10.2.1 os desafios do pacto de lausanne na atualidade

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Os Desafios do Pacto de Lausanne para a Igreja Hoje Júlio Paulo Tavares Zabatiero Introdução Lausanne foi um marco para o movimento evangélico. O ano de 1974 ainda ressoa em nossos ouvidos de forma viva e relevante. Foi um marco e o início de uma instigante e evangélica jornada, cujos pontos de descanso foram as conferências pós-Lausanne realizadas em diversos lugares do mundo, como a de Manila, por exemplo, e como os Congressos Latino-americanos de Evangelização (CLADEs) e os Congressos Brasileiros de Evangelização (CBEs). Este ensaio visa reler o Pacto de Lausanne à luz dessa imensa jornada já realizada a partir dele, ainda que com um olhar bastante específico, a partir de uma perspectiva brasileira, sulista, reformada e acadêmica. Não vejo necessidade de apresentar, introdutoriamente, um arrazoado que justifique a relevância do Pacto de Lausanne para nós hoje e, conseqüentemente, deste capítulo do livro. Convido você a ler o texto a seguir, juntamente com o texto do próprio Pacto, que tornarão evidentes a atualidade e relevância da reflexão aqui encetada a pedido dos organizadores deste livro. Estas reflexões são apresentadas como um convite à leitura e reinterpretação do Pacto de Lausanne, e não como um guia para tal empreitada. São apenas uma das vozes no amplo diálogo que deve existir entre nós sobre a natureza e missão da igreja enquanto povo de Deus evangélico no mundo contemporâneo. Uma voz que convida a ouvir, mas, principalmente, a repercutir os sons aqui expressos de forma silenciosa. 1. Lausanne e a identidade evangélica em um mundo relativista (arts. 1-3.15) Uma das importantes realizações do Pacto de Lausanne foi a de estabelecer alguns dos principais contornos doutrinários da identidade evangélica ou, como alguns preferem chamar, evangelical. A meu ver, são quatro os artigos em que aspectos doutrinários são abordados, de forma segura e bastante abrangente, os quais permitiram que a rica diversidade de experiência de vida cristã e de doutrinas eclesiásticas não se tornasse

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Page 1: 10.2.1 Os Desafios Do Pacto de Lausanne Na Atualidade

Os Desafios do Pacto de Lausanne para a Igreja Hoje

Júlio Paulo Tavares Zabatiero

Introdução

Lausanne foi um marco para o movimento evangélico. O ano de 1974 ainda ressoa em nossos ouvidos de forma viva e relevante. Foi um marco e o início de uma instigante e evangélica jornada, cujos pontos de descanso foram as conferências pós-Lausanne realizadas em diversos lugares do mundo, como a de Manila, por exemplo, e como os Congressos Latino-americanos de Evangelização (CLADEs) e os Congressos Brasileiros de Evangelização (CBEs). Este ensaio visa reler o Pacto de Lausanne à luz dessa imensa jornada já realizada a partir dele, ainda que com um olhar bastante específico, a partir de uma perspectiva brasileira, sulista, reformada e acadêmica.

Não vejo necessidade de apresentar, introdutoriamente, um arrazoado que justifique a relevância do Pacto de Lausanne para nós hoje e, conseqüentemente, deste capítulo do livro. Convido você a ler o texto a seguir, juntamente com o texto do próprio Pacto, que tornarão evidentes a atualidade e relevância da reflexão aqui encetada a pedido dos organizadores deste livro. Estas reflexões são apresentadas como um convite à leitura e reinterpretação do Pacto de Lausanne, e não como um guia para tal empreitada. São apenas uma das vozes no amplo diálogo que deve existir entre nós sobre a natureza e missão da igreja enquanto povo de Deus evangélico no mundo contemporâneo. Uma voz que convida a ouvir, mas, principalmente, a repercutir os sons aqui expressos de forma silenciosa.

1. Lausanne e a identidade evangélica em um mundo relativista (arts. 1-3.15)

Uma das importantes realizações do Pacto de Lausanne foi a de estabelecer alguns dos principais contornos doutrinários da identidade evangélica ou, como alguns preferem chamar, evangelical. A meu ver, são quatro os artigos em que aspectos doutrinários são abordados, de forma segura e bastante abrangente, os quais permitiram que a rica diversidade de experiência de vida cristã e de doutrinas eclesiásticas não se tornasse

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um empecilho para a cooperação e a unidade do mundo evangélico. São esses os artigos:

1. O Propósito de DeusAfirmamos a nossa crença no único Deus eterno, Criador e Senhor do Mundo, Pai, Filho e Espírito Santo, que governa todas as coisas segundo o propósito da sua vontade. Ele tem chamado do mundo um povo para si, enviando-o novamente ao mundo como seus servos e testemunhas, para estender o seu reino, edificar o corpo de Cristo, e também para a glória do seu nome. Confessamos, envergonhados, que muitas vezes negamos o nosso chamado e falhamos em nossa missão, em razão de nos termos conformado ao mundo ou nos termos isolado demasiadamente. Contudo, regozijamo-nos com o fato de que, mesmo transportado em vasos de barro, o evangelho continua sendo um tesouro precioso. À tarefa de tornar esse tesouro conhecido, no poder do Espírito Santo, desejamos dedicar-nos novamente.2. A Autoridade e o Poder da BíbliaAfirmamos a inspiração divina, a veracidade e autoridade das Escrituras tanto do Velho como do Novo Testamento, em sua totalidade, como única Palavra de Deus escrita, sem erro em tudo o que ela afirma, e a única regra infalível de fé e prática. Também afirmamos o poder da Palavra de Deus para cumprir o seu propósito de salvação. A mensagem da Bíblia destina-se a toda a humanidade, pois a revelação de Deus em Cristo e na Escritura é imutável. Através dela o Espírito Santo fala ainda hoje. Ele ilumina as mentes do povo de Deus em toda cultura, de modo a perceberem a sua verdade, de maneira sempre nova, com os próprios olhos, e assim revela a toda a igreja uma porção cada vez maior da multiforme sabedoria de Deus.3. A Unicidade e a Universalidade de CristoAfirmamos que há um só Salvador e um só evangelho, embora exista uma ampla variedade de maneiras de se realizar a obra de evangelização. Reconhecemos que todos os homens têm algum conhecimento de Deus através da revelação geral de Deus na natureza. Mas negamos que tal conhecimento possa salvar, pois os homens, por sua injustiça, suprimem a verdade. Também rejeitamos, como depreciativo de Cristo e do evangelho, todo e qualquer tipo de sincretismo ou de diálogo cujo pressuposto seja o de que Cristo fala igualmente através de todas as religiões e

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ideologias. Jesus Cristo, sendo ele próprio o único Deus-homem, que se ofereceu a si mesmo como único resgate pelos pecadores, é o único mediador entre Deus e os homens. Não existe nenhum outro nome pelo qual importa que sejamos salvos. Todos os homens estão perecendo por causa do pecado, mas Deus ama todos os homens, desejando que nenhum pereça, mas que todos se arrependam. Entretanto, os que rejeitam Cristo repudiam o gozo da salvação e condenam-se à separação eterna de Deus. Proclamar Jesus como "o Salvador do mundo" não é afirmar que todos os homens, automaticamente, ou ao final de tudo, serão salvos; e muito menos que todas as religiões ofereçam salvação em Cristo. Trata-se antes de proclamar o amor de Deus por um mundo de pecadores e convidar todos os homens a se entregarem a ele como Salvador e Senhor no sincero compromisso pessoal de arrependimento e fé. Jesus Cristo foi exaltado sobre todo e qualquer nome. Anelamos pelo dia em que todo joelho se dobrará diante dele e toda língua o confessará como Senhor.15. O Retorno de CristoCremos que Jesus Cristo voltará pessoal e visivelmente, em poder e glória, para consumar a salvação e o juízo. Esta promessa de sua vinda é um estímulo ainda maior à evangelização, pois lembramo-nos de que ele disse que o evangelho deve ser primeiramente pregado a todas as nações. Acreditamos que o período que vai desde a ascensão de Cristo até o seu retorno será preenchido com a missão do povo de Deus, que não pode parar esta obra antes do Fim. Também nos lembramos da sua advertência de que falsos cristos e falsos profetas apareceriam como precursores do Anticristo. Portanto, rejeitamos como sendo apenas um sonho da vaidade humana a idéia de que o homem possa algum dia construir uma utopia na terra. A nossa confiança cristã é a de que Deus aperfeiçoará o seu reino, e aguardamos ansiosamente esse dia, e o novo céu e a nova terra em que a justiça habitará e Deus reinará para sempre. Enquanto isso, rededicamo-nos ao serviço de Cristo e dos homens em alegre submissão à sua autoridade sobre a totalidade de nossas vidas.

Durante os trinta anos que separam o Congresso de nossos dias, igrejas, organizações e movimentos denominados evangélicos se identificaram com estes temas teológicos e se identificaram entre si

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através destes temas. Agora, em que vivemos em um período de intensa relativização e de fluidificação das identidades institucionais e pessoais, o Pacto de Lausanne continua a ser relevante instrumento para a definição e renovação permanente da identidade evangélica.

No mesmo ano da realização do I Congresso Mundial de Evangelização, importante teólogo mais identificado com o movimento ecumênico do que com o evangélico assim se pronunciava: “A vida cristã de teólogos, igrejas e seres humanos se defronta hoje mais do que nunca com uma dupla crise, a crise da relevância e a crise de identidade. Essas duas crises são complementares. Quanto mais a teologia e a Igreja procuram tornar-se relevantes para os problemas atuais, tanto mais são lançadas na crise de sua própria identidade. Quanto mais elas buscam sustentar sua identidade nos dogmas tradicionais, nas noções morais corretas, tanto mais irrelevantes e desacreditadas elas se tornam.”1

O Pacto de Lausanne, a seu modo, enfrentou bem o duplo desafio da relevância e da identidade – vinculando-as uma à outra. Isto se percebe já no primeiro artigo: a identidade evangélica é definida pelo propósito de Deus para a sua igreja: “Ele tem chamado do mundo um povo para si, enviando-o novamente ao mundo como seus servos e testemunhas, para estender o seu reino, edificar o corpo de Cristo, e também para a glória do seu nome.” A identidade evangélica não se edifica sobre “dogmas” mas sobre um fundamento muito mais sólido, conquanto invisível, que é o próprio ser de Deus, que constitui a Igreja para ser o Seu povo no mundo por Ele mesmo criado. Uma identidade construída a partir do propósito divino para a igreja atrai para si mesma a relevância no mundo contemporâneo.

Ser evangélico, então, não é uma questão de se aferrar intransigentemente a este ou aquele grupo de conceitos doutrinários, mas uma questão de comprometer-se com o propósito de Deus, a saber: ser evangélico é ser servo e testemunha de Deus – ou seja, ser uma comunhão de pessoas que persegue em comum o alvo de viver à altura do Reino e da Glória de Deus, edificando-se a si mesmas como o Corpo de Cristo que anuncia a todo o mundo o reino e a glória. A formulação do Pacto não define milimetricamente Reino, Glória e Corpo de Cristo. Mantêm-nos como metáforas bíblicas vigorosas, que permitem diferentes definições e conceituações, ao mesmo tempo em que exigem forte e decidido engajamento pessoal e comunitário. A identidade evangélica não é, assim, uma questão de crenças, mas uma questão de projeto de vida – um projeto missionário de vida, centrado não nas instituições eclesiásticas ou nas organizações cristãs, mas no próprio Reino de Deus e Sua glória, realizado pelo Corpo de Cristo, a verdade igreja, que não se deixa definir e

1 MOLTMANN, J. The Crucified God, Nova Iorque, Harper & Row, 1974, p. 7

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delimitar pelas estruturas institucionais, mas pela comunhão missionária com Deus e dos seus membros uns com os outros.

Para não ficar em um vazio doutrinário, porém, em outros três artigos o Pacto restringe a interpretação e vivência da identidade. No artigo segundo, reafirma o papel central da Escritura, que “em sua totalidade, como única Palavra de Deus escrita, sem erro em tudo o que ela afirma, e a única regra infalível de fé e prática.” As metáforas abertas do Reino, Glória e Corpo de Cristo devem ser constantemente pensadas e vividas a partir da interpretação fiel da Escritura, instrumento único de Deus para a saúde doutrinária e identitária do Seu povo. No mesmo artigo, ainda, a Escritura não é fechada em seu papel de regra de fé, mas, “também afirmamos o poder da Palavra de Deus para cumprir o seu propósito de salvação. A mensagem da Bíblia destina-se a toda a humanidade, pois a revelação de Deus em Cristo e na Escritura é imutável. Através dela o Espírito Santo fala ainda hoje. Ele ilumina as mentes do povo de Deus em toda cultura, de modo a perceberem a sua verdade, de maneira sempre nova, com os próprios olhos, e assim revela a toda a igreja uma porção cada vez maior da multiforme sabedoria de Deus” (grifo meu).

Juntamente com a Escritura, a corajosa afirmação da exclusividade salvífica e do retorno de Jesus Cristo (arts. 3 e 15) delimitam a identidade evangélica. Importantes à época da formulação do Pacto, esses dois tópicos teológicos continuam relevantes em nosso tempo de relativismo identitário. A afirmação da exclusividade salvífica de Cristo não fecha as portas para o diálogo ecumênico nem para o diálogo inter-religioso, mas estabelece claros limites para esses diálogos. Ao mesmo tempo, porém, e com igual ênfase, entendo que o artigo terceiro deva ser lido como uma ousada afirmação de que a salvação não é patrimônio da Igreja! Fora de Cristo não há salvação, mas certamente há salvação fora das igrejas que se chamam pelo seu nome. A exclusividade salvífica de Cristo jamais pode ser confundida com a “exclusividade salvífica da Igreja”. Pelo contrário, a exclusividade salvífica de Cristo demanda a inclusividade salvífica do Corpo de Cristo, que transcende os limites doutrinários e institucionais rígidos que ameaçam deixar de fora do Reino de Deus aquelas pessoas que não se enquadram nas normas institucionais eclesiásticas. Demanda, também, o discernimento e a fidelidade na interpretação da Escritura e no discipulado, de modo que Cristo não seja banalizado e confundido com salvadores humanos ou ideológicos.

O artigo quinze, por sua vez, nos lembra de que a identidade cristã evangélica é construída na esperança missionária. O tempo da Igreja – entre a vida e o retorno de Cristo – é o tempo da missão ao mundo e no mundo. Através desta reafirmação da esperança neotestamentária, o Pacto nos ajuda a perceber que a fé cristã não é moderna, nem pós-moderna, em sua concepção do tempo e sua relação com a identidade

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cristã. Conjugando esperança e Reino de Deus, aprendemos que o ponto de partida da experiência do tempo e da identidade na fé cristã é a tensão escatológica do já / ainda-não (Marcos 1,14-15), é a futuridade de Deus que invadiu o presente (passado para nós) da história e o preencheu de um novo sentido e de uma nova dinâmica. A identidade cristã não se configura, nem a partir do passado, nem a partir do presente – mas do futuro que se fez história em Jesus. Não se configura nem a partir do tendo-sido, nem do sendo, mas do poder-vir-a-ser que, a partir do passado já se faz presente historicamente. Identidade, então, não se resgata (fixação no passado), nem se perde (temor do presente), mas se constrói. Não será esta uma tradução fiel do princípio de que a Igreja Reformada está sempre se reformando?

Como último aspecto deste primeiro tópico, quero enfatizar a suprema importância do estudo da Palavra de Deus. Em um tempo em que a Bíblia vem se tornando cada vez mais um ícone sem poder e força de verdade nas mãos de pregadores midiáticos e instituições eclesiásticas que buscam o poder. Em um tempo em que o estudo da Bíblia ocupa o último lugar no ranking das preferências de estudantes evangélicos de pós-graduação, o estudo da Bíblia, à luz de Lausanne, é um dos grandes e mais prioritários desafios missionários. Mas precisamos estudar a Bíblia de forma nova, não fundamentalista, não relativista, nem doutrinista. Não podemos fazer da Bíblia um papa de papel, um mero símbolo que se toma nas mãos quando é necessário julgar idéias ou comportamentos inadequados. Precisamos estudar a Bíblia para fazer re-arder em nossos corações e mentes a chama do compromisso com a glória do Deus que reina sobre toda a criação e faz do corpo de Cristo o seu instrumento evangelizador na terra. Uma leitura da Bíblia que nos ajude a construir, de forma nova, nossa identidade, sem relativismos.

Essa forma de leitura da Bíblia, sugerida pelo Pacto de Lausanne, pode ser definida como uma leitura que busca o consenso missionário. Ler a Bíblia visa, neste modelo, a construir consensos, ou seja, acordos fraternos sobre a vontade de Deus na atualidade, que sejam: (a) eticamente válidos, pois nem todos os meios são justificados pelos fins – ou, nem tudo que funciona, ou que dá prazer, é justo, é bom, é santo; (b) cognitivamente verdadeiros, pois nem todas as experiências, doutrinas e conceitos que defendemos passam pelo crivo da Sagrada Escritura; e (c) pessoalmente verídicos, pois muitas vezes ocultamos a verdade pessoal e institucional atrás das máscaras do poder, do dinheiro, do prestígio ou do saber.

Estudar a Bíblia em busca de consensos missionários depende de uma estratégia em que os sujeitos da leitura não sejam mais os indivíduos

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isolados, os especialistas da técnica, mas sejam todos os participantes da comunidade de fé. Depende de uma estratégia em que as diferentes contribuições de cada pessoa – tenha ela formação teológica ou não – possam ser: (a) criticamente examinadas, ou seja, que a opinião de cada um seja demonstrada e provada e não apenas apoiada ou aceita por causa da autoridade acadêmica ou política ou espiritual de quem a formula; (b) livremente apresentadas, ou seja, que cada membro da comunidade da fé possa falar, se expor, apresentar aos demais a sua visão da fé, da vida, da missão, da vontade de Deus conforme ele ou ela a vê na Escritura; e (c) responsavelmente partilhadas, ou seja, que não se fale apenas por falar, que não se fale apenas a partir do achômetro de cada um, mas que cada participante do diálogo com a Bíblia e a partir da Bíblia, seja responsável em sua contribuição – tendo examinado bem o que leu e o que quer dizer – como os antigos judeus de Beréia que, ao ouvir a explanação da Bíblia pelos missionários cristãos, foram examinar cuidadosamente o valor e a validade da nova forma de ler a Bíblia que a fé cristã estava trazendo.

2. Lausanne e a integralidade da missão em um mundo fundamentalista (arts. 4-5)

Um dos mais calorosos debates da reunião que firmou o Pacto de Lausanne foi o da relação entre a evangelização e o compromisso social. Com muita sabedoria, o conclave então reunido formulou sua compreensão dessa relação de modo tal que veio a se tornar o grande elemento peculiar do evangelicalismo contemporâneo: a integralidade da missão da Igreja: todo o Evangelho, em todo o mundo, para o ser humano todo. Ou, na formulação do item 21 do Manifesto de Manila: “Afirmamos que Deus está chamando toda a igreja para levar o evangelho todo a todo o mundo” (veja a íntegra do Manifesto na home-page do Comitê Lausanne2). A integralidade da missão também foi a nota dominante nos CLADEs (I a IV) que têm formado a identidade do evangelicalismo latino-americano. Vale a pena relembrar a formulação do Pacto:

4. A Natureza da EvangelizaçãoEvangelizar é difundir as boas novas de que Jesus Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou segundo as Escrituras, e de que, como Senhor e Rei, ele agora oferece o perdão dos pecados e o dom libertador do Espírito a todos os

2 http://www.gospelcom.net/lcwe

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que se arrependem e crêem. A nossa presença cristã no mundo é indispensável à evangelização, e o mesmo se dá com aquele tipo de diálogo cujo propósito é ouvir com sensibilidade, a fim de compreender. Mas a evangelização propriamente dita é a proclamação do Cristo bíblico e histórico como Salvador e Senhor, com o intuito de persuadir as pessoas a vir a ele pessoalmente e, assim, se reconciliarem com Deus. Ao fazermos o convite do evangelho, não temos o direito de esconder o custo do discipulado. Jesus ainda convida todos os que queiram segui-lo e negarem-se a si mesmos, tomarem a cruz e identificarem-se com a sua nova comunidade. Os resultados da evangelização incluem a obediência a Cristo, o ingresso em sua igreja e um serviço responsável no mundo.5. A Responsabilidade Social CristãAfirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos partilhar o seu interesse pela justiça e pela conciliação em toda a sociedade humana, e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão. Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada. Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos algumas vezes considerado a evangelização e a atividade social mutuamente exclusivas. Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão. Pois ambos são necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de nosso amor por nosso próximo e de nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. Quando as pessoas recebem Cristo, nascem de novo em seu reino e devem procurar não só evidenciar mas também divulgar a retidão do reino em meio a um mundo injusto. A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta.

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Diante dos desafios das novas formas de fundamentalismo religioso – islâmico e cristão – e ideológico – o neo-liberalismo – as igrejas evangélicas precisam reafirmar seu compromisso com a integralidade da missão. Evangelizar com integridade de conteúdo e servir com integridade de compromisso são as únicas saídas viáveis contra os fundamentalismos contemporâneos. Só se supera o fundamentalismo com uma vida correta, somente a ortopráxis nos livra de uma ortodoxia enferrujada e enferrujante. Ou, se quisermos usar um neologismo deselegante, o Pacto de Lausanne nos desafia, hoje em dia, a uma ortodoxopraxia. Viver uma autêntica identidade evangélica, tanto em termos de crenças quanto em termos de compromissos e ação missionária.

Os fundamentalismos religiosos do presente afastam as igrejas do serviço sacrificial ao mundo, pois dividem a humanidade entre os nossos e os adversários. Como evangelizar e servir aos inimigos? Líderes auto-denominados cristãos têm preferido jogar bombas a enviar evangelistas aos povos de outras confissões religiosas. Não se supera tal tipo de fundamentalismo com meras palavras, mas com um testemunho missionário integral. O fundamentalismo ideológico neo-liberal, por sua vez, afirma que o mundo já chegou ao seu clímax econômico e político. Não há esperança para além do modelo neo-liberal de capitalismo, afirma-se. Entretanto, a miséria e a exclusão, em suas mais variadas e terríveis formas, continuam a nos envergonhar como cristãos e como seres humanos. Mais do que nunca, as igrejas cristãs precisam de ser porta-vozes da esperança missionária concretizada na missão integral. Mais do que nunca precisamos ser igrejas criativas no exercício da missão integral, pois que os efeitos do pecado são mais nefastos do que em qualquer outra época da história humana. Mais do que nunca os artigos 4 e 5 do Pacto de Lausanne são relevantes. E que comentário melhor a esses artigos do que a Declaração do CLADE IV?

NOS COMPROMETEMOS A: Orar en todo tiempo y estudiar diligentemente la Biblia, esforzándonos por obedecer todo el consejo de Dios dentro de nuestra realidad histórica específica. Promover en las congregaciones oportunidades de formación integral y apoyar programas de enseñanza bíblica, junto con la producción y distribución de materiales que den un tratamiento serio y accesible a las Escrituras, por intermedio de instituciones de educación teológica, editoriales y otras iniciativas.Ser una comunidad encarnada en la sociedad y desde allí vivir con fidelidad a todas las demandas del evangelio.

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Ser iglesias de adoración, servicio, fe, esperanza, justicia y amor que se conviertan en comunidades alternativas para nuestra sociedad. A valorar e incluir a todos los grupos sociales y culturales excluidos (niños, jóvenes, mujeres, negros, indígenas, discapacitados, inmigrantes, etc.) como sujetos a quienes también está dirigido el evangelio del Reino de Dios. Buscar un liderazgo que vea en el modelo de Jesús-Siervo su inspiración y práctica. Participar en la misión de Dios, dando testimonio integral del evangelio, viviendo una espiritualidad cristiana abarcadora y teniendo una mayordomía de la creación que ponga lo material al servicio de lo espiritual y el poder en beneficio de los demás y para la gloria de Dios, promoviendo la reconciliación entre razas, clases sociales, sexos, generaciones y con el medio ambiente. Vivir la esperanza escatológica del Reino de Dios en la sufriente América Latina de hoy, participando activamente en los procesos de la sociedad civil que promuevan y defiendan la vida y la dignidad humana. A la búsqueda intensa de la dirección y acción del Espíritu Santo en la vida de la iglesia, sin olvidarnos del compromiso de la evangelización transcultural desde la perspectiva de la misión integral. Concluimos esta declaración con la afirmación que la Palabra de Dios nos convoca a ser comunidades proféticas y solidarias con el dolor y el sufrimiento que denigran la vida y la dignidad de nuestras naciones, pues entendemos que parte medular de nuestra misión es lograr la justicia para todos en el poder del Espíritu Santo.3

3. Lausanne e a integridade cristã em um mundo consumista (arts. 6. 9-10)

A lembrança da integralidade da missão nos convoca, imediatamente, ao desafio da integridade cristã no mundo consumista e corrupto em que vivemos:

6. A Igreja e a Evangelização

3 Para a íntegra do Documento, veja a home-page da Fraternidade Teológica Latino Americana, setor Brasil: http://www.ftl.org.br

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Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim como o Pai o enviou, e que isso requer uma penetração de igual modo profunda e sacrificial. Precisamos deixar os nossos guetos eclesiásticos e penetrar na sociedade não-cristã. Na missão de serviço sacrificial da igreja a evangelização é primordial. A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo. A igreja ocupa o ponto central do propósito divino para com o mundo, e é o agente que ele promoveu para difundir o evangelho. Mas uma igreja que pregue a Cruz deve, ela própria, ser marcada pela Cruz. Ela torna-se uma pedra de tropeço para a evangelização quando trai o evangelho ou quando lhe falta uma fé viva em Deus, um amor genuíno pelas pessoas, ou uma honestidade escrupulosa em todas as coisas, inclusive em promoção e finanças. A igreja é antes a comunidade do povo de Deus do que uma instituição, e não pode ser identificada com qualquer cultura em particular, nem com qualquer sistema social ou político, nem com ideologias humanas.9. Urgência da Tarefa EvangelísticaMais de dois bilhões e setecentos milhões de pessoas, ou seja, mais de dois terços da humanidade, ainda estão por serem evangelizadas. Causa-nos vergonha ver tanta gente esquecida; continua sendo uma reprimenda para nós e para toda a igreja. Existe agora, entretanto, em muitas partes do mundo, uma receptividade sem precedentes ao Senhor Jesus Cristo. Estamos convencidos de que esta é a ocasião para que as igrejas e as instituições para-eclesiásticas orem com seriedade pela salvação dos não-alcançados e se lancem em novos esforços para realizarem a evangelização mundial. A redução de missionários estrangeiros e de dinheiro num país evangelizado algumas vezes talvez seja necessária para facilitar o crescimento da igreja nacional em autonomia, e para liberar recursos para áreas ainda não evangelizadas. Deve haver um fluxo cada vez mais livre de missionários entre os seis continentes num espírito de abnegação e prontidão em servir. O alvo deve ser o de conseguir por todos os meios possíveis e no menor espaço de tempo, que toda pessoa tenha a oportunidade de ouvir, de compreender e de receber as boas novas. Não podemos esperar atingir esse alvo sem sacrifício. Todos nós estamos chocados com a pobreza de milhões de pessoas, e conturbados pelas injustiças que a provocam. Aqueles dentre

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nós que vivem em meio à opulência aceitam como obrigação sua desenvolver um estilo de vida simples a fim de contribuir mais generosamente tanto para aliviar os necessitados como para a evangelização deles.10. Evangelização e CulturaO desenvolvimento de estratégias para a evangelização mundial requer metodologia nova e criativa. Com a bênção de Deus, o resultado será o surgimento de igrejas profundamente enraizadas em Cristo e estreitamente relacionadas com a cultura local. A cultura deve sempre ser julgada e provada pelas Escrituras. Porque o homem é criatura de Deus, parte de sua cultura é rica em beleza e em bondade; porque ele experimentou a queda, toda a sua cultura está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca. O evangelho não pressupõe a superioridade de uma cultura sobre a outra, mas avalia todas elas segundo o seu próprio critério de verdade e justiça, e insiste na aceitação de valores morais absolutos, em todas as culturas. As missões muitas vezes têm exportado, juntamente com o evangelho, uma cultura estranha, e as igrejas, por vezes, têm ficado submissas aos ditames de uma determinada cultura, em vez de às Escrituras. Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente, procurar esvaziar-se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim de se tornarem servos dos outros, e as igrejas têm de procurar transformar e enriquecer a cultura; tudo para a glória de Deus.

Hoje em dia, crescer se tornou uma palavra-chave do movimento evangélico, juntamente com a palavra liderar, gerenciar. Todavia, vemos com imensa tristeza que muitas igrejas crescem e gerenciam seu crescimento de acordo com padrões mundanos, e não de acordo com padrões realmente evangélicos. Integridade se torna hoje, possivelmente, o maior desafio e a mais urgente prioridade do movimento evangélico. A integridade é que nos diferenciará de tantos “evangélicos” que não são mais do que empresários da religião. Em nosso país, Brasil, o termo evangélico já tem se tornado um termo pouco respeitoso, que nomeia propagadores de uma religião centrada no dinheiro e lucro, uma aberrante forma capitalista neo-liberal de cristianismo. Dos três artigos acima citados, destaco as última sentenças, pois que parecem ter sido escritas hoje mesmo: “Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente, procurar esvaziar-se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim de se tornarem servos dos outros, e as igrejas têm de procurar transformar e enriquecer a cultura; tudo para a glória de Deus.”

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Integridade integral, se me permitem o pleonasmo. Integridade ética, espiritual, estratégica, administrativa, intelectual, emocional, institucional, teológica. Integridade que nos faça viver um estilo de vida não conformado com o mundo capitalista, consumista e corrupto, mas um estilo de vida semelhante ao de Jesus Cristo que a si mesmo se esvaziou e se entregou pelo bem da criação alienada de Deus. Integridade que seja capaz de recolocar em ordem a pirâmide de valores pessoais e eclesiais, na qual a glória de Deus seja o ápice, derrotando Mamom e todos os narcisismos contemporâneos. Integridade tal que a mensagem do Evangelho possa novamente ser ouvida em sua plena autenticidade e em todo o seu poder salvífico.

Integridade cultural, especialmente diante do uso cada vez maior da mídia e de recursos artísticos nas igrejas. Precisamos de integridade no uso da televisão e rádio, pois esses meios se prestam muito facilmente ao desvirtuamento da mensagem do Evangelho e à promoção da pessoa que realiza o programa. Integridade na apresentação musical e coreográfica, tanto no tocante às letras das canções, quanto em relação à qualidade musical e artística das performances nos cultos ou fora deles. A arte tem o poder de comunicar e atingir o âmago da pessoa, por isso, ao usa-la, necessitamos de integridade, a fim de não incorrermos no pecado da manipulação emocional de nossos e nossas ouvintes. Integridade que nos autorize a repetir as palavras do apóstolo: “Porque nós não estamos, como tantos outros, mercadejando a palavra de Deus; antes, em Cristo é que falamos na presença de Deus, com sinceridade e da parte do próprio Deus” (II Co 2,17).

4. Lausanne e a cooperação cristã em um mundo competitivo (arts. 7-8)

Integralidade e integridade que nos coloquem de volta no bom caminho da cooperação, do companheirismo, da solidariedade cristã ao invés da competição capitalista. Na íntegra, os artigos 7 e 8 do Pacto convocam os evangélicos à cooperação solidária:

7. Cooperação na EvangelizaçãoAfirmamos que é propósito de Deus haver na igreja uma unidade visível de pensamento quanto à verdade. A evangelização também nos convoca à unidade, porque o ser um só corpo reforça o nosso testemunho, assim como a nossa desunião enfraquece o nosso evangelho de reconciliação. Reconhecemos, entretanto, que a unidade organizacional pode tomar muitas formas e não ativa

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necessariamente a evangelização. Contudo, nós, que partilhamos a mesma fé bíblica, devemos estar intimamente unidos na comunhão uns com os outros, nas obras e no testemunho. Confessamos que o nosso testemunho, algumas vezes, tem sido manchado por pecaminoso individualismo e desnecessária duplicação de esforço. Empenhamo-nos por encontrar uma unidade mais profunda na verdade, na adoração, na santidade e na missão. Instamos para que se apresse o desenvolvimento de uma cooperação regional e funcional para maior amplitude da missão da igreja, para o planejamento estratégico, para o encorajamento mútuo, e para o compartilhamento de recursos e de experiências.8. Esforço Conjugado de Igrejas na EvangelizaçãoRegozijamo-nos com o alvorecer de uma nova era missionária. O papel dominante das missões ocidentais está desaparecendo rapidamente. Deus está levantando das igrejas mais jovens um grande e novo recurso para a evangelização mundial, demonstrando assim que a responsabilidade de evangelizar pertence a todo o corpo de Cristo. Todas as igrejas, portando, devem perguntar a Deus, e a si próprias, o que deveriam estar fazendo tanto para alcançar suas próprias áreas como para enviar missionários a outras partes do mundo. Deve ser permanente o processo de reavaliação da nossa responsabilidade e atuação missionária. Assim, haverá um crescente esforço conjugado pelas igrejas, o que revelará com maior clareza o caráter universal da igreja de Cristo. Também agradecemos a Deus pela existência de instituições que laboram na tradução da Bíblia, na educação teológica, no uso dos meios de comunicação de massa, na literatura cristã, na evangelização, em missões, no avivamento de igrejas e em outros campos especializados. Elas também devem empenhar-se em constante auto-exame que as levem a uma avaliação correta de sua efetividade como parte da missão da igreja.

Diante do predomínio quase que absoluto da organização neo-liberal da economia e das instituições estatais, a competição se tornou a estratégia-chave para o crescimento – não só de empresas, mas das próprias igrejas, cada vez mais parecidas com empresas, cujo produto é o “evangelho” e cujo lucro é a membresia dizimista. O que James Houston fala a respeito da espiritualidade pessoal vale também para a

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eclesiásticas: “Grande parte de nossa vida hoje, e até mesmo de nossa fé religiosa, está distorcida pelo fato de encararmos a vida ora como um sistema de pensamento que requer explicação e argumentação, ora como uma agenda repleta de atividades organizadas. O resultado é a criação de uma personalidade movida pelos valores do mercado, pouco conhecedora da ‘amizade-da-alma’ ou da natureza pessoal de Deus”.4

Para superar o espírito competitivo é necessário que vivamos o espírito cooperativo, da comunhão solidária. E não é este o Espírito de Deus? O Espírito Santo que une, que torna solidário, que faz partilhar? Não é o fruto do Espírito o amor, a bondade, a benignidade, a mansidão, o domínio-próprio? A cooperação cristã não é uma questão de estratégia, mas de espiritualidade. É tempo de reafirmar o compromisso: “Empenhamo-nos por encontrar uma unidade mais profunda na verdade, na adoração, na santidade e na missão. Instamos para que se apresse o desenvolvimento de uma cooperação regional e funcional para maior amplitude da missão da igreja, para o planejamento estratégico, para o encorajamento mútuo, e para o compartilhamento de recursos e de experiências.” É tempo de vencermos Mamom e seu profeta, o mercado, e nos submetermos ao Espírito da unidade, no vínculo da paz, a fim de tornarmos relevante nossa identidade e nosso modo de viver missionário na atualidade.

5. Lausanne e a formação teológica integral em uma igreja dualista (arts. 11-12.14)

11. Educação e LiderançaConfessamos que às vezes temos nos empenhado em conseguir o crescimento numérico da igreja em detrimento do espiritual, divorciando a evangelização da edificação dos crentes. Também reconhecemos que algumas de nossas missões têm sido muito remissas em treinar e incentivar líderes nacionais a assumirem suas justas responsabilidades. Contudo, apoiamos integralmente os princípios que regem a formação de uma igreja de fato nacional, e ardentemente desejamos que toda a igreja tenha líderes nacionais que manifestem um estilo cristão de liderança não em termos de domínio, mas de serviço. Reconhecemos que há uma grande necessidade de desenvolver a educação teológica, especialmente para líderes eclesiásticos. Em toda nação e em toda cultura deve haver um eficiente programa de treinamento para pastores e leigos em doutrina, em

4 HOUSTON, James. A Fome da Alma. São Paulo: Abba Press, 2000, p. 303. (grifo meu)

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discipulado, em evangelização, em edificação e em serviço. Este treinamento não deve depender de uma metodologia estereotipada, mas deve se desenvolver a partir de iniciativas locais criativas, de acordo com os padrões bíblicos.12. Conflito EspiritualCremos que estamos empenhados num permanente conflito espiritual com os principados e potestades do mal, que querem destruir a igreja e frustrar sua tarefa de evangelização mundial. Sabemos da necessidade de nos revestirmos da armadura de Deus e combater esta batalha com as armas espirituais da verdade e da oração. Pois percebemos a atividade no nosso inimigo, não somente nas falsas ideologias fora da igreja, mas também dentro dela em falsos evangelhos que torcem as Escrituras e colocam o homem no lugar de Deus. Precisamos tanto de vigilância como de discernimento para salvaguardar o evangelho bíblico. Reconhecemos que nós mesmos não somos imunes à aceitação do mundanismo em nossos atos e ações, ou seja, ao perigo de capitularmos ao secularismo. Por exemplo, embora tendo à nossa disposição pesquisas bem preparadas, valiosas, sobre o crescimento da igreja, tanto no sentido numérico como espiritual, às vezes não as temos utilizado. Por outro lado, por vezes tem acontecido que, na ânsia de conseguir resultados para o evangelho, temos comprometido a nossa mensagem, temos manipulado os nossos ouvintes com técnicas de pressão, e temos estado excessivamente preocupados com as estatísticas, e até mesmo utilizando-as de forma desonesta. Tudo isto é mundano. A igreja deve estar no mundo; o mundo não deve estar na igreja.14. O Poder do Espírito SantoCremos no poder do Espírito Santo. O pai enviou o seu Espírito para dar testemunho do seu Filho. Sem o testemunho dele o nosso seria em vão. Convicção de pecado, fé em Cristo, novo nascimento cristão, é tudo obra dele. De mais a mais, o Espírito Santo é um Espírito missionário, de maneira que a evangelização deve surgir espontaneamente numa igreja cheia do Espírito. A igreja que não é missionária contradiz a si mesma e debela o Espírito. A evangelização mundial só se tornará realidade quando o Espírito renovar a igreja na verdade, na sabedoria, na fé, na santidade, no amor e no poder. Portanto, instamos com todos os cristãos para que orem pedindo pela visita do soberano

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Espírito de Deus, a fim de que o seu fruto todo apareça em todo o seu povo, e que todos os seus dons enriqueçam o corpo de Cristo. Só então a igreja inteira se tornará um instrumento adequado em Suas mãos, para que toda a terra ouça a Sua voz.

Já passou, pelo menos no Brasil, a onda do batalhismo espiritual. Você certamente se lembrará de um período, não há muito acontecido, em que tudo na igreja se resumia à batalha espiritual: crescimento numérico, crescimento espiritual, saúde, finanças, etc. Essa onda revelou que as igrejas evangélicas brasileiras ainda continuam fortemente influenciadas pelo dualismo platônico, dividindo a realidade em dois mundo antagônicos: o material e o espiritual. Enquanto o dualismo na sua versão capitalista somente reconhece as causas materiais da ação humana e das transformações na realidade (dualismo materialista), na sua versão cristã, tudo tende a ser explicado por intervenção direta de seres espirituais (dualismo espiritualista). O dualismo nega a criação divina. Na sua versão materialista, nega a própria existência de Deus que, conseqüentemente, não poderia ter criado o mundo. Mundo este que, sem Deus, basta-se a si mesmo e explica-se por si mesmo.

Na sua versão espiritualista, o dualismo – embora afirme no papel – nega na prática a crença no Deus criador, pois nega que o mundo que Deus criou e definiu como seu parceiro também funcione como causa de efeitos, tanto na ação humana quanto na natureza em geral. Se você prestar atenção ao relato da criação em Gênesis capítulo 1, verá que diversas vezes Deus convoca a obra criada a participar da sua ação criadora – produzindo fruto, vida, em resposta ao agir de Deus. A palavra criadora de Deus não só cria o mundo, mas cria um mundo que age em parceria (aliança) com Deus. E isto vale até hoje, pois nem mesmo a queda humana no pecado foi capaz de anular a ação criadora de Deus. Nossa compreensão das causas físicas, biológicas, culturais, sociais, etc., por causa do pecado, não é plena, nem totalmente suficiente para explicarmos tudo o que acontece. Entretanto, não pode servir de desculpa para atribuirmos toda a causalidade a ações imediatas de seres espirituais (Deus, anjos, demônios) na realidade criada.

Para superarmos o dualismo, necessitamos de uma renovada e aprofundada educação cristã e teológica. De fato, precisamos perceber que os adjetivos cristã e teológica não devem ser entendidos como se referindo a dois tipos distintos de educação, mas a dois alvos distintos da mesma educação. A educação cristã tem como alvo a formação de todo o povo de Deus para a missão integral. A educação teológica, propriamente dita, tem como alvo a formação de lideranças ministeriais para a capacitação de todo o povo de Deus para a missão integral. Educação

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cristã e educação teológica são dois lados da mesma moeda, e ambas exigem hoje em dia uma ampla renovação, a fim de ajudar a igreja superar o dualismo.

Em primeiro lugar, é necessário que se reconheça que: (a) o crescimento espiritual não é promovido por nenhuma instituição humana, nem mesmo pela Igreja; é Deus quem dá o crescimento. De fato, Deus usa as realidades naturais, as situações históricas e as instituições humanas no seu relacionamento conosco, mas é Ele quem dá o crescimento espiritual. Concordo com a descoberta de Eugene Peterson: “eu desisti de esperar que pessoas ou instituições me proporcionassem aquilo que já estava bem ali, no meu quintal.”5; (b) a primeira pessoa responsável pelo seu próprio crescimento espiritual é o cristão enquanto discípulo de Jesus – seja na igreja, seja no Seminário – pois é nele que habita o Espírito Santo, que faz frutificar o amor e a espiritualidade na convivência amorosa dos santos e santas; (c) igreja local e Seminário são co-responsáveis, solidariamente, no desenvolvimento espiritual de discípulos de Cristo – na medida em que criam e mantêm um ambiente propício a esse desenvolvimento; (d) a maturidade espiritual que todos desejamos não é um lugar fixo ao qual se chega depois de um certo tempo de carreira na vida cristã, é um lugar conflitivo, de permanente confronto da pessoa – na comunidade a que pertence, e na que estuda – contra o mundo, o pecado, a carne e o Diabo.

Precisamos, também, destacar que é na vida comunitária e missionária da igreja local que encontramos o ambiente mais propício para o crescimento espiritual dos crentes. É na igreja, não nos Seminários, que o exercício mútuo dos dons, a adoração comunitária, a ação missionária, e a comunhão com Deus e entre os irmãos e irmãs cria o espaço para que cada pessoa chegue à maturidade cristã. Cabe às igrejas, portanto, selecionar bem as pessoas que envia para a educação teológica formal. Não deveriam mandar neófitos na fé, nem pessoas que não tenham exercido ministérios reconhecidos pela comunidade, nem pessoas cujo testemunho não seja digno. Muito menos deveriam enviar pessoas problemáticas, na esperança de que o seminário as “conserte”. Se uma pessoa chega ao seminário com problemas sérios na sua espiritualidade, o mais provável é que ela piore, pois Seminários não são hospitais espirituais, mas centros de preparação ministerial e teológica nos quais só deveriam estudar pessoas já no processo de amadurecimento espiritual. Não basta, enfim, que a igreja mande o estudante. Precisa continuar orando por ele, o acolhendo como irmão (e não como “pastor em miniatura”), e o reconhecendo como uma pessoa em preparação, por Deus, para assumir responsabilidades ministeriais maiores.

5 PETERSON, E. H. op. cit., p. 47

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A fim de cumprir sua parte, as igrejas locais precisam redescobrir a educação cristã! Quanto já se falou sobre a falência das Escolas Dominicais? Quanto já se tentou ressuscitá-las? Quantas novas experiências, a partir de novos modelos de igreja (células, propósitos, desenvolvimento natural, etc.), já se fizeram para reavivar a educação cristã? Para sermos fiéis a Lausanne, precisamos reinventar a educação eclesial, saindo dos limites do paradigma escolar, e assumindo que toda a educação cristã visa a preparação de discípulos de Cristo para o exercício da missão integral, na força do Espírito Santo, dentro da realidade conflitiva do campo missionário que é o mundo. Precisamos redescobrir a importância do estudo sério e disciplinado da Palavra de Deus, da teologia cristã e da realidade em que vivemos, a fim de sermos homens e mulheres que vivam missionariamente no mundo. Educação não precisa ser chata, mas não pode se confundir com o culto ou com a edificação nas células e pequenos grupos. A educação, conjugada com a celebração litúrgica e com a edificação nos pequenos grupos, terá a função de ser instrumento do Espírito para a renovação de nossas mentes (cf. Rm 12:1-2), e para o desenvolvimento de nossa sabedoria e discernimento espirituais (cf. Cl 1,9-12).6

Faço minhas as palavras de Henri Nouwen, dirigidas a todos os líderes cristãos da atualidade: “Qual é, então, a disciplina necessária para um líder que deseja ser guiado, ‘de mãos estendidas’? Quero propor aqui a disciplina da intensa reflexão teológica. Assim como a oração nos mantém ligados ao primeiro amor, e a confissão e o perdão tornam o nosso ministério mais recíproco, a intensa reflexão teológica igualmente nos fará discernir, com senso crítico, para onde estamos sendo guiados.”7

Contra todo dualismo, precisamos redescobrir que reflexão teológica é uma disciplina espiritual a ser praticada por todos os discípulos de Cristo, como a oração, a adoração, a confissão, o louvor, a meditação. Sem reflexão teológica a batalha espiritual se transforma em batalhismo espiritualista, a busca do Espírito se torna em devaneios extáticos, o discernimento se torna adivinhação. Separada das demais disciplinas espirituais, a reflexão teológica se torna estéril, cheiro de morte para a morte, anti-Evangelho, mero secularismo doutrinário.

6. Lausanne e a paz em um mundo belicoso (art. 13)

Onze de setembro. Esta data ainda ecoa em nossas mentes e corações, como símbolo mais dramático de uma realidade que foi tantas

6 Remeto às minhas reflexões sobre o papel da liderança pastoral na educação cristã, publicadas em BARRO, J. H. (org.) O Pastor Urbano, Londrina: Descoberta, 2003, p. 232-249.7 NOUWEN, H. O perfil do líder cristão do século XXI, Belo Horizonte: Atos, 2002, p. 55

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vezes ocultada, disfarçada, adornada pela mídia – a realidade da violência. Data esta que também foi usada para ressurgir sentimos anti-islâmicos outrora reprimidos nas igrejas cristãs. Terrível combinação: terrorismo internacional e perseguição a evangélicos nos países muçulmanos, e imediatamente muitos homens e mulheres de Deus passaram a ver muçulmanos, todos, como inimigos, hereges, perseguidores da igreja. Um olhar míope, que nos impediu de enxergar a violência instalada no próprio coração do mundo “cristão” ocidental em que vivemos. Violência econômica, cultural, estrutural. Violência que nos espanta, pois praticada contra as esposas, contra filhas e filhos indefesos – até mesmo em lares cristãos.

A presença do Reino de Deus não elimina as perseguições e os conflitos humanos por causa da religião. Todavia, faz de nós, cristãos, agentes da paz em meio à violência que é expressão do pecado. O artigo treze do Pacto teceu esse vínculo entre justiça e paz, na reação à perseguição religiosa:

13. Liberdade e PerseguiçãoÉ dever de toda nação, dever que foi estabelecido por Deus, assegurar condições de paz, de justiça e de liberdade em que a igreja possa obedecer a Deus, servir a Cristo Senhor e pregar o evangelho sem quaisquer interferências. Portanto, oramos pelos líderes das nações e com eles instamos para que garantam a liberdade de pensamento e de consciência, e a liberdade de praticar e propagar a religião, de acordo com a vontade de Deus, e com o que vem expresso na Declaração Universal do Direitos Humanos. Também expressamos nossa profunda preocupação com todos os que têm sido injustamente encarcerados, especialmente com nossos irmãos que estão sofrendo por causa do seu testemunho do Senhor Jesus. Prometemos orar e trabalhar pela libertação deles. Ao mesmo tempo, recusamo-nos a ser intimidados por sua situação. Com a ajuda de Deus, nós também procuraremos nos opor a toda injustiça e permanecer fiéis ao evangelho, seja a que custo for. Nós não nos esquecemos de que Jesus nos preveniu de que a perseguição é inevitável.

A resposta cristã a qualquer tipo de violência só pode ser a resposta da paz com justiça. Diante da violência precisamos agir com profundo discernimento das suas causas e de suas mais diversas manifestações. Acima de tudo, precisamos agir com amor, mostrando aos nossos inimigos o mesmo amor com que Deus nos amou – quando éramos nós Seus inimigos (cf. Rm 5:8). A única forma de romper com o círculo vicioso e

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infindável da violência é a não-violência. Esta lição foi ensinada pelo próprio Deus, que enviou seu Filho para morrer por nós, ao invés de nos matar por causa do pecado (Cl 1:18-20). Jesus Cristo é a paz (Ef 2:11-22), e nele toda a violência deve encontrar o seu fim, e ser transformada em amizade, em justa paz. E é preciso começar em casa, na família, na igreja local, estendendo-se às relações sociais e às internacionais, assim como às relações com a parte não-humana do mundo criado por Deus.

Como cidadãos do Reino de Deus, que é reino de plena paz, somos agentes da paz, feliz pacificadores em nome de Cristo (Mt 5:9). No Reino de Deus, viver a cidadania é viver a liberdade, pois cidadã é a pessoa que participa ativa e decisivamente da polis, do seu mundo. Cabe, portanto, repensar a concepção de liberdade que anima a cidadania. Liberdade não pode ser apenas a liberdade individual de fazer o que se deseja (liberdade como dominação), nem a liberdade social da comunidade civil na democracia e no mercado; “liberdade é a paixão criativa pelo possível. Liberdade não é apenas voltada para as coisas como elas são, como na dominação. Nem é direcionada apenas à comunidade de pessoas como elas são, como na solidariedade. Ela se direciona para o futuro, pois o futuro é o campo desconhecido das possibilidades, enquanto o presente e o passado representam esferas familiares de realidades. ... Assim como Martin Luther King, temos visões e sonhos de outra vida, uma vida curada, justa e boa.”8

7. Lausanne e novos desafios missionários para a Igreja hoje

Nos parágrafos anteriores repassei todos os artigos do Pacto de Lausanne, destacando a atualidade e relevância dos mesmos para nossos dias – bem como procurei ir além de suas formulações específicas, para contextualizá-los. Cabe, agora, ao me aproximar do final deste ensaio, destacar alguns desafios missionários da atualidade que não foram “previstos” nas discussões que levaram ao Pacto de 1974, nem foram abordados por mim na contextualização dos artigos do Pacto. Abordarei apenas três dentre os tópicos que deveriam fazer parte das agendas e planejamentos de igrejas, organizações e grupos evangélicos que afirmam a missão integral e se inspiram, em maior ou menor grau, no Pacto e no movimento Lausanne. Não irei me aprofundar na análise de nenhuma das questões, apenas indicarei sua presença desafiadora para a missão da igreja, sem uma ordem hierarquicamente definida de prioridades.

(a)Tecnologia informática. A informática representa para o mundo contemporâneo uma revolução cultural e existencial, assim como

8 MOLTMANN, J. God for a secular society. The Public relevance of theology. Minneapolis: Fortress Press, 1999, p. 159s.

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a invenção da imprensa representou para a modernidade nascente uma revolução da mesma magnitude. Como estamos bem em meio à revolução, ainda não conseguimos definir bem seus contornos, mas vários estudiosos já têm apontado as grandes ênfases dessa revolução, e merecem ser estudados (por exemplo, Pierre Lévy). Certamente, no dia-a-dia, especialmente para aqueles de nós que convivem com gerações mais jovens, alguns dos efeitos dessa revolução já se fazem sentir. Basta comparar nossa habilidade com computadores e videogames com a habilidade de nossos filhos e netos.

Não só nas questões de uso de máquinas e softwares, nos ambientes industriais, financeiros e empresariais em geral, mas na própria convivência humana a revolução informática se faz presente. Quantas pessoas têm desenvolvido suas comunidades relacionais predominantemente em ambientes virtuais? Quanto tempo indivíduos gastam diante da tela de computadores, trabalhando, estudando, brincando ou mesmo se relacionando com amigos, namorados, namoradas, amantes, etc. Em síntese, “atualmente estamos caminhando para uma existência híbrida, com a máquina sendo implantada no homem.”9 Ou, nas palavras de Delfim Soares, prevendo os resultados mais amplos dessa revolução: “A tecnicização da comunicação provoca a supressão do espaço e a redução do tempo ou, pelo ângulo inverso, sua ampliação. As distâncias são eliminadas: pela comunicação eletrônica, trazemos o mundo inteiro instantaneamente até nós. Basta ter ao nosso alcance um terminal do sistema, - um simples aparelho de rádio ou televisão ou um microcomputador, - para nos tornarmos cidadãos do mundo. Em outras palavras, a macrocomunicação reduz o planeta a uma aldeia. A mais clara tendência é a transferência das ações institucionais para o sistema de comunicação. Este passa a agir como mecanismo multinstitucional e transnacional. Transforma-se na principal agência de difusão cultural e científica e é instrumentalizado como principal processo de manipulação ideológica.”10

Como viver e anunciar o Evangelho a essas gerações híbridas da humanidade? Como ser igreja em um mundo virtualizado? Como testemunhar o Reino de Deus no reino dos softwares?

(b)Bioética. De igual proporção é a revolução tecnológica no ambiente da própria vida vegetal, animal e humana. Trata-se do conjunto de questões abordado pela bioética – reprodução assistida, transgenia, clonagem, etc. Se olharmos para os catálogos de editoras evangélicas brasileiras constataremos que

9 Adauto Novaes, Entrevista à FSP, 27.02.2001 “A filosofia desmonta o homem-máquina”10 SOARES, D. “Ciberhumanismo ou cibercracia”, Ciberlegenda, n. 1, 1998, na internet, www.compuland.com.br/delfim

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nossas publicações estão gerações atrasadas no campo da ética da vida. Nossa produção nem se compara à produção de editoras católicas e universitárias não confessionais. Por que? Não é o caso desses temas não serem relevantes, ou de estarem distantes do nosso dia-a-dia, pois também evangélicos consomem alimentos transgênicos e usufruem de avanços tecnológicos aplicados à reprodução humana. Não discutimos as questões, mas casais evangélicos contam entre os usuários das tecnologias reprodutivas, agricultores evangélicos plantam transgênicos, isso sem contar com as mais diversas tecnologias agro-pecuárias que já fazem parte de nosso cotidiano.

A estes aspectos devemos acrescentar a difusão, pela mídia, de conhecimentos ou pseudo-conhecimentos ligados a tópicos da bioética. Quem controla a divulgação dessas informações? São os interesses dos grandes conglomerados farmacêuticos ou de pesquisa? Como equacionar a liberdade de imprensa com a responsabilidade ética dos meios de comunicação? Este é um desafio missionário urgentíssimo, que possui várias dimensões, desde a reflexão científica, passando pela reflexão teológica e ética, até a formação cristã para viver em um mundo em que a vida é tecnicizada. Se, como se populariza em alguns meios, o comportamento humano é determinado geneticamente, de que adiante um compromisso com Cristo? Se o alcoolismo é uma predisposição genética, para que ajudar pessoas a combatê-lo com meios não químicos? E poderia multiplicar os exemplos e áreas de atuação.

(c)Evangelização da Academia. Se no Pacto de Lausanne se enfatizava a importância da evangelização das/nas culturas, hoje em dia precisamos acrescer a urgente necessidade de evangelização dos ambientes acadêmicos. Somente no Brasil, por exemplo, a proliferação de Universidades e Centros Universitários, com a explosão do número de docentes e de estudantes, é assustadora. Nesses ambientes estão sendo formados os profissionais e as lideranças da nação. Que valores essas pessoas levarão em seu dia-a-dia de trabalho e liderança? Nem de longe as igrejas evangélicas têm conseguido acompanhar a explosão numérica do mundo acadêmico. Movimentos como a ABUB estão amplamente incapazes de atender às demandas crescentes de evangelização, acompanhamento pastoral e reflexão ética e teológica nos meios universitários. Como apoiá-los? Como atuar eclesial e missionariamente junto aos profissionais evangélicos formados com valores distintos dos valores cristãos? As faculdades de teologia e os seminários precisam enxergar no mundo acadêmico uma prioridade missionária, uma demanda para suas

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instituições, que lhes force a rever sua própria identidade e missão.

(d)Poderia acrescentar a evangelização dos/nos meios de comunicação, dos ambientes artísticos, dos bolsões de exclusão cada vez mais desumanizados em nossas sociedades ocidentais, mas é hora de terminar este escrito, bem como a de reconhecer as limitações individuais par tratar de tantos e tão candentes desafios e questões da contemporaneidade.

CONCLUSÃO

Trinta anos depois, o Pacto de Lausanne continua sendo um importante documento para o mundo evangélico. Não pode, é certa, ser visto como um ponto de chegada, mas como um ponto de partida para a reflexão e a ação missionárias. Não podemos fazer do pacto um substituto da Bíblia, ou das confissões de fé, ou da própria teologia. Mas o pacto de Lausanne deve continuar a ser lido e relido cuidadosa e criticamente por nós evangélicos. Merece ser continuamente reescrito através das nossas vidas e das nossas ações pessoas, comunitárias e institucionais. Em um ambiente cultural que cada vez mais se esquece do passado e da sua própria história, somos convocados a manter viva a memória do agir de Deus entre nós, a fim de nos motivarmos a ser cada vez mais fiéis ao Deus que reina sobre toda a criação, e que deseja a salvação integral de todas as suas criaturas.