loatéamorteporsufocação
Namaioriadasvezes,porém,apósdebater-seumanoiteinteira,omaisterrívelquepodesucederaocomilãooubeberrãoimprudenteéacordarnamanhãseguintecomasfacesarranhadaspelasunhasaduncasdademôniaeumbelopardeolheiras.
PRINCESADEJERICOACOARA
AexemplodaAlamoaedasMãesdoOuroespalhadasportodooBrasil,aPrincesadeJericoacoaraéoutracriaturadaestirpedasprincesasencantadas,guardiãsdetesourosemgrutasoucavernas,quetantosucessofizeramemPortugal,naversãodasmourasencantadas.
HabitantedoCeará,elatemsuamoradanacidadequeaimortalizou,Jericoacoara.Porartesdealgumfeitiço,aprincesa,outrorabelaedeslumbrante,estáagoratransformadanumaserpente.Felizmente,suacabeçapermaneceamesmadosseusdiasdebeleza,bemcomoosseuspés.
Paradesencantá-la,éprecisoacoragemdeumhomemdeverdade,dispostoaomartírio,poissomentecomosacrifíciodeumavidahumanaelapoderáretomarsuaantigaforma(quesefaçaumsinaldacruznodorsodacobracomosanguedosacrificadoéoquebastaparaodesmanchedofeitiço).Entãoestarãoabertos,comopormágica,osportõesdagrutaondeseocultaopalácioesplendorosodaprincesa,repletodetodasasriquezasconcebíveisdestemundo.
Ariqueza,entretanto,seráparaosoutros,nãoparaoheróiabnegado,aquemcaberáapenasahonraeternadeterliberadoamaislindadasprincesasdoseufadoinfeliz.
QUIBUNGO
OQuibungoéumdospersonagensmaisassustadoresdonossofolclore,emboratambémnãosejacriaçãonativadasterrasbaianas,ondecostumaatuar,masumaadaptaçãodoantiquíssimoVelhodoSacoedeoutrospersonagensassemelhados,espalhadosportodoomundo.(OHomemdoSurrãoportuguêspareceseroseuprotótipomaispróximo.)
Seunomedenuncialogoasuaorigemafricana,poisQuibungosignifica“lobo”.
Aocontráriodamaioriadosnossosmonstros,oQuibungovivenoscamposaoinvésdenasmatas.Eleéumamisturadegenteedebicho,pendendomuitomaisparaosegundo.
Esseraptordemoleques,noentanto,nãocarregaconsigoumsacoouosurrãolegitimamentelusitano(umaespéciedebolsaousacoladecouro)paraenfiarassuasvítimas.Aocurvar-separaapanhá-las,umafendaenormeabre-senassuascostas,eénessacavernalombarqueeleasintroduz.Oburacotornaafechar-senaturalmentequandoeleespicha-setodooutravez.
Realmente,demetermedo.Descreve-senormalmenteesseserhediondocomoumaespéciede
lobisomemou,maishabitualmente,comoumpretovelhomaltrapilho.Felizmente,oQuibungo,àdiferençadasoutrascriaturas
monstruosas,podesermortocomoqualquerhomemnormal.
SACI-PERERÊ
OSaci-pererêdisputa,juntocomoCurupira,otítulodepersonagemmaisfamosodonossofolclore.SuafiguraéconhecidaemtodooBrasil,mesmonasregiõesondeeleémenos“cultuado”.
MasnemsempreoSaciteveafiguraquehojeconhecemos.Desdeasuaprimeiraversão,elesofreuumasérieradicaldealteraçõeseacréscimos,atétransformar-senaversãobrasileiradosgnomoseduendeseuropeusquehojeconhecemos.
AversãomaisautenticamentenacionaldoSaciéaindígena,queoapresentacomoumasimplesave.(Matintapereiraéumadasdiversasavesàsquaisseatribuiagênesedomito,masexistetantacontrovérsiasobreoassuntoquepodemosestarcertosdejamaisvirmosasaberaverdade.)
Segundoacrença,essaavemisteriosatemporhábitofazercomqueosviajantessepercamnafloresta,graçasaopoderdoseucantoenganador–oquetambémnãoénenhumanovidade,jáque,espalhadasportodaaAméricaLatina,abundamavessimilares,apontodemuitasdelastambémteremseconvertido,comopassardosanos,emclonesdonossoSaci(oCrispinargentino,ouoEcacoboliviano–comgorrovermelhoetudo–sãoapenasdoisexemplaresdaenormelistaqueseestendedaArgentinaaoMéxico).
Àmedidaqueomitodesceparaocentro-suldoBrasil,elevaisetransformando,porforçadainfluênciaeuropeiaeafricana,atéseconverternomolequequehojeconhecemos.
SegueumabrevedescriçãodoSaci:OSaciéummolequedeumapernasó–muitoraramente
apresentadocomduas–eaparecegeralmentenu,portandoapenasumacarapuçavermelhanacabeça.(Acarapuçamágicaéumelementoimportadodeseusprotótiposeuropeus–osanõeseduendestambémpossuemgorrosencantados,capazesdeoperarprodígios–,emboraalgunsnacionalistasinveteradosqueiramvernacarapuçaumameraadaptaçãodacabeleiravermelhadocurupira,sematentarparaofatodequetambémonossomolequedospésinvertidosestárepletodetraçosalienígenas.)AlémdetornaroSaciinvisível,acarapuça,umavezarrancadadasuacabeça,temodomdepremiaroladrãocompedidosmágicos.
OSaciépersonagemtraquinasporexcelência:alémdeextraviarviajantesedepromovertodasortedebagunçasnolar,gostamuito
tambémdemontaremcavalosepromoverdisparadasnoturnas,fazendoumamaçarocanascrinasdosbichos.Fumafeitoumcondenadoeperdeasestribeirascomtodoviajantequeserecusaareabasteceroseucachimbo.Andainvariavelmentenointeriordeumredemoinhoepodeserapanhadoseocaçadordesacisatirar,bemnomeio,umapeneirainvertida,trançadaemformadecruz,ouumterçoouumrosáriodecapim.Algunstambémoapresentamcomasmãosfuradas,outrodetalheimportado,retiradodoseuprotótipoportuguês,oFradinhodaMãoFurada,primo-irmãodaPisadeiraedeoutrasentidadesmaléficasdopesadelo.(Asmãosfuradassãoparaimpedirqueavítimamorrasufocadaduranteassuasinvestidasnoturnas.)
TUTU
IrmãodoBicho-PapãoedoBoidaCaraPreta,oTutuéumacriaturatodanegra,semter,porém,formadiscernívelalguma.(ApalavraTutu,segundoCâmaraCascudo,provémdotermoafricanoquitutu,quesignifica“ogro”ou“papão”.)
ApesardenãosertãopopularquantooBicho-Papão,quechegouavirartermoproverbial,oTutuésenhordosterroresnoturnosinfantisnaBahia,emPernambuco,noRiodeJaneiroeemMinasGerais.
Existemváriasmodalidadesdacriatura,dasquaisamaissingularéadoTutu-zambê,que,alémdenãopossuirforma,nãopossuitambémacabeça.NaBahia,porsuavez,oTutudeixadeserumamerasombraparaassumiraformaexplícitadeumporco-do-mato,graçasàsemelhançadostermostutuecaititu.(Ocaititu,ouqueixada,éumaespéciedeporcoselvagem,montariaprediletadoCaiporanortista.)
Segundoacrença,oTutupersegueascriançasarteirase,principalmente,aquelasquenãoqueremdormir.Omito,segundoCâmaraCascudo,éimportadodaEuropaedaÁfrica.Nossasmãesindígenas,aocontrário,preferiaminvocar,numaadmirávelliçãodedelicadeza,oauxíliodospássarosouanimaisdesonoprolongado,afimdequeoemprestassemaseusindiozinhosinsones.(Acatipuru,emprestateusono/parameufilhodormir.../Iacuturu,emprestateusono/parameupequenofilhodormir...,diz,comonumaoração,osuaveacalanto.)
ZUMBI
OZumbiéoutracriaçãobrasileiracalcadanotipouniversalmenteconhecidodomorto-vivo,emboraaquielesejaumfantasmaincorpóreo,enãoumcadáverteleguiado,comoestamosacostumadosavernasrecorrentesversõescinematográficas.Apesardisso,tornou-sequaseimpossíveldissociaraimagemdeumedeoutro,detalformaque,namentalidadepopular,osdoispersonagenstornaram-sesósias.
Naversãobrasileira,porém,oZumbiémais“elétrico”egostadedarsustonaspessoas,enquantoomorto-vivodosfilmes,mesmoquandoestáempenhadoemestraçalharematar,ofazmergulhadonumestadodeapatiacatatônica.
Zumbiacaboutornando-seemblema,também,domaiorheróinegrodanossanacionalidade,oguerreiroZumbidosPalmares,quenadatinhadeapático.
Dizanossacrendice–eesteéumtraçorealmenteoriginaldonossoZumbi–que,quantomaispertoavítimaestádele,maiselecresceemestatura,inclinando-separadiantedeumaformasinistra.
Graçasàorigemafricanadotermo–nzumbi,“fantasma”–,oZumbiénormalmentevistocomoumhomemnegro,masnadaimpedequepossamosverpasseandopelasnossasmatasecidadesversõesétnicasmaisclarasdoseramedrontador.
AfamadoZumbiémaisconsistentenosestadosdaBahia,doRio,deMinasedeSergipe.
FIM