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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA A A A A n n i i s s t t i i a a B B r r a a s s i i l l e e i i r r a a : : a a n n t t e e c c e e d d e e n n t t e e s s , , l l i i m m i i t t e e s s e e d d e e s s d d o o b b r r a a m m e e n n t t o o s s d d a a d d i i t t a a d d u u r r a a c c i i v v i i l l - - m m i i l l i i t t a a r r à à d d e e m m o o c c r r a a c c i i a a DENISE FELIPE RIBEIRO Orientadora : Profª. Drª. Samantha Viz Quadrat Niterói 2012

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    AA AAnniissttiiaa BBrraassiilleeiirraa:: aanntteecceeddeenntteess,, lliimmiitteess ee ddeessddoobbrraammeennttooss ddaa ddiittaadduurraa cciivviill--mmiilliittaarr ddeemmooccrraacciiaa

    DENISE FELIPE RIBEIRO

    Orientadora: Prof. Dr. Samantha Viz Quadrat

    Niteri 2012

  • II

    FFoollhhaa ddee AApprroovvaaoo

    A ANISTIA BRASILEIRA: ANTECEDENTES, LIMITES E DESDOBRAMENTOS DA DITADURA CIVIL-MILITAR DEMOCRACIA

    Denise Felipe Ribeiro

    Dissertao submetida ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense UFF, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre. Aprovada por: __________________________________________ Orientador Prof. Dr. Samantha Viz Quadrat (UFF) __________________________________________ Prof. Dr. Maria Paula Arajo Nascimento (UFRJ) __________________________________________ Prof. Dr. Denise Rollemberg (UFF)

    Suplentes: __________________________________________ Prof Dr Alessandra Carvalho (UFRJ) __________________________________________ Prof. Dr. Daniel Aaro Reis Filho (UFF)

    Niteri

    2012

  • III

    R484 Ribeiro, Denise Felipe. A anistia brasileira: antecedentes, limites e desdobramentos da ditadura civil-militar democracia / Denise Felipe Ribeiro. 2012.

    130 f. Orientador: Samantha Viz Quadrat.

    Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2012.

    Bibliografia: f. 121-130.

    1. Anistia; Brasil; histria; sc. XX. 2. Brasil; poltica e governo, 1964-1985. 3. Ditadura civil-militar; Brasil, 1964-1979. I. Quadrat, Samantha Viz. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo. CDD 981.063

  • IV

    AAggrraaddeecciimmeennttooss

    professora Samantha Viz Quadrat, amiga e orientadora, por ter acreditado no

    meu potencial e por ter me encorajado a prestar os exames de seleo para o ingresso no

    mestrado. Serei eternamente grata pelas contribuies, crticas, broncas, mas

    principalmente pela pacincia. Ao vamuquevamo de todos os momentos.

    s professoras Denise Rollemberg e Maria Paula Arajo, por terem aceitado

    compor as bancas de qualificao e defesa, pelas valiosas observaes e contribuies

    oferecidas.

    s instituies e aos funcionrios do Arquivo Nacional, da Cmara Federal e do

    Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

    Aos/s professores/as Giselle Venncio, Gladys Ribeiro, Amrico Freire e Jessie

    Jane, cujos cursos ministrados contriburam para pensar mais significativamente a

    disciplina Histria, o perodo do regime civil-militar brasileiro e as polticas de justia

    de transio.

    direo, equipe pedaggica e colegas de magistrio da Escola Municipal

    Euclides da Cunha por todo o apoio e compreenso.

    Aos colegas, da UFF e de outras instituies, que se dedicam temtica do

    regime civil-militar brasileiro, com quem troquei figurinhas ao longo do curso:

    Anderson Almeida e Marta Lcia Fittipaldi, da UFF; Fernanda Moreira, da UFRRJ; e

    Rafaela Bettmio do CPDOC/FGV.

    Aos amigos que me acompanham desde a poca de IFCS, Saionara Ladeira,

    Claudiane Torres, Alexandre Ribeiro, Leandro Malavota, Dbora Monteiro e Isis Saint-

    Clair por compreenderem as ausncias e garantirem boas risadas nos poucos momentos

    em que pude estar presente.

    Lara Massi, amiga de infncia e de toda vida, confidente e, agora, madrinha de

    casamento, devo desculpar-me pelas longas ausncias. maravilhoso saber que

    nenhuma das nossas distncias geogrficas, temporais e de gostos foi capaz de nos

    separar.

    D. Ceres, minha av. Sem a base que ela, com muito esforo e sacrifcio, me

    ofereceu, certamente eu no teria conseguido trilhar sequer a metade do caminho.

  • V

    famlia Bitencourt da Silva. Sr. Joel, D. Iara e Joelminha, sou muito feliz por

    ter sido to bem acolhida por essa linda famlia.

    A Roberto Bitencourt, meu amor, obrigada pela pacincia, cumplicidade e

    companheirismo. Obrigada pelo caf na hora do sono na frente do computador.

    Obrigada por todas s vezes em que percorremos, s 6 da manh, toda a Avenida Brasil

    cantando Beatles. Obrigada por perceber os momentos em que o melhor a fazer era dar

    uma bela caminhada ao sol. Obrigada pelos altos papos na nossa varandinha. Obrigada

    por trazer mais luz, calor e felicidade para a minha vida.

  • VI

    RReessuummoo

    RIBEIRO, Denise Felipe. A anistia brasileira: antecedentes, limites e

    desdobramentos da ditadura civil-militar democracia. Orientadora: Samantha Viz

    Quadrat. Niteri: UFF/ICHF/PPGH, 2012. Dissertao (Mestrado em Histria)

    O presente trabalho tem como objetivo analisar o debate travado no mbito da

    sociedade e dos poderes Legislativo e Executivo relativo anistia poltica aos

    penalizados a partir do golpe civil-militar de 1964. Procuramos analisar o incio desse

    debate, as reaes dos governos civil-militares e a preocupao do regime com sua

    imagem no exterior prejudicada pelas denncias de violaes de direitos humanos e de

    luta pela anistia. Considerando tambm a retomada desse debate no perodo

    democrtico, buscamos compreender as polticas de justia de transio que foram

    sendo constitudas aqui e em outros pases que passaram por diferentes processos de

    transio democracia, assim como as diferentes reaes a tais aes.

    PPaallaavvrraass--cchhaavvee:: AAnniissttiiaa,, ddiittaadduurraa cciivviill--mmiilliittaarr,, eexxlliioo

  • VII

    AAbbssttrraacctt

    RIBEIRO, Denise Felipe. A anistia brasileira: antecedentes, limites e

    desdobramentos da ditadura civil-militar democracia. Orientadora: Samantha Viz

    Quadrat. Niteri: UFF/ICHF/PPGH, 2012. Dissertao (Mestrado em Histria)

    The present task aims to observe the debate between legislative and executive powers

    and society concerning political amnesty to penalized from the 1964 civil-military coup.

    We seek to analyze in the beginning of this debate, the reactions of the military

    governments and the regime concern surrounding its image abroad injured by

    accusations of human rights violations and fight for amnesty undertaken in Brazil and

    abroad. Seeing also the resumption of this discussion nowadays, we seek understand the

    justice policies in transition that have been established here and in other countries that

    have experienced for different processes of democratic transition, as well as the

    different reactions to such policies.

    Keywords: Amnesty, civil-military dictatorship, exile

  • VIII

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABI Associao Brasileira de Imprensa

    AERP Assessoria Especial de Relaes Pblicas

    AFP Agence France Press

    ARENA Aliana Renovadora Nacional

    AERP Assessoria Especial de Relaes Pblicas

    ARP Assessoria de Relaes Pblicas

    CBAs Comits Brasileiros pela Anistia

    CEMOP Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos

    CENIMAR Centro de Informaes da Marinha

    CGT Comando Geral dos Trabalhadores

    CIDH Comisso Interamericana de Direitos Humanos

    CIE Centro de Informaes do Exrcito

    CISA Centro de Informaes da Aeronutica

    CNBB Conferncia Nacional de Bispos do Brasil

    DOPS Delegacia de Ordem Poltica e Social

    DSI Diviso de Segurana e Informao

    FIERGS Federao das Indstrias do Estado do Rio Grande do Sul

    IPMs Inquritos Policial-Militares

    MAI Ministrio da Administrao Interna (Portugal)

    MDB Movimento Democrtico Brasileiro

    MRE Ministrio das Relaes Exteriores

    OAB Ordem dos Advogados do Brasil

    OEA Organizao dos Estados Americanos

    OIT Organizao Internacional do Trabalho

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PCB Partido Comunista Brasileiro

    PDC Partido Democrata Cristo

    PNDH 3 Plano Nacional de Direitos Humanos 3

    PSB Partido Socialista Brasileiro

    PSD Partido Social Democrtico

  • IX

    PSP Partido Social Progressista

    PTB Partido Trabalhista Brasileiro

    PTN Partido Trabalhista Nacional

    SNI Servio Nacional de Informao

    STF Supremo Tribunal Federal

    STM Superior Tribunal Militar

    TCU Tribunal de Contas da Unio

    UDN Unio Democrtica Nacional

    UNE Unio Nacional dos Estudantes

  • X

    SSuummrriioo

    Introduo 1 CCaappttuulloo 11:: AA AAnniissttiiaa ee aa DDiittaadduurraa CCiivviill--MMiilliittaarr BBrraassiilleeiirraa 1111 1.1 O surgimento do debate sobre anistia na ditadura civil-militar 12 1.2 O surgimento e o desenvolvimento da questo da anistia poltica aps o golpe civil-militar de 1964 15 CCaappttuulloo 22:: AA aattuuaaoo ddaa ddiittaadduurraa bbrraassiilleeiirraa eemm rreellaaoo ss ccaammppaannhhaass ddee aanniissttiiaa nnoo BBrraassiill ee nnoo eexxtteerriioorr 4477 2.1. Os exlios no Brasil e na Amrica Latina 48 2.1.1. O Brasil como lugar de exlio 54 2.1.2. Como tratar um exilado: o banimento brasileiro e a opcin argentina 59 2.2. A difamao e os difamadores: os militares frente s campanhas de denncia s violaes de direitos humanos e a favor da anistia 64 2.3. A oposio ditadura brasileira a partir do exlio 74 2.4. A negao de documentos 80 2.5. Negando o inegvel 85 2.6. Atuando sem fronteiras 89 CCaappttuulloo 33:: AA jjuussttiiaa ddee ttrraannssiioo nnoo BBrraassiill ee ooss eexxlliiooss nnaa AAmmrriiccaa LLaattiinnaa 9988 3.1 A justia de transio e os organismos internacionais de direitos humanos 99 3.2 A justia de transio no Brasil 106

    3.2.1. Crticas justia de transio brasileira 112 Concluso 117 Fontes 122 Referncias bibliogrficas 124

  • XI

    E hoje

    nestes dias encardidos de atos e decretos,

    neste tempo suspenso num mastro sem bandeiras,

    nesta nao de homens que ingerem caldo de galinha,

    neste momento tsico

    em que somente os finrios se regozijam,

    nestes anos em que o sangue da Amrica um imenso canto de esperanas,

    este poema chega assim to de repente

    rogando uma audincia para falar comigo,

    como se soubesse que estou para morrer,

    e me encontra prostrado num bacanal de coisas fteis,

    um inconsciente talvez

    um homem intil

    quase um desertor

    meu Deus, quase um desertor.

    CCaannoo ppaarraa ooss hhoommeennss sseemm ffaaccee MMaannooeell ddee

    AAnnddrraaddee

  • 1

    Introduo

  • 2

    Para quem teve sua infncia nos anos 1980 no difcil ter algum tipo de

    memria relativa aos anos de ditadura civil-militar no Brasil. No me refiro apenas aos

    desfiles militares, s aulas de OSPB e de Educao Moral e Cvica. Fui criada no Rio de

    Janeiro, por uma av que trabalhava como cabeleireira em vrias casas da zona sul,

    cujos chefes de famlia eram militares de alta patente. Lembro-me apenas de ficar feliz

    pelo fato de que em todos os carnavais o ingresso para o baile infantil do Clube Militar

    era garantido. Na escola, recordo de uma colega cujo av, depois eu soube, havia sido

    ministro da Aeronutica e chefe do Estado Maior das Foras Armadas. Foi na mesma

    turma que conheci aquela que minha melhor amiga at os dias de hoje. Sua famlia

    havia chegado ao Brasil pouco tempo antes de seu nascimento. Eram exilados polticos

    vindos da Argentina.

    Na adolescncia, como no me deixar encantar pelo idealismo e pelos valores

    altrustas daqueles jovens que lutavam por um mundo mais justo, retratados na

    minissrie Anos Rebeldes?1 A minissrie levou a um resgate de memrias sobre os

    anos 1960, que foram fartamente publicados na imprensa. O meu lbum de fotos e de

    matrias jornalsticas sobre o perodo s aumentava. Pouco mais tarde, interessei-me

    pelo teatro. A primeira montagem da qual participei foi 1968: a imaginao no poder,

    do autor e diretor Jos Maria Rodrigues.

    Ao ingressar na graduao, e nos breves estudos feitos ao longo de uma ps-

    graduao Latu sensu em Histria do Brasil, na Universidade Candido Mendes, meu

    interesse girou em torno do estudo do papel poltico dos militares no Brasil. O perfil

    poltico de um militar que integrou o governo Costa e Silva consistiu na minha

    monografia de concluso do curso de graduao.2 Entender a importncia da origem

    social, das relaes de amizade estabelecidas ao longo dos anos de aprendizado e de

    servio na formao de grupos polticos no interior das Foras Armadas esteve entre os

    meus objetivos.

    1 A minissrie Anos Rebeldes foi exibida na Rede Globo de Televiso entre os meses de julho e agosto de 1992. A trama retratava a trajetria de um grupo de estudantes cariocas desde 1964 at 1985. 2 RIBEIRO, Denise Felipe. Eu que perteno ao partido dos gorilas: perfil poltico de Hernani DAguiar.(Monografia em Histria) Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. RIBEIRO, Denise Felipe. As abordagens sobre as foras armadas no Brasil: uma discusso historiogrfica. (Monografia em Histria) Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, 2007.

  • 3

    No mestrado, o interesse em entender as dinmicas militares, suas aes e ideias,

    se mesclou ao antigo interesse em relao s esquerdas no Brasil. Nesse trabalho,

    pretendo dar conta de um processo, que foi iniciado nos momentos imediatamente

    posteriores ao golpe civil-militar de 1964 e que chegou a um ponto culminante em 28 de

    agosto de 1979, com a Lei n 6683/79, a Lei da Anistia, processo este que envolveu

    diversos atores polticos.

    O Brasil tem uma longa tradio de anistias polticas, que abarcaram tanto

    pessoas que atentaram contra a legalidade ilegitimamente estabelecida caso do regime

    civil-militar brasileiro estabelecido em 1964 at aqueles que tentaram ameaar a

    legalidade legitimamente estabelecida, como foi o caso dos golpistas de 1956 e de 1959.

    A esse respeito, Renato Lemos lembra que a anistia poltica consagrada na tradio

    poltica brasileira expressa duas outras tradies: a conciliao como meio para a

    manuteno dos interesses das classes dominantes e a contra-revoluo preventiva

    como estratgia de combate s crises.3

    Nesse sentido, Lemos retoma o pensamento de Jos Honrio Rodrigues, para

    quem as polticas de conciliao teriam como objetivo principal pr fim s contradies

    entre os grupos dominantes e garantir a ordem. Com base nesta linha interpretativa, a

    anistia de 1979 entendida como uma grande transao entre setores moderados do

    regime civil-militar que teriam tido o controle do processo e da oposio. Uma

    transao que, como parte de uma srie de transformaes buscadas desde 1973 por

    lideranas civis e militares do governo, pretendia alcanar o abrandamento da legislao

    repressiva e a ampliao do leque de opes partidrias. Desse modo, estaria sendo

    preparado pelo governo um processo de transio que garantiria a incorporao de

    algumas foras polticas sem que houvesse o descarte da tutela militar.4 A partir de

    ento,

    A negociao da anistia implicou o confronto entre os diversos projetos polticos voltado para a conjuntura de transio vivida pelo pas. Desde que, ao assumir a Presidncia da Repblica em 15 de maro de 1974, o general Ernesto Geisel

    3 LEMOS, Renato. Anistia e crise poltica no Brasil ps-1964. Topoi, Rio de Janeiro, n 5. 2002, p.289. 4 Idem, p. 293.

  • 4

    anunciou um programa de abertura lenta, gradual e segura, o processo poltico nacional passou a ser polarizado pela agenda da transio de regime.5

    A partir de 1974, o que se observou foi um quadro de fortalecimento da oposio

    democrtica, representado pela vitria nas eleies legislativas daquele ano e pelo

    crescimento das manifestaes de setores da sociedade civil a favor da

    redemocratizao. Ao mesmo tempo, Ernesto Geisel, em seus ltimos anos de governo

    acenava com medidas de abrandamento do regime, tais como: a revogao dos atos

    institucionais e a reforma da Lei de Segurana Nacional. Diante desse cenrio, os

    setores militares localizados mais direita no espectro poltico rejeitavam o ritmo e a

    abrangncia da abertura que estava sendo promovida pelos governos Geisel e

    Figueiredo. Questes relacionadas problemtica da anistia, como o retorno de

    polticos cassados, o retorno dos exilados, a interrupo dos processos em andamento na

    Justia Militar e as campanhas pela anistia poltica, de denncias de torturas e de outros

    tipos de violaes aos direitos humanos, deparavam-se com a oposio dos setores

    comumente identificados como linha-dura.6 Debatia-se quem deveria ser anistiado,

    como se daria a reinsero de elementos ceifados da vida poltica nacional no ps-1964,

    como deveria ser a volta dos exilados e banidos, como o regime deveria lidar com

    aqueles que tinham sido processados judicialmente, como lidar com a delicada situao

    jurdica dos banidos e com a difamao promovida por elementos de esquerda em

    relao ao regime. Essa problemtica permeou a elaborao dos projetos de abertura

    poltica e de anistia.

    A Lei da Anistia, aprovada em 28 de agosto de 1979, excluiu os condenados

    pela prtica de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal e incluiu os

    acusados de crimes conexos ou seja, os militares ou agentes a servio do regime

    civil-militar, que tivessem torturado, assassinado, participado do desaparecimento de

    pessoas seriam beneficiados pela Lei. Desse modo, Lei da Anistia passou a ser

    atribuda um suposto carter de reciprocidade.7

    5 Idem. 6 Idem, p. 294. 7 Essa leitura da lei predominante entre os grupos de direitos humanos que no se sentem por ela contemplados.

  • 5

    No Brasil. o esprito de reconciliao que norteou este carter recproco contribuiu tambm para que fossem anistiados eticamente todos os que sustentaram a violenta ditadura brasileira. Muitos deles so, hoje, pilares da democracia brasileira, atuando em posies polticas destacadas. (...) Exercem essa continuidade dando as mos a antigos adversrios. o esprito de reconciliao que permite a tranqila convivncia no poder entre antigos expoentes da ditadura militar Antnio Carlos Magalhes, Jos Sarney, Marco Maciel, etc. e subversivos dos anos 60. (...) Foi igualmente o esprito de reconciliao que obstou a apurao de crimes de tortura e assassinato praticados por membros dos servios de segurana e acobertados pelos governos militares.8

    Ainda de acordo com Lemos, a manuteno no poder de indivduos identificados

    com a ordem anterior, e as suas instituies, tpica de transies negociadas sob a

    liderana de foras representativas da ordem ditatorial. Esse tipo de transio constituir-

    se-ia, portanto, em uma estratgia de sobrevivncia de diversos setores das classes

    dominantes.

    Trata-se, antes de tudo, de evitar que a situao de crise poltica evolua no sentido da contestao revolucionria da ordem social, hiptese alimentada pelo aprofundamento das divises internas ao bloco no poder. A continuidade da velha na nova ordem viabilizada pelas salvaguardas embutidas no pacto de transio estabelecido entre os setores moderados do quadro poltico, entre as quais a natureza restrita e recproca da anistia.9

    A orientao dos governos dos generais Ernesto Geisel e Joo Figueiredo era,

    pois, a de conduzir a abertura de modo a no permitir que houvesse ciso nas Foras

    Armadas e que os militares conseguissem manter o mximo controle at o final do

    processo.

    Apesar das tenses internas na instituio, para efeitos do pblico externo os militares haviam permanecido coesos no poder desde 1964 e teriam que sair dele em bloco, sem fissuras e sem clivagens aparentes para a sociedade. Era uma forma de se protegerem em bloco de possveis cobranas em processos judiciais envolvendo a questo dos direitos humanos e atos discricionrios cometidos durante a ditadura. Era uma transio que colocava como inegocivel a

    8Idem, p. 296. 9Idem, p. 297.

  • 6

    do regime.12

    imunidade militar. Para isso a coeso na sada era imprescindvel, e o discurso precisava ser monoltico.10

    Para garantir o controle das Foras Armadas sobre o processo de abertura

    poltica fazia-se necessrio, tal qual o planejado por Ernesto Geisel, que este ocorresse

    de modo gradual. Um dos principais problemas com que Geisel teria que lidar era o

    desmonte da chamada comunidade de segurana e informaes, onde predominavam

    militares da chamada linha dura.11 Seria preciso, ento, isolar os militares duros,

    que no queriam a retirada do poder. Temia-se que a abertura poltica trouxesse a

    reboque medidas que pudessem permitir investigaes e punies para os crimes

    cometidos ao longo

    A meta almejada era isolar os radicais, alguns terroristas, que no admitiam o retorno ao governo civil e democrtico, e impedir, ao mesmo tempo, que a oposio civil impusesse, via mobilizao social, a sua agenda de mudanas. A oposio precisaria ser contida, no poderia dar o tom do processo, no construiria a pauta de negociaes.13

    Nesse sentido, para aqueles militares que pensavam a transio, era tambm

    preciso controlar o ritmo em que a abertura ocorreria, de modo a impedir que os

    elementos da oposio se tornassem hegemnicos ao longo desse processo. As crticas

    de Geisel, no entanto, no se limitavam aos setores duros das Foras Armadas:

    Havia gente no Exrcito, nas Foras Armadas de um modo geral, que vivia com essa obsesso da conspirao, das coisas comunistas, da esquerda. E a situao se tornava mais complexa porque a oposio, sobretudo no Legislativo, em vez de compreender o caminho que estava seguindo, de progressivamente resolver esse problema, de vez em quando provocava e hostilizava. Toda vez que a

    10 DARAJO, Maria Celina. Militares, democracia e desenvolvimento: Brasil e Amrica do Sul. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p.107. 11 Cabe aqui lembrar que dividir os militares brasileiros apenas entre linha dura e moderados uma questo bastante controversa. Joo Martins Filho procurou entender a dinmica das crises polticas na ditadura ps-1964 e quais eram as divises presentes na corporao militar, contestando assim a chamada viso dualista. Ver MARTINS FILHO, Joo Roberto. O palcio e a caserna: a dinmica militar das crise polticas na ditadura (1964-1969). So Carlos: EDUFSCar, 1995. 12 FICO, Carlos. A negociao parlamentar da anistia de 1979 e o chamado perdo aos torturadores. Paper, s/d. Disponvel em http://www.ppghis.ifcs.ufrj.br/media/Torturadores.pdf, acessado em 10 de janeiro de 2012. 13 DARAJO, Maria Celina. Op.cit., 2010, p.112.

  • 7

    oposio, nos seus discursos, nos seus pronunciamentos, fazia declaraes ou reivindicava posies extremadas e investia contra as Foras Armadas, evidentemente vinha a reao do outro lado, e assim se criavam para mim grandes dificuldades.14

    Desde o incio da ditadura, e mesmo durante os governos em que a linha dura

    foi predominante como nos governos Arthur da Costa e Silva (1967-1969) e Emlio

    Garrastazu Mdici (1969-1974), debatia-se de que modo se daria o retorno

    normalidade institucional. Durante os perodos mais duros, o debate teria sido

    pautado pelo argumento da radicalizao das esquerdas. Sob esse pretexto, o regime se

    recusava a fazer concesses democrticas.15

    Levando em considerao o processo repleto de tenses e contradies que

    culminaram na anistia e no retorno democracia, a presente dissertao visa a destacar

    alguns matizes do longo desenvolvimento das discusses sobre a anistia, desde o

    imediato momento em se instalou o regime civil-militar de 1964 at a decretao da Lei

    da Anistia. No entanto, no me restringi ao ano de 1979. Considerei que era preciso que

    o trabalho voltasse no tempo, de modo a observar os primeiros pleitos pela anistia

    poltica e avanasse at o tempo presente para que fosse possvel notar os

    desdobramentos desse processo. Para ser mais preciso, no tocante ao tempo presente, o

    trabalho ps em relevo as discusses relativas justia de transio, desenroladas aps o

    retorno ao regime democrtico. Atores diversos, que integravam e atuavam em

    diferentes organizaes polticas e instituies civis e militares, seus pontos de vista e

    suas estratgias mobilizadas em busca da conquista ou da conteno da anistia e da

    redemocratizao, foram ressaltados no curso deste trabalho. No me limitei, portanto,

    ao lcus governamental. A luta no exlio, a mobilizao de diversos atores no Brasil e

    no exterior, a expresso das ideias sobre a anistia nos peridicos do perodo so

    percebidos como importantes esferas. No entanto, procurei dar enfoque maior

    temtica dos exilados, pois considerei importante priorizar uma abordagem que

    atribusse maior relevo s particularidades relacionadas ao exlio e ao tratamento

    dispensado pelo regime civil-militar a esses exilados.

    14 DARAJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p.377. 15 DARAJO, Maria Celina. Op.cit., 1997, p.112.

  • 8

    Do outro lado deste embate temos, por parte de atores de segmentos das Foras

    Armadas e de setores civis fundamentais para a sustentao do regime ditatorial, a

    criao de obstculos ao processo de redemocratizao. Nesse sentido, o trabalho

    procura acentuar as mltiplas e antagnicas vozes, expressando foras polticas distintas

    e divergentes, envolvidas, nas discusses relativas ao processo de anistia de presos,

    cassados, banidos e exilados.

    Quanto ao ordenamento do trabalho, ele est estruturado em trs captulos. O

    primeiro se prope a discutir como ocorreram, logo aps o golpe civil-militar, as

    discusses relativas questo da anistia poltica. Dando nfase a um aspecto pouco

    considerado pela maior parte das anlises sobre a temtica, procurei dar relevo s

    discusses, em especial ocorridas na esfera parlamentar, que apareceram em momentos

    imediatamente posteriores tomada do poder pelos militares. O propsito geral

    acentuar a longa durao dos debates e das preocupaes de diferentes setores polticos

    e militares em torno da concesso ou no da anistia, uma ordem de problemas

    diretamente relacionada s tensas tentativas de legitimao da ordem poltica instaurada

    em 31 de maro de 1964, assim como de sua tambm correspondente contestao. No

    tocante s fontes, foram utilizados jornais de grande circulao, como a Folha de So

    Paulo e o Jornal do Brasil, o Dirio do Congresso Nacional, a memorialstica de

    personagens civis e militares e a literatura acadmica pertinente.

    Os embates travados no parlamento foram acompanhados pela luta em prol da

    anistia de pequenos grupos de familiares e amigos de presos e exilados, que mesmo sob

    o risco de trabalhar pela anistia em um pas que vivia ainda sob o arbtrio ditatorial,

    conseguiram disseminar a ideia pelo pas, principalmente nas grandes cidades,

    sensibilizando estudantes universitrios, intelectuais, artistas e formadores de

    opinio.16Os movimentos surgidos no Brasil tiveram eco no exterior, onde foram sendo

    disseminadas organizaes com o objetivo de denunciar as violaes aos direitos

    16REIS, Daniel Aaro. Ditadura e sociedade: as reconstrues da memria. In: REIS, Daniel Aaro; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto S (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 46. Em meados dos anos 1970 foram fundadas organizaes como o Comit de Defesa dos Presos Polticos, em 1974, e o Movimento Feminino pela Anistia (MPFA), em 15 de maro de 1975. Helosa Greco buscou refletir sobre o significado da luta pela anistia empreendida pelos Comits Brasileiros de Anistia (CBAs) e pelo MPFA. Ver: GRECO, Helosa Amlia. Dimenses fundacionais da luta pela anistia. Belo Horizonte: UFMG, 2003 (Tese de Doutorado).

  • 9

    humanos promovidas pelo regime ditatorial.17 Pretendia-se tambm denunciar o

    tratamento dispensado pelo governo aos exilados e lutar pela anistia poltica.18 Seguindo

    essa linha de pensamento, o segundo captulo aborda alguns aspectos consoantes aos

    mecanismos de controle e de represso desenvolvidos pelo regime civil-militar em

    relao aos exilados, particularmente no tocante queles movimentos promovidos no

    exterior, considerados pelos militares como difamatrios e nocivos imagem brasileira

    na comunidade internacional. Esse era um ponto de grande importncia para os

    militares, que consideravam como parte de sua misso a construo de uma imagem

    mais positiva do pas no exterior, que fosse condizente com o sua preponderncia

    geopoltica. Atinente s fontes mobilizadas, basicamente fao uso de documentos

    oficiais do Ministrio da Justia e do Ministrio das Relaes Exteriores, que se

    encontram no Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, assim como de obras de carter

    memorialstico de personagens civis e militares, e de parte da produo acadmica.

    Procurei tambm abordar questes referentes ao exlio brasileiro partindo de outros

    casos de exlio na Amrica Latina, particularmente o caso argentino, utilizado aqui

    como um elemento de contraponto.

    O terceiro captulo se dedica a empreender uma reflexo e um balano acerca

    das questes atuais relacionadas chamada justia de transio, isto , aes jurdicas e

    polticas contemporneas que visam adotar mecanismos pedaggicos, punitivos e de

    construo da memria, favorveis inibio de atos que violem os direitos humanos,

    tais como os praticados no regime civil-militar brasileiro e abordados nos captulos

    anteriores. Desse modo, fao um balano sobre os processos de justia de transio em

    pases da Amrica Latina tambm atingidos por regimes de exceo, ttulo de

    comparao com o caso brasileiro. A legislao produzida no Brasil a partir da

    restaurao do regime democrtico tambm analisada de modo a sublinhar algumas

    limitaes derivadas, entre outros motivos, pelo universo de valores de segmentos da

    sociedade civil. Foram utilizadas como fontes artigos de peridicos, sites e revistas

    especializados na temtica dos direitos humanos e a recente literatura acadmica sobre o

    17 Sobre a oposio ditadura brasileira nos Estados Unidos, ver GREEN, James. Apesar de vocs: oposio ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. So Paulo: Companhia das Letras, 2009. 18 No pretendo aqui me concentrar na questo da luta pela anistia empreendida por amigos e familiares de exilados, banidos e presos polticos aqui no Brasil. Alguns estudos recentes contemplam muito bem a questo, tais como: CIAMBARELLA, Alessandra. Anistia ampla, geral e irrestrita: a campanha pela anistia poltica no Brasil (1977-1979). Niteri: UFF, 2002 (Dissertao de Mestrado); GRECO, Helosa Amlia. Op. cit.

  • 10

    assunto. Objetivando captar a recepo dessa discusso entre parcelas da populao,

    utilizei-me tambm de cartas de leitores do jornal O Globo.

    Logo, de um ponto de vista geral, o trabalho procura resgatar alguns fragmentos

    e aspectos do recente passado autoritrio nacional, situ-los nas discusses do tempo

    presente, de sorte a pr em relevo a necessidade tanto de criao de mecanismos

    institucionais, quanto de iniciativas polticas, jurdicas, culturais e pedaggicas que

    prezem a defesa e a integridade dos direitos humanos e dos valores democrticos no

    Brasil.

  • 11

    Captulo 1

    Os primeiros debates sobre a Anistia e a ditadura civil-militar brasileira

  • 12

    1.1. O surgimento do debate sobre anistia na ditadura civil-militar

    A memria coletiva construda em relao aos anos do regime civil-militar

    instaurado no Brasil em 31 de maro de 1964 em muito tem a ver com a historiografia

    produzida ao longo da dcada de 1980, quando o trabalho de redigir a histria estava

    ainda muito prximo do tempo vivido. Ao longo dessa transio que foi permeada

    pelas noes de conciliao, de perdo e de esquecimento foi sendo construda uma

    memria dotada de um vocabulrio prprio (anos de chumbo, pores da ditadura e

    regime militar), que acabava isentando a sociedade brasileira da responsabilidade com o

    que havia ocorrido ao longo dos 21 anos de ditadura. Assim, a memria que foi sendo

    instituda fundava-se no mito da resistncia.19

    Denise Rollemberg assinala algumas linhas interpretativas relativas

    redemocratizao do pas, reunindo-as em trs diferentes eixos. O primeiro v o Estado

    como fora meramente coercitiva e focaliza o papel dos movimentos de oposio e/ou

    de resistncia democrtica como decisivo na crise do regime ditatorial. Essas

    interpretaes tambm percebem a crise do milagre econmico como um motivo de

    insatisfao da sociedade com o governo.20 Na segunda linha interpretativa, feita uma

    inverso no pensamento: a abertura poltica no comeou a ser pensada a partir da crise

    do milagre econmico, mas em funo de seu sucesso. So a pensadas as diferenas

    entre militares das chamadas linha dura e moderada das Foras Armadas, valorizando-

    se o peso da primeira faco nesse processo.21 Por ltimo, a terceira linha de

    argumentao, que se centra nos conflitos internos da corporao militar para explicar a

    transio.22 A dinmica e o ritmo da abertura teriam sido determinados pelas suas

    disputas internas. No entanto, segundo essa perspectiva, as continuidades estiveram

    presentes no perodo democrtico. A preponderncia de polticos identificados com o

    19 ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da memria. A Associao Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974). In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha (Orgs.). A construo social dos regimes autoritrios: Brasil e Amrica Latina. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010, p. 99-100. 20 Rollemberg cita como exemplo desta vertente o trabalho de Bernardo Kucinski, KUCISNSKI, Bernardo. O fim da ditadura militar. So Paulo: Contexto, 2001. 21 O trabalho citado como exemplo dessa interpretao SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura poltica no Brasil, 1974-1985 In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Luclia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano. vol.4: O tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. 22 O exemplo atribudo a essa corrente MATHIAS, Suzeley. A distenso militar. Campinas: Papirus, 1995.

  • 13

    regime nesse momento um bom exemplo. Outro seria a maneira pela qual foi definida

    a Lei da Anistia (Lei n 6683, de 28 de agosto de 1979) vista a como uma vitria do

    governo, ao contemplar torturadores e excluir os autores de crimes de sangue, que s

    foram includos posteriormente. Assim, o governo, pela maneira como tratou da questo

    da anistia, no teria se preocupado com as esquerdas, mas sim com uma extrema-direita

    que reagia violentamente aos ventos que trouxeram consigo a transio para a

    democracia.23 Dentre essas verses, a que prevaleceu foi a primeira, por ser aquela que

    melhor correspondia aos anseios presentes no final dos anos 1970 e ao longo dos anos

    1980. Os movimentos sociais, a partir da, so valorizados ao serem vistos como de

    oposio ao regime civil-militar, enquanto que qualquer esboo de apoio ao regime

    lanado ao esquecimento. Construiu-se, assim, uma memria de resistncia

    superdimensionada e mitificada.24

    Boa parte dos trabalhos que se dedicam questo da anistia no Brasil costuma

    privilegiar os embates travados ao longo dos ltimos anos da dcada de 1970 e que

    tiveram como resultado a aprovao da Lei da Anistia.25 Tais estudos acabam

    apresentando o Poder Executivo como ator central, delegando ao Legislativo um papel

    meramente legitimador das aes do governo.26 Tal concepo tenderia tambm a

    maximizar a atuao de atores individuais pertencentes ao governo civil-militar nesse

    processo. Um bom exemplo dessa vertente interpretativa a srie de quatro livros

    produzidos por Elio Gaspari, em que os papis dos generais Ernesto Geisel e Golbery

    do Couto e Silva so vistos como determinantes do processo de abertura poltica e de

    anistia.27

    23 ROLLEMBERG, Denise. Op. cit., 2010, p. 100-102. 24 Idem, p. 102. 25 Entre alguns dos muitos trabalhos sobre abertura poltica e anistia, temos: KUCINSKI, Bernardo. O fim da ditadura militar. So Paulo: Contexto, 2001; LINZ, Juan J. , STEPAN, Alfred. A transio e consolidao para a democracia. A experincia do Sul da Europa e da Amrica dos Sul. So Paulo: Paz e Terra. 1999; MATHIAS, Suzeley Kalil. Distenso no Brasil. O Projeto Militar (1973-1979). Campinas: Papirus, 1995; OLIVEIRA, Elizer Rizzo de. De Geisel a Collor. Foras Armadas, transio e democracia. Campinas: Papirus, 1994.; LEMOS, Renato. Anistia e crise poltica no Brasil ps-1964. Topoi, Rio de Janeiro, n5, p. 287-313.;MARTINS, Roberto Ribeiro. Liberdade para os brasileiros: anistia ontem e hoje. So Paulo: Brasiliense, 2010. 26 SILVA, Sandro Hverton Cmara da. Anistia Poltica: Conflito e conciliao no mbito do Congresso Nacional Brasileiro (1964-1979). (Mestrado em Histria Poltica, Dissertao). Rio de Janeiro, UERJ, IFCH, 2007, p. 7-8. 27 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.; GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. GASPARI, Elio. A ditadura derrotada. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. So Paulo:

  • 14

    Essas interpretaes se relacionam com o debate relativo transio para a

    democracia. Segundo obra organizada por Glucio Soares, Maria Celina DArajo e

    Celso Castro, so diversas as explicaes nas cincias sociais e polticas para as

    transies democrticas. Entre elas temos algumas que privilegiam os aspectos

    econmicos,28 outras a cultura poltica,29 ou a anlise das elites. Alm dessas correntes

    interpretativas, temos aquela que enfatiza o papel do prprio Estado no processo de

    transio. Segundo essa ltima vertente, a transio para a democracia seria controlada

    pelo Estado e no pelas foras da sociedade civil. Desse modo, a nfase no Estado

    meio caminho andado para recuperar a importncia dos militares, tanto para os golpes e

    os regimes militares quanto para o fim destes regimes e das transies democrticas.30

    Soares, DArajo e Castro analisam a relao entre os militares e a

    redemocratizao a partir dos estudos desenvolvidos por Guillermo ODonnell e

    Philippe Schmitter,31 de acordo com os quais, excetuando os casos em que derrotas

    militares interferiram no processo, so as questes internas instituio militar que

    seriam predominantes para a transio. Embora seja essa uma teoria que contribui para

    explicar o fim do regime, sua dificuldade est no entendimento do porque este no ruiu

    antes, na ocasio de algumas das crises ocorridas no interior das Foras Armadas, como

    aquelas observadas durante os governos Costa e Silva e Ernesto Geisel. Assim, nas

    palavras de Soares et al,

    A ideia de que os militares se retiraram do poder para preservar a unidade da corporao ocorreu a vrias pessoas. Segundo essa perspectiva, as Foras Armadas, estando divididas politicamente, teriam diagnosticado que a permanncia no poder era a causa das divises, pelas ambies polticas que gerara, que acabavam superando o tradicional esprito de unidade da corporao.32

    Companhia das Letras, 2004. Cabe aqui lembrar que a maior parte dos documentos a que Elio Gaspari teve acesso no so pblicos. 28 Ver FURTADO, Celso. O Brasil ps-milagre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981 e PEREIRA, Bresser. Os pactos polticos. So Paulo: Brasiliense, 1985. 29 Ver SOARES, Glucio Ary Dillon. O golpe de 1964. In: SOARES, Glucio; DARAJO, Maria Celina (Orgs.). 21 anos de regime militar. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1994. 30 DARAJO, Maria Celina; SOARES, Glucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (intr. e org.). A volta aos quartis: a memria militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1995, p. 28. 31 ODonnell, Guillermo; SCHMITTER, Phillippe. Transitions from authoritarian rule: tentative conclusions about uncertain democracies. Baltimore: John Hopkins University Press, 1986. 32 DARAJO, Maria Celina; SOARES, Glaucio Ary Dillon: CASTRO, Celso. Op.cit., 1995, p.30. O grifo dos autores.

  • 15

    As ameaas unidade das Foras Armadas, que foram frequentes durante todo o

    perodo do regime civil-militar, no foram, no entanto, suficientes para a retirada dos

    militares do poder. Essas fissuras, entretanto, inegavelmente contriburam para o fim do

    regime.

    Durante todo o regime houve importantes divises dentro das Foras Armadas. Assim, no possvel relacionar a emergncia dessas divises com a democratizao: elas sempre existiram, inclusive nos perodos de maior legitimidade do governo militar. (...) Acreditamos que a diviso deve ser localizada no interior das Foras Armadas, e no somente no interior dos regimes militares.33

    Ainda em relao aos estudos que abordam a questo da anistia e do processo de

    abertura poltica, observamos que h uma opo majoritria pelo recorte temporal que

    se inicia na segunda metade dos anos 1970, praticamente desconsiderando que as ideias

    de anistia, as denncias das torturas sofridas pelos perseguidos polticos, e a defesa da

    abertura poltica e do retorno democratizao j estavam presentes na imediata

    sequncia ao golpe civil-militar. Cabe lembrar que tais questes no eram, ainda nesse

    momento, o eixo central do debate poltico. No entanto, no devemos desconsiderar que

    a luta poltica em torno da anistia que se desenvolveu a partir da segunda metade dos

    anos 1970 essa sim, determinante no processo que resultou na aprovao da Lei da

    Anistia teve seus antecedentes. Ao longo do presente captulo, veremos que a

    demanda pela anistia poltica esteve presente durante todo o regime civil-militar,

    inclusive nos momentos caracterizados por uma maior violncia e represso poltica.

    1.2. O surgimento e o desenvolvimento da questo da anistia poltica aps o golpe civil-militar de 1964

    Aps o golpe civil-miltar de 1964, o governo recm-instaurado teve como uma

    de suas aes o exerccio do poder de cassar mandatos representativos tanto no Poder

    Executivo, quanto no Legislativo, federal e estadual e de suspender direitos polticos.

    Esse poder estava previsto no Art. n 10 do Ato Institucional n1, de 9 de abril de 1964,

    33 Idem, p. 31.

  • 16

    mas a princpio tinha seus dias contados, pois expiraria em 15 de junho de 1964. Os

    mais atingidos pelas cassaes no perodo imediatamente posterior ao golpe foram os

    parlamentares integrantes da Frente Parlamentar Nacionalista, que reunia integrantes de

    vrios partidos da esquerda e tinham estreitas relaes com organizaes de orientao

    esquerdista, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e a Unio Nacional dos

    Estudantes (UNE). Assim, as primeiras cassaes tiveram um vis ideolgico marcado

    pelo anticomunismo.34

    Segundo Thomas Skidmore, os militares da chamada linha-dura tinham em

    mos uma lista de cerca de 5 mil pessoas consideradas inimigas que deveriam ter seus

    direitos suspensos. Alguns militares, como o marechal Taurino de Rezende, presidente

    da comisso geral de investigaes,35 desejavam a prorrogao da vigncia do Art. N

    10, do Ato Institucional, de modo a dar prosseguimento cassao de mandatos e

    suspenso de direitos polticos, mas este acabou expirando no prazo determinado.

    Durante os 60 dias de vigncia, foram suspensos os direitos polticos e/ou cassados os

    mandatos eleitorais de 441 pessoas, dentre as quais trs ex-presidentes, seis

    governadores de estado, 55 parlamentares federais e vrios diplomatas, oficiais

    militares, funcionrios pblicos e lderes trabalhistas. A incluso de nomes como os de

    Joo Goulart, Miguel Arraes, Leonel Brizola e Srgio Magalhes, no causaram

    surpresa, visto que um dos objetivos do golpe havia sido extinguir a tradio poltica

    que representavam.36

    A incluso do nome do ex-presidente Juscelino Kubitschek, ento senador pelo

    Partido Social Democrtico (PSD-GO), nessa lista, causou surpresa, pois seu partido

    fazia parte da base de apoio poltico do governo Castelo Branco.37 Entre os militares, no

    34 CARVALHO, Alessandra. Elites polticas durante o regime militar: um estudo sobre os parlamentares da ARENA e do MDB. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA, 2008, p. 40. 35 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.58-60. A Comisso Geral de Investigao foi criada no mbito do Ministrio da Justia, pelo Decreto-Lei n. 359, de 17 de setembro de 1968, e teve como funes investigar casos de enriquecimento ilcito de pessoas que exercessem cargo ou funo pblica. Tais investigaes poderiam resultar em confisco de bens. Ver http://www.portalan.arquivonacional.gov.br/Media/CGI.pdf , acesso em 21 de janeiro de 2012. 36 Ver REIS, Daniel Aaro. Ditadura, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. Excluindo Miguel Arraes, que no fazia parte das hostes trabalhistas, mas que denotava um veia nacionalista e socializante destacada, os outros nomes representavam a tradio trabalhista. Sobre o trabalhismo, dentre vrios trabalhos, ver FERREIRA, Jorge. O imaginrio trabalhista: getulismo, PTB e cultura poltica popular, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. 37 SKIDMORE, Thomas. Op. cit., p. 58-63.

  • 17

    perodo entre 1 de abril e 15 de junho, cerca de 122 oficiais foram forados a se

    aposentar.38

    O ento prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, integrante do Partido

    Trabalhista Brasileiro (PTB), relata em seu livro de memrias o que chama de

    trapalhadas na suspenso e na cassao dos direitos polticos.

    Os decretos de cassao eram uma gozao s. Saam os decretos. (...) Vinha uma fileira de gente. Cassavam mandatos de deputados, prefeitos e suspendiam os direitos polticos. (...) o meu caso e de cinco prefeitos do PTB do Rio Grande, cassados no mesmo ato. (...) Ficam suspensos os direitos polticos por 10 anos de Beltrano, Fulano e Sicrano. No era perda. Era a suspenso dos direitos. Ora, suspenso, como o nome est dizendo, transitria. Ainda mais por tempo certo.39

    A suspenso dos direitos polticos gerava situaes ambguas. Sereno Chaise,

    no sabia como agir, pois seu mandato no havia, at ento sido cassado.

    A cassao saiu na quinta-feira noite, dia 7 de maio, na Voz do Brasil. Na sexta, dia 8, estava cedo na Prefeitura. Limpei as gavetas, esperei e fiquei pensando: Quem vir me substituir? Quem sabe um capito, um major, um tenente-coronel.... Afinal, a patente do militar deve ser proporcional dimenso do cargo que ser cassado, imaginei. Mas o relgio marcou meio-dia, e nada. Fui almoar no Mercado Pblico. (...) Passou a tarde e no veio ningum.40

    O ambiente de caa s bruxas tornou-se generalizado de modo que, ainda em

    1964, emergem as primeiras vozes sugerindo medidas de conciliao nacional.41

    Nesse sentido, a discusso em torno da questo da anistia surge com um projeto do

    deputado federal Pereira Nunes, do Partido Social Progressista (PSP-RJ), que defendia

    anistia aos participantes da revolta dos sargentos.42 O projeto, apresentado poucos dias

    38 Idem, p. 62. 39 KLCKNER, Luciano. O dirio poltico de Sereno Chaise: 60 anos de histria. Porto Alegre: AGE, 2007, p.86. 40 Idem, p. 86-87. 41 MARTINS, Roberto Ribeiro. Anistia ontem e hoje. So Paulo: Brasiliense, 2010, p. 149. 42 SILVA, Sandro Hverton Cmara da. Op. Cit., p.15. A revolta dos sargentos foi um movimento encabeado por cabos, sargentos e suboficiais da Aeronutica e da Marinha que reivindicava o direito de exercerem funes legislativas. Ver ABREU, Alzira Alves [et al.] (Coord.). Dicionrio Histrico-Biogrfico Brasileiro ps-1930. Rio de Janeiro: Editora FGV/CPDOC, 2001; PARUCKER, Paulo

  • 18

    antes do golpe civil-militar, mas j em um contexto de radicalizao poltica. O projeto

    de lei n 57/63, foi apresentado juntamente com um documento de apoio assinado por

    alguns generais do exrcito.43 Pereira Nunes teve o mandato cassado e os direitos

    polticos suspensos por dez anos, por fora do Ato Institucional N1, em 10 de abril de

    1964.

    A despeito das tentativas no ps-golpe de cerceamento da atuao do

    Legislativo, a luta pela anistia apresentou-se, desde o incio, como uma estratgia

    privilegiada pela oposio, posto que tornou possvel a articulao de parlamentares em

    torno da contestao ao regime e ideologia de segurana nacional sobre a qual aquele

    se sustentava.44 Nas palavras de Sandro Hverton Cmara da Silva,

    Em meio s alteraes nas regras do jogo poltico e aos expurgos promovidos nos primeiros anos do regime, a questo da anistia poltica assumiu desde o incio uma importncia fundamental para as tentativas de reposicionamento do Congresso no novo sistema poltico que articulava-se.45

    Havia, no entanto, um temor em relao s eventuais reaes dos setores mais

    radicais das Foras Armadas. Desse modo, o PSD, ainda nos idos de 1964, achou por

    bem, a princpio, no tomar nenhuma iniciativa no sentido de pleitear revises em

    processos de correligionrios atingidos pelas penalidades do Ato Institucional n1. O

    ento deputado federal fluminense Ernni do Amaral Peixoto,46 um dos fundadores e

    um dos membros mais proeminentes do PSD, considerava a reviso desses processos

    como invivel naquele momento. Sua posio era a de que teriam ocorrido excessos e

    equvocos, que seriam naturais em um processo revolucionrio que estaria ainda

    naquele momento em curso.47 Peixoto acreditava que o ento presidente, general

    Castello Branco, teria interesse na normalizao da democracia, duvidando inclusive de

    Eduardo Castello. Praas em p de guerra: o movimento poltico dos subalternos militares no Brasil, 1961-1964. Dissertao de Mestrado apresentada ao Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri, 1992; ALMEIDA, Anderson da Silva. Todo leme a bombordo marinheiros e ditadura civil-militar no Brasil: da rebelio de 1964 Anistia. Dissertao de Mestrado apresentada ao Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri, 2010. 43 Ver Dirio do Congresso Nacional, 04 de maro de 1964, p. 1246. 44 SILVA, Sandro Hverton. Op.Cit., p. 21-22. 45 Idem, p. 28. 46 Ver http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/ernani_amaral_peixoto , acesso em 13 de dezembro de 2011. 47 Folha de So Paulo, 14 de outubro de 1964, 1 caderno, p.1.

  • 19

    que o governo pudesse adotar medidas de exceo. Mas, no entanto, duvidava que

    qualquer proposta de anistia pudesse ser aprovada pelo Congresso naquele momento.48

    Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Amaral Peixoto deixou registradas as suas

    impresses, como se v abaixo:

    to invivel a reviso agora, como inevitvel mais tarde. Embora concorde que tenha ocorrido excessos e injustias, atribui isso s injunes naturais de um processo revolucionrio em implantao. Acredita que o Presidente Castelo Branco tem interesse na normalizao da vida democrtica no pas, mas por outro lado, indubitvel que o Congresso, no momento, rejeitaria tranquilamente qualquer projeto de concesso de anistia. (...) O PSD, observou, no foi sondado para se pronunciar a respeito do propalado estado de stio. Procurou, no entanto, inteirar-se do assunto e verificou que o governo no tem o propsito de adotar a medida de exceo.49

    Em novembro de 1964, a discusso do projeto do governo sobre o Estatuto da

    Terra50 mobilizava os parlamentares e o governo. No dia 06 do referido ms, o deputado

    federal Abel Rafael, representante do conservador Partido da Representao Popular

    (PRP-MG), fez duras crticas ao projeto, apontando a falta de estudos aprofundados em

    relao questo fundiria no Brasil. O processo de centralizao decisria nas mos do

    Executivo foi igualmente atacado, visto que este no estaria participando s lideranas

    da base parlamentar do governo a respeito da elaborao e das negociaes relativas aos

    projetos do Executivo.51 No dia seguinte, Abel Rafael aproveitou o momento em que j

    se discutia a anistia de lderes polticos cassados e exilados aps o golpe de 1964 para

    tratar do assunto de modo sarcstico. O parlamentar mineiro sugeriu s lideranas do

    PTB que elaborassem uma proposta de anistia poltica contemplando nomes como os de

    Joo Goulart e de Leonel Brizola, principais personagens do primeiro momento de

    cassaes e de ida para exlio.52 Tal sugesto advinha da contrariedade de Rafael em

    relao aprovao do projeto do Estatuto da Terra no Congresso Nacional. Em sua

    48 Idem. 49 Idem. 50 O Estatuto da Terra, ou Emenda Constitucional n 10 foi sancionada pelo general Castelo Branco em 9 de novembro de 1964. Entre outros itens previa a desapropriao da propriedade territorial rural, pela Unio, mediante o pagamento de prvia e justa indenizao em ttulos especiais da Dvida Pblica. Sobre Estatuto da Terra, ver o verbete em ABREU, Alzira Alves de. [et al.] (Coord.). Op. cit., 2001. 51 Dirio do Congresso Nacional, 06 de novembro de 1964, p. 922. Sobre Estatuto da Terra, ver o verbete em ABREU, Alzira Alves de. [et al.] (Coord.). Op. cit., 2001. 52 Dirio do Congresso Nacional, 07 de novembro de 1964, p. 964.

  • 20

    opinio, o projeto apresentado pelo governo, e aprovado pelo Congresso, no diferia

    consideravelmente das ideias h muito preconizadas pelo PTB. Nas palavras do

    parlamentar perrepista:

    Foi preciso que uma revoluo derrubasse o Sr. Joo Goulart e o Senhor Leonel Brizolla (sic) para que as idias deles vencessem. De modo que as minhas gratulaes se estendem a esses dois ilustres brasileiros banidos neste momento do Brasil. uma pena que eles no possam receb-las em territrio nacional, mas as envio daqui, porque gosto de homenagear os pioneiros que levantam idias, (...) porque a idia vencedora hoje a idia pelas quais tantas vezes se bateu aqui o Sr. Leonel Brizolla. (...) Srs. Deputados, preciso que haja uma complementao dessa vitria de hoje. (...) O PTB deve prosseguir na complementao dessa vitria e apresentar o projeto de anistia do Sr. Joo Goulart e do Sr. Leonel Brizolla.(...) E nenhum daqueles que votaram nesta noite se pode negar a dar anistia a esses dois pioneiros dessa proposio que, todos dizem, vai fazer a felicidade do Brasil. (...) Qual a razo ento para se negar anistia a esses dois abnegados, sacrificados at nas suas liberdades e nos seus direitos polticos pela grandeza do Brasil? Com que direito vo negar anistia a esses homens? Acredito que o prprio Marechal Castello Branco vai sancionar o projeto depois de aprovado por esta Casa, com muita satisfao.(...) Gosto de perder com semblante alegre.(...) Quando sou derrotado gosto de cumprimentar os vencedores e neste instante o fao.53

    Abel Rafael, em declaraes feitas ao jornal Folha de So Paulo, demonstrou a

    mesma insatisfao com o governo e a mesma verve irnica, referindo-se novamente a

    Joo Goulart e Leonel Brizola:

    Corruptos eles no eram (...), pois a Revoluo no tocou em seus bens. Subversivos tambm no, pois os detentores do poder perfilam as mesmas idias. Logo, eles devem ter sido desterrados s porque algum no gostava da cara deles.54

    Segundo Rui Lopes, colunista da Folha de So Paulo, o descontentamento de

    Abel Rafael com o projeto de emenda constitucional, mais conhecido como Estatuto da

    Terra, seria to grande que seria possvel que partisse dele a elaborao de um projeto

    de anistia que beneficiasse a Joo Goulart e a Leonel Brizola.

    53 Idem. 54 Folha de So Paulo, 07 de novembro de 1964, p.3.

  • 21

    O Sr. Abel Rafael, um dos 33 que votaram contra a emenda constitucional para a reforma agrria e, sem dvida, um dos elementos mais conservadores da Cmara, vai redigir um projeto de anistia beneficiando os Srs. Joo Goulart e Leonel Brizola. (...) Inconformado com a aprovao da emenda, o Sr. Abel Rafael acha que a Ao Democrtica Parlamentar (ADP) decretou o prprio desaparecimento ao permitir que fosse alterado o texto constitucional.55

    Outra questo que se tornou alvo dos debates, ainda em 1964, foi a competncia

    do Legislativo para conceder anistia. A reao s tentativas do Executivo de limitar a

    atuao do Congresso, principalmente no que dizia respeito concesso de anistia, foi

    expressa no discurso do deputado Arruda Cmara, do Partido Democrata Cristo (PDC-

    PE), nos seguintes termos:

    No podia o Poder Executivo invadir as atribuies do Judicirio decretando inconstitucionalidade de lei. Sustentei mesmo que pelo artigo 200 a Justia, o Supremo Tribunal ou os outros tribunais s podem decretar a inconstitucionalidade de leis e de atos do poder pblico, no de decretos legislativos, que pertencem soberania do Congresso, porque anistia um ato de sua exclusiva competncia.56

    A possibilidade de que uma anistia fosse concedida ainda em 1964 foi, ao mesmo

    tempo, desmentida pelo governo por intermdio de dois de seus representantes, o

    ento ministro da Guerra general Costa e Silva e o general Ernesto Geisel, ento chefe

    do gabinete militar da Presidncia da Repblica e rechaada por vrios polticos que

    haviam sido cassados. Costa e Silva ironizou as notcias de que o governo concederia

    uma anistia: pura conversa. Essa notcia parece com a do enfarte que disseram que

    eu tive quando da minha viagem ao Norte.57

    Os polticos cassados no concordavam com a anistia, pois ela significaria a

    confirmao da culpa em delitos que no foram cometidos. Ao invs de uma anistia, o

    que se reivindicava era a reviso de todos os processos daqueles que haviam sido

    55 Idem. 56 Dirio do Congresso Nacional, 21 de novembro de 1964, p. 919. Apud. SILVA, Sandro Hverton Cmara da. Op. cit., p. 30. 57 Folha de So Paulo, 29 de dezembro de 1964, 1 caderno, p. 1.

  • 22

    cassados.58 Golbery do Couto e Silva59, por sua vez, pedia pacincia aos adversrios do

    governo, pois mais cedo ou mais tarde, uma anistia vir.60 Ainda segundo Golbery,

    seria preciso que os nimos na rea da Revoluo de maro se acalmassem.61 Em

    julho de 1964, setores mais radicais das Foras Armadas anunciavam a inteno da

    esquerda de capitanear mltiplas campanhas polticas, tais como: uma eventual e

    imediata libertao dos presos polticos; a defesa da anistia dos punidos e da revogao

    do Ato Institucional n 1;62 e crticas contra a alta do custo de vida.63 Desse modo,

    aqueles que comeavam a lutar pela anistia tambm comeavam a ser alvos da

    perseguio do regime, ainda em 1964.

    As autoridades militares esto acompanhando a movimentao de pessoas interessadas numa campanha de mbito nacional, com o objetivo de conseguir anistia geral em favor de todas as pessoas que tiveram cassados os seus mandatos parlamentares e seus direitos polticos. Tal campanha, que dever estender-se a todo pas, a partir do dia 10 de outubro, quando expira o prazo de vigncia do Ato Institucional, est sendo preparada por civis e militares atingidos pelas medidas de exceo. As autoridades militares j conseguiram recolher gravaes dos encontros e fotografias das pessoas implicadas. Sabem ainda que os principais centros de irradiao da campanha so o Rio de Janeiro, o Rio Grande do Sul, Pernambuco e So Paulo.64

    Alguns segmentos polticos e parlamentares conservadores que haviam apoiado

    o golpe civil-militar, como a Unio Democrtica Nacional (UDN), e alguns setores das

    Foras Armadas, iniciaram um apoio reviso das punies e anistia de algumas

    personagens que haviam sido cassadas. Alguns polticos udenistas admitiam que logo

    seria feita a reviso de alguns processos, o que seria um ensaio para a adoo de outras

    medidas similares de maior amplitude. Juraci Magalhes, embaixador do Brasil em

    58 Folha de So Paulo, 29 de dezembro de 1964, 1 caderno, p. 7. 59 Golbery do Couto e Silva foi chefe do Servio Nacional de Informaes (SNI) entre 1964 e 1967, ministro do Tribunal de Contas da Unio (TCU) entre 1967 e 1969 e chefe do Gabinete Civil da Presidncia da Repblica entre 1974 e 1981. Teve um importantssimo papel na articulao poltica que levou o general Ernesto Geisel presidncia em 1974 e no projeto governista de distenso poltica. Ver Golberi do Couto e Silva em ABREU, Alzira Alves de. [et al.] (Coord.). Op. cit., 2001, p. 5413-5419. 60 Folha de So Paulo, 29 de dezembro de 1964, 1 caderno, p. 7. 61 Idem. 62 O Ato Institucional N 1 determinava, entre outras medidas, a eleio indireta para Presidente e Vice-Presidente da Repblica; permitia a decretao de estado de stio; tornava possvel a suspenso de direitos polticos por 10 anos e a cassao de mandatos legislativos federais, estaduais e municipais. 63 Folha de So Paulo, 31 de julho de 1964, 2 caderno, p. 25. 64 Folha de So Paulo, 28 de julho de 1964, 1 caderno, p. 6.

  • 23

    Washington, via na reviso dos processos de suspenso de direitos polticos um meio

    para melhorar a imagem do pas no exterior. J para os setores militares que admitiam a

    reviso dos processos, a maior ressalva inclua o nome do ex-governador do Rio Grande

    do Sul, Leonel Brizola, visto como um elemento poltico mais radical.65

    Juscelino Kubitschek que, assim como Brizola, tambm se encontrava exilado

    , pretendia aguardar a anistia que estava sendo aventada para retornar ao pas, talvez

    at mesmo a tempo de concorrer s prximas eleies.66

    A chamada linha dura contrapunha-se a qualquer proposta de anistia. E era

    essa faco das Foras Armadas que, naquele momento, vencia todos os roundes, at

    agora, no Planalto, na avaliao do jornal ltima Hora.67 Em editorial, a Folha de So

    Paulo68 defendia uma anistia parcial, que teria como objetivo sanar os erros cometidos

    em funo das condies excepcionais dos momentos que se seguiram Revoluo

    quando era difcil, seno impossvel, um julgamento objetivo e desapaixonado de

    homens e suas aes.69

    65 Folha de So Paulo, 29 de dezembro de 1964, 1 caderno, p. 7. 66 Idem. 67 Avaliao reproduzida em nota pela Folha de So Paulo, 29 de dezembro de 1964, 1 caderno, p. 4. 68 Observando as discusses travadas ao longo do segundo semestre do ano de 1964, no jornal Folha de S. Paulo, a respeito da possibilidade de reviso dos processos e da anistia dos indivduos que foram cassados aps o golpe civil-militar, achamos uma srie de matrias jornalsticas que nos causaram certa curiosidade. Trata-se da cobertura jornalstica referente ao assassinato do ex-presidente da Sria, Mohamed Adib Chichakli. Na capa do jornal Folha de S. Paulo, de 29 de setembro de 1964, temos entre as manchetes a que segue: Ex-presidente da Sria morto em Gois. Em seguida, na mesma pgina, encontramos informaes a respeito do assassinato, tais como as circunstncias do crime e o nome do suspeito. A ttulo de esclarecimento, cumpre frisar que Chichakli chegou presidncia da Sria atravs de um golpe militar em 1950, tendo sido eleito em 1952 por meio de eleies gerais. Seu governo foi marcado por uma srie de reformas, tais como a reforma agrria e uma reforma tributria de sabor progressivo. Em 1954, foi deposto por um novo golpe militar. Chichakli partiu para o exlio passando pela Arbia Saudita, Frana e Sua at instalar-se no Brasil. A capa do jornal mostrava a foto do seu cadver, abandonado no meio de um matagal, com a seguinte legenda: Mohamed Adib Chichakli j foi presidente da Sria e h 4 anos vivia como simples agricultor em Gois. Pensava, agora, retornar ao seu pas, onde tivera anistia. Mas domingo foi morto a tiros. Pelas costas. Logo acima da foto encontramos em letras colocadas em destaque: J foi presidente. Impossvel afirmar com preciso as intenes do jornal, na produo destes enunciados. Seriam ameaas? Ou uma simples ironia, baseada em certos traos de semelhanas da biografia de Chichakli e de Joo Goulart? No entanto, no possvel passar despercebido o destaque dado ao fato ocorrido, em um momento em que a anistia e o retorno ao pas de algumas figuras proeminentes no cenrio poltico pr-1964 estavam sendo cogitados. Ver Folha de S. Paulo, 29 de setembro de 1964, 1 caderno, p.1. O grifo nosso. Sublinhamos que as informaes a respeito do ex-presidente da Sria Mohamed Abid Chichakli (grifado tambm como Shishakli) so escassas, mesmo em stios estrangeiros na internet. Ver: http://www.recantodasletras.com.br/artigos/123493, acesso em 13 de dezembro de 2011. 69 Folha de So Paulo, 29 de dezembro de 1964, 1 caderno, p. 4.

  • 24

    O tema da anistia poltica era tambm discutido na imprensa. Ao final do ano de

    1964, Alceu Amoroso Lima que adotava o pseudnimo de Tristo de Athayde deu

    incio produo de uma srie de textos, divulgados pelo jornal Folha de So Paulo,

    que se estenderiam pelo ano subsequente, nos quais defendia publicamente as ideias de

    anistia e de imposio ao silncio do povo. Importa observar que os textos eram bem

    acolhidos na seara poltica: de um lado, o presidente Castello Branco afirmava ter

    grande respeito pelo escritor.70 De outro, um parlamentar de proa do PTB, como o ento

    ainda no proscrito deputado federal Doutel de Andrade (PTB-SC), reverberou na

    Cmara ponderaes de Lima71

    No instante em que suspensas se encontram inalienveis franquias democrticas, em que na feliz expresso de Tristo de Athayde o que melhor caracteriza a fase histrica que vivemos o silncio do povo, o Partido Trabalhista Brasileiro realiza (...) a autntica representao dos emudecidos pela violncia.72

    Em janeiro de 1965, Tristo de Athayde fez um balano da situao brasileira

    no ano anterior. Apelando para o carter conciliatrio da tradio poltica brasileira,

    Amoroso Lima argumentava o seguinte:

    No sei o que ser o ano de 1965, mas sei o que deveria ser. Deveria ser a volta do Brasil, e da poltica brasileira, ao curso natural de suas tendncias. (...) A linha dura no a linha brasileira. Pode ser um desvio momentneo, pode ser uma imitao passageira, mas no corresponde s razes profundas do nosso modo de ser, tanto individual como coletivo. (...) Logo a consequncia a tirar dessa observao do nosso modo de ser que o ano de 1965 deve ser o ano da volta a si do Brasil. (...) Praticamente, portanto, h um ato inicial para reintegrar o Brasil em si mesmo: o fim da fase punitiva da Revoluo de abril. E para isso, a esponja no passado, a anistia poltica geral, a pacificao dos espritos (quanto possvel depois de trinta e cinco anos de extremismo) para uma obra comum de recuperao. Enquanto no houver um ato corajoso nesse sentido com a plena recuperao da liberdade de pensamento e de ao, sem presos polticos nem exilados, com o dilogo restabelecido e a distenso dos nervos ser impossvel combater a inflao, reduzir o custo de vida, fazer reformas autnticas e restabelecer a vida democrtica real. A essa tarefa de esponja no passado e de

    70 Folha de So Paulo, 14 de junho de 1964, 4 caderno, p. 2. Anedotrio da Revoluo. 71 ANDRADE, Doutel de. As perdas internacionais, Cmara dos Deputados, 14 de julho de 1964. In: GOLLO, Luiz Augusto, Doutel de Andrade perfis parlamentares, n. 50. Braslia: Cmara dos Deputados, 2006, p. 210-211. 72 Idem, p. 211.

  • 25

    esforo coletivo com vistas ao futuro, e que eu quisera ser dedicado o ano hoje em incio.73

    No dia 21 de janeiro, temos novamente um texto de Alceu Amoroso Lima a

    respeito da anistia. Criticava o governo por seu silncio sobre a questo, a qual

    considerava essencial para a reorganizao do pas.

    em nome do mais objetivo realismo poltico, portanto, que se impe a anistia poltica, como uma condio preliminar para que realmente se possa falar em vida nova e nova era nacional. O silncio do governo sobre a anistia em dezembro foi to melanclico e significativo como, em abril, o silncio do povo perante a Revoluo.74

    Para Amoroso Lima, em mais um de seus artigos, a anistia e as eleies seriam

    condies essenciais para a retomada da normalidade poltica.

    A anistia e as eleies so duas condies fundamentais para a nossa recuperao financeira, econmica e poltica. E, antes de tudo, para comprovar a sinceridade da conspirao contra o governo deposto. A anistia no representaria uma esponja no passado dos corruptos, como alegam os seus adversrios. Representa apenas o fim da justia de exceo. Os processos regulares, pela justia regular, contra crimes de corrupo ou sedio devidamente comprovados, prosseguiro. O que impede o surto do Brasil e o restabelecimento de um regime autenticamente democrtico o prosseguimento dessa atmosfera de dio, de acusaes falsas, de perseguio e de inquisio.75

    O escritor Carlos Heitor Cony foi outro escritor a criticar as punies levadas a

    cabo pela ditadura e a sugerir na imprensa que a anistia fosse concedida pelo governo.

    Desde 1 de abril que o governo tem diante de si um dilema incontornvel: ou processa e condena regularmente os milhares de acusados em todo o pas ou concede anistia. (...) Que o Congresso vote a anistia, baseado na falta de processos regulares, na falta de critrios e, principalmente, na falta de provas. (...) Ningum est pedindo perdo a este governo. Tal pedido implicaria no reconhecimento da culpa. (...) por no ter o Executivo capacidade de presidir a

    73 Folha de So Paulo, 1 de janeiro de 1965, Ilustrada, p. 1. 74 Folha de So Paulo, 21 de janeiro de 1965, p.31. 75 Folha de So Paulo, 28 de janeiro de 1965, p. 1.

  • 26

    processos regulares, nem ter moral para condenar ningum, conceda o Congresso a anistia total, sem restries, sem barganha.76

    Entre os militares, havia setores favorveis anistia j naquele momento, entre

    os quais dois ministros do Superior Tribunal Militar (STM): o general Pery Bevilacqua

    e Olmpio Mouro Filho. Bevilacqua, que assumiu o cargo de ministro do STM em

    maro de 1965, por diversas vezes criticou a autoridade dos inquritos policial-militares

    (IPMs) e apontou a ilegalidade do julgamento de civis por autoridades militares. Sua

    atuao foi tambm marcada pelo fato de ter favorecido todos os pedidos de habeas

    corpus impetrados no STM e por ter mandado voltar s auditorias militares os processos

    sem culpa formada, assim como aqueles em que o ru no havia tido pleno direito de

    defesa. Em 1965, Bevilacqua teve um discurso parcialmente censurado no qual

    apontava a necessidade de anistia citando como exemplo a anistia aos revoltosos da

    Guerra dos Farrapos. Em janeiro de 1969, foi atingido pelo Ato Institucional n5 (AI-5,

    de 13 de dezembro de 1968), aps uma srie de pronunciamentos favorveis a anistia,

    tendo sido aposentado discricionariamente do cargo de ministro do STM.77

    Olimpio Mouro Filho, que havia sido um dos principais artfices do golpe

    ocorrido em maro de 1964, assumiu o cargo de ministro do STM em setembro de

    1964, mas aos poucos foi se distanciando do governo de Castelo Branco. Em janeiro de

    1966, em entrevista revista Manchete, juntamente com Peri Bevilacqua, declarou-se a

    favor da anistia aos atingidos pela contrarevoluo de 31 de maro.78

    No ano anterior, em entrevista ao jornal Folha de So Paulo, Mouro Filho j

    criticava o modo pelo qual foram feitas as punies sugeria uma anistia geral.

    76 CONY, Carlos Heitor. Anistia. Revista Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n.1, mar. 1965, p.22. Apud MARTINS, Roberto Ribeiro. Op. cit., p. 150. 77 O decreto foi assinado pelo presidente Costa e Silva trs meses antes de Bevilacqua ser aposentado compulsoriamente por idade. Peri Bevilacqua perdeu suas condecoraes militares, conquistadas ao longo de 54 anos no Exrcito e, mesmo aps sua anistia ter sido concedida, no foram recuperadas. Ver o verbete de Peri Bevilacqua em ABREU, Alzira Alves de. [et al.] (coord.). Op. cit., 2001. Ver tambm LEMOS, Renato (org.). Justia Fardada: o general Peri Constant Bevilacqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004. 78 Verbete de Olmpio Mouro Filho em ABREU, Alzira Alves de. et al. (coord.). Op. cit. Ver tambm MOURO FILHO, Olmpio. Memrias: a verdade de um revolucionrio. Porto Alegre: L&PM Editores, 1978.

  • 27

    Acho que do ponto de vista da subverso muitos no foram punidos, ao passo que houve punies como, por exemplo, a do Sr. Jnio Quadros, que o povo de uma maneira geral, no entendeu. mais do que claro que o Sr. Juscelino Kubitscheck nunca foi subversivo e no ouvi em qualquer momento qualquer acusao nesse sentido contra o ex-presidente, cujo governo foi um padro de democracia e respeito aos direitos humanos. Tratando-se de um homem de renome internacional, sua punio chegou a refletir mal no estrangeiro e se foi punido por motivo outro que no o de subverso, est faltando uma acusao formal e sua prova. Acusem-no formalmente e provem.79

    Mouro Filho, em sua exposio, no deixou de acentuar uma dimenso cara ao

    horizonte de preocupaes do regime civil-militar, no curso do tempo: a imagem do

    pas no exterior. Um tema que ser abordado no segundo captulo, na sequncia do

    trabalho. Posto isto, Mouro Filho ainda afirmou que conforme o presidente Castello

    Branco assinava os decretos de cassao, seus poderes iam se exaurindo.

    Ele no pode mais fazer reviso de seus atos: o Poder Judicirio a isto est vedado pelo Ato Institucional e o Poder Legislativo no pode peregrinar em plagas estranhas, saltando defesas e invadindo atribuies que o Poder Judicirio perdeu. Se quiserem dar remdio, s h um caminho: a anistia geral.80

    Mouro Filho, no entanto, no acreditava que essa questo pudesse ter uma

    definio antes das eleies e da sucesso presidencial. Caberia ao novo governo

    decidir.81 As declaraes de Mouro Filho causaram bastante repercusso. No dia

    seguinte, o general Carlos Lus Guedes, comandante da 2 Regio Militar manifestava-

    se contrariamente em relao concesso da anistia poltica geral em 1966. Para

    Guedes, figuras como Jnio Quadros e Juscelino Kubitschek no deveriam ser

    beneficiados, pois teriam sido responsveis pelo caos pr-1964.82 Especificamente em

    relao a Jnio Quadros, Guedes afirmava dez anos foi pouco, pois deveria permanecer

    cassado por toda a vida.83

    79 Folha de So Paulo, 28 de abril de 1965, 1 caderno, p. 6. 80 Idem. 81 Idem. 82 Folha de So Paulo, 29 de abril de 1965, 1 caderno, p. 3. 83 Idem.

  • 28

    Para os militares mais identificados com a liderana do ministro da Guerra,

    general Costa e Silva, o Ato Institucional era irreversvel. Temiam que algum tipo de

    precedente fosse aberto caso fossem tomadas algumas iniciativas que revisassem

    processos de cassao de mandatos. Para esse grupo, o governo no deveria se

    preocupar com tais questes.84 Alm disso, a chamada linha dura no tinha a

    percepo de que a interveno dos militares na poltica seria breve como haviam sido

    at ento. Ernesto Geisel nos remonta a um encontro com Costa e Silva, em que esse

    expressou a noo de aprofundamento da Revoluo.

    Lembro-me tambm de um fato, que nunca vi publicado, ocorrido um ou dois dias depois da revoluo: houve uma reunio no gabinete do Costa e Silva qual compareci com Castelo. L estavam Costa e Silva e outros generais, entre eles Peri Bevilqua, que aderiu revoluo mas era muito mais ligado esquerda. Costa e Silva falando sobre a revoluo, declarou: Nossa revoluo no vai se limitar a botar o Jango para fora! Temos que remontar aos ideais de 22, de 24 e de 30! Ele queria fazer uma revoluo mais profunda. Ficaram todos em silncio.85

    Tal viso era tambm compartilhada pelos segmentos civis do universo poltico

    que haviam apoiado o golpe civil-militar. O governador de Pernambuco, Paulo Guerra,

    afirmou: somente Jesus Cristo poderia consertar o pas em dois anos. Seguindo a

    mesma linha de pensamento, Guerra defendia a prorrogao do mandato de Castello

    Branco. Ao ser questionado a respeito da possibilidade de concesso de anistia a alguns

    atingidos pelo Ato Institucional n 1, afirmou mais uma vez: A Revoluo ainda no se

    consolidou, razo porque acho muito cedo para se pensar no assunto.86

    Em janeiro de 1965, o ex-governador de Sergipe, Seixas Dria, lanava seu livro

    Eu, ru sem crime. Dria abordava a a sua atuao poltica a favor das reformas de

    base propostas durante o governo Joo Goulart, mas principalmente, a sua experincia

    na priso em Fernando de Noronha em 1964, ao lado de Miguel Arraes. Durante a

    tentativa de lanamento do livro no estado de Minas Gerais, o governador Magalhes

    Pinto, alegando temer um momento de exaltao de elementos ligados ao extinto

    84 Folha de So Paulo, 6 de janeiro de 1965, Ilustrada, p.17. 85 DARAJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs.). Op. cit., 1997, p. 166. 86 Folha de So Paulo, 12 de janeiro de 1965, 1 caderno, p. 5.

  • 29

    voluntariado da Revoluo, proibiu o evento.87 O ex-deputado Jos Aparecido de

    Oliveira, penalizado pela proibio, disse esperar uma reformulao na poltica

    brasileira com a reviso de processos ou a anistia para os que tiveram seus mandatos

    cassados.88

    Durante o IV Congresso Brasileiro das Assemblias Legislativas, iniciado no dia

    10 de fevereiro de 1965, em Braslia, a questo da anistia surgia novamente.89 O

    deputado estadual fluminense Nicanor Campanrio apresentou uma moo a favor da

    anistia aos punidos a partir do golpe de maro. O documento pedia que

    O Congresso Nacional, no uso da prerrogativa que lhe inerente e exclusiva, inserida na Constituio Federal, art.66, N XIV, anistie a todos os brasileiros alcanados e punidos pela revoluo de 1 de abril de 1964, excluindo-se os punidos por crimes de corrupo, restaurando a paz e a confraternizao da famlia brasileira.90

    O texto, considerado agressivo de acordo com a Folha de So Paulo, foi

    reescrito e assinado tambm pelos deputados estaduais Andrade Lima e Edna Lott

    (PTB-GB). O novo texto dizia:

    Considerando que deve ter havido injustias nas punies praticadas no mbito federal, em face do prazo exguo concedido para aquela finalidade (...) que o Congresso Nacional dirija um apelo ao presidente da Repblica, no sentido que sua Exc. tome as providncias necessrias constituio de uma comisso de alto nvel destinada a rever os atos referidos.91

    Apesar das modificaes no texto, a proposio no foi votada por falta de

    qurum. Ao ser pedida a verificao da presena dos parlamentares na votao da

    proposta de anistia, restavam no plenrio apenas 29 parlamentares.92 O deputado federal

    Nelson Carneiro, do PSD da Guanabara, apresentou uma proposta de subemenda

    87 Folha de So Paulo, 15 de janeiro de 1965, 1 caderno, p. 7. 88 Idem. 89 O I Congresso das Assemblias Legislativas do Brasil foi realizado em So Paulo, em novembro de 1956. 90 Folha de So Paulo, 11 de fevereiro de 1965, 1 caderno, p.7. 91 Folha de So Paulo, 12 de fevereiro de 1965, 1 caderno, p. 6. 92 Folha de So Paulo, 14 de fevereiro de 1965, Assuntos diversos, p. 3.

  • 30

    constitucional que tratava da questo da reviso das punies aplicadas com base no

    Ato Institucional N. 1. Carneiro atribua ao Supremo Tribunal Federal (STF) a

    competncia para decretar a improcedncia das razes que determinaram qualquer

    cassao. De acordo com a Folha de So Paulo, seu objetivo ao apresentar a proposta

    era reavivar o problema, no deixando que o passar do tempo esfrie o interesse dos

    partidos pelo assunto. O peridico considerava ser praticamente nula a possibilidade

    de que a subemenda venha a se incorporar ao texto da Constituio.93

    O deputado Nelson Carneiro, em meio a tais discusses, discursou em plenrio a

    respeito do caso do ex-deputado Fernando Santana,94 que aps um breve perodo de

    exlio no Chile, retornou ao Brasil e foi preso. Nessa mesma fala, o deputado fez um

    apelo ao presidente para que fosse permitida a volta dos exilados brasileiros.

    Pretendo, Sr. Presidente, ocupar esta tribuna para falar em nome desta casa, sem procurao de ningum, mas traduzindo o ponto de vista de todos que aqui se encontram, para lastimar que o Governo revolucionrio, onde pontificam tantos eminentes juristas, onde figuram elementos que tanto se destacaram nesta Casa, mantenha preso, inexplicavelmente preso at hoje, o ex-deputado Fernando Santana, num pas onde se assegura, em texto da Lei Magna, que o Ato Institucional no revogou, a livre manifestao do pensamento e onde no se pune delito de opinio. O ex-deputado Fernando Santana retirou-se do exlio e, no exlio, acompanhou o desdobrar da revoluo brasileira. Confiou que o governo tivesse cessado o seu perodo de punies e fosse compreensivo para com todos aqueles que quisessem voltar ao Pas, para trabalhar normalmente, sem gesto que pudesse comprometer a segurana nacional. Estava o Sr. Fernando Santana em Santiago do Chile, onde o Govrno fora to generoso para com os exilados brasileiros que, ao que se diz, o presidente Eduardo Frei, ao retirar-se para o Palcio, cedera sua residncia particular famlia do ex-deputado Paulo de Tarso. (...) Estava o Sr. Fernando Santana repito nesse ambiente quando voltou Ptria, convencido de que os dios estavam esmaecidos, convencido de que os homens no Brasil podiam continuar pensando livremente desde que no conspirassem contra as instituies democrticas. Antes mesmo de qualquer palavra, mal saltara no aeroporto, S. Ex. foi preso e recolhido ao xadrez mais infecto, fosse por ordem do Conselho de Segurana Nacional, fosse por ordem do DOPS do Sr. Cecil Borer. O fato que, smente dada a interferncia de numerosos

    93 Folha de So Paulo, 27 de maro de 1965, 1 caderno, p.6. 94 Fernando Santana pertencia ao chamado grupo compacto do PTB, que reunia os setores mais esquerda do partido. Em 1962, elegeu-se deputado federal pela Bahia, na legenda da Aliana Democrtica Trabalhista Crist, que reunia o PSD partido para o qual Santana se transferira o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o PDC, o Partido Trabalhista Nacional (PTN) e o Partido Social Progressista (PSP). Santana exerceu o mandato at abril de 1964, quando foi cassado e teve os seus direitos polticos suspensos com base no Ato Institucional n 1. Ver ABREU, Alzira [et al.] (Coord.). Op. cit., 2001, p.5239.

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    Deputados e Senadores, foi S. Ex., h alguns dias, transferido para modesto cubculo, onde at ontem ainda se achava. Fao, Sr. Presidente, sem delegao de ningum, mas traduzindo o pensamento unnime desta casa, (...) um aplo ao Sr, Presidente da Repblica para que compreenda que, enquanto viverem no exterior tantos exilados, que poderiam voltar aos seus lares e aos seus afazeres no Brasil, estaremos desservindo ao Pas, porque estaremos espalhando l fora a idia de que no Brasil no existe Govrno constitucional nem ordem jurdica capaz de amparar os direitos e as garantias individuais.95

    Fernando Santana no foi o nico parlamentar cassado que se exilou e que, ao

    tentar retornar para o pas, foi impedido pelas autoridades do regime civil-militar a

    pouco instaurado.

    O ex-deputado Saldanha Coelho j se encontrava a bordo do navio que o traria de Montevideu para o Brasil, ontem tarde, quando o comandante da embarcao, cap. MacNeil, alegando ter recebido instrues da empresa responsvel pelo navio, do Rio de Janeiro, determinou que o passageiro voltasse terra. Autoridades da Delegacia de Polcia Martima do DOPS da Guanabara negavam, por seu lado, terem expedido qualquer ordem contrria ao embarque do Sr. Saldanha Coelho. Soube-se, porm, que a DOPS tinha ordens para prender aquele ex-parlamentar assim que desembarcasse no porto do Rio.96

    A liderana do PSD tambm acreditava que a subemenda apresentada por

    Carneiro seria rejeitada em plenrio. O partido, no entanto, no abria mo da reviso

    dos processos, pretendendo reapresentar a proposta em um breve espao de tempo.97

    Embora estivesse sendo cogitado que as revises de cassaes fossem

    individuais o que era defendido por pessoas ligadas ao ex-presidente Joo Goulart as

    direes nacionais do PSD e do PTB, somadas a foras polticas mais esquerda,

    defendiam uma anistia geral, sem nenhum tipo de discriminao. Essa ideia, no entanto,

    encontrava resistncias por parte de vrios setores militares. As faces das Foras

    Armadas que tinham uma maior receptividade possibilidade de adoo de uma anistia

    geral consideravam que deveria haver compromissos formais, de todas as partes, de

    95 Dirio do Congresso Nacional, 10 de maro de 1965, p. 1622. 96 Folha de So. Paulo, 11 de abril de 1965, 1 caderno, p. 4. 97 Folha de So Paulo, 9 de abril de 1965, 1 caderno, p.3.

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    que no se voltar a luta radical nos termos do passado.98 Afirmava-se ainda que o

    governo estaria admitindo a possibilidade de que algum tipo de anistia ocorreria em

    breve.99 O Jornal Folha de S. Paulo, em seo denominada poltica na opinio alheia,

    reproduziu a anlise conjuntural feita pelo jornal Ultima Hora.

    No h clima ainda para a anistia, mas, j existe clima para a reviso. No se sabe ainda como essa reviso se processaria, mas o marechal Castello Branco que teoricamente tem o direito de reabilitar os cassados j no pode deixar de preocupar-se com a forma pela qual se devolver a vida cvica aos mortos civis injustamente levados ao paredn.100

    A posio do governo foi definida em maio de 1965, no contexto que antecedeu

    as eleies de 1966. O presidente Castello Brando afirmou, categoricamente, que o

    governo no pensava em anistia ou em reviso das cassaes de mandatos e direitos

    polticos. Para o general, anistia e reviso das punies no eram temas previstos no Ato

    Institucional, constituindo-se, portanto, em assuntos inexistentes para o governo.101

    Na tentativa de aumentar as chances de vitria da UDN, Castelo Branco

    aumentou o controle do governo sobre o sistema eleitoral. Fez com que o Congresso

    Nacional aprovasse uma emenda constitucional que exigia que os candidatos

    comprovassem quatro anos de domiclio eleitoral nos estados por onde quisessem

    concorrer. Outra medida adotada nesse sentido foi a lei de inelegibilidade. A

    discusso do projeto iniciou-se em junho de 1965, sendo aprovada em julho de 1965,

    por um Congresso Nacional fortemente pressionado pelo governo. A Lei n 4738, de 15

    de julho de 1965, entre outras determinaes, vetava a candidatura de quem tivesse

    servido como ministro do governo Goulart depois de janeiro de 1963, excetuando

    aqueles que tivessem ocupado ministrios militares.102

    Para a surpresa de todos, e principalmente do governo, a Comisso aprovou uma

    subemenda que permitia a reviso das suspenses de direitos polticos. O governo

    sequer cogitava a discusso da matria. Segundo a subemenda, a reviso ocorreria para

    98 Folha de So Paulo, 10 de abril de 1965, 1 caderno, p. 9. 99 Idem. 100 Folha de So Paulo, 11 de abril de 1965, Assuntos diversos, p. 4. 101 Folha de S. Paulo, 17 de maio de 1965, 1 caderno, p. 4. 102 SKIDMORE, Thomas. Op.cit, p.94.