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Paulo Emlioe a constituio
das bases dapesquisa
histricasobre cinema
no Brasil
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bastante conhecido o desinteresse de
Paulo Emlio Salles Gomes pela produo
brasileira quando do incio da sua ativida-de intelectual sobre cinema ainda no incio
dos anos 40, no que, alis, ele estava acom-
panhado por outros crticos da mesma ge-
rao como, por exemplo, Francisco Luiz
de Almeida Salles e Alex Viany. Posterior-
mente, todos trs tiveram atuao destaca-
da na preservao da memria do cinema
brasileiro e fizeram autocrticas eivadas por
grande sentimento de culpa.
O interesse de Paulo Emlio pela hist-ria do cinema brasileiro cristalizou-se so-
mente em meados da dcada de 50, aps
sua segunda estadia na Europa onde desen-
volveu a pesquisa de flego que deu ori-
gem ao hoje clssico Jean Vigo (1). De volta
ao Brasil em 1954 devido ao I Festival In-
ternacional de Cinema, ocorrido por oca-
sio dos festejos do quarto centenrio da
cidade de So Paulo, Paulo Emlio colabo-
rou intensamente com o evento fazendo
contatos para emprstimo de filmes, con-
vidando personalidades do mundo cinema-
togrfico internacional e ainda escrevendo
para os catlogos (2).
Observa-se por a que mesmo na Euro-
pa ele j se encontrava ligado ao movimen-
to brasileiro de cultura cinematogrfica,
movimento este bastante intenso naquele
momento pela atuao de vrios crticos de
valor na imprensa, realizao de mostras,
atividade de cineclubes, publicao de re-vistas especializadas e at a edio de li-
vros. Tal ligao consubstanciava-se no fato
de Paulo Emlio representar a Filmoteca do
MAM (SP) na Europa e pela atividade como
correspondente deAnhembi e O Estado de
S. Paulo.
A grande inovao do movimento de
cultura cinematogrfica dos anos 50 em
relao dcada anterior, do qual Paulo
Emlio participara como organizador do pri-
meiro Clube de Cinema de So Paulo e
crtico da revista Clima, era a efervescncia
em torno dos estudos histricos sobre o
cinema brasileiro, antes absolutamente des-
prezado. Representativo dessa mudana
o fato de no mbito do prprio festival
ocorrer a II Retrospectiva do Cinema Bra-
sileiro, cujo catlogo continha o ambicioso
texto de cunho histrico As Idades do
Cinema Brasileiro, escrito por B. J. Duarte.Uma vez estabelecido no Brasil, Paulo
Emlio tornou-se conservador da Filmote-
ca do MAM (SP), que em 1956 transfor-
mou-se na Cinemateca Brasileira. Ainda
em 1956 assumiu a coluna cinematogrfi-
ca do Suplemento Literrio de O Estado de
S. Paulo, tribuna a partir da qual discutia a
histria do cinema, os problemas da cine-
mateca e a produo contempornea.
Apesar do clima geral animador e doamplo trabalho de pesquisa desenvolvido
na Cinemateca Brasileira no sentido de
coletar e catalogar material, Paulo Emlio
nesse momento escreveu relativamente
pouco sobre a histria do cinema brasileiro
quando comparado quantidade de artigos
dedicados histria do cinema mundial,
aos problemas da cinemateca, s questes
econmicas da produo nacional e mes-
mo a respeito de grandes diretores contem-
porneos. Quatro artigos representam bem
suas preocupaes nesse perodo em rela-
o histria do cinema brasileiro: Um
Pioneiro Esquecido, Evocao Campi-
neira, Dramas e Enigmas Gachos e Vi-
sita a Pedro Lima.
Em Um Pioneiro Esquecido (3), ar-
tigo publicado a 6 de outubro de 1956
que versa sobre Anbal Requio, o autor
problematiza a concepo ento domi-
nante de histria do cinema mundial eaponta para sua inadequao quando da
investigao histrica em torno da pro-
duo brasileira.
ARTHUR AUTRAN
professor noDepartamento de Artes eComunicaes daUniversidade Federal deSo Carlos e autor de AlexViany: Crtico e
Historiador(Perspectiva,no prelo).
Este texto serviu de base para apalestra do mesmo ttulo apresen-tada no evento Atualidade dePaulo Emlio, promovido pelaCinemateca Brasileira em setem-bro de 2002 para rememorar os25 anos de falecimento de PauloEmlio Salles Gomes.
ARTHUR AUTRAN
1 Paulo Emlio Salles Gomes,JeanVigo, Paris, Seuil, 1957.
2 Jos Incio de Melo Souza,Paulo Emlio no Paraso, Rio de
Janeiro , Record, 2002 , pp.347-57.
3 Paulo Emlio Salles Gomes, UmPioneiro Esquecido, in Crticade Cinema no Suplemento Lite-rrio, v. I, Rio de Janeiro,Embrafilme/Paz e Terra, 1982,pp. 8-10.
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Prope-se antes de mais nada o problema
de situar no tempo o cinema primitivo bra-
sileiro. No que at hoje se convencionou
chamar de histria mundial do cinema, mas
que na realidade no passa da histria do
cinema europeu e norte-americano, a ques-
to j est h muito tempo resolvida.
As histrias do cinema mundial at en-
to surgidas, segundo Paulo Emlio, efeti-
vamente relacionavam-se com os Estados
Unidos e a Europa, no abarcando outras
cinematografias. Na periodizao desen-
volvida para dar conta de narrar a histria do
cinema nos pases industrializados, o pero-
do primitivo ia dos primeiros filmes dos ir-
mos Lumire at a realizao de Cabiria(Giovanni Pastrone, 1914), j no Brasil no
havia informaes confiveis sobre o pri-
meiro filme aqui realizado, comprometen-
do a cronologia inicial, e quanto ao trmino
do perodo tambm havia dvidas muito
grandes sobre qual obra cristalizou pioneira-
mente uma maturidade narrativa.
Evocao Campineira (4), publicado
a 15 de dezembro de 1956, trata do ciclo
ocorrido nessa cidade nos anos 20. A idiados ciclos foi empregada tambm por
outros historiadores de ento como B. J.
Duarte, Francisco Silva Nobre, Jos
Roberto D. Novaes e Alex Viany este
prefere a palavra surto. Embora nenhum
desses autores conceitue ciclo, como ali-
s no conceituam quase nunca as
periodizaes ou recortes empregados,
possvel interpret-lo como relativo pro-
duo numericamente intensa de filmes
ficcionais em dado perodo de tempo, num
espao fora do eixo Rio-So Paulo em
geral uma cidade , cujo declnio foi acen-
tuado. Note-se que ainda hoje a historio-
grafia se vale da idia de ciclo sem nunca
defini-la claramente e sem dar conta para
sua fragilidade ideolgica e operacional,
pois de um lado ela refora a crena de que
o cinema brasileiro um eterno recomear
no qual a histria se repete pela ausncia de
qualquer acmulo de experincia e de ou-tro no d conta da produo de filmes de
no-fico que muitas vezes continuava a
ocorrer aps os ciclos.
Em torno da fitaA Carne (Felippe Ricci,
1925) Paulo Emlio faz uma observao
bastante arguta:
A histria era considerada audaciosa e
temia-se que a atriz principal abandonasse
o trabalho se descobrisse o sentido exato
do enredo. No contorno dessa dificuldade
Ricci fez que uma passagem de seu filme
prenunciasse a clebre seqncia dos ca-
valos noxtase de Machaty, com Heddy
Lamar. No podendo filmar uma cena de
amor particularmente realista num bosque,
Ricci, inspirando-se no romance, apelou
para estranhas imagens de um touro e de
uma vaca. Ignorante das possibilidades me-
tafricas do cinema, a atriz no compreen-dia por que depois de uma cena idlica o
diretor lhe pedia que exprimisse o mais
profundo cansao.
Para alm do humor fino, a se articula
uma rica anlise sobre o nvel de desenvol-
vimento da linguagem cinematogrfica do
filme campineiro, mesmo no existindo
cpias deste. Ou seja, Paulo Emlio inter-
preta, a partir de informaes sobre o cicloe do seu conhecimento dos poucos filmes
mudos brasileiros de fico preservados,
qual procedimento de linguagem poderia
ter sido utilizado. Esse tipo de interpreta-
o fascinante at pelo que exige de ima-
ginao, caracterstica do historiador cons-
tante nos seus textos e pesquisas.
Dramas e Enigmas Gachos (5), pu-
blicado a 29 de dezembro de 1956, e Vi-
sita a Pedro Lima (6), publicado a 19 de
janeiro de 1957, expressam a perplexidade
de Paulo Emlio diante da dificuldade em
aprofundar a anlise histrica pela inexis-
tncia de documentao primria acess-
vel. No primeiro artigo, sobre o cinema
mudo feito no Rio Grande do Sul, o autor
afirma que as pesquisas sobre a histria do
cinema brasileiro iniciaram-se tardiamen-
te, devido a isso vrios pioneiros j haviam
falecido sem deixar depoimentos e seus
arquivos tinham se dispersado. No segun-do artigo, feito a partir de uma visita ao
velho cronista cinematogrfico, contam-se
algumas passagens da vida deste, subli-
4 Idem, Evocao Campineira,in op. cit., v. I, pp. 45-8.
5 Idem, Dramas e En igmasGachos, in op. cit., v. I, pp.54-7.
6 Idem, Visita a Pedro Lima, inop. cit., v. I, pp. 66-70.
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nhando que Pedro Lima, Pery Ribas e
Adhemar Gonzaga eram figuras essenciais
para a histria do cinema brasileiro, pois os
seus arquivos constituam-se em fontes
primordiais. A perplexidade diante do atra-
so generalizado das pesquisas histricas
entre ns parece indicar que, num primeiro
momento, Paulo Emlio preferiu dedicar-
se, s tarefas de localizao, coleta e orga-
nizao de filmes, fotos e documentos es-
critos do que produo de textos.
Dessa sua pequena e valiosa produo
historiogrfica datada dos anos 50 desta-
cam-se: o cuidado para com os recortes
temporais, a utilizao das fontes confron-
tando-as, a interpretao atenta e ao mes-mo tempo criativa das informaes e a cons-
cincia da dificuldade em escrever sobre o
passado do cinema brasileiro devido ao
estgio muito primrio da coleta e organi-
zao de dados. Tudo isso demonstra rigor
incomum para a poca e ele deriva da for-
mao acadmica ligada filosofia uspiana,
dos cursos acompanhados na Cinemateca
Francesa, da relao intelectual com figu-
ras como Andr Bazin e Henri Langlois eda experincia de pesquisa deJean Vigo.
A publicao do livro pioneiroIntrodu-
o ao Cinema Brasileiro (7), de Alex
Viany, momento que Paulo Emlio espera-
va marcar o incio da to esperada fase de
estudos metdicos em torno do cinema
brasileiro (8), deu ensejo a importantes
discusses em torno das pesquisas de vis
histrico sobre cinema entre ns.
O artigo Estudos Histricos, de 23 de
janeiro de 1960, salienta o estado atrasa-
dssimo das pesquisas e afirma que a to-
mada de conscincia da existncia da his-
tria do cinema brasileiro deveu-se ao de-
senvolvimento industrial e cultural cine-
matogrficos ocorridos a partir de 1950.
Alm de lembrar as contribuies de vri-
os crticos e pesquisadores Carlos Ortiz,Francisco Silva Nobre, Caio Scheiby,
Almeida Salles, B. J. Duarte e Jurandyr
Noronha, entre outros , rememora even-
tos como a I e a II Retrospectivas do Cine-
ma Brasileiro em 1952 e 1954, anos que
balizariam o perodo mais fecundo das
pesquisas histricas, cujo desenvolvimen-
to posterior no teria sido to vigoroso (9).
O artigo Contribuio de Alex Viany
(10), de 30 de janeiro de 1960, ressalta a
importncia dos apndices daIntroduo
ao Cinema Brasileiro dedicados a relacio-
nar os profissionais envolvidos na ativida-
de, a legislao sobre cinema, fotos e, es-
pecialmente, a filmografia.
Percebe-se que foi a esse apndice que o
autor dedicou mais cuidado, e o esforo foi
plenamente recompensado. Com a Filmo-
grafia includa em suaIntroduo ao Ci-nema Brasileiro, Alex Viany tornou-se um
benemrito do movimento de cultura cine-
matogrfica no Brasil.
Com o objetivo de aprimorar a Filmo-
grafia so sugeridos: o acrscimo na ficha
filmogrfica da metragem do filme; a con-
tribuio de Pery Ribas, Adhemar Gonzaga
e Pedro Lima; a necessidade de critrios
mais definidos na elaborao da Filmogra-fia, pois alguns longas documentrios
esto relacionados e outros no; e, por fim,
que os filmes deveriam ser indexados cro-
nologicamente e no por ordem alfabtica.
Mas no comentrio sobre o cadastro
dos profissionais do cinema brasileiro que
Paulo Emlio entra numa acirrada polmi-
ca com B. J. Duarte sobre a metodologia da
constituio daquela relao. Para B. J.
Duarte era errado no arrolar crticos des-
tacados como Moniz Vianna, Almeida
Salles, Dcio Vieira Otoni, entre outros, e,
em compensao, mencionar figuras que
no teriam importncia, tais como Csar
de Alencar, Joozinho da Gomia, o Ballet
Pigalle, etc. (11). A posio de Paulo Emlio
era totalmente diversa:
De qualquer maneira, e em desacordo com
a opinio expressa recentemente por B. J.
Duarte, penso que Alex Viany tem razoem limitar-se, no Cadastro, ao nome de
pessoas, grupos (E. C. Corinthians ou Bal
Pigalle) ou bichos (co Duque) que partici-
7 Alex Viany, Introduo ao Ci-nema Brasileiro, Rio de Janei-ro, Instituto Nacional do Livro,1959.
8 Paulo Emlio Salles Gomes, Li-teratura Cinematogrfica, inop. cit., v. I, p. 168.
9 Idem, Estudos Histricos, inop. cit., v. II, pp. 139-44.
10 Idem, Contribuio de Alex
Viany, in op. cit., v. II, pp.145-9.
11 B. J. Duarte, Introduo ao Ci-nema Brasileiro. Anhembi, SoPaulo, v. XXXVII, n. 111, fev./1960.
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param, diretamente ou no, como o caso
de alguns escritores, na fatura de filmes,
deixando de lado os crticos, ensastas, a
gente de cinemateca e os cineclubistas, cuja
atividade no se encontra obrigatoriamen-
te ligada ao esforo concreto da produo
de fitas.
B. J. Duarte no se convenceu e escre-
veu uma rplica na qual repisa que discor-
da do critrio de Alex Viany ao formular o
Cadastro, pois, enquanto nomes impor-
tantes para a histria do cinema brasileiro
foram omitidos, outros sem valor histri-
co ou esttico estavam includos naquele
apndice (12).
No vejo em que possa contribuir para a
cultura cinematogrfica de algum cienti-
ficar-se que o Esporte Clube Corinthians
Paulista tomou parte no elenco de uma fita
ultramedocre da falecida Multifilmes. Mas
com tristeza que verifico nas pginas do
Cadastro e nas da Introduo a ausncia
dos nomes de muitos crticos brasileiros,
de ensastas, de pesquisadores do nosso ci-
nema, que, de modo premeditado, ou por
simples ignorncia e aodamento do sr.
Alex Viany, foram postos margem, nos
itens do Cadastro e dos pargrafos da In-
troduo.
O que temos em jogo nessa oposio ,
de um lado Alex Viany & Paulo Emlio , a defesa de alguma forma de objetividade
como critrio para a elaborao da lista-
gem e, de outro B. J. Duarte , a defesa do
merecimento como critrio. No primeiro
caso no importa a qualidade do filme nem
da participao, mas sim o fato de haver
efetivamente trabalhado na produo; no
segundo caso o que conta unicamente o
valor da contribuio para a arte cinemato-
grfica e isso poderia se relacionar com aatuao de crticos que nunca militaram na
produo. No passa pela cabea de B. J.
Duarte que o tal merecimento teria diferen-
tes significados para cada um. O articulista
entende os seus pontos de vista como uni-
versais e indiscutveis, portanto, a partir
deles, poder-se-ia eleger os indivduos
ou filmes que mereceriam figurar na his-
tria do cinema brasileiro.
Em seguida, Paulo Emlio dedica o texto
Decepo e Esperana (13), de 6 de feve-
reiro de 1960, anlise da narrativa histri-
ca elaborada por Alex Viany. O comentrio
francamente negativo. Minha insatisfa-
o diante destaIntroduo ao Cinema Bra-
sileiro constante. Ressalvando sempre os
apndices, a contribuio pessoal de Alex
Viany para os estudos histricos brasileiros
afigura-se-me bem restrita. Dentre as crti-
cas mais significativas deve-se ressaltar: a
insuficincia da documentao utilizada;ausncia de rigor na organizao das fontes,
pois vrios textos de jornais e revistas no
possuam nem a data; falta total de pesquisa
12 Idem, Ainda a Introduo aoCinema Brasileiro. Anhembi,So Paulo, v. XXXVIII, n. 112,mar./1960.
13 Paulo Emlio Salles Gomes, De-cepo e Esperana, in op.cit., v. II, pp. 150-5.
Foto: Arquivo CCS/Jusp
Abaixo,
auditrio do
Cinusp Paulo
Emlio Salles
Gomes
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sistemtica sem consulta a nenhuma das
principais revistas antigas de cinema; a
estruturao do livro tnue, obedecendo
apenas a uma frouxa cronologia; e falta de
discernimento crtico na utilizao das
informaes coligidas. Aps todas essas
observaes, conclui:
O texto de Alex Viany chama a nossa aten-
o, justamente por tudo o que tem de mau,
para a urgncia de se iniciar a pesquisa
histrica sistemtica. Deposito ainda espe-
ranas nos recursos de autocrtica de Alex
Viany. Se ele avaliar bem todas as falhas da
sua concepo de histria do cinema e de
sua metodologia, muito se poder esperar
ainda da segunda edio daIntroduo aoCinema Brasileiro.
Pelo trecho acima, os problemas do li-
vro so atribudos menos ao prprio Viany
e mais ao estado geral de atraso dos estudos
histricos entre ns. Paulo Emlio percebe
que esse atraso tornava muito difcil escre-
ver uma narrativa histrica panormica,
devido s inmeras lacunas no conhecimen-
to do passado, da a urgncia de comear apesquisa sistemtica.
De um ponto de vista ideolgico mais
geral, o pensamento de Paulo Emlio pos-
sui homologias com as reflexes desenvol-
vidas no Iseb, especialmente por lvaro
Vieira Pinto e Roland Corbisier. Por exem-
plo, a insistncia na importncia da cons-
cincia do atraso como fundamento para
a sua superao possua forte incidncia
nas reflexes produzidas no interior do Iseb
e freqente nos textos datados dos anos
50 e 60 escritos pelo crtico cinematogrfi-
co, da mesma forma que a crena no desen-
volvimentismo industrial como essencial
para a afirmao nacional. Note-se ainda
que no importante ensaio Uma Situao
Colonial? (14), tese apresentada I Con-
veno Nacional da Crtica Cinematogr-fica e publicada no Suplemento Literrio a
19 de novembro de 1960, o autor afirma
como dado comum de todas as atividades
cinematogrficas desenvolvidas no pas a
mediocridade, classificada como a mar-
ca cruel do subdesenvolvimento; j para
os intelectuais do Iseb, segundo Caio
Navarro de Toledo, a situao do Brasil era
entendida de forma homognea como sub-
desenvolvida, sem nenhuma autonomia
relativa entre a economia, a cultura e a
ideologia, concepo expressa no axioma
tudo subdesenvolvido no subdesenvol-
vimento (15).
Dentre as principais problemticas do
perodo formador da historiografia clssi-
ca do cinema brasileiro temos: as origens
do cinema brasileiro, os ciclos regionais,
a decadncia artstica da produo quando
do advento do som, o ataque s chanchadase a constituio da conscincia cinemato-
grfica entre ns. A expresso conscin-
cia cinematogrfica surge em Alex Viany
(16), mas seu pleno desenvolvimento dar-
se- com Paulo Emlio Salles Gomes j em
meados dos anos 60 no texto atualmente
publicado com o ttulo Panorama do Ci-
nema Brasileiro: 1896/1966, produzido no
quadro do incio da institucionalizao dos
estudos sobre cinema na universidade bra-sileira. Paulo Emlio, alm da docncia na
USP, tambm participou junto a Nelson
Pereira dos Santos e Jean-Claude Bernardet,
no incio dos anos 60, da efmera experin-
cia do curso de Cinema da UnB institui-
o cujo projeto educacional revolucion-
rio foi pensado por Darcy Ribeiro e destro-
ado pelo regime militar. Quanto cons-
cincia cinematogrfica, o historiador a
define da seguinte forma:
Pedro Lima emSelecta, e Adhemar Gonza-
ga em Paratodos, ambos mais tarde na re-
vistaCinearte, procuraram orientar e conju-
gar a ao de grupos em geral jovens, igno-
rando-se uns aos outros, dispersos pelo pas.
desse momento em diante que se manifes-
ta uma verdadeira tomada de conscincia
cinematogrfica: as informaes e os vncu-
los fornecidos por essas revistas, o estmulo
do dilogo e a propaganda, teceram umaorganicidade que se constitui como um
marco a partir do qual j se pode falar de um
movimento de cinema brasileiro (17).
14 Idem, Uma Situao Colo-nial?, in op. cit., v. II, pp.286-91.
15 Caio Navarro de Toledo, ISEB:Fbrica de Ideologias, 2a ed.,So Paulo, tica, 1978, pp.18, 86 e 87.
16 Alex Viany, O Cinema Brasi-leiro Por Dentro II. A EscolaNo Foi Risonha e Franca, inManchete, n. 111, Rio de Ja-neiro, 5/jun./1954.
17 Paulo Emlio Salles Gomes, Pa-norama do Cinema Brasileiro:1896/1966, in Cinema: Tra-jetria no Subdesenvolvimen-to, Rio de Janeiro, Paz e Ter-ra/Embrafilme, 1980, p. 54.
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Nesse texto existe ainda a preocupao
com a falta de determinao sobre a pr-
pria histria a que estariam submetidos os
pases subdesenvolvidos, conforme se pode
observar no comentrio de que a realizao
das obras-primas do cinema mudo brasi-
leiro como Brasa Dormida (Humberto
Mauro, 1928) eBarro Humano (Adhemar
Gonzaga, 1929) coincidiu com a decadn-
cia da linguagem desse tipo de cinema de-
vido ao advento do som.
Em Panorama do Cinema Brasileiro:
1896/1966, Paulo Emlio elabora uma
cronologia para a histria do cinema brasi-
leiro caracterizando os seus principais pe-
rodos, ou, como ele denominou, pocas.
A cronologia baseia-se nas crises de pro-duo, tomadas como marcos das pocas,
com exceo da quinta e ltima poca
marcada pelo advento da Vera Cruz. H
um refinamento sem igual quando compa-
rada s outras tentativas anteriores ou mes-
mo posteriores de periodizao do cinema
brasileiro.
Destacam-se tambm observaes me-
ticulosas e criativas do pesquisador, como
aquela em que considera as pelculas comtemtica criminal,A Quadrilha do Esque-
leto (Vasco Lima, 1917) ouRosa Que se
Desfolha(Antnio Leal, 1917), mais desen-
volvidas do ponto de vista narrativo do que
as fitas baseadas em crimes realmente ocor-
ridos, pois estas tinham ao seu favor as in-
formaes veiculadas pela imprensa. Por
outro lado no se atenta suficientemente,
como j salientou Jean-Claude Bernardet,
para o principal veio econmico da produ-
o: o filme natural. A tendncia dos
historiadores foi aplicar ao Brasil, sem cr-
tica, um modelo de histria elaborado para
os pases industrializados em que o filme de
fico o sustentculo da produo (18).
O prprio Paulo Emlio, observando a
limitao da sua anlise em torno do natu-
ral, escreveu em 1974 o seminal ensaio
A Expresso Social dos Filmes Documen-
tais no Cinema Mudo Brasileiro (1898-
1930) (19), no qual busca dar conta dosignificado ideolgico desta at ento des-
prezada parcela da produo cinematogr-
fica a partir da classificao dos filmes em
Bero Esplndido e Ritual do Poder. O
Bero Esplndido seria a descrio das
belezas naturais brasileiras, abundantemen-
te explorada pela produo documentria
das duas primeiras dcadas do sculo XX;
j o Ritual do Poder englobava o registro
das atividades das grandes autoridades da
Repblica especialmente o presidente.
Jean-Claude Bernardet observou posteri-
ormente que mesmo quando a temtica do
natural envolve figuras do povo existe a
possibilidade de o filme se encaixar nesta
ltima categoria, pois uma produo como
As Curas do Professor Mozart (Alberto
Botelho, 1924) foi realizada a partir do in-
teresse de polticos e jornalistas pelo as-
sunto (20). Paulo Emlio comenta que oBero Esplndido tendeu a desaparecer
com o passar do tempo, transmutando-se
num gnero de documentrio cuja temtica
girava em torno da vida e dos costumes do
homem do interior, gerando viva repercus-
so na imprensa carioca atravs de crticos
como Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, para
os quais apenas o filme de fico era digno
de ateno e que deploravam tanto a quali-
dade artstica das produes documentriasquanto o fato de elas mostrarem o atraso do
18 Jean-Claude Bernardet,CinemaBrasileiro: Propostas Para umaHistria, Rio de Janeiro, Paz eTerra, 1979, p. 28.
19 Paulo Emlio Salles Gomes, AExpresso Social dos FilmesDocumentais no Cinema MudoBrasileiro (1898-1930), inPaulo Emlio Um Intelectualna Linha de Frente, organiza-do por Carlos Augusto Calil e
Maria Teresa Machado, SoPaulo/Rio de Janeiro,Brasiliense/Embrafilme, 1986,pp. 323-30.
20 Jean-Claude Bernardet, op. cit.,p. 26.
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pas ao invs do seu desenvolvimento.
Houve, entretanto, outros comentaristas,
como o intelectual Oliveira Vianna, que
ficaram impressionados com as imagens
do atraso expressas de forma ingnua por
esses filmes, expresso secretada tanto pelo
tema quanto pela prpria fatura das fitas.
Concluindo, Paulo Emlio afirma que a
funo do documentrio no foi a de levar
educao e cultura para o homem do inte-
rior, conforme esperavam figuras como o
jornalista Mrio Behring, mas levar para
o litoral a viso do atraso insuportvel do
interior.
Resta-nos apontar uma limitao na
monumental tarefa empreendida por Paulo
Emlio como principal nome da pesquisa eda historiografia clssica do cinema brasi-
leiro. Com isso no se pretende diminuir a
importncia capital do seu pensamento, mas
to-somente dialogar de forma viva com
ele evitando trat-lo de forma embalsama-
da ou como bode exultrio.
A nosso ver, um grande problema do
projeto historiogrfico de Paulo Emlio
reside na ausncia de aprofundamento da
crtica ideolgica principalmente em rela-o aos filmes e cineastas mais antigos. Tal
ausncia na realidade era estratgica, vi-
sando a valorizar ao mximo os pioneiros
do cinema brasileiro e a experincia hist-
rica desta cinematografia como algo essen-
cialmente positivo apesar da opresso
advinda da ocupao do mercado pelo pro-
duto norte-americano.
Destarte algumas questes fundamen-
tais se no chegaram a ser desconsideradas
foram relegadas para um segundo plano
bastante apagado pela historiografia cls-
sica. Citamos apenas um exemplo elemen-
tar: a representao do negro no cinema
brasileiro. Fora algumas poucas pginas em
Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte
(21), o tema quase no vem baila na obra
de Paulo Emlio, cujo interesse pela repre-sentao dos oprimidos patente bem como
pelos grandes quadros ideolgicos.
Ademais, conforme observou Joo
Carlos Rodrigues, a argumentao de Pau-
lo Emlio sobre a ausncia de racismo em
O Thesouro Perdido (Humberto Mauro,
1927), quando um menino negro fumando
comparado a um sapo, no convence ao
apelar para a candura e para a tonalida-
de brasileira da seqncia (22). Antes,acrescentaramos ns, a argumentao de
Paulo Emlio torna claras as lacunas da his-
toriografia clssica e a incapacidade dos
projetos nacionalistas de dar resposta para
as grandes fraturas sociais brasileiras quan-
do estas no se justificam pela opresso
externa.
Atualmente mais perceptvel tal limi-
tao no apenas por toda crtica de que foi
alvo o nacionalismo nos vrios campos da
cultura, como ainda pela ascenso contem-
pornea do movimento negro no Brasil,
inclusive no campo do audiovisual. Devi-
do a isso se torna premente analisar a pre-
sena do negro na frente e atrs das cmeras.
Trabalhos como os de Joo Carlos Ro-
drigues e de Robert Stam (23) sobre a re-
presentao do negro ou a pesquisa atual-
mente desenvolvida por Noel dos Santos
Carvalho sobre diretores de cinema negros
apontam para uma das possibilidades maisricas de renovao do discurso sobre o ci-
nema brasileiro, aquela que envolve a ques-
to tnica.
21 Paulo Emlio Salles Gomes,Humberto Mauro, Cataguases,Cinearte, So Paulo, Perspec-tiva/Ed. da Universidade deSo Paulo, 1974, pp. 146,147 e 310.
22 Joo Carlos Rodrigues, O Ne-gro Brasileiro e o Cinema, 3aed., Rio de Janeiro, Pallas,
2001, p. 80.23 Robert Stam, Tropical Multi-
culturalism: A ComparativeHistory of Race in BrazilianFilms and Culture, Durham,Duke University Press, 1997.