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O preso como inimigo a destruição do outro

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    Revista CEJ, Braslia, Ano XVI, n. 57, p. 95-102, maio/ago. 2012

    O PRESO COMO INIMIGO: a destruio do outro pela supresso da existncia comunicativa

    Paulo Csar Busato

    DIREITO PENAL

    Fernando Rabello

    The prisoner as enemy: the annihilation of others throughcommunicative suppression

    ABSTRACT

    The author assesses the reasons why convicts have been treated like enemies and how it translates into an offender-based criminal law. He comments on the theoretical support, from systemic functional views to a discriminatory profile of the criminal system. He shows in which way that profile bears a close relationship with a sociological, even legal, dual, paradigm leading to manichaeism, and draws some conclusions about the consequences of such identification.

    KEYWORDS

    Criminal Law; dualism; enemy; convict/prisoner; philosophy of language.

    RESUMO

    Analisa as razes de o condenado vir sendo tratado como inimi-go e como isto traduz um Direito Penal de autor, comentando o suporte terico, desde posturas funcionalistas sistmicas a um perfil discriminatrio do sistema penal. Demonstra como este perfil tem estreita relao com um mo-delo sociolgico e at mesmo jurdico, dual, que induz ao ma-niquesmo, e apresenta concluses sobre as consequncias de tal identificao.

    PALAVRAS-CHAVE

    Direito Penal; dualismo; inimigo; condenado; filosofia da linguagem.

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    Revista CEJ, Braslia, Ano XVI, n. 57, p. 95-102, maio/ago. 2012

    1 INTRODUO

    Estudos histricos e sociolgicos recentes1 apontam que a humanidade tem permanentemente mantido um grupo de pes-soas margem da participao social. Aos membros deste grupo destinada uma identificao com uma espcie de culpa atvica pelo sofrimento prprio, que conduz qualificao de inimigo.

    A figura do inimigo est sempre associada ao outro, ao que no sou eu, quele que, por razes diversas, se pretende ver excludo do plano de vida, como frmula de aplacar os temores que se tem.

    O que se pretende destacar no presente estudo o fato de que o medo tem crescido exponencialmente na moderni-dade reflexiva2, sendo que, para aplac-lo, cada vez mais tem sido convidado o Direito Penal, cuja resposta direcionada rotulagem do condenado como inimigo, determinando-se a compresso mxima do seu espao, como frmula de excluso.

    Pretende-se concluir que a prpria dinmica dual de an-tonomsia na identificao do inimigo o que produz e reproduz o medo, sem que se resolva a questo, razo pela qual a supe-rao da dualidade por meio da incluso do outro, pela via da interao holstica proposta pela filosofia da linguagem, deve tambm estar inserta no modelo poltico-criminal, como frmu-la de ajuste do sistema punitivo, para a produo de melhores resultados sociolgicos.

    2 O OUTRO COMO INIMIGO: UM PANORAMA SOCIAL

    As atividades cotidianas da sociedade, cada vez mais, se veem associadas a um padro elevado de riscos que fogem ao contro-le daquele que se arrisca3. No h dvida nenhuma de que no perodo medieval, por exemplo, uma pessoa estava muito mais exposta a doenas, violncia e toda a sorte de percalos que levavam a uma vida de sobressaltos e dificuldades. Em resumo, havia mais perigo, entendido como problema derivado de situa-es que no englobam como regra, uma deciso humana4.

    tucionalizado em relaes poltico-jurdicas, ser fornecida pelo Estado. As pessoas, insufladas por uma insegurana social permanente, pedem pela interveno do Estado, para que tal insegurana seja aplacada.

    O Estado goza de um vasto instrumental poltico de inter-veno social. Entre os vrios mecanismos de que dispe, o mais interventivo, o mais grave e, ao mesmo tempo, o de maior dimenso simblica, o Direito Penal. O que de mais interven-tivo dispe um Estado seno o Direito Penal, afinal, com ele que se suprime a liberdade.

    O instrumental jurdico penal posto em cena para respon-der insegurana, porm, seu funcionamento natural ocorre em um perfil dual de identificao, rotulao e excluso daquele que, teoricamente, agiu em contraposio aos ditames que inte-ressam sociedade.

    O discurso pblico com que o Estado responde n-sia por segurana justifica um tratamento diferenciado e recrudescente ao delinquente, convertendo o modelo de controle social do intolervel em um modelo intolervel de controle social, transformando-se de um Direito Penal do risco em um Direito Penal do inimigo7. E, no af de alcanar este objetivo inatingvel de paladino do controle da violncia, o Direito Penal tem deixado cair a bagagem democrtica, a qual um obstculo na realizao das no-vas tarefas8.

    3 O INIMIGO COMO PRODUTO DA DUALIDADE

    O funcionamento do sistema penal d-se justamente pela estruturao de mecanismos que permitam identificar e neutra-lizar um desvio de conduta socialmente indesejado. Nesse pro-cesso, ocorre a identificao e necessria imposio do estigma de criminoso a determinado sujeito.

    Esta postura corresponde diretamente a e at qui derive de uma frmula de comportamento social repetitiva, tenden-cialmente maniquesta, de diviso dual de todas as relaes que passam pelas categorias morais (bom e mau), estticas (belo e feio), histricas (fico e verdade), de contedo (interno e externo) e filosficas (ideal e real), que conduz a uma idntica frmula de tratamento sociolgico humano (turistas e vagabun-dos; cidados e inimigos)9.

    O Direito Penal, que tambm responde ao compasso bin-rio (ao e omisso; culpa e dolo; antijuridicidade e culpabili-dade; tentativa e consumao; autor e partcipe) especialmente em sua vertente penitenciria, realiza uma funo diretamente associada marcao deste compasso binrio, identificando o condenado com o rtulo de inimigo, por meio dos processos de etiquetamento10.

    Este processo de etiquetamento hoje goza do suporte de determinadas teorias de base que dispendem sensvel esforo em dissemin-lo.

    Assim ocorre, por exemplo, com as ideias do Prof. Gnther Jakobs, que reconhece a legitimidade do Estado para em al-guns casos deixar de considerar o delinquente como pessoa para trat-lo como inimigo. A diviso conceitual entre amigo e inimigo, dedicando a este ltimo a grosseira interveno jurdi-co-penal, que causa o problema.

    O Prof. Jakobs11 parte do reconhecimento como fato concreto da realidade moderna que muitas normas penais

    A distncia para com as fontes de risco gera uma falsa sensao de insegurana, que faz

    com que o homem comum migre em busca de uma segurana que deve, no mundo

    institucionalizado em relaes poltico-jurdicas, ser fornecida pelo Estado.

    Por outro lado, a comodidade de nossos dias, em movermo-nos em automveis e utilizar energia eltrica e telefones celulares, implica riscos de funcionamento das usinas nucleares ou termoeltricas, nas enormes cifras de acidentes de trnsito e do depsito altamente contaminan-te das baterias dos telefones. Em resumo, estamos expos-tos mais permanentemente a riscos, que so problemas derivados de decises humanas. A verdade que nossa mdia de sobrevida muito superior do homem me-dieval, mas tambm verdade que temos muito menos percepo das fontes de risco5.

    A distncia para com as fontes de risco gera uma falsa sensao de insegurana6, que faz com que o homem comum migre em busca de uma segurana que deve, no mundo insti-

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    se revestem da caracterstica de uma reao de combate a um inimigo. Esta perspectiva faz com que o legislador re-aja contra o estado de vida do autor do delito, como se sua maneira de viver representasse uma ameaa permanente ao prprio Estado12.

    Jakobs defende que, na medida em que o autor, por exemplo, de um delito de terrorismo, no admite submeter-se ideia de Estado, o que ele pretende a manuteno de um estado de natu-reza que no admissvel. Com isso, a necessidade de reao frente ao peri-go que emana de sua conduta, reite-radamente contrria norma, passa a um primeiro plano. (JAKOBS, 2003, p. 40-41).

    A partir dessa ideia, esse autor (2003, p. 41-42) considera que se deve inquirir se a fixao estrita e exclusiva nas categorias do delito no impe ao Estado uma atadura precisamente, a necessidade de respeitar o autor como pessoa que frente a um terrorista, que precisamente no justifica a expectativa de uma conduta geralmente pessoal, simplesmente resulta inadequada.

    Jakobs (2003, p. 41-42) entende que a crtica permanente que se faz ao processo de expanso e a crescente violncia da legislao penal deriva de uma confuso entre duas categorias distintas: a do cidado e a do inimi-go. Dito de outro modo: quem inclui o inimigo no conceito de delinquente cidado no deve se assustar se os conceitos de guerra e processo pe-nal se mesclam. Abre-se, ento, ainda segundo Jakobs (2003, p. 47-48), a possibilidade de tratamento diferencia-do entre o inimigo e o cidado.

    Prope Jakobs (2003, p. 42) que, para a preservao do Direito Penal do cidado, necessrio chamar de outro modo aqui-lo que se deve fazer contra os terroristas se no se quiser sucumbir, ou seja, isto deveria chamar-se Direito Penal do inimi-go, guerra refreada.Trata-se de legitimar, no mbito do Estado, como nica forma de preservao do cidado, uma catego-ria de no cidados de no pessoas, definitivamente, de inimigos13.

    Com isso, prope Jakobs que quem por princpio se conduz de modo desvia-do no oferece garantia de um compor-tamento pessoal; por isso, no pode ser tratado como cidado, mas sim deve ser

    combatido como inimigo. Ele entende que deve ser estabelecida uma diferena tambm a respeito da reao penal, sen-do que enquanto ao cidado se ameaa com uma pena, o inimigo excludo. (JAKOBS, 2003, p. 56)

    Nesta perspectiva, esse autor aproxima-se claramente do conceito de inimigo de Carl Schmitt, qual seja, o inimigo total, a quem se nega a prpria medida do ser.

    inimigo. De um lado, reduzindo a nada a pouca efetividade prtica que at hoje se conseguiu para o princpio da igualda-de, e por outro, legitimando o Estado a escolher o perfil dos inimigos de plan-to. Aparece a sinistra possibilidade de dizer se a classificao como inimigo deriva de sua condio de terrorista, de membro de uma quadrilha criminosa, de sua preferncia religiosa, de sua raa ou sua condio social, quaisquer das con-

    O funcionamento do sistema penal d-se justamente pela estruturao de mecanismos que permitam identificar e neutralizar um desvio de conduta socialmente indesejado. Nesse processo, ocorre a identificao e necessria imposio do estigma de criminoso a determinado sujeito.

    curioso notar como a postura en-contra adequao perfeita com a expo-sio de motivos redigida por Edmund Mezger para o projeto de lei para o tra-tamento de Estranhos Comunidade que ele enviou ao governo nacional so-cialista em 1943: No futuro, haver dois (ou mais) Direitos penais:

    Um Direito penal para a generalida-de (no qual em essncia seguiro vigentes os princpios que vigeram at agora), e;

    Um Direito penal (completamen-te diferente) para grupos especiais de determinadas pessoas, como, por exem-plo, os delinquentes por tendncia. O decisivo em que grupo se deve incluir a pessoa em questo...Uma vez que se realize a incluso, o Direito especial (ou seja, a recluso por tempo indefini-do) dever ser aplicado sem limites. E desde este momento carecem de obje-to todas as diferenciaes jurdicas [...] Esta separao entre diversos grupos de pessoas me parece realmente novi-dade (estar na nova Ordem, nela reside um novo comeo). (MUOZ CONDE, 2006, p. 2552-2553)

    Resulta bvia aqui a retrica do medo. As dificuldades contemporneas de convvio com o risco geraram uma atitude de identificao da alteridade, da diferena, com o risco, personificando na figura do inimigo o risco de fonte desco-nhecida, da vida social (PRITTWITZ, 2004, p. 32).

    A adoo desta perspectiva seria equivalente a institucionalizar a diferen-a de tratamento entre o cidado e o

    dies que possam convert-lo em um estranho comunidade14. Obviamente, nenhum Estado que negue a qualidade de pessoa a um indivduo pode autopro-clamar-se democrtico de Direito.

    No toa, conforme observa Her-zog (1999, p. 54), que em muitas leis do Direito penal moderno se emprega a palavra luta (contra a criminalidade econmica, contra a criminalidade am-biental, contra a criminalidade organi-zada). Como se o Direito penal pudesse vencer o mal e afastar o caos mediante a violncia e a realizao da guerra.

    A postura belicista admite a eliminao do inimigo. No entanto, a guerra de eliminao fsica um instrumental br-baro de difcil possibilidade de imposio e nula viabilidade jurdica. O tratamento de guerra blica situa-se fora do direito.

    Isso no significa que o Direito fique fora da realizao do projeto de elimina-o do inimigo. Dentro das fileiras do Di-reito, que um instrumental simblico, a eliminao ocorre tambm de maneira simblica, justamente por meio do impe-dimento da interrelao. A vida no mun-do globalizado por essncia complexa e baseada em uma multiplicidade de relaes como forma de manifestao de existncia das pessoas. A supresso dos processos de comunicao que validam o ato de existir15 compe a frmula jur-dica de anulao do outro.

    Jakobs defende a possibilidade de tratar de maneira distinta cidados e inimigos em todos os sistemas de controle associados realizao de um

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    delito, quer dizer, tanto no Direito Penal16, quanto no Processo Penal17, e inclusive no mbito da Execuo Penal18, o que leva para dentro do prprio sistema penitencirio a dualidade exclu-dente do reconhecimento de pessoas em condio pior que outras e, consequentemente, merecedoras de uma compresso do sistema penal ainda maior do que simplesmente a priso.

    4 O PRESO COMO O INIMIGO E O PROJETO DE COMPRESSO DO

    ESPAO COMO FRMULA DE SUA ANULAO

    O criminoso, rotulado pelo sistema penal como diferente, torna-se merecedor da compresso do seu espao. A frmula de compresso do espao, no atual nvel de desenvolvimento da so-ciedade globalizada , de longe, o mecanismo de opresso mais forte que existe, pois se trata de subtrair do sujeito justamente a possibilidade de interrelao, que valida a existncia das pessoas em um mundo to complexo e de tanta diversidade.

    Note-se que o processo de etiquetamento, de identificao do diferente, com perniciosas consequncias de excluso, no termina com a criminalizao primria e secundria, mas se transfere para dentro do crcere, a partir dos critrios de clas-sificao dos detentos, que no so o grau de escolaridade, a origem cultural, o local de moradia ou nascimento, mas sim uma duvidosa avaliao de periculosidade. H clara associao entre perigo e merecimento de reduo espacial. Vale dizer, a associao do sujeito condio de uma fonte de medo, valida discursivamente o plano de sua excluso da intersubjetividade.

    Assim, a priso, como consequncia da interveno do sistema penal, conquanto seja o que identifica o sujeito como criminoso, rotulando-o e colocando-o na condio de diferente, de pessoa sobre quem deve o Estado intervir como forma de aplacar o medo dos demais, apenas a primeira etapa do pro-cesso de anulao do outro.

    A partir do ingresso da pessoa no sistema penitencirio, suces-sivas avaliaes de uma suposta periculosidade conduzem utiliza-o de mecanismos de compresso espacial que atingem o pice com a frmula do chamado regime disciplinar diferenciado19.

    o penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes caractersticas:

    I durao mxima de trezentos e sessenta dias, sem pre-juzo de repetio da sano por nova falta grave de mesma espcie, at o limite de um sexto da pena aplicada;

    II recolhimento em cela individual; III visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crian-

    as, com durao de duas horas; IV o preso ter direito sada da cela por 2 horas dirias

    para banho de sol.O problema mais grave quando se observa o contedo

    dos 1 e 2 do mesmo artigo, que estabelecem literalmente: 1 O regime disciplinar diferenciado tambm poder abrigar os presos provisrios ou condenados, nacionais ou estrangei-ros, que apresentem altos riscos para a ordem e a segurana do estabelecimento penal ou da sociedade.

    2 Estar igualmente sujeito ao regime disciplinar diferen-ciado o preso provisrio ou condenando sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participao, a qualquer ttulo, em organizaes criminosas, quadrilhas ou bandos.

    Veja-se que h possibilidade de receber o sujeito no sis-tema de execuo penal, desde o princpio, submetido a um esquema de isolamento completo, em cela individual, sem mais razes do que as que derivam de um juzo de valor que pouco ou nada tem a haver com um Direito Penal do fato e muito mais com um Direito Penal do autor.

    A submisso ao regime diferenciado deriva da presena de um alto grau de risco para a ordem e segurana do estabeleci-mento penal ou da sociedade. Porm, a respeito de que se est falando? No seria da realizao de um delito ou de uma falta grave regulada pela administrao da cadeia, porque esta j se encontra referida na redao principal do mesmo artigo, que trata exatamente dela. Que outra fonte de risco social ou penitencirio pode decorrer de omisses que no sejam faltas nem delitos? E mais, a mera suspeita de participao em bandos ou organiza-es criminosas justifica o tratamento diferenciado. Porm, se o juzo de suspeita, no h certeza a respeito de tal participao e, no obstante, j aparece a imposio de uma pena diferenciada, ao menos no que se refere sua forma de execuo.

    Este Direito Penal do autor reconhece-se na seleo e ex-cluso de pessoas em funo da aplicao de um rtulo que os qualifica como inimigos.

    Nota-se claramente que todas estas restries no esto di-rigidas a fatos e sim a determinada classe de autores. Busca-se dificultar a vida destes condenados no interior do crcere, mas no porque cometeram um delito, e sim porque, segundo o jul-gamento dos responsveis pelas instncias de controle penitenci-rio, representam um risco social e/ou administrativo ou so sus-peitas de participao em bandos ou organizaes criminosas. Esta iniciativa conduz, portanto, a um perigoso Direito Penal de autor, em que no importa o que se faz ou omite (o fato) e sim quem personalidade, registros e caractersticas do autor faz ou omite (a pessoa do autor). (ESPINAR, 1993, p. 360)

    5 A QUEBRA DA ESTRUTURA DUAL PELA FILOSOFIA DA

    LINGUAGEM E A DILUIO DO INIMIGO, PELA INCLUSO

    DO OUTRO

    Enquanto persista uma leitura sociolgica e filosfica de

    A vida no mundo globalizado por essncia complexa e baseada em uma multiplicidade de

    relaes como forma de manifestao de existncia das pessoas. A supresso dos

    processos de comunicao que validam o ato de existir compe a frmula jurdica de

    anulao do outro.

    A redao do art. 52 da Lei de Execues Penais estabelece o isolamento celular do apenado que comete o delito doloso ou fal-ta grave, por at um ano, com possibilidade de repetio por um prazo igual a um sexto do estabelecido inicialmente. Alm disso, impem-se restries quanto possibilidade de receber visitas.

    Aqui aparece um evidente retorno ao sistema auburniano20. Observem-se os termos em que a lei se expressa: Art. 52. A prtica de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subverso da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisrio, ou condenado, sem prejuzo da san-

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    carter dual em que se separam os ci-dados dos inimigos, para efeitos de incluso e excluso nos vrios aspectos das relaes sociais, identificando estes ltimos com a figura daquele que passou pelo sistema penitencirio, no ser pos-svel nem minimizar os efeitos pernicio-sos da interveno penal, nem desviar-se das tendncias tericas que visam legiti-mar o perfil excludente.

    Sendo assim, h uma tarefa tambm de carter poltico-criminal que pode ser cumprida pela filosofia da linguagem: dar orientao e sustentao para a supera-o da dualidade excludente, por meio da frmula de autovalidao pela inclu-so do outro no projeto de realizao pessoal. Esse perfil, de carter holstico e inclusivo, tomado como via de orienta-o das diretrizes penitencirias, poder lograr uma conscientizao de carter jurdico e sociolgico que leve, por um lado, minimizao dos efeitos delet-rios produzidos pelo sistema penal e, por outro, diluio da figura do inimigo e com ela, dos discursos de legitimao do recrudescimento e do desprezo a uma parte da humanidade.

    evidente que uma postura dual, de separao entre eu e o outro no pode produzir uma aproximao que permita a completa validao do ser. Nem do ou-tro, nem de si mesmo. A verdade que o modo de vida da sociedade da moder-nidade reflexiva exige que no plano da autorrealizao esteja includo o outro.

    No se desconhecem o hedonismo e o egosmo como marcas da sociedade do sculo XXI, especialmente no mundo de cultura ocidental. Entretanto, mesmo de um ponto de vista absolutamente egocntrico, o projeto de plena realiza-o da vida inclui, necessariamente, o outro. E o outro, em qualquer plano em que esteja de diferena.

    muito comum que se rechace qualquer classe de interrelao com o detento e que se dificulte imensamente a introduo social do egresso, em fun-o da rotulagem que estes sofrem por parte do sistema punitivo. O que no percebido que mesmo a realizao ple-na do plano de felicidade daqueles que se consideram diferentes dos clientes do sistema penal, depende deles.

    comum que se identifique, na populao em geral, uma opinio de que o condenado deve permanecer o

    mximo possvel de tempo em com-presso mxima do seu espao, como modo de cumprir a pena. O que estas pessoas no percebem que, cumprida a pena, os condenados voltaro ao seu convvio com todas as marcas e heran-as adquiridas no crcere. Tudo o que a priso lograr produzir nele de ruim ser manifestado em seguida, nas relaes sociais que certamente guardar com aquele que quer v-lo detido. Quem foi um dia condenado estar guardando o carro, dividindo o banco do nibus ou do metr, sentado na mesma arquibancada do estdio, com aquele que se julgou di-ferente dele.

    rncia do crime nas instncias de poder leia-se, passividade para com o crime or-ganizado propriamente dito que deriva a impunidade22 (NAHUM, 2003, p. 2).

    A crise da modernidade reflexiva le-vou a uma insegurana permanente que faz com que as pessoas cada vez mais anseiem por controlar as fontes de sua insegurana, ainda que com medidas sabidamente paliativas e geradoras de um efeito tranquilizador muito mais psi-colgico do que efetivo. Por outro lado, o subproduto desta modernidade uma massa de excludos que, por sua condi-o, tambm fonte de triplo medo: o medo da diferena, para quem no faz

    A partir do ingresso da pessoa no sistema penitencirio, sucessivas avaliaes de uma suposta periculosidade conduzem utilizao de mecanismos de compresso espacial que atingem o pice com a frmula do chamado regime disciplinar diferenciado.

    A questo a saber como as pessoas desejam que os inimigos se comportem, uma vez que acabe a guerra. De nada adiantam planos para a guerra que no incluam o que fazer uma vez obtida a paz. Ou seja, mesmo do ponto de vis-ta mais cnico e egocntrico, pensando unicamente no prprio bem estar, no possvel deixar de considerar a essencia-lidade do outro na composio do meu mundo! bvio que o outro est includo obrigatoriamente em nosso plano de vida, pelo que, deve haver um plano especfico para isso.

    A sada parece estar na adoo de uma poltica de aproximao comuni-cativa, ou seja, de partilhar quadros de mundo, de conscientizao e absoro das diferenas, mesmo daquelas gera-das pelo prprio sistema penal. Admitir a existncia de diferenas, aceit-las e inclu-las no prprio modo de vida a nica forma vlida de minimizar aplacar o medo de viver. Assim, preciso, em primeiro lugar, reconhecer o fenmeno criminal a partir de sua dimenso social.

    As verdadeiras e endmicas causas de criminalidade no so alcanveis pela via da incriminao ou da represso com Direito Penal, mas sim pelo trabalho no mbito social, cada vez mais abando-nado21. da ausncia do Estado que se alimenta o poder paralelo e da interfe-

    parte daquela massa; o medo de vir a fa-zer parte dela23 e o medo de quem dela faz parte, constatando que sua elimina-o indiferente para o prprio sistema.

    Sendo assim, a fonte do medo est no prprio direcionamento do desen-volvimento social e no no fenmeno crime. Deste modo, um combate ao crime no devolve a sensao de segu-rana e tampouco ajuda a identificar o verdadeiro risco.

    Portanto, trata-se de uma guerra perdida ab initio, cujo resultado central apenas a identificao de um inimigo no outro. Os poucos eleitos (includos) pensam equivocamente que o inimigo o excludo, e vice-versa.

    H necessidade, portanto, de abolir a ideia de combate, ou guerra contra a criminalidade24. Alm disso, preciso promover o reconhecimento da prpria existncia por meio da alteridade inserta em um processo de comunicao, o que deflui da aplicao das mximas da filo-sofia da linguagem.

    Conforme refere Vives Antn, no pensamento de Wittgenstein, o sentido surge da interao social intermediada por regras, cuja inteligibilidade s pos-svel no marco de uma forma de vida. O que temos que aceitar, o dado po-deramos dizer so as formas de vida. (ANTN, 1996, p. 190-191).

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    Assim, a possibilidade de darmos um passo em direo ao rompimento das regras de excluso, depende, inicialmente, da adoo de uma perspectiva de comunicao como forma de demonstrao de sentido. Se o que dotado de sentido (jurdi-co, social, ou de qualquer ordem) somente pode ser determi-nado por meio de um processo de comunicao, de interao, de compartilhamento de regras, a demonstrao de minha condio de cidadania, depende deste processo, depende de interao, depende de reconhecer-me no outro.

    O que prejudica o reconhecimento da instncia penal como instrumento de realizao dos direitos de cidadania, o no reconhecimento discursivo do alter como cidado. Os realiza-dores da instncia penal, cada vez mais, tm identificado o cri-minoso como o elemento (discurso policial) ou o inimigo (discurso dogmtico e poltico criminal).

    Enquanto no houver o rompimento com estes discursos para o reconhecimento do Eu na figura do Outro, no se di-recionar corretamente as instncias de controle social jurdico, muito menos o controle social penal.

    A descaracterizao de pessoa no discurso de Jakobs (o inimigo uma no pessoa), visa justamente burlar o reconhe-cimento do alter como uma forma de vida que partilha com o sujeito regras de comunicao, representadas pelos direitos fundamentais de cidadania. Uma vez que se rompe com o re-conhecimento do alter como tal, uma vez que deixa de haver regras passveis de compartilhamento, no resta qualquer pos-sibilidade de reconhecimento do alter como algo que existe.

    Vale dizer, sua no existncia como cidado precede sua no existncia como ser humano, titular de garantias por esta simples condio, e abre portas, finalmente, para a possibilida-de de sua aniquilao ou extermnio fsico, sem que isso signifi-que, de alguma forma, a perda de algo que existe no mundo.

    Esta anulao da existncia do outro tem sido realizada, cada vez mais, com o instrumental da compresso do espao (e toda compresso de espao resulta em exploso, em um momento ou em outro), que efetivamente deve ser o primeiro objeto de transformao, se for pretendida uma aproximao intersubjetiva positiva.

    Ou seja, todas as medidas descarcerizantes constituem elementos essenciais da incluso do outro na vida de relao, de modo a permitir uma reduo de perda de horizontes de interrelao. O controle penal no pode ser exercido mediante a anulao da individualidade, mediante a privao da comu-nicao.

    imprescindvel repensar a estrutura punitiva do Direito Penal a partir das funes atribudas sano penal. que a fa-lncia da pena de priso assim denominada por Cezar Roberto Bitencourt (2004, passim), tem menos a ver com o fracasso de seu projeto ressocializador e mais com a sua conformao a um projeto de excluso pelo isolamento da comunicao.

    Observa Baumann (1999, p. 119) que a questo da rea-bilitao destaca-se hoje menos por seu contencioso do que por sua crescente irrelevncia. No se trata mais de discutir se a privao da liberdade ou no capaz de produzir reabilitao. Tal discusso simplesmente abandonada. Para ele, o signifi-cado mais profundo da separao espacial era a proibio ou suspenso da comunicao e, portanto, a perpetuao fora-da do isolamento.

    Acontece o que Baumann25 refere como o impedimento de um acesso comunicativo, forma de compresso da viso do outro, que, segundo sua anlise, sempre foi a tnica do confi-namento espacial.

    Com a compresso do espao e a proibio da interrelao, alcana-se o objetivo central de impedir a existncia, por meio da cessao dos processos comunicativos. A reduo do espa-o traduz-se na compresso do ser. Eis a motivao central do encarceramento26.

    Portanto, urge romper com a retrica permanentemente deslocada a respeito dos fundamentos da pena, e conceb-la com a funo garantista que se assinala ao prprio Direito Pe-nal, qual seja, a de controle social do intolervel expresso pelo ataque grave a um bem jurdico importante para o desenvolvi-mento do ser humano na sociedade.

    Mais do que isso, no se deve perder de vista que a pers-pectiva punitiva s tem lugar se inclui um projeto de aproxima-o e de incluso daquele que circunstancialmente colocado em situao de diferena pela rotulagem prpria do sistema. A incluso dele no projeto de vida dos que no recebem a estig-matizao verdadeira condio de validade e legitimidade do processo de controle social, seja ele de que ordem for.

    NOTAS

    1 Nesse sentido, veja-se extenso panorama traado por Leandro Ayres Fran-a (no prelo).

    2 O termo de Ulrich Beck e aparece em toda a obra La Sociedad del Riesgo (BECK, 1998).

    3 Sobre a tendncia da perda de controle sobre as fontes de risco na socie-dade ps-moderna, vide Beck (1998, p. 33): Muchos de los nuevos riesgos (contaminaciones nucleares o qumicas, sustncias nocivas en los alimen-tos, enfermedades civilizatorias) se sustraen por completo a la percepcin humana inmediata.

    4 [...] o termo risco vincula-se sempre a uma deciso racional, mesmo que na maior parte das vezes se desconhea as consequncias que dela pos-sam advir; ao passo que se fala em perigo quando o dano hipottico acarretado por uma causa exterior, sobre a qual no se tenha controle, nem sequer para evit-lo (MACHADO, 2005, p. 37).

    5 Observa precisamente Paulo Silva Fernandes a dimenso deste fenmeno, ao comentar: No ter, por um lado, a sociedade sido sempre de risco? No so os riscos entemporais e inerentes mesmo prpria vida e s decises nela tomadas? No vivemos, pelo contrrio, numa sociedade caracterizada. Precisamente, por uma reduo dos riscos e at por um incremento considervel de confiana nas solues encontradas pela tcnica e pela cincia para reduzir e/ou prever as doenas e as catstro-fes naturais? Ento no certo que vivemos mais e melhor, que temos avanos notveis na cincia ao nvel, nomeadamente, da preveno e cura das doenas, que controlamos a natureza, que tivemos conquistas de vulto conseguidas pelo triunfo do chamado estado de bem-estar (Welfare State)? (FERNANDES, 2001, p. 48).

    6 No mesmo sentido Fernandes (2001, p. 44)7 Prittwitz alerta para esta transformao, ao comentar que O direito penal

    do risco e direito penal do inimigo no so dois conceitos independentes um do outro; direito penal do inimigo no uma expresso que est na moda, e que apenas substitui outra expresso que est na moda o direito penal do risco. Este ltimo descreve, a meu ver, uma mudana no modo de entender o direito penal e de agir dentro dele, mudana esta resultado de uma poca, estrutural e irreversvel; uma mudana cujo ponto de partida j fato dado e que tanto encerra oportunidades como riscos. Direito penal do inimigo, em contrapartida, a consequncia fatal e que devemos repudiar com todas as foras, de um direito penal do risco que se desenvolveu e continua a se desenvolver na direo errada inde-pendentemente de se descrever o direito do risco como um direito que j passou a ser do inimigo, como o fez Gnther Jakobs em 1985 naquela poca ainda em tom de advertncia ou de se defender veementemente o modelo de um direito penal parcial, o direito penal do inimigo, como o fez Gnther Jakobs mais recentemente. (PRITTWITZ, 2004, p. 32).

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    8 Esta a expresso utilizada por Hassemer no artigo Caractersticas e crises do moderno Direito penal (HASSEMER, 2003, p. 59).

    9 Sobre o dualismo como trao caracterstico do modelo cientfico moderno, veja-se o comentrio de Baptista (2010, p. 97).

    10 O tema do etiquetamento foi completamente desenvolvido por Howard Becker (1966). Para comentrios mais recentes a respeito, vide Muoz Conde e Hassemer (2008, p. 110 e SS.).

    11 Hay otras muchas reglas del Derecho penal que permiten apreciar que en aquellos casos em los que la expectativa de un comportamiento per-sonal es defraudada de manera duradera disminuye la disposicin a tratar al delincuente como persona. As, por ejemplo, el legislador (por permanecer primeiro en el mbito del Derecho material) est passando a una legislacin denominada abiertamente de este modo de lucha, por ejemplo, en el mbito de la criminalidad econmica, del terrorismo, de la criminalidad organizada, en el caso de delitos sexuales y otras in-fracciones penales peligrosas. (JAKOBS, 2003, p. 38-39).

    12 Nesse sentido, Jakobs (2003, p. 40)13 A desconsiderao do criminoso como cidado faz recordar um dos piores

    perodos da histria poltico-criminal. que o discurso do prprio lder nacional-socialista partia deste mesmo ponto: O cidado alemo pri-vilegiado em relao ao estrangeiro. Essa honra excepcional tambm implica em deveres. O indivduo sem honra, sem carter, o criminoso comum, o traidor da Ptria, etc., pode, em qualquer tempo, ser privado desses direitos. (HITLER, 2003, p. 330).

    4 No demais lembrar que a expresso estranhos comunidade (Ge-meinschaftsfremde) foi utilizada pelo Direito Penal nacional-socialista, como fundamento da incriminao.

    5 Segundo Wittgenstein, o pai da filosofia da linguagem, os limites da mi-nha linguagem significam os limites do meu mundo Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt. (WITTGENSTEIN, 1987).

    6 Por lo tanto, el Derecho penal conoce dos plos o tendencias de sus regu-laciones. Por un lado, el trato con el ciudadano, en el que se espera hasta que este exterioriza su hecho para reaccionar, con el fin de confirmar la estructura de la sociedad, y por outro, el trato con el enemigo, que es interceptado muy pronto en el estdio prvio y al que se le combate por su peligrosidad. (JAKOBS, 2003, p. 42-43).

    7 [...] al igual que en el Derecho material, las regulaciones de proceso penal del enemigo ms extremas se dirigen a la eliminacin de riesgos terroris-tas. En este contexto, puede bastar uma referencia a la incomunicacin, es decir, a la eliminacin de la posibilidad de entrar em contracto un pre-so con su defensor para la evitacin de riesgos para la vida, la integridad fsica o la libertad de una persona ( 31 y ss. EGGVG). (JAKOBS, 2003, p. 45-46).

    8 La ambgua posicin de los prisioneros delincuentes? Prisioneros de guerra? muestra que se trata de la persecucin de delitos mediante la guerra. (JAKOBS, 2003, p. 46).

    19 Para mais detalhes, a respeito, veja-se Busato (2004).20 Comenta Cezar Bitencourt que em 1976 o governador John Jay, de Nova

    Iorque, enviou uma comisso at a Pensilvnia para estudar o sistema celular. E, 1796 ocorreram trocas importantes nas sanes penais, subs-tituindo a pena de morte e os castigos corporais pela pena de priso, consequncia direta das informaes obtidas pela comisso j referida. Em 1797 foi inaugurada a priso de Newgate. Como esse estabeleci-mento era demasiadamente pequeno, foi impossvel tornar o sistema de confinamento em solitrio. E diante dos resultados poucos satisfatrios, em 1809 foi proposta a construo de outra carceiragem, no interior do Estado para absorver o crescente nmero de delinquentes. A autorizaco definitiva, porm, para a construo da priso de Auburn s ocorreu em 1816. Uma parte do edifcio destinou-se ao regime de isolamento. De acordo com uma ordem de 1821, os prisioneiros de Auburn foram dividi-dos em trs categorias: 1) A primeira era composta pelos mais velhos e persistentes delinquentes, aos quais se destinou um isolamento contnuo; 2) Na segunda situavam-se os menos incorrigveis e somente eram des-tinados s celas de isolamento trs dias na semana e tinham permisso para trabalhar; 3) A terceira categoria era integrada pelos que davam maiores esperanas de serem corrigidos. A estes, somente era imposto o isolamento noturno, permitindo-lhes trabalhar juntos durante o dia, ou sendo destinados s celas individuais um dia na semana. As celas eram pequenas e escuras e no havia possibilidade de trabalhar nelas. Esta experincia de estrito confinamento solitrio resultou em grande fracasso: de oitenta prisioneiros em isolamento total contnuo, com duas excees, resultaram mortos, enlouqueceram ou alcanaram o perdo. Uma co-misso legislativa investigou este problema em 1824 e recomendou o abandono do sistema de confinamento solitrio durante a noite. Esses so os elementos fundamentais que definem o sistema auburniano, cujas bases, segundo Cuello Caln, foram estabelecidas no Hospcio de San

    Miguel de Roma, na priso de Gante.21 Hoje, apesar de sermos a 12 economia do mundo, somos, pelo ltimo

    levantamento da ONU, entre 140 pases, o pior em distribuio de renda depois de Serra Leoa, na frica. Esta , indiscutivelmente, a causa maior do incrvel aumento da criminalidade violenta. (DELMANTO, 2006, p. 5).

    22 Nesse sentido, Nahum (2003, p. 2)23 Bauman, utilizando interessante comparao dos includos a turistas e dos

    excludos a vagabundos, observa que o vagabundo o pesadelo do turis-ta, o demnio interior do turista que precisa ser exorcizado diariamente. A simples viso do vagabundo faz o turista tremer no pelo que o vagabundo , mas pelo que o turista pode vir a ser. Enquanto varre o vagabundo para debaixo do tapete expulsando das ruas o mendigo e o sem-teto, confinando-o a guetos distantes e proibidos, exigindo seu exlio ou priso o turista busca desesperadamente, embora em ltima anlise inutilmente, deportar seus prprios medos. (BAUMAN, 1999, p. 106).

    24 Nesse sentido concorre a opinio de Leonardo Sica, ao afirmar que a ter-minologia blica usualmente empregada (guerra contra drogas, batalha contra o crime, etc.) revela, mais do que um deslize de linguagem, a con-cepo arcaica e retributivista de que a violncia deve ser respondida com mais violncia. visvel a contradio que esse discurso tenta esconder: no se obtm a paz declarando a guerra! (SICA, 2003, p. 7-9).

    25 O confinamento espacial, o encarceramento sob variados graus de se-veridade e rigor, tem sido em todas as pocas o mtodo primordial de lidar com setores inassimilveis problemticos da populao, difceis de controlar. Os escravos eram confinados s senzalas. Tambm eram iso-lados os leprosos, os loucos e os de etnia ou religio diversas das pre-dominantes. Quando tinham permisso de andar fora das reas a eles destinadas, eram obrigados a levar sinais do seu isolamento para que todos soubessem que pertenciam a outro espao. A separao especial que produz um confinamento forado tem sido ao longo dos sculos uma forma quase visceral e instintiva de reagir a toda diferena e parti-cularmente diferena que no podia ser acomodada nem se desejava acomodar na rede habitual de relaes sociais. (BAUMAN, 1999, p. 114).

    26 Hoje a nossa preocupao com a grande massa de negros, pardos, pobres, feios e, principalmente, favelados cujo olhar nos incomodam, estragam a paisagem, andam de ps descalos no asfalto quente, usam roupas sujas e so todos integrantes de uma terrvel seita que possui um pacto de sangue com o mais terrvel dos demnios dos crculos do inferno: as drogas ilcitas, e por isso merecem ser controlados, vigiados, trancafiados, mortos e exorcizados, pois no fazem parte de ns, homens brancos e civilizados, so, na verdade, nossos inimigos e no merecem perdo. (SILVA, 2006, p. 2).

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    Artigo recebido em 31/5/2012.Artigo aprovado em 2/7/2012.

    Paulo Csar Busato professor adjunto da Universidade Fe-deral do Paran, professor da FAE e procurador de Justia do Ministrio Pblico do Paran.