document14

4
4 4 9 Tra b a l h o, Ed u cação e Sa ú d e, v. 3 n. 2, p. 445-452, 2005 R e v i ew s De ferro e flexíveis: marcas do Estado empresário e da pri vatização na subjetividade ope r á ri a . Ma ria Cecília de Souza Mi n ayo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, 458 pp. Valdemar Ferreira da Silva Mestrando em Ensino de Biociências e Saúde Fundação Oswaldo Cruz <[email protected]> Giovane Saionara Ramos Mestranda em Ensino de Biociências e Saúde Fundação Oswaldo Cruz <[email protected]> Em tempos de neoliberalismo e re e s t r u t u r a ç ã o pro d u t i va, torna-se cada vez mais urgente en-

Upload: lazarosouza

Post on 08-Dec-2015

218 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

arquivo

TRANSCRIPT

4 4 9

Tra b a l h o, Ed u cação e Sa ú d e, v. 3 n. 2 , p. 4 4 5 - 4 5 2 , 2 0 0 5

R e v i ew s

De ferro e flexíveis: marcas do Estado empresárioe da pri vatização na subjetividade ope r á ri a .Ma ria Cecília de Souza Mi n ayo. Rio de Ja n e i ro :Garamond, 2004, 458 pp.

Valdemar Ferreira da SilvaMestrando em Ensino de Biociências e SaúdeFundação Oswaldo Cruz<[email protected]>

Giovane Saionara RamosMestranda em Ensino de Biociências e SaúdeFundação Oswaldo Cruz<[email protected]>

Em tempos de neoliberalismo e re e s t r u t u r a ç ã op ro d u t i va, torna-se cada vez mais urgente en-

4 5 0

Tra b a l h o, Ed u cação e Sa ú d e, v. 3 n. 2 , p. 4 4 5 - 4 5 2 , 2 0 0 5

R e s e n h a s

tendermos o processo pelo qual os indivíduosvão sendo cooptados, por vezes de forma sutil,pela ideologia capitalista.

E n c o n t r a m o s, no desenvo l v i mento do pro-cesso de trabalho hoje adotado, um modelo queretorna aos primórdios do modo de pro d u ç ã oc apitalista, quando o individualismo e a racio-nalidade econômica eram condições indispen-s á veis para que a produtividade do trab a l h a d o rdeslanchasse e alcançasse a ex p e c t a t i va de ex-celência na produção das indústrias rumo ao lu-c ro. Ao homo economicus c o n t r apõe-se, entre t a n-to, um apelo ao resgate da subjetividade do tra-balhador apropriada pela perversidade do siste-ma, que pretende moldar o caráter da classe trab a-lhadora às condições objetivas do trabalho. Essem o mento me rece profunda análise, haja vista que,sob a égide do cap i t a l i s m o, uma mascarada d e-sestruturação das relações sociais e uma pre c a r i-zação da igualdade vão aos poucos delineandoa expansão geográfica de uma ideologia g l o b a l i-zada e globalizante que, de modo consentido pe-lo Estado, determina os rumos da sociedade.

De modo sensível e coerente, o livro De fe r-ro e fl e x í v e i s: marcas do Estado empresário e dap r i vatização na subjetividade operária, de MariaCecília de Souza Minayo, pesquisadora da áre ade Ciências Sociais e Saúde do Centro Latino-a mericano de Estudos de Violência e Saúde, daFundação Oswaldo Cruz, evidencia as condiçõesde vida da classe trabalhadora no Brasil, anali-sando a Companhia Vale do Rio Doce, no perío-do de 1942 a 1997, por ocasião da sua privatiza-ção. Ao longo da obra, a autora busca mostrar omodo como a cidade de Itabira, em Minas Ge-r a i s, a partir da década de 1930, começa a set r a n s formar com a implantação da Vale de talforma, que ‘forja’, assim como o processo de ex-tração do minério de ferro, a vida de seus traba-l h a d o re s, que chega a confundir-se com a pró-pria história da empresa, voltada para a ex p o r-tação — empre gados de uma estatal que sofre-ram a transição para uma empresa calcada na re-estruturação pro d u t i va e privatizada, acre d i-t a n d o, sempre, que “seu suor e sua vida pos-suíam um sentido especial de serviço à pátria”( p. 13). Com a chegada do progresso impõe-seum modo de organização do trabalho penoso ei n s a l u b re. Aos poucos o leitor ávido pord e s vendar as artimanhas desse capitalismo quese traveste de uma figura assistencialista poderád e s e nvo l ver a re f l exão que se pretende crítico-

t r a n s formadora e desejável por parte de qual-quer educador.

A autora expõe de maneira precisa a fo r m a-ção do sentido de classe operária no mesmo mo-mento em que a intensificação industrial adereà reestruturação pro d u t i va de ordem mundial emostra de que maneira a Vale utiliza como más-cara a face paternalista do Estado e ‘pro m ove’ acidade de Itabira a um ponto esquecido nas es-tatísticas da empresa.

Alerta, ainda, que não pretende tratar dahistória da instituição Vale, contudo, é a partirdela que se confundem a formação dos operá-rios e seus olhares como participantes na cons-trução da empresa, numa pers p e c t i va históricae cultural, quando eles “passaram a perc e b e rcom mais nitidez a dominação da empresa sobrea sua vida privada e sobre a sua vida social”( p. 43). Evidencia-se a simbiose entre a Va l e ,m a rco de progre s s o, e Itabira, cidade pobre quep e rde o poder para a elite, apesar de toda aresistência cultural à chegada da empresa, nadécada de 1940, num momento de definição dapolítica nacional.

Ao identificar como estruturantes os con-ceitos de processo de trabalho e condições ge r a i sde pro d u ç ã o, Maria Cecília Minayo ap re s e n t acomo os trabalhadores assimilam os valores típi-cos de uma sociedade industrial, como o consu-m o, na ex p e c t a t i va de mobilidade social e au-mento de bem-estar, num momento em que teruma ficha de operário da Vale era sinônimo demelhoria de vida e prestígio. A constituição dos‘ h o mens de fe r ro’ evidencia-se mais como umademonstração de orgulho vinda daqueles quese entre garam à construção da maior empresa demineração a céu aberto do mu n d o. A sua re s i s-tência às intempéries, durante a jornada de tra-balho, literalmente consolida a crença nas opor-tunidades possíveis de melhoria de condiçõesde vida a partir da chegada da Vale a Itabira. O‘homem de Taylor’ passa a ser prenúncio de umestado de coisas exploratório e perve rs o. O mo-do como os trab a l h a d o res da Vale transitam en-tre o reino da necessidade e o da liberdade con-trasta fo r t e mente com a imagem progressista ede boa-aventurança da Vale. O processo de fo r-mação dos operários é ‘operado’ sob condiçõesa dve rsas: o ritmo da produção é acionado pelaforça humana, moldada por uma resistência pe-c u l i a r, num ambiente competitivo e sob vigi-lância. Uma vigilância que ex t r apola os mu ro s

4 5 1

Tra b a l h o, Ed u cação e Sa ú d e, v. 3 n. 2 , p. 4 4 5 - 4 5 2 , 2 0 0 5

R e v i ew s

da Vale, chega à família e toma conta da cidade deI t abira, num processo de ap ropriação sob a ide-ologia do Estado-empresário.

Numa narrativa clara e concisa, a autorac o nvida o leitor a refletir sobre a pre d e f i n i d afunção do Estado na organização sindical dost r ab a l h a d o re s, a partir da criação do Ministériodo Tr abalho para “defender os interesses eco-n ô m i c o s, jurídicos, higiênicos e culturais dost r ab a l h a d o res”, desde que esses não desagr a-dassem aos ideais nacional-desenvo l v i me n t i s t a sque emolduravam a perda do controle dost r ab a l h a d o res na consolidação da dinâmica ex-pansionista da Vale que eles mesmos ajudarama construir. Eles participam efe t i va mente daconstrução da empresa, embora sejam ‘pedras’no caminho, necessárias à manutenção do sis-tema e facilmente removíveis. Nos anos 40, numm o mento político interno em que se evidenciaa força do nacional-desenvo l v i me n t i s m o, o sen-t i mento de colaboração com o desenvo l v i me n t odo país é estimulado e os trab a l h a d o res adere mv i b r a n t e mente. E assim começa a inculcaçãoideológica da classe trabalhadora, sob a pers-p e c t i va da classe dominante, na forma corpora-tiva e num viés colaboracionista, a partir da ex-tração do minério de fe r ro, forjando aos poucoso trabalhador perfeito para aquela organização.

“(...) sua identidade é forjada no fe r ro deemoções, de conflitos e de orgulho pela per-tença à família da Vale-Mãe, essa criatura-criadora de uma cultura institucional urd i-da na ética, na disciplina do trabalho e doe m p reendedorismo obediente, assim comono autoritarismo, no clientelismo e no cor-p o r a t i v i s m o, marcas indeléveis da cultura po-lítica nacional-desenvolvimentista” (p. 81).

Aos poucos, entre t a n t o, esses homens co-meçam a conscientizar-se da perda do contro l eda dimensão da empresa que eles próprios fize-ram nascer. Na contramão do sucesso da Va l e ,vêem suas possibilidades de ascensão pro f i s s i o-nal estagnarem-se ou serem anuladas. A perver-sa lógica capitalista, apoiada num sistema de re-c r u t a mento ‘a olho nu’, na busca do homem ide-al para a tare fa ideal, num processo de “afro nt a-mento da natureza e dos limites da força huma-na” (p. 81), consolida o surg i mento desse novos e g mento operário e, daí, a cultura de classe. Amecanização do processo de trab a l h o, acirran-

do ainda mais a divisão do trabalho e a valoriza-ção do ambiente competitivo, provoca um mov i-mento de insatisfação entre os trabalhadores.

Nessa política expansionista, a insatisfa ç ã os u rge dentro dessa esfera de produção e culminana gre ve dos mineiros de Itabira, em 1945, pro-piciando contraditoriamente a formação do sin-dicato da categoria por determinação da própriaVale, culminado assim na política trab a l h i s t acriada por Getúlio Va rga s, o que viria a consti-t u i r-se num poderoso instrumento de contro l eda classe operária. Segundo Minayo: “A legisla-ção trabalhista, organizada a partir dos anos 30,e que se consolida em 1943, quando regula aexistência dos sindicatos, tem a finalidade dereorientar as relações entre capital e trab a l h oque, desde o início da industrialização, se mani-festam em conflitos explícitos com tendênciasde autonomia dos trabalhadores” (p. 124-125).

Fica claro que o Estado-empre s á r i o, re g u l a-dor oficial das relações de produção e represen-tado na figura da Vale, gera uma divisão sociale técnica do trab a l h o, detendo o controle da con-cepção do trabalho e ao mesmo tempo assumin-do uma figura paternalista, através da qual con-segue fazer com que o operário, pelo me n o s, acre-dite ser possível tirar proveito da própria ideo-l ogia dominante. É interessante observar quemesmo dentro dessa ideologia dominante, dondeo Estado dita a concepção de mu n d o, ameaça sur-gir uma nova concepção que inconscientementese insurge contra a objetivação do trabalho.

As novas tecnolog i a s, necessárias à poten-cialização da produção e conseqüente re d u ç ã odo quadro de empre ga d o s, vão ao encontro àdependência da cidade de Itabira, que não pôdes uportar uma vida com um sem-núme ro de de-s e m p re gados fruto do progresso que ela me s m aajudou a construir. Minayo nos diz: “O momen-to da mecanização é ex t re m a mente importantepara o operariado, pois realiza a passagem daatividade manual para o domínio das máqui-nas” (p. 129). E acrescenta: “Pa r a d ox a l me n t e ,esses ‘moto-perpétuos’ têm de ser acionados pe-los operários e mantidos por eles, ao me s m otempo que os submetem” (p. 128).

O desconhecimento das relações sociais quedeterminam a produção faz com que os ope-rários vejam, trabalhem, porém não entendamo que está por trás desse pro c e s s o. Eles se sen-tem compro metidos e dominados sob o discur-so capitalista da centralidade no sujeito suge r i-

4 5 2

Tra b a l h o, Ed u cação e Sa ú d e, v. 3 n. 2 , p. 4 4 5 - 4 5 2 , 2 0 0 5

R e s e n h a s

do pela psicanálise, num sentido a-histórico.“A c abam-se as obras e fica o desempre go (...) ‘op rogresso é mesmo assim’, diz o trab a l h a d o rque vai ap rendendo a grande lição dos novo stempos: de que o progresso capitalista não ésinônimo de bem-estar para todos” (p. 152).

Aos iniciados no discurso contra-hegemôni-co fica a constatação da perversidade do capita-lismo; aos leigo s, numa exposição sensível, o li-vro esclarece sem ‘ismos’ a pseudo-realidade naqual está imersa a sociedade contemporânea.