14. moura, margarida maria. no sesquicentenário de nascimento

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No sesquicentenário de nascimento de Franz Boas 1 Margarida Maria Moura* * Professora e pesquisadora do Departa- mento de Antropologia, do CERU e do Diversitas. FFLCH-USP. N a última quadra de sua vida, Franz Boas deu uma entrevista ao jor- nal norte-americano "The Nation", em que afirmava que sua vida em família foi uma tentativa permanente de pôr em prática os ideais da Revolução de 1848, pois sua formação político-fi- 1 Aula inaugural proferida no dia 5 de março de 2008 para o Programa de Pós-Graduação em An- tropologia da UFPE. Aula oferecida ao Diversitas (FFLCH-USP) em 9 de novembro de 2012.

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  • No sesquicentenrio de nascimento de

    Franz Boas1

    Margarida Maria Moura*

    * Professora e pesquisadora do Departa-mento de Antropologia, do CERU e do Diversitas. FFLCH-USP.

    Na ltima quadra de sua

    vida, Franz Boas deu

    uma entrevista ao jor-

    nal norte-americano

    "The Nation", em que

    afirmava que sua vida em famlia

    foi uma tentativa permanente de pr

    em prtica os ideais da Revoluo de

    1848, pois sua formao poltico-fi-

    1 Aula inaugural proferida no dia 5 de maro de 2008 para o Programa de Ps-Graduao em An-tropologia da UFPE. Aula oferecida ao Diversitas (FFLCH-USP) em 9 de novembro de 2012.

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    losfica era igualitria, democrtica e libertria. E isto, no

    sentido dos ideais franceses da dita Revoluo de 1789,

    j que, no caso alemo, h especificidades com relao

    aos demais contextos liberais e/ou revolucionrios. O rei

    da Prssia, Frederico Guilherme IV, recusou a coroa da

    nao alem que lhe foi oferecida na primavera de 1848

    por uma assembleia reunida em Frankfurt, para no se

    tornar monarca por meio do povo e assim, tendo de dar-

    lhe satisfaes, uma vez que lhe deveria a coroa alem e

    teria, portanto, de respeitar uma constituio que obri-

    gatoriamente limitaria seus poderes autocrticos. Alegou,

    para isso, no querer receber uma coroa vinda da sarjeta

    e enviou tropas para dispersar tal assembleia. Recusava-se,

    desse modo, a dar um passo que unificaria a Alemanha

    sem o preo das trs guerras empreendidas por Bismarck,

    anos mais tarde primeiro contra a Dinamarca, depois

    contra a ustria-Hungria e, finalmente, contra a Frana ,

    pois o preo de tal unificao em 1848 seria fazer con-

    cesses democracia, aos ideais liberais e ao direito de

    autodeterminao dos povos.

    A formao universitria de Boas deu-se nas Universi-

    dades de Heidelberg, Bonn e Kiel. Estes ambientes de elite,

    fortemente aristocrticos, em virtude da presena macia

    do Junker a nobreza territorial e guerreira alem, nota-

    damente prussiana, monopolizadora dos postos do alto

    comando das foras armadas e dos cargos de prestgio na

    administrao, notadamente em se tratando da posio

    de ministro de Estado tinham o duelo como elemento

    cultural distintivo de poca.

    Assim Franz Boas, acadmico, bateu-se em duelo por

    questes relacionadas com o antissemitismo. Muito atuan-

    te como aluno de postura crtica na Universidade e viven-

    do o clima de confronto da poca, cujo nervo era o duelo,

    bateu-se com seu opositor. Boas frequentemente teve de

    enfrentar colegas no judeus, desta forma, por questes

    ligadas raa e poltica.

    E assim ocorreu com ele, porque o duelo no meio uni-

    versitrio alemo, era um verdadeiro rito de passagem,

    que atestava ser o homem que se batia realmente viril e

    aristocrtico, se no na origem, pelo menos em sua con-

    cepo de vida e com isso, digno de fazer parte de uma das

    seletas confrarias acadmicas, depois dos trotes iniciais,

    logo ao ingressar na universidade e da participao no

    duelo demarcatrio do novo status. Vejamos, novamente

    pelas palavras de Mayer, como era o tal duelo nobilitador:

    O duelo estudantil, essa bizarra sobrevivncia da cavalaria

    belicosa, era a mais famosa das provaes impostas para

    avaliar o valor dos postulantes confraria. Presumivel-

    mente, esse duelo era travado como prova de coragem e

    honra, onde [sic] cada concorrente adquiria um perigoso

    corte no rosto, que deixava urna Tonsur (cicatriz) per-

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    manente e ostensiva. Na verdade, os olhos, a garganta,

    o brao direito e o tronco ficavam to completamente

    protegidos, que o que era tido como um arriscado com-

    bate constitua na realidade uma leve operao facial

    ritualizada. Na virada do sculo, mesmo as confrarias

    estudantis at ento liberais assumiram a fanfarrona da

    das Landsmannschaften tradicionais e inveteradas corno

    parte do ressurgimento conservador. Pertencer a alguma

    confraria, portanto, era subscrever as pretenses aristo-

    crticas do antigo regime.2

    A cabea de Boas, portanto, trazia a marca de um desses

    duelos, a cicatriz de uma grande ferida de sabre, que alm

    de acertar-lhe o couro cabeludo, arrancara um tufo de

    cabelos, na abertura deixada pelo capacete usado nesses

    encontros.

    Sua formao intelectual diversificada o estimulou na

    determinao de mostrar-se cidado pleno numa Alema-

    nha que negava este direito ao judeus. Nesse sentido, toda

    sua formao contm dados expressivos de confrontao

    e confrontao atuante com a sociedade estamental

    e preconceituosa em que nascera e em que vivia ento.

    As ideias futuras de Franz Boas sobre a antropologia

    cultural seriam tambm devidas influncia de profundos

    2 Mayer, Arno. A fora da tradio: a persistncia do Antigo Regime, p. 259.

    estudos filosficos. Professores e disciplinas cursadas o

    influenciaram diretamente nesta poca. No somente Kuno

    Fisher, mestre e diretor de estudos, mas, possivelmente,

    tambm Wilhelm Dilthey, de quem foi aluno em Berlim.

    O primeiro no teve projeo internacional, tal como Dil-

    they, mas era suficientemente importante e citado em

    trabalhos acadmicos para exercer influncia de grande

    porte sobre o discpulo. de se destacar nessa poca a

    influncia do antroplogo fsico e paleontlogo Rudolf

    Virchow que problematizava caractersticas craniomtri-

    cas, altamente estabelecidas entre autores racistas como

    fixas e imutveis na condio homindea. A rejeio dos

    abusos evolucionistas, que chegaram a afirmar a desigual-

    dade das raas, a busca da prova emprica sistemtica,

    com a comparao de crnios humanos com o uso dos

    antropmetros, vieram das ideias deste professor extraor-

    dinariamente divergente do establishment acadmico de seu

    tempo. Tambm antropometrista (seu artigo Growth, re-

    visado e condensado em 1939, foi escrito originalmente

    em 1892), Boas atraa-se pela possibilidade da formao

    diferenciada dos tipos humanos, configurando diferenas

    antropobiolgicas de grande flego comparativo, pela sua

    colateralidade, nunca pela inferioridade em face de uma

    hipottica superioridade.

    Cientista fsico na sua formao, Boas se preocupava

    com a cor e com a luz, com os olhos como rgos da

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    tradio, como bem denotou sua tese de doutoramento

    em fsica sobre a cor da gua do mar. Sensibilidade que,

    nos finais do sculo XIX, tiveram tambm os pintores

    impressionistas franceses e, tambm, Elyseo Visconti, no

    Brasil para os quais a cor, em ltima anlise, era questo

    de opinio pessoal, com base na observao individual

    de cada artista e de sua sensibilidade particular no ato

    de captar a tonalidade, isso em nada invalidando proce-

    dimento diverso de um colega. Os conceitos de pintura,

    de equilbrio de cores, de tonalidades, na poca, foram

    feitos tomando-se em conta os estudos dos fsicos sobre

    a refrao da luz, o que referendou a tese desses artistas

    de que a luminosidade influa decisivamente na percep-

    o que temos das cores dos quadros que pintavam, de

    acordo com a hora do dia e a estao do ano, o estado da

    nebulosidade e outros fatores, e da sua pouca preciso

    cromtica.3

    Mas a influncia principal a dos irmos Von Humboldt

    Wilhelm como linguista e aderente Folk psychology e

    Alexander como gegrafo, historiador natural um etn-

    grafo de primeira, profundamente preparado para enten-

    der a relao do humano com o ambiente.

    3 O nome da tese de doutoramento em fsica e Franz Boas na Universidade de Kiel foi Beitrge zur Erkentniss der Farbe des Wassers (Contribuio ao estudo da cor da gua).

    Portanto, houve no uma, mas vrias influncias hu-

    mansticas, fossem elas cientficas ou filosficas, que en-

    traram na formao de Boas, num momento de fermenta-

    o extraordinria, fosse no terreno da sociedade, fosse no

    terreno acadmico. Numa poca de convivncia especial-

    mente tensa entre grupos tnico-culturais, desenhou-se

    na mente do jovem cientista uma urgente necessidade de

    iniciar uma carreira intelectual em outro pas. Buscar em

    outro pas direitos que eram negados no somente aos

    judeus como grupo, mas de forma individual aos homens

    dessa origem que fossem cientistas e, portanto, expoentes

    intelectuais que, vindo a se destacar no cenrio acadmico,

    s poderiam respirar o ar fresco das ideias se aceitassem

    a cooptao pelo Estado. Buscar a Amrica, tal como no

    caso de Franz Boas, foi ideia que surgiu na mente de mui-

    tos estudiosos e pensadores europeus da sua gerao os

    tributrios do liberalismo da Revoluo de 1848 e de

    sua origem os que pela etnicidade judaica se sentiam

    deslocados ou cerceados, no sendo poucos, alis, os que

    vieram para o Brasil. Por que no realizar uma carreira livre

    e inovadora nos Estados Unidos?

    Uma exceo notvel a este clima de poca to exclu-

    dente e reacionrio foi sem dvida alguma a figura gran-

    diosa de Max Weber, que sempre se recusou metodicamen-

    te a se relacionar com as universidades e entidades que

    discriminavam intelectuais judeus, marxistas e socialistas

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    de diversos matizes e catlicos num pas majoritaria-

    mente luterano , alm de agir do mesmo modo com as

    entidades catlicas que discriminavam protestantes, judeus

    e socialistas. Alm disso, sempre foi mais que notria a

    sua extrema e fraternal amizade com o socilogo judeu

    Georg Simmel. Ainda assim, Weber manteve-se enraizado

    Alemanha at o fim de sua vida, em 1920.

    Foi em 1883 que ocorreu o turning-point mais denso da

    vida de Boas, tanto pessoal quanto cientfico a pesquisa

    de campo na Terra de Baffn, entre os Inuit, e certificar o

    batismo da etnografia associada ao trabalho de campo in

    loco. Isso numa poca em que grande parte da concepo

    de geografia era quase totalmente realizada no seu ramo

    fsico, como herana do trabalho pioneiro de Karl Ritter e

    at mesmo de parte do trabalho de Alexander von Hum-

    boldt, que trabalharam anteriormente s novas ideias rat-

    zelianas sobre o papel determinista do meio no ambiente

    criado pelo homem. Deve-se levar em conta tambm que

    as ideias de Friedrich Ratzel, mestre do futuro antroplo-

    go a quem ele acabaria por contestar, relativizando suas

    afirmaes enfatizou os fatores humanos no ambiente

    geogrfico, apesar de sua subordinao aos critrios de-

    terministas, exatamente o ponto em que o pensamento

    do jovem Boas acabou por se chocar com o seu.

    A pesquisa de campo fez Boas no somente compreen-

    der, descrever e interpretar a cultura Inuit, mas afirmar,

    pela viso afetuosa do fenmeno humano, historicamente

    delimitado, a Herzenbildung, "a cultura do corao", que faz

    o convvio com outros seres sociais concretizar-se em

    campo intelectual prprio, singular, no qual se realiza,

    acima de tudo, a interlocuo entre sujeito de pesquisa

    e pesquisador, no sentido da abordagem amorosa do

    fenmeno.

    Da decomposio etimolgica das duas palavras cons-

    tituintes, o substantivo Herz, corao, e Bildung, construo,

    deve-se compreender a Herzenbildung como "a construo

    do corao", "a cultura do corao", uma linhagem de

    estudos que no se confunde com o uso do microscpio

    para os corpos extremamente pequenos nem com a do

    telescpio para os extremamente distantes. Para Boas, ha-

    via corpos humanos, profundamente imbudos da noo

    de pessoa, ainda que imersos numa coletividade que se

    sobrepe a tais individualidades. Tem-se a impresso de

    que estava, nesse momento privilegiado de sua juventude,

    nos seus vinte e cinco anos, expressando uma sensao in-

    cmoda com todas as tradies antecedentes de pesquisa

    humana de observao de outros povos, que estivessem

    sendo estudados e interpretados pelo prisma mecnico

    da assim chamada regularidade montona das leis sociais.

    Dava o primeiro passo para o approach que atinge o senti-

    mento e que se expressa pelo ngulo subjetivo e singular

    de uma relao humana que afeta o eu e o outro. Estava,

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    nesse momento prximo no somente da Weltanschauung

    dos Inuit, mas de sua prpria Weltanschauung, e o cerne de

    tal concepo de mundo era a Herzenbildung:

    Quanto mais completamente o contorno dos continentes

    e das ilhas tornou-se conhecido, mais forte se tornou o

    desejo de compreender [grifo de Boas] os fenmenos

    das regies recm-descobertas de seus prprios pases.

    Em vez de estender seus estudo sobre novas reas, os

    cientistas comearam a ficar absorvidos em observar os

    fenmenos mais sistematicamente, comparando-os com

    os resultados das observaes anteriormente feitas. [...]

    No momento em que concordamos que o propsito de

    toda cincia atingido quando descobrimos as leis que

    governam todos os fenmenos, temos de admitir que

    o objeto da geografia est distribudo por um grande

    nmero de cincias; se contudo mantivermos sua inde-

    pendncia, temos de provar que existe um outro objeto

    para a cincia alm do que provm da deduo dos fen-

    menos. E nossa opinio que existe um outro objeto a

    compreenso abrangente dos fenmenos. Achamos assim

    que a contenda entre os gegrafos e seus adversrios

    idntica velha controvrsia entre mtodos histricos

    e fsicos. [...] Enquanto a cincia fisica surge das exign-

    cias lgicas e estticas da mente humana, a cosmografia

    tem sua fonte no sentimento pessoal do homem para

    com o mundo, para com os fenmenos que o circun-

    dam. Podemos denominar isto um impulso afetivo,

    em contraste com o impulso esttico. Goethe expressou

    essa idia com admirvel clareza: Parece-me que cada

    fenmeno, cada fato, nele mesmo um objeto realmente

    interessante. Quem quer que o explique, ou que o coligue

    com outros acontecimentos geralmente s se diverte ou

    age de modo diletante, como por exemplo o naturalista

    ou o historiador. Mas uma nica ao ou acontecimento

    interessante no porque explicvel, mas porque

    verdadeira. A mera ocorrncia de um fato exige a plena

    ateno de nossa mente, porque somos afetados por ele.

    E ele estudado sem nenhuma relao com o lugar que

    ocupa, num sistema.4

    Leitor de Kant, Boas j havia tomado como ponto de

    partida, com grande conhecimento terico e emprico

    de ambos os campos intelectuais, a diviso kantiana en-

    tre as cincias nomotcnicas, como a fsica e a qumica,

    e as cincias ideogrficas, como a histria e a nascente

    antropologia cultural. Estavam assim instaladas as bases

    preliminares para a construo da sua noo de cultura,

    separada do campo das raas, que ele preferia denominar,

    com fundamentao e prudncia, de tipos humanos. O re-

    4 Boas, Franz. The study of geography, pp. 639, 641 e 644.

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    torno antropologia fsica, doravante, s poderia ser feito

    pelo emprego das lies de Virchow, sobre a mutabilidade

    biolgica dos tipos fsicos. Em 1894, quando j estava nos

    Estados Unidos, publicou um importante trabalho, em

    que fez a descrio e a interpretao antropomtrica de

    um grupo metodologicamente controlado de imigrantes

    judeus moradores de Nova York, focalizando especialmente

    seus ndices ceflicos. Neste artigo, escrito sob controle

    rigoroso dos dados, e circunscrevendo sua observao to-

    somente aos descendentes diretos das famlias imigrantes,

    afirmou que a raa se caracteriza pela instabilidade dos

    tipos humanos e no pela estabilidade.

    Sua demonstrao, resultado de pesquisa concreta,

    teve, evidentemente, grande potencial de enfrentamento

    de ordem cientfica, sendo tambm argumento poltico de

    peso. Permitiu a Boas mostrar-se extremamente atuante

    no cenrio acadmico norte-americano por um perodo

    de mais de quarenta anos.

    Com a publicao de seu livro The Mind of Primitive Man

    (A mente do homem primitivo) em 1911, surgiu um divisor

    de guas no seu campo intelectual especfico, porque Boas

    produziu, pela primeira vez, a separao da noo de raa

    da noo de cultura. No captulo denominado Early Cultu-

    ral Traits, (Primeiras caractersticas culturais), podemos

    destacar um feixe de afirmaes que so fundamentais

    para a sua noo de cultura. Alm da definio propria-

    mente dita, outros trecho da mesma obra explicitam-na

    e ampliam-na:

    A cultura pode ser definida como a totalidade das reaes

    e atividades mentais e fsicas que caracterizam a conduta

    de indivduos que compem um grupo social, coletiva

    e individualmente, em relao ao ambiente natural, a

    outros grupos, aos membros do prprio grupo e a cada

    indivduo consigo prprio. Ela tambm inclui os produtos

    dessas atividades e seu papel na vida dos grupos. Con-

    tudo, a mera enumerao destes vrios aspectos da vida

    no constitui cultura. Ela mais. Seus elementos no so

    independentes, eles tm uma estrutura. [. . .]. peculiar

    ao homem a grande necessidade de condutas, no que diz

    respeito sua relao com a natureza e com seus seme-

    lhantes. Enquanto entre os animais o comportamento de

    toda espcie estereotipado ou, como dizemos, instintivo,

    no aprendido, e somente em extenso diminuta varivel

    e dependente da tradio local, a conduta humana no

    estereotipada no mesmo sentido e no pode ser chamada

    de instintiva. Ela depende da tradio local e aprendida.

    Em outras palavras, a cultura humana diferenciada do

    mundo animal pelo poder da razo e ligada a ela, o uso

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    da lngua. igualmente peculiar ao homem a avaliao

    das aes de um ponto de vista tico e esttico. 5

    importante frisar que a questo da criao indepen-

    dente no plano da cultura e das culturas um ponto

    teoricamente fundamental para o pensamento boasiano,

    servindo de modo decisivo futura antropologia de Lvi-

    Strauss. Num momento da histria da antropologia em

    que a crena da universalidade do processo de difuso,

    em virtude do peso explicativo exagerado que lhe era

    dado pelo evolucionismo fazia que fosse citado a todo

    momento entendendo-se que havia um centro dispersor

    e os distintos traos culturais se propagavam por conta-

    tos culturais, Boas deixou claro que se por um lado nada

    impedia a ocorrncia da difuso, por outro, igualmente,

    nada obrigava que somente por intermdio de tal pro-

    cesso se desse a adoo de comportamentos, utenslios e

    instituies por parte de culturas distintas. A difuso no

    obrigatria urna vez que possvel, tambm, ocorrer o

    fenmeno da convergncia: povos distintos, que nunca

    tiveram contato entre si, vivendo em lugares separados

    pela geografia, podem chegar aos mesmos resultados,

    para solucionar problemas semelhantes. E isso, dada a

    5 Boas, Franz. Early Cultural Traits, in The mind of primitive man, pp. 159, 163 a 167, 171 e 172.

    identidade fundamental da mente humana, pois o negro

    africano, por exemplo, por seu equipamento mental igual

    ao do branco e ao do ndio, capaz de chegar s mesmas

    concluses e resultados que o ndio americano, o europeu

    ou o Inuit, para solucionar questes semelhantes e para

    criar instituies semelhantes.

    Anotemos tambm uma observao relevante do an-

    troplogo sobre a espinhosa questo do desenvolvimento

    das culturas:

    A teoria de um desenvolvimento contnuo da arte sim-

    blica arte realista urna das inmeras tentativas de

    provar o desenvolvimento contnuo de formas culturais,

    uma permanente e ininterrupta evoluo. Este ponto de

    vista teve influncia profunda em toda a teoria etnolgica.

    A evoluo, significando a mudana contnua de pensa-

    mento e ao, ou continuidade histrica, deve ser aceita

    sem reservas. coisa completamente distinta quando

    concebida como um desenvolvimento de uma forma

    cultural tomando como ponto de partida um tipo prece-

    dente, tal como o suposto desenvolvimento de formas

    econmicas da coleta de alimentos, passando pelo pas-

    toreio, para a agricultura. No passado, estes trs estgios

    eram tidos como caractersticos de todo desenvolvimento

    humano, at se reconhecer que no h conexo entre a

    inveno da agricultura e a domesticao de animais a

    primeira desenvolveu-se por meio da ao das mulheres

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    que coletavam o suprimento de alimentos vegetais; o

    segundo pela dedicao dos homens caa. Os homens

    no tinham oportunidade de se familiarizar com o manejo

    das plantas e as mulheres tinham tambm poucas opor-

    tunidades de lidar com animais. No possvel, portanto,

    que tanto o desenvolvimento da agricultura quanto o do

    pastoreio pudessem derivar das mesmas fontes. No

    menos arbitrrio pressupor que as formas sociais devem

    ter-se desenvolvido numa sequncia universalmente v-

    lida, cada estgio sempre se baseando no seu precedente,

    em todas as partes do mundo. No h evidncia que nos

    induza a assumir que as organizaes matrilineares sem-

    pre precederam as patrilineares ou bilaterais. Ao contrrio,

    muito mais provvel que a vida dos caadores, numa

    nica unidade familiar, ou a de grupos mais amplos, em

    reas mais frteis, conduziu a resultados inteiramente

    diferentes. S podemos esperar evoluo contnua na-

    queles casos em que as condies sociais e psicolgicas

    so contnuas.6

    E tal assertiva depende de prova emprica para sua

    sustentao. Contextualizando agora o contexto histrico

    norte-americano e internacional contemporneos do mo-

    mento em que ocorreram as inovaes epistemolgicas e

    6 Boas, Franz. Primitive art, p. 80.

    metodolgicas ofertadas por Boas antropologia, notamos

    um clima poltico de incertezas e tenses internacionais,

    em que a guerra pairava no horizonte. importante que

    tenhamos em conta esse ambiente poltico internacional

    e domstico, para que compreendamos a preocupao de

    Boas com os problemas em questo, ao lado de sua con-

    fiana em que as cincias humanas em geral e a antropo-

    logia de que ele participava, pudessem atuar firmemente

    de modo que auxiliasse no trabalho de evitar os conflitos

    e equvocos nas relaes entre os homens e entre culturas.

    Nesse sentido, deve se registrar a coincidncia entre as

    concepes de Franz Boas e de mile Durkheim, uma vez

    que o segundo tambm afirmava que o papel do homem

    de cincia era tanto acadmico quanto societrio, devendo

    ele atuar para sugerir, por meio dos dados obtidos por sua

    cincia, as solues que os estadistas e dirigentes sociais

    pudessem pr em ao. Se pensarmos com relao a tal

    posio, podemos dizer que tanto Boas quanto Durkheim

    foram polticos, como homens preocupados com a plis,

    com a sociedade, atuando como cidados participantes.

    Se correto afirmar, como Amo Meyer o fez, que Em

    1914 a Europa era demasiado Ancien Rgime para que suas

    ideias e valores reinantes fossem outros que no con-

    servadores, antidemocrticos e hierrquicos, ou ainda

    que: Em vez de agir como parteiras da sociedade escla-

    recida e democrtica do futuro, as classes dominantes e

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    governantes se mantinham como suportes e guardies

    da soberba herana clssica e humanista do passado7, os

    E.U.A., para Alfred Kazin, no seu prefcio a The Big Money,

    obra soberba de John dos Passos, a infncia de vrios

    americanos ilustres nos anos teen Ernest Hemingway,

    E. E. Cummings, Edmund Wilson e o prprio John dos

    Passos , que cresceram em famlias estveis, [...] (com

    as) mes sendo transmissoras conscientes da tradio

    puritana americana, na mais do que antiga certeza de que

    os americanos eram mais virtuosos que outros povos

    (intercalao minha M.M.M.), era diferente da viso

    imperial do mundo. O imperialismo j navegava a todo

    vapor, a comear pela pretenso da sociedade norte-ame-

    ricana de ser portadora de um destino excepcional, que

    lhe dava direito de se manifestar do modo que melhor

    lhe parecesse nas decises do mundo, e que seu ponto

    de vista deveria ser indiscutivelmente reconhecido por

    todos como o melhor.

    Muitos pensadores, literatos, artistas, cientistas e aca-

    dmicos tornaram-se pessimistas com relao ao desen-

    volvimento da democracia nos Estados Unidos, como, por

    exemplo, dois representantes de uma gerao mais moa

    com os quais Boas manteve contato e que eram Albert

    Einstein, fsico e Charles Chaplin, ator de cinema.

    7 Kazin, A. Introduction. In: Dos Passos, J. The Big Money, p. VII e VIII.

    Boas mantinha uma independncia bsica com relao

    a esta viso imperial norte-americana do mundo. Est

    registrada nesta poca a ajuda militante comandada por

    ele para a reforma das bibliotecas austracas e alems

    defasadas, no imediato ps-guerra. interessante notar

    como as noes boasianas de dinmica cultural e de re-

    lativismo cultural serviram de base no somente para a

    antropologia cultural, mas para a militncia social da ci-

    dadania, sem adeso partidria. Influenciava no somente

    o estabelecimento acadmico, tendo como ponto de irra-

    diao o Departamento de Antropologia da Universidade

    de Colmbia, em Nova York, como os movimentos sociais

    aos quais dava sua contribuio.

    A noo de relativismo cultural foi frequentemente

    colocada tanto de forma etnogrfica quanto poltica, no

    como um conceito frio, simplesmente, mas como um

    humanismo, uma aceitao da diversidade, que deveria

    ser acatada de forma pacfica. Ao mesmo tempo que me-

    todolgica, era uma posio filosfica, por intermdio

    da qual se est, ao mesmo tempo, dentro e fora de sua

    prpria cultura para viv-la e observ-la, para exercitar

    uma cidadania responsvel, preconizar uma interveno

    concreta na prtica social, de modo tal que se possa obter

    resultados mais justos e equilibrados na convivncia das

    diversas culturas e entre grupos tnicos representativos

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    dentro de uma mesma cultura e, em especial, dentro de

    uma mesma nacionalidade.

    No destituda de paradoxo esta convivncia do relati-

    vismo cultural com um humanismo universalista. Embora

    fosse um pesquisador rigoroso de diversas culturas, Boas

    recomendava, ao mesmo tempo, distanciar-se da essn-

    cia dessas mesmas culturas. Ele estava desejando como

    pesquisador um distanciamento crtico que favorecesse

    a densidade do ato da observao, ao mesmo tempo que

    encarecia a abordagem afetiva. Isso era recomendado para

    que, se contrapondo abordagem afetiva, no se perdes-

    se a objetividade necessria pesquisa cientfica. Quis

    concretizar esta ideia na sua biografia pessoal, levando

    em considerao onde tinha vivido e onde viera viver,

    referncia simultnea Alemanha e aos Estados Unidos.

    Relativismo e humanismo estavam, em seu pensamento,

    em estado de ebulio.

    Sua carreira entrara numa fase madura e extremamente

    fecunda em meados da dcada de 20, do sculo passado.

    Pode-se estabelecer 1925 como marco dos mais significati-

    vos, porque foi o ano em que ele teve como alunas no seu

    curso denominado Methods, oferecido no Departamento

    de Antropologia da Universidade de Colmbia, as futuras

    grandes antroplogas Margaret Mead e Ruth Benedict.

    Diz-nos a primeira:

    Minhas anotaes da primeira aula do curso [denomi-

    nado] Methods, no semestre da primavera de 1925, [. . .]

    [seus] comentrios foram tais como [. . .] uma aula sobre

    paralelismo (17 de fevereiro de 1925), em que discutiu a

    poliandria entre os Toda e os Esquim, ele disse, confor-

    me minhas notas: Na realidade os dois fenmenos tni-

    cos com os quais estamos lidando no so os mesmos,

    Assim, a nossa tarefa no enfatizar as semelhanas,

    mas penetrar nos detalhes quanto s dessemelhanas.

    Numa aula sobre Graebner, na semana seguinte (24 de

    fevereiro de 1925), ele discutiu a rea de difuso coberta

    pelo conto do Earthdiver, (mergulhador da terra) e,

    numa data mais tardia, a difuso paralela do bordado

    de contas, e comentou: Assim encontramos vrios ele-

    mentos da vida cultural sendo gradualmente distribudos

    por todo um continente, mas de modos inteiramente

    distintos. Condies sociopsicolgicas que propiciam a

    distribuio de um conto e de uma tcnica so bastante

    diferentes. Mais tarde, num seminrio em que Ruth Be-

    nedict fez um relato sobre folclore (23 de abril de 1925),

    Boas cismou no fundo da sala e se dirigindo a ningum

    em particular, [disse]: [. . .] h muitas histrias largamen-

    te disseminadas em todo o continente, mas de modo

    inteiramente distinto. Deve haver uma razo particular

    sobre por que so selecionadas. A histria do Earthdiver,

    por exemplo. [...]. E prosseguiu, em aula sobre (Emst)

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    Cassirer, (em 17 de maro de 1925): Se tivssemos infor-

    mao suficiente, creio que concluiramos que a relao

    de tempo mais clara que a de espao, mas a ideia de um

    tempo sagrado contra um tempo secular ocorre muitas

    e muitas vezes. Mas a prova que deveria ser dada no

    fcil. Seria necessrio dispor de todo o material no mundo

    todo. justificvel perguntar: estas trs relaes, espao,

    tempo e nmero, corno Cassirer as expe, se criaram no

    mundo todo? Em caso positivo, podemos dizer, como

    Cassirer: temos, de fato, caractersticas fundamentais do

    pensamento humano. Temos [ainda assim] de ser muito

    crticos e cticos. Teriam estas ideias universais se de-

    senvolvido historicamente ou seriam elas determinadas

    psicologicamente? E se essas ideias no so universais,

    mas dispersas no historicamente, dever haver ento um

    determinismo psicolgico sob certas condies dadas.

    Grifos de Margaret Mead, intercalaes minhas M.M.M.8

    Alguns temas recorrentes na antropologia boasiana

    podem ser percebidos nos trechos citados. Em primei-

    ro lugar, a atitude didaticamente adversativa em relao

    ao mtodo comparativo, atitude que Boas trazia desde

    8 Mead, M. Aprenticeship under Boas, p. 35 e 36. In Goldschmidt, W., org. The Anthropology of Franz Boas: Essays in Centennial of his birth. Notas dos cadernos do curso Methods, dados por Franz Boas em 1925.

    a primeira fase de sua carreira, ainda no final do sculo

    XIX. Era cuidadoso ao extremo para no se deixar levar

    pela primeira impresso de semelhana entre dois ou

    mais fenmenos observados.. Em segundo lugar, ainda

    que aceitando especificamente uma argumentao difu-

    sionista, nesse caso concreto, introduziu a questo dos

    tempos diferenciais de distribuio entre uma represen-

    tao mental, no caso, um conto, e um aspecto da cultura

    material, como o bordado. Na aula seguinte, as questes

    desaguaram no problema dos universais da cultura, que

    ele problematizou por meio da histria, por um lado, e

    da a questo pode ser tanto da capacidade independente

    das diferentes culturas de criar tais ideias sobre tempo e

    espao, ou, por outro, de uma determinao psicolgica do

    esprito humano, que podemos tambm designar a unida-

    de psquica da humanidade. Na simplicidade do ttulo do

    curso Mtodos descortinava-se um poderoso esprito

    interrogativo, que transitava de questes metodolgicas a

    questes etnogrficas, e na interseco de ambas, de modo

    considerado extremamente estimulante pelas discpulas

    Margaret Mead e Ruth Benedict. Caminhando junto com

    as questes civis mais importantes na Amrica nesta mes-

    ma poca, tambm h o caso j citado no Captulo 1, da

    carta que Boas escreveu, denominada Scientists as Spies,

    (Cientistas como espies), dirigida ao jornal The Nation,

    que se constituiu numa denncia dos pesquisadores que

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    usavam recursos financeiros do Departamento de Estado

    dos Estados Unidos para fazerem pesquisas com outros

    povos e culturas e com isso redigirem registros minucio-

    sos que incluam dados sobre a rebeldia e o conflito e

    que se destinavam a servir poltica desse rgo.

    A Alfred Haddon, antroplogo fsico britnico, profun-

    damente interessado, tambm, na cultura material, es-

    creveu em 1935, no momento em que o nazismo j se

    encontrava no poder, desde 1933, e dava curso s perse-

    guies raciais.

    A Clstin Bougl, ilustre nome da Escola Sociolgica

    Francesa e antigo discpulo de Durkheim, Boas respondeu

    a 6 de maio de 1937, tambm sublinhando as vicissitudes

    do momento histrico, Estava-se apenas a vinte anos do

    momento mais cruel da Primeira Guerra Mundial e j

    o mundo se convulsionava como uma sociedade plane-

    tariamente enferma, na Amrica, Europa, sia e frica,

    mergulhado nas ideologias mais reacionrias e belicistas,

    para as quais no importava minimamente o fantstico

    avano das cincias humanas, fosse na psicanlise, fosse

    na psicologia, fosse na histria social, fosse na sociologia,

    fosse na antropologia, que percorriam trilhos prprios

    ao racionalismo e ao historicismo, enquanto a barbrie

    tramava seus prprios caminhos, com um poder de fogo

    aparentemente maior.

    A questo racial do negro e em menor escala, do

    indgena se acentuou tremendamente nos Estados Uni-

    dos da dcada de 30 do sculo XX, momento em que Boas

    demonstrou seu ativismo pelos direitos civis no Ameri-

    can Committee for Democracy and lntellectual Freedom,

    com a sua militncia em prol da compreenso, no s

    antropolgica, como tambm poltica, da questo racial

    dos Estados Unidos. No comit, do qual era presidente,

    junto com outros militantes da organizao, entre os quais

    Ruth Benedict, o geneticista L. C. Dunn, da Universidade

    de Colmbia, o pai do antroplogo George Stocking, Jr,

    George Stocking, da Universidade do Texas, Boas apresen-

    tou palestras, atuou como membro dos grupos de presso,

    publicou panfletos e manifestos antirracistas.

    A entidade emitiu ainda enrgico manifesto repudian-

    do severamente a deciso da Board of Higher Education

    (Comisso de Educao Superior) que havia anteriormente

    recusado a aceitao do filsofo ingls Bertrand Russell

    no City College de Nova York, por motivo de crena reli-

    giosa. Em 12 de maro de 1940 a entidade manifestou-se

    exigindo que o citado Board of Higher Education admitisse

    representantes do American Committee for Democracy

    and lntellectual Freedom em reunio que estava para se

    realizar a fim de discutir a reconsiderao do ato que

    vetou a presena do pensador ingls nessa faculdade de

    Nova York.

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    Coincidiu, na esfera pblica, numa conjuntura de con-

    testao, o surgimento da famosa entidade acadmica New

    School for Social Research, que convidou Franz Boas para

    fazer parte do seu quadro de consultores, numa posio

    de destaque muito honrosa. Ele no somente tomou de-

    cises importantes sobre os cursos que deveriam a ser

    ministrados, como tambm viabilizou a vinda aos Estados

    Unidos de sbios perseguidos na Europa em pleno pro-

    cesso de ascenso do nazismo e do fascismo. Destacou-se

    naquele contexto, j depois de 1940, quando da queda da

    Frana nas mos dos nazistas, a j citada viabilizao da

    sada da Europa de pesquisadores franceses perseguidos

    pelo governo de Vichy, e os demais perseguidos por outros

    governos e outros regimes.

    Boas esteve no centro do episdio do asilo de Paul

    Rivet nos Estados Unidos, o grande antroplogo francs,

    criador do Muse de lHomme, de Paris. Possivelmente

    seria torturado e assassinado se permanecesse na Frana

    de Vichy. Entre os nomes importantes do establishment

    cientfico francs, estava Henri Vallois, grande inimigo

    pessoal de Rivet, dos mais rancorosos. Nome sobre cuja

    honestidade pessoal e intelectual e generosidade nun-

    ca pairaram dvidas, Rivet divergia de Vallois. Como este

    passou a ser extremamente bem colocado junto do regi-

    me colaboracionista de Vichy, comeou-se a temer pela

    segurana de Rivet. O perodo em questo foi dos mais

    ttricos da histria da Frana, aps sua queda diante dos

    nazistas, em 1940, em que o exrcito francs pouco fez

    para defender o territrio ptrio quando da investida das

    tropas alems, e a direita francesa, bastante forte, acabou

    preferindo compactuar com o invasor.

    A profunda convico socialista democrtica de Rivet,

    sua militncia antifascista, seja dos fascismos alemo e

    italiano, sejam os vrios fascismos franceses que prolifera-

    ram na dcada de 30, seu humanitarismo elevado e, acima

    de tudo, sua jamais desmentida f francesa nunca permi-

    tiriam que o nobre velho compactuasse com a violao

    do territrio ptrio. Tratava-se, alis, do mesmo territrio

    que ele defendeu, como poillu soldado da infantaria

    francesa, na guerra de trincheiras em 1914-1918 ironi-

    camente, sob o comando do mesmo marechal Philippe

    Ptain que agora estava cooperando com os nazistas, fosse

    pelo motivo que fosse.

    O clima de delao e de perseguies acabou levando

    vrias personalidades perda de emprego, priso, ao

    exlio, e morte, at mesmo nos campos de concentrao.

    Rivet depoimento de Paulo Duarte, autor j citado no

    final do Captulo 1 foi o organizador de um ncleo de

    resistncia invaso nazista, dentro do Muse de LHom-

    me, e alguns de seus pesquisadores acabaram sendo pre-

    sos e fuzilados, com enorme prejuzo para a antropologia

    daquele pas. Mais que tudo, havia o perigo de uma delao

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    sem provas dadas por Vallois, que detestando o velho co-

    lega, tendo inveja de sua liderana, tudo podia fazer para

    vingar-se. Nesse momento, o mais prudente seria retirar

    Rivet do territrio francs, e foi o que Boas e seus amigos

    fizeram, com a participao de Claude Lvi-Strauss e de

    Paulo Duarte.9

    Realizou-se uma campanha desenvolvida sob a liderana

    de Boas, que buscou a frmula mais eficiente de trazer Paul

    Rivet para a Amrica fosse para o Mxico, o que foi co-

    gitado, asilo que era de muitos dos intelectuais espanhis

    vtimas da Guerra Civil Espanhola, no caso do antroplogo

    Juan Comas , fosse para os Estados Unidos. Paul Rivet

    ficaria no somente a salvo das perseguies, como se tor-

    naria inestimvel professor da New School, contribuindo

    o fundador do Musede LHomme, de Paris, para o maior

    engrandecimento da antropologia norte-americana.

    Dentro dessa conjuntura histrica, as campanhas das

    quais Franz Boas fazia parte, tinham no somente um

    carter antirracista, como tambm antinazista, j que se

    tornava cada vez mais claro, a um nmero crescente de

    ativistas e intelectuais, a importncia de se combater o

    regime nazista em todas as suas repercusses e nos mais

    variados cenrios. Embora emigrado h muitos anos, a

    9 Duarte, P. Paul Rivet por ele mesmo, p. 5-28.

    repercusso mundial da obra de Boas tornou-o persona

    non grata ao regime nazista.

    Quando em 1933 houve a queima dos vinte mil livros

    postos no Index pelo nazismo, no ptio da Universidade

    de Heidelberg10, livros subversivos de acordo com a ptica

    nazista, entre eles os que combatiam as teses racistas, os

    de Franz Boas l se encontravam, em virtude da forte re-

    percusso que seus trabalhos tiveram na Alemanha. Suas

    obras foram queimadas junto com os chamados clssicos da

    esquerda: Marx, Lnin, Trtski so nomes encontrados nos

    documentos pesquisados, como tambm os de Sigmund

    Freud. O aspecto mais inaceitvel da obra boasiana, para

    o regime nazista, era a afirmao explcita ou implcita

    de que no havia uma raa judia, assim como tampouco

    havia urna raa alem e, acima de tudo, que no existiam

    raas superiores e inferiores, ou raas puras.

    A respeito da participao poltica do cientista, vale a

    pena citar, referindo-se ao contexto europeu dos anos

    30, que no final dessa dcada entraria em conflagrao

    a seguinte manifestao de Boas, das mais enfticas e

    10 Conforme tambm notcia que apareceu no ano de 1933 no Chicago Daily News de 5 de maio de 1933, com o seguinte cabealho e o seguinte texto: Estudantes nazistas queimaro livros de Einstein, Freud e Boas [...] Berlim, Alemanha, 5 de maio. As teorias e equaes de Einstein que sacudiram o mundo, a vasta construo social e psicolgica do Professor Sigmund Freud e o conhecimento etnolgico do Dr. Franz Boas vo iluminar os cus de chamas acima da Universidade de Kiel na prxima quarta-feira, de acordo com a edio de hoje do jornal Frankfurt Zeitung.

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    datada de vrios anos antes, mas que sintetiza perfeita-

    mente o seu modo de pensar quanto ao tema. Em junho

    de 1915, em plena Primeira Guerra Mundial, Boas havia

    se manifestado quanto a seus temores dos excessos do

    nacionalismo, num tempo em que o fascismo e o nazismo

    ainda no se haviam constitudo, ainda que sua inspirao

    j pairasse no ar.

    E extremamente adequado nos referirmos a Boas como

    citizen-scientist, porque se a condio de cientista era defi-

    nidora de uma formao plural e humanstica, a formao

    poltica absorvia e dialogava constantemente com sua for-

    mao acadmica, transmitindo sua condio de cidado

    uma dinmica polmica constante.

    Da dcada de 10 dcada de 40 do sculo XX, Boas

    realizou notvel contribuio cientfica s cincias huma-

    nas por meio de seus estudos lingsticos, corn o refina-

    mento da noo do carter inconsciente dos fenmenos

    lingusticos, de estudos etnolgicos, com o refinamento

    de suas etnografias sobre as mitologias, a organizao

    social e sobretudo 6 arte, em que ressaltou a semelhana

    fundamental dos processos mentais em todas as culturas,

    ao mesmo tempo que considerou todo fenmeno cultural

    como resultado de acontecimentos histricos. Sedimentou

    noes que so crticas viso das cincias humanas vi-

    gente ate ento, que se voltavam insistentemente busca

    de regularidades nos fenmenos sociais e culturais. Boas

    era responsvel pelo nascimento da antropologia cultural

    desde o famoso artigo The Limitations of the Comparative

    Method of Anthropology, de 1896, republicado em 1940

    no livro "Race, Language and Culture".

    Nota-se nesse artigo as exigncias de Boas sobre as

    regras rigorosas aplicadas ao mtodo da comparao,

    como tambm ilustram suas observaes na docncia do

    curso denominado Methods. Em Boas, a comparao foi

    sempre tratada de forma adversativa, em primeira ins-

    tncia. Depois de muitos trabalhos de campo providos

    de descrio exaustiva, talvez pudessem surgir leis gerais.

    Mas a grande distino metodolgica de Boas foi no ter

    jamais adotado esta abordagem. Houve um primeiro mo-

    mento de contestao do campo intelectual de seus anos

    acadmicos formativos, que ele enfrentou dizendo que

    a procura de leis gerais deveria ser adiada. As premissas

    desse modo de pensar traziam a viso semeada pelo mes-

    tre Adolph Bastian, sobre a extrema monotonia ofertada

    pela igualdade de costumes no mundo todo.

    Nesse ponto, as posies de Bastian e de Boas so opos-

    tas pelo vrtice. Ao passo que seu antigo mestre afirmava

    que em todas as sociedades, sem distino, a regra a mo-

    notonia de costumes, sua recorrncia, sua repetitividade,

    Boas entendia ocorrer o oposto, urna grande margem de

    distino entre culturas quanto a traos particularizantes.

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    Quanto a Adolf Bastian, foi cofundador da Sociedade de

    Antropologia, Etnologia e Pr-Histria de Berlim, junto de

    seu antigo mestre Rudolf Virchow. Com Richard Hartmann,

    fundou o peridico "Zeitschrift fur Ethnologie", at hoje

    em circulao, o que perfaz mais de cem anos. Subita-

    mente, seu interesse, que se havia dado inicialmente pela

    sia, deslocou-se pela frica Central e, por isso, em 1873

    criou a Sociedade Alem de Pesquisa da frica e realizou

    uma expedio na costa de Loango, destinada a explorar,

    detalhadamente, a bacia do rio Congo e o centro da frica.

    Esteve ainda na Amrica Latina, passando pelo Brasil, Chile,

    Peru e pela Colmbia, ainda que somente tivesse realizado

    pesquisas nos dois ltimos, relacionadas com o passado

    incaico e sua cultura. Entendia que a etnologia poderia vir

    a constituir uma cincia universal, que enfeixasse todos

    os aspectos das cincias humanas e exatas e para que tal

    ideia pudesse ser posta em prtica, seria imprescindvel

    a existncia de um museu do homem completo do ponto

    de vista etnolgico.

    Mas as leis gerais, citadas sempre no plural pelo cam-

    po intelectual evolucionista, no deveriam impedir que

    se obtivesse, na observao, descrio e interpretao da

    experincia cultural, etapas e sequncias pelas quais todos

    os agrupamentos humanos teriam passado, estariam pas-

    sando ou viriam a passar. Para Boas, tais leis gerais estavam

    epistemologicamente impedidas pela unicidade de cada

    experincia cultural e histrica. Lei, mesmo, s haveria

    uma: a semelhana fundamental nos processos mentais

    em todas as raas e formas culturais, por um lado, e,

    por outro, a admisso de que todo fenmeno cultural

    resultante de acontecimentos histricos.

    Aqui se evidenciava claramente o ataque A. noo de

    mentalidade pr-lgica veiculada por Lucien Lvy-Bruhl.

    Trata-se do trabalho desse autor publicado em 1910 deno-

    minado "Les fonctions rnentales des socits infrieures".

    Entretanto, sabe-se que Lvy-Bruhl mudou de ideia mais

    tarde em sua carreira cientfica, desvalorizando tal noo

    por ele criada anteriormente.

    O procedimento de Boas foi sempre o de privilegiar

    o mtodo indutivo, para poder afastar-se do paradigma

    dedutivo fortemente arraigado na antropologia do scu-

    lo XIX, e criar um fresh start, um comeo novo da teoria,

    do mtodo e das tcnicas de pesquisa. E este o tom do

    artigo de 1887, The Study of Geography, originalmente

    publicado na revista Science, e que ele nos oferece lei-

    tura ou releitura nas ltimas pginas de "Race, Language

    and Culture", publicado em Nova York em 1938 e que no

    dedica somente aos gegrafos. Nele, a individualidade dos

    fenmenos etnogrficos oposta regularidade dos fe-

    nmenos fsicos. Refletia assim a sua leitura-chave de for-

    mao humanstica: Kosmos, de Alexander von Humboldt.

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    Estes aspectos metodolgicos citados acompanharam

    o pensamento boasiano por toda vida, deixando antro-

    pologia e seus estudiosos um legado preciosssimo. No

    tratava ele, pois, da impossibilidade da cincia, mas de

    um modo singular de pensar a cincia humana, a cincia

    dos seres concretos, organizados em cultura e sociedade,

    a cincia que no depende nem do microscpio, nem do

    telescpio, nem do estetoscpio. Na escolha do seu en-

    foque, foi mais um compreensivo, do que um explicativo.

    Embora no tenha utilizado tais expresses, que eram

    usadas por critrios consagrados no campo intelectual das

    cincias sociais alems, estava se baseando, fundamental-

    mente, na ideia do estudo do fenmeno em si, que no

    precisa de regularidade para justificar seu entendimento.

    Nesse sentido, e sem nenhuma tentativa de encontrar um

    meio-termo cmodo, Boas criou uma verdadeira inovao

    paradigmtica que constituiu o problema central de toda

    a sua vida intelectual no plano terico-metodolgico. Isso

    porque no s estava distanciado da noo de formas

    elementares, de Emile Durkheim, que o mais simples

    elemento constitutivo de um aspecto da vida social, como

    da noo de estrutura e funo, de analogia com a tota-

    lidade do organismo biolgico, como se configurou em

    Bronislaw Malinowski e A. R. Radcliffe-Brown.11

    11 Cf. Durkheim, mile. Les formes lmentaires de la vie religieuse. Le Systme

    As pistas desses esforos encontradas, tambm, nos

    cadernos de notas de aula de Margaret Mead e Ruth Be-

    nedict, contradizem certas correntes de pensamento se-

    gundo as quais Boas seria hostil a construo da cincia.

    Na verdade o que ele contrariava eram as generalizaes

    apressadas, decorrentes de um exerccio comparativo pou-

    co exigente. E propunha o conhecimento da totalidade na

    unidade, e no da unidade na totalidade.

    relevante tecer, aqui, uma considerao sobre a in-

    fluncia formativa do movimento romntico alemo da

    segunda metade do sculo XIX, em especial no que toca

    aos seus membros mais demarcados, como por exemplo,

    Goethe. Seria o romantismo de Boas uma variante con-

    servadora? Esta tese no deve prevalecer, uma vez que a

    ligao de Boas se deu primordialmente com a questo

    liberal, que se originou nos valores veiculados pela Revolu-

    o de 1848. Embora Boas tivesse migrado para os Estados

    Unidos no final do sculo XIX, a influncia do romantismo

    em sua formao intelectual ocorreu em seu perodo de

    Gymnasium e de titulaes universitrias, quando estavam

    em plena vigncia no pensamento acadmico e no-aca-

    dmico da poca trs significativos termos denotativos

    da ideia de Cultura: Kultur, Zivilization e Bildung.

    totmique em Australie; Malinowsk, Bronislaw K. Uma teoria cientfica da cultura; Radcliffe-Brown, Alfred Reginald. Structure and Function in primitive society.

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    A primeira delas, Kultur, denota a ideia da solidariedade

    e reciprocidade tpicas de trocas familiares e de parentes-

    co, podendo tambm abranger a compreenso de forma-

    es histricas tais como as camponesas, na atualidade,

    assim corno quanto as sociedades indgenas em geral, e

    como igualmente ocorreu na vida urbana da Antiguidade,

    na plis grega ou em Roma, ou ainda nos antigos Egito e

    Mesopotmia, por exemplo. Tal noo est numa sintonia

    extremamente prxima, no plano interpretativo, com a de

    Gemeinschaft, ou seja, a noo de comunidade, formulada

    por Ferdinand Tnnies em 1895, em sua obra clssica Gei-

    neinschaft und Gesellschaft. A segunda, Zivilization, uma noo

    que d destaque racionalidade e previso, tpicas da

    vida das grandes culturas urbanas, expressando uma vo-

    cao societria de natureza individualista, cosmopolita e

    at expansionista. Igualmente em sintonia com Tnnies, tal

    conceito se relaciona noo de Gesellschaft, a sociedade,

    oposta ao de comunidade. A terceira, a noo de Bildung,

    condensa a ideia da cultura como existncia de formas

    particulares de vida espiritual e psquica, em construo

    e em processo, que envolvem no somente o carter in-

    telectual das representaes de um povo, mas tambm o

    carter sentimental. O ethos cultural comporta assim urna

    tica, uma esttica e uma afetividade, entendidas todas

    como um movimento cultivado do esprito.

    A noo de Bildung crucial para o entendimento do

    modo como Boas construiu sua identidade de pesquisa-

    dor em face dos sujeitos da pesquisa. Esta terceira noo

    decisiva para o que se discutiu at aqui. Foi na Terra

    de Baffin, numa carta j parcialmente citada no captulo

    anterior, escrita durante seu primeiro trabalho de campo,

    que ele disse:

    Muitas vezes me pergunto que vantagens nossa boa

    sociedade [aspas de Boas] tem sobre a dos selvagens

    [idem]. Quanto mais eu vejo seus costumes, mais re-

    conheo no termos o direito de olhlos de cima para

    baixo. Onde, no nosso povo, poder-se-ia encontrar esta

    hospitalidade verdadeira? [. . .]. Como indivduo pensante,

    para mim, o resultado mais importante desta viagem est

    em fortalecer meu ponto de vista sobre a ideia de um

    indivduo culturado [culto, ilustrado, grifo de Boas]

    simplesmente Relativa e que o valor de uma pessoa deve

    ser julgado pela sua Herzenbildung. 12

    Ou seja, a cultura do pesquisador, tanto quanto a do

    pesquisado, a cultura no que possui, no que tem de mais

    cultivado, e que se manifesta na pessoa concreta pelos

    12 Carta de Franz Boas para Marie Krackowizer, 23 de dezembro de 1883, APhS-FBP.

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    seus ethos. No somente por domnio mental baseado

    na percepo intelectual, mas domnio mental ancorado

    na alma culturada, isto , uma viso de mundo refinada,

    educada e trabalhada, mesmo que tais qualidades ocorram

    num sistema de adestramento e socializao completa-

    mente distinto do nosso. Trata-se de caracterstica presente

    (ou ausente) na pessoa e na sociedade. Essa noo por

    ele acionada para demarcar o campo subjetivo da cultura

    bem como o papel tico, esttico e espiritual que flui na

    compreenso histrica dos fenmenos.

    J a noo de Kultur (culture, em ingls) por ele acio-

    nada para delimitao do campo emprico da sua obser-

    vao de uma cultura, tanto no plano sincrnico quanto

    no plano diacrnico. Nesse contexto, a noo de Zivilization

    fica totalmente descartada. A noo boasiana de cultura

    (culture) s iria aparecer em 1911, na primeira edio de

    "The Mind of Primitive Man".

    So duas noes distintas, portanto, de que Boas se

    valeu para abordar duas questes especficas, que pare-

    cem contradizer-se, mas que se contradizem somente

    na aparncia. A primeira, Bildung, envolve um problema

    hermenutico a relao com o sujeito de pesquisa. A

    segunda, Kultur, equivalente a inglesa culture, envolve um

    problema terico demarcao do campo intelectual da

    antropologia.

    Nessa ltima definio, pode-se notar que a utilizao

    da noo de Kultur objetiva, uma vez que se separa das

    subjetividades vivas e pulsantes dos seres sociais, para

    poder conter o elemento estrutural, para fazer aparecer a

    construo da totalidade das atividades mentais e fsicas. A

    Bildung se esconde aqui provisoriamente, porque o prop-

    sito desta definio de cultura foi reagir definio de, E.

    B. Tylor que era to somente enumerativa e no descritiva

    e interpretativa, como a verso do prprio Boas.

    A questo da cultura na conceituao boasiana no

    era somente uma questo terica para os alunos de an-

    tropologia aprenderem o que era a diversidade das cultu-

    ras. A questo estava ligada a ideias formuladas por Boas,

    tambm, no plano da cultura norte-americana, de que o

    conceito de desenvolvimento que os americanos tinham

    para si prprios deveria ser encarado como o mesmo

    sentido e o mesmo valor que outros povos pudessem ter

    igualmente sobre si prprios. Muitos norte-americanos

    no queriam reconhecer que o que acontecia na sociedade

    americana no se reproduzia em outros lugares, em outras

    culturas, e nem precisava vir a reproduzir-se, no futuro.

    Creio ser isso importantssimo. No nos esqueamos da

    sociologia rural feita nos Estados Unidos, na dcada de

    30, que entendia ser o meio rural norte-americano de tal

    modo urbanizado, que assim diferiria radicalmente dos

    meios rurais que existiam nos demais pases, em especial

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    na Amrica Latina. O ponto criticvel dessa sociologia

    rural a exacerbao do carter urbanizado do caso nor-

    te-americano como modelo, e isso inibia a existncia de

    estudos comparativos. O elemento diferencial segundo

    tal sociologia rural seria to grande, que no existiriam

    termos de comparao com o campo de outras culturas

    e outros pases.

    Por outros caminhos, o movimento de aproximao da

    Amrica Latina iniciado pelos Estados Unidos por meio

    do OCIAA (Office for Coordination of Commercial and

    Cultural Relations between the American Republics, de-

    pois simplificado para Office of the Coordinator of In-

    ter-American Affairs), de 1940 a 1949, foi uma tentativa

    tanto poltica quanto cultural de superar esse impasse,

    que dificultava as relaes de cooperao entre ambos

    os blocos, naquele momento crucial da Segunda Guerra

    Mundial, em que era necessrio para a poltica externa

    americana garantir a vigilncia do continente e conseguir

    suprimentos necessrios para a indstria blica, com o

    que foi formulada e executada a Poltica da Boa Vizinhana

    do presidente Franklin D. Roosevelt.13

    Era uma tentativa de criar um caminho de mo dupla

    que pudesse abrandar a nfase da crena no excepciona-

    lismo histrico dos Estados Unidos, e portanto, deve ser

    13 Moura, G. Tio Sam chega ao Brasil. A penetrao cultural americana, p. 50.

    destacada a presena de cientistas, entre eles os antrop-

    logos, como se pode ver pela citao de Gerson Moura:

    claro que havia excees louvveis entre os que vieram

    ao Brasil e no usavam os culos do preconceito e do uti-

    litarismo empresarial ou politico. Cientistas sociais como

    [Melville J.] Herskovits e [Charles] Wagley produziram nes-

    sa poca textos relevantes sobre o Brasil, discrepando

    frequentemente da viso primria e utilitria que flua

    dos escritos oficiais do governo americano. (Intercalaes

    minhas M.M.M.)14

    Esta nfase est bem mais destacada nos estudos de

    histria do que nos de antropologia. A excepcionalidade

    hipottica dos Estados Unidos dava destaque A. posio

    evolucionista: seria como se os Estados Unidos estivessem

    acabando de percorrer um caminho que as outras cultu-

    ras ainda estavam trilhando, e outras ainda nem haviam

    comeado a trilhar, ou talvez, nem trilhariam. As que a

    tal meta no tivessem em condies de chegar, seriam

    culturas ou sociedades terminais. No Brasil, muitos soci-

    logos e outros pensadores aderiram a essa ideia, ou seja,

    da interpretao da sociedade norte-americana como um

    ponto de culminncia, ao mesmo tempo que ns no te-

    14 Idem.

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    ramos uma srie de condies histricas prvias que eles

    j possuiriam para chegar a essa hipottica meta. De acor-

    do com esse ponto de vista, havia uma viso colonialista

    da histria, adotada por vrios pensadores brasileiros.15

    A academia norte-americana modificou seu modo de

    pensar, sob influxo da obra de Boas e seus discpulos,

    embora no tivesse conseguido extinguir completamente

    interpretaes calcadas na noo de raa, em favor de

    outras interpretaes apoiadas na noo de cultura. O

    debate sobre a mancha monglica nos Estados Unidos j

    mencionado no captulo anterior tem a ver nitidamente

    com a presena de ideias racistas na sociedade norte-a-

    mericana, nos anos 20, 30 e 40. A questo centrava se na

    supremacia da assim chamada raa branca, por um carter

    de oposio aos povos de cor (coloured peoples), atin-

    gindo tanto caractersticas biofsicas, quanto concepes

    valorativas sobre a capacidade cultural. A noo de raa,

    a maneira pela qual essa ideia foi utilizada, era totalmente

    ideolgica, mas isso no ocorria somente por meio dos

    critrios nazistas, que eram racistas, como se sabe, mas

    por critrios conservadores que vicejavam na sociedade

    norte-americana.

    15 Pacheco Filho, C. Dilogo de surdos: as dificuldades para a construo da Sociologia e de seu ensino no Brasil (1850-1935). Volume 5, cf. Vita, Lus Washington, Alberto Salles. Idelogo da Repblica, p. 107 e cf. Salles, A ptria paulista, p. 83-4)

    Pode-se, ento, notar a importncia nesse contexto de

    noes como instabilidade e plasticidade dos tipos huma-

    nos, se considerarmos as teses de Boas de que existiam si-

    nais biotipolgicos que se modificavam nas descendncias

    diretas e controladas de imigrantes que viam nos Estados

    Unidos, e seus filhos l nascidos. O descendente de imi-

    grante podia ter modificado o padro de ndice ceflico

    de seu grupo de origem, na sua insero no novo meio,

    os Estados Unidos. A pesquisa craniomtrica comprovou

    que havia mudanas sutis no formato do crnio dos filhos

    de imigrantes, no decorrer de um certo nmero de anos.

    Embora o eminente antroplogo fsico Loring Brace tenha

    afirmado em comunicao pessoal autora sua opinio

    de que as medidas utilizadas por Boas no fossem em n-

    mero suficiente para chegar s concluses a que chegou

    (no Congresso Internacional de Cincias Antropolgicas

    e Etnolgicas realizado em Florena em julho de 2003),

    entendia ele que Boas estava percorrendo o caminho certo

    hoje referendado pela biologia humana de ponta.16

    Formato da cabea era fundamental para as teses ra-

    cistas: dolicocefalia como superior braquicefalia eram

    caractersticas to importantes quanto cor da pele, dos

    olhos, dos cabelos. A dolicocefalia, se possvel associada

    ao cabelos louros e olhos azuis e elevada estatura eram

    16 Antroplogo Biolgico Loring Brace, comunicao pessoal.

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    elementos do apangio do tipo superior que o nazismo

    veio a citar como ariano puro, o homem branco ocidental

    nrdico. Quanto ao fato de que a dolicocefalia no en-

    contrada apenas entre os brancos, h dados suficientes no

    livro de Remi Vallois, As Raas Humanas, que nos mostram

    que existe dolicocefalia das mais destacadas entre negros

    mais variados grupos tnicos da frica sul-saariana, no-

    tadamente os sudaneses do Alto Nilo.

    Desabava assim a teoria de que existia uma supremacia

    de um determinado ramo da raa branca, por ser dolico-

    cfalo, com a cabal comprovao de que tal caracterstica

    antropofsica no exclusividade dos brancos. Ficou evi-

    dente com o texto de Boas que existe grande plasticidade

    dos tipos humanos, e tambm grande instabilidade dos

    tipos humanos, que fica demonstrada pela passagem de

    um tipo ceflico para outro. Essas afirmaes eram um

    recado no somente para os acadmicos, porque eles ain-

    da faziam, naquele momento, tais categorizaes, era um

    recado para a Europa e tambm para os Estados Unidos

    como um todo.

    Nesse contexto, podemos igualmente destacar um feixe

    de afirmaes que so fundamentais para o entendimento

    da noo boasiana de raa. Dizia ele em 1911, em 0 pro-

    blema da raa na sociedade moderna, texto que revisou

    em 1938:

    At a primeira dcada do nosso sculo, a opinio de que

    a raa determina a cultura, pelo menos na Europa, era

    mais um assunto de especulao entre historiadores e

    socilogos amadores do que um fundamento de polticas

    pblicas. Desde ento, essa opinio espalhou-se entre as

    massas. Seu novo apelo emocional expresso por slogans

    como 0 sangue mais grosso que a gua. O conceito

    anterior de nacionalidade ganhou novo significado com

    a identificao da nacionalidade com a unidade racial e

    pela suposio de que caractersticas nacionais se devem

    descendncia racial. E particularmente interessante no-

    tar que no movimento anti-semita alemo da dcada de

    1880, no se atacava o judeu como membro de uma raa

    aliengena, mas sim considerando-o judeu no assimi-

    lado vida nacional alem. A poltica atual da Alemanha

    [nazista] baseia-se num fundamento completamente di-

    ferente, j que cada pessoa teria um carter definido e

    inaltervel de acordo com sua descendncia racial e isto

    determinaria seu status politico e social. As condies

    so anlogas ao status do negro num perodo anterior,

    quando a licenciosidade, a preguia e a falta de iniciativa

    eram consideradas qualidades racialmente determinadas

    e inescapveis de todo negro. um espetculo curioso

    observar que cientistas srios, sempre que livres para

    expressar suas opinies, no geral tm-se distanciado da

    opinio de que a raa determine a capacidade mental.

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    exceo dos bilogos que no levam em considerao

    os fatores sociais por estarem cativados pelo aparente

    determinismo hereditrio das formas morfolgicas, ao

    mesmo tempo que entre o pblico desinformado, ao qual

    infelizmente pertencem numerosos polticos europeus

    poderosos, o preconceito racial vem progredindo sem

    restries. Creio que seria um erro presumir que estamos

    livres dessa tendncia: as restries impostas a membros

    de certas raas [aspas de Boas] quanto ao direito de

    possuir imveis, de alugar apartamentos, de pertencer a

    clubes, de hospedar-se em hotis e estaes de veraneio,

    de frequentar escolas e faculdades, demonstram, no m-

    nimo, que no esto decaindo os velhos preconceitos

    contra negros, judeus, russos, armnios. As desculpas, de

    que estas excluses se fazem necessrias em razo de

    consideraes econmicas, ou pelo medo de afugentar de

    escolas e faculdades outros grupos sociais, simplesmente

    comprovam atitude bem disseminada. Reafirmarei talvez

    os erros que subjazem teoria de que a descendncia

    racial determina o comportamento mental e social. O

    termo raa, aplicado a tipos humanos, vago. Pode ter

    um significado biolgico somente quando a raa repre-

    senta um grupo uniforme e endgamo no qual todas as

    linhas familiares so semelhantes, como nas linhagens

    puras de animais domsticos.17

    Portanto, as contribuies do pensamento boasiano no

    foram inovadoras somente na antropologia cultural, mas

    tambm na antropologia fsica, que nele, como bem se v,

    j o prenncio de uma antropologia biolgica, de cunho

    mais gentico do que antropomtrico sem negar a im-

    portncia cientfica intrnseca da antropomtria, feita por

    si mesma e desprovida de juzos de valor. E nesse sentido,

    antecipava as grandes inovaes da gentica, na segun-

    da metade do sculo XX. Com Boas, portanto, a biologia

    renasceu de outra maneira. Por este motivo fundou, de

    fato, um campo intelectual novo tanto para a antropologia

    cultural I quanto para a antropologia fsica como para a

    lingustica. Trplice paternidade, portanto.

    Torna-se indispensvel falarmos do domnio da lingua.

    Boas trilhou um caminho totalmente singular no campo

    da lingustica. Um pouco antes da publicao do Cours de

    Linguistique Gnrale (Curso de Lingustica Geral), de Ferdi-

    nand de Saussure (1916), (que s pde ser feita postuma-

    mente por iniciativa dos alunos do linguista suo, que

    para isso cotejaram suas anotaes de aula), Boas deu

    contribuio inestimvel ao desenvolvimento da lingus-

    17 Boas, F. The race Problem in Modern Society. In The mind of Primitive Man, p.253-5.

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    tica contempornea. Num artigo seminal denominado On

    Alternating Sounds (1888, republicado por Stocking, Jr,

    em "The Shaping of ArlWrican Anthropology". 1883-1911.

    A Franz Boas Reader), afirmou que assim como os psic-

    logos encontram uma cegueira da cor (colour blindness),

    os linguistas podem cunhar a expresso cegueira do som

    (surdez); que se caracterizaria pela ausncia da faculdade

    de percepo de especificidades de certos sons. A lngua

    do falante no necessariamente a que o ouvinte ouve.

    H uma descontinuidade e no uma continuidade na troca

    lingustica.

    Diz-nos Boas que o pesquisador H. Rent demonstrou

    esta tese claramente com relao ao vocabulrio Inuit. H

    provas abundantes de palavras que nos glossrios reco-

    lhidos pelos pesquisadores, em que embora aplicassem

    observaes diacrticas, optaram pela adoo da fontica

    de sua prpria lngua de origem, percebendo, portanto,

    sons desconhecidos por meio de sons de sua prpria ln-

    gua. Sons alternantes ou alternativos foram inicialmente

    tomados como expresso de primitivismo lingustico, que

    no fixaria uma fontica estvel, ao que o mestre reagiu

    veementemente.

    A lngua tem peso prprio e singular na antropologia

    boasiana, pois no s especialidade do linguista, mas

    especialidade tambm do antroplogo, ex officio. A boa et-

    nografia depende sempre do conhecimento fino do povo

    estudado na pesquisa de campo; cultura e lngua se ligam

    de modo indissocivel, mas no sem problemas. Como

    consequncia, como compreenso terica do campo da

    antropologia, Franz Boas separou os domnios da raa, da

    lngua e da cultura, atribuindo a cada um fora semiolgica

    prpria. Esta separao de campos, no entanto, implicou

    um achado epistemolgico que o sbio ofereceu A. abor-

    dagem cultural por meio da abordagem lingustica. Em On

    Altemating Sounds, Boas enunciou a moderna viso antropo-

    lgica da cultura, enxergando a cultura com a imposio

    de significados convencionais ao fluxo da experincia,

    afirmao que provm nitidamente de seus conhecimen-

    tos lingusticos, j que a lngua justamente a imposio

    de significados aos sons. Esta distino entre os campos

    da lingustica, da antropologia cultural e da antropologia

    fsica envolvem, na verdade, questes subjacentes que

    podem ser comuns, mas que ainda assim no devem ser

    confundidas por mtua interferncia que se daria por

    concedida como obvia.18

    Tem-se assim uma associao de lngua e cultura no

    plano emprico e concreto da apreenso etnogrfica da

    vida de um povo ou grupo humano, ao qual se tratam de

    forma autnoma a questo biolgica dos tipos humanos

    e as questes culturais da lngua e da cultura, respeitando

    18 Boas, F. Introduction to Handbook of American Indian Languages, p. 6.

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    a temporalidade disjunta que cada um dos trs campos

    expressa.

    Estas afirmaes so decisivas desde ento para a pr-

    pria concepo de trabalho de campo nas diferentes reas

    que Boas inauguraria. Colocando as descontinuidades que

    podem ocorrer no centro da questo, na observao de di-

    ferentes culturas, a precauo mxima do pesquisador de

    uma delas, por mais prxima que essa cultura possa lhe

    parece deve-se evitar a distoro ou interpretao apres-

    sada de categorias, representaes e prticas do grupo

    humano observado. Lembremo-nos sempre, como Mary

    Douglas o fez mais tarde, que precisamente na inter-

    posio de formas de pensamentos estrangeiros com os

    pensamentos nativos que reside o ato da interpretao.

    Deve-se creditar a Franz Boas a converso da antropo-

    logia fsica moda antiga em antropologia biolgica, no

    sentido contemporneo da palavra. Trata-se da passagem

    de uma antropometria que buscava fixar as caractersticas

    morfolgicas diferenciais das chamadas raas humanas,

    para a atual antropologia biolgica que busca compreender

    o carter mutante das caractersticas fsicas na sua dinmi-

    ca interativa com o meio, com especial ateno devotada

    s reaes da cultura em suas interaes com o ambiente.

    Trata-se, acima de tudo, da separao da noo de raa

    da noo de cultura, inverso das premissas dominantes

    nas cincias humanas do sculo XIX, que confundiam os

    dois conceitos acima, e submetia a noo de cultura de

    raa. Fundou Boas, assim, um campo intelectual novssimo,

    enraizado na noo de cultura, mas que comporta, alm da

    abordagem cultural, a abordagem biolgica e a abordagem

    lingustica. Estes trs esteios do pensamento boasiano, j

    esboados em importantes artigos escritos ainda no sculo

    XIX, se desenvolveram poderosamente nos argumentos

    contidos nos livros j mencionados, principalmente em The

    Mind of Primitive Man (1911); prosseguindo na Introduction to

    the Handbook of North American Languages (1911). Mostraram-

    se igualmente insinuantes em artigos escritos ao largo de

    sua vida, at 1942, ano de sua morte, reunidos e relan-

    ados numa obra que, significativamente, se denomina

    Race, Language and Culture, em 1940. No nos esqueamos

    que Boas , tambm, um criador da antropologia da arte,

    como bem ilustra seu livro j citado Primitive Art (1927).19

    Trs tuming-points, trs breakthroughs inovadores, quan-

    do as questes analisadas frutificaram, a antropologia j

    no era mais a mesma, pois o campo intelectual j estava

    substancialmente transformado. Raa passou a ser uma

    noo de amplitude explicativa bem mais reduzida, uma

    vez que seu ponto de partida que os estoques humanos

    j esto modificados pela mestiagem h milhares de anos.

    Boas, em vez de referir-se a raa, passou a falar em tipos

    19 Ver, a propsito, Boas, F. Primitive Art, p.356.

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    fsicos e tipos humanos, em que enfatizou a sua plasticidade

    e instabilidade.

    A cultura o principal condicionante dos atos huma-

    nos. Esta formulao apareceu desenvolvida na sua primei-

    ra definio de cultura, que denota esforo terico-meto-

    dolgico de propsito totalizador e estruturador. Cultura

    e lngua devem ser pensadas e analisadas em correlao,

    em cada antroplogo dever existir o linguista estudioso

    de pelo menos uma lngua.

    Quanto a questo da mestiagem (abrangente) de todos

    os tipos humanos do planeta, iniciada ainda em tempos

    pr-histricos, pesquisas contemporneas na rea da ge-

    ntica humana mostram que entre os brancos h uma

    certa quantidade resquicial de genes especficos dos ne-

    gros e dos amarelos, o mesmo fenmeno se dando com

    esses outros tipos. Tais relquias variam em quantidade,

    mas sempre se fazem presentes, de algum modo: suecos

    contendo genes de negros e de monglicos, tibetanos

    contendo os do negro e do branco, sudaneses os dos de-

    mais tipos humanos. Assim , uma vez que o antepassado

    do branco de hoje, o Homem de Cro-Magnon, conviveu

    com o ancestral dos atuais povos monglicos amarelos,

    o Homem de Chancelade, assim como com o dos tipos

    negrides dos tempos histricos, o Homem de Grimaldi.

    Recorde-se, alis, que os nomes que identificam tais ti-

    pos humanos referem-se a cavernas situadas em regies

    muito prximas.

    Existiu, ainda, um tipo mestio da pr-histria, o Ho-

    mem de Combe-Chapelle, igual referncia a uma caverna

    prxima das anteriormente citadas e correspondia a um

    tipo resultante do provvel cruzamento do Homem de

    Cro-Magnon com o Homem de Chancelade, e que, portan-

    to, seria anlogo a tipos como o caboclo, o sertanejo e o

    caiara brasileiros, o cholo andino, o mestio mexicano e

    os tipos resultantes de contatos entre brancos e chineses

    ou japoneses, por exemplo.

    A estes esforos, realizados nas fases formativa e madu-

    ra, somaram-se outros realizados no campo dos estudos

    da arte e das mitologias, combinados com um debate cr-

    tico com diversos autores com quem buscou dialogar por

    meio de resenhas, comentrios e rplicas. Mais etnogrfico

    que terico, Boas elaborou uma etnologia de consequncias

    metodolgicas constantes. O conjunto desta contribuio dis-

    solveu, de uma vez por todas, a preeminncia acadmica

    e extra acadmica da noo de raa, embora esta continue

    at hoje exercendo grande fascnio sobre o homem mdio

    face a face com outros tipos fsicos de sua prpria socie-

    dade. Est-se, frequentemente, neste plano do argumento,

    referindo-se no somente sociedade norte-americana,

    podendo ser estendido para o caso brasileiro, por exemplo,

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    em que o termo at hoje no saiu do senso comum e do

    vocabulrio cotidiano.

    Ao professor Franz Boas credita-se tambm a formao

    de expressivo nmero de alunos, tanto de homens quanto

    de mulheres. E havia tambm um motivo muito pragm-

    tico para que ele desejasse ter em igualdade homens e

    mulheres entre seus alunos.

    Referncias bibliogrficas

    Fontes Primrias

    Cartas, documentos e manuscritos recolhidos na American

    Philosophical Society, Franz Boas Papers, Filadlfia, EUA.

    Livros

    BOAS, F. Handbook of American Indian Languages. In Bu-

    reau of American Ethnology, Washingtonm, bulletin 40,

    Georgetown university Press, 1911.

    BOAS, F. Primitive Art. Oslo: Instituttet for Sammen-

    lignende Kulturforskning, 1927.

    BOAS, F. The mind of Primitive Man. Nova York: The Mac-

    millan Company, 1938.

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    millan Company, 1940.

    DUARTE, P. Paul Rivet por ele mesmo. So Paulo: Anhambi,

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    Le Systme totmique em Australie. 2 edio. Paris:

    Presses Universitaires de France, 1990. Coleo Qua-

    drigue, volume n 77.

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    essays in centennial of his birth. San Francisco: Howard

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    Anthropological Association, v.6, n5, part two, October,

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    1959. (Notas dos cadernos do curso Methods, dados

    por Franz Boas em 1925).

    DOS PASSOS, J. The Big Money. Nova York: New American

    Library, 1969.

    MALINOWSKI, B. K. Uma teoria cientfica da cultura. 2

    Edio. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.

    MAYER, A. A fora da tradio: a persistncia do Antigo

    Regime(1984-1914). So Paulo: Companhia das Letras,

    1987.

    MOURA, M. M. Nascimento da Antropologia Cultural. A

    obra de Franz Boas. So Paulo: Hucitec, 2004.

    MOURA, G. Tio Sam chega ao Brasil. A penetrao cultural

    americana. So Paulo: Brasiliense, 1985. Coleo Tudo

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    itive Society. Glencoe, Ill.: Cohen & West, 1952.

    TesesBOAS, F. Beitrge zur Erkentniss der Farbe des Wassers

    (Contribuio ao estudo da cor da gua), Kiel, 1881.

    PACHECO FILHO, C. Dilogo de surdos: as dificuldades

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    Brasil (1850-1935). Volume 1. So Paulo: Faculdade de

    Educao da Universidade de So Paulo, Dissertao de

    Mestrado, xerocopiado, 1994.

    Artigos em jornal

    Chicago Daily News de 5 de maio de 1933.