#19 metamorfose

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METAMORFOSE DESUMBIGA #19 edição

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19ª edição da Des1biga, revista de um núcleo autónomo da AEFML (Associação da Faculdade de Medicina de Lisboa).

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Page 1: #19 Metamorfose

MetaMorfose

DESUMBIGA#19 edição

Page 2: #19 Metamorfose

Editorial3

Imagiologia

Tema4

Fuga de Frames8

Janela de Expressão10

Estórias Clínicas20

Babilónia21 Transmissão Oral

27

This is NOT right.

Peregrinação33

Page 3: #19 Metamorfose

#19 des1biga 3

desumbiga

Editorial

Ficha Técnica

REDACÇÃO*Aya x JoanaCarretoCatarina CorreiaDiogo RodriguesJoana MarquesJosé DurãoMª Emília PereiraRicardo DiasSara NunesTiago Gomes

COLABORADORES*Daniela ZuzarteEditorial by HeartEduardo BentoGonaçasGuilherme BernardoHugo MamedeInês SilvaJ. SerafimJoana SantosUlisses PeresVasco Peixoto

CAPA E CONTRA-CAPAAya x JoanaCarretoCatarina Jacinto CorreiaGonaçasMª Emília PereiraSara Nunes

GRAFISMOCarreto

TIRAGEM350 exemplares

IMPRESSÃOeditorial aefml

CONTACTOSrevista desumbigaassociação de estudantes da faculdade de medicina de lisboa, hospital

santa maria, piso 01avenida prof. egas moniz1649-035, [email protected]

Metamorfose. Palavra enigmática, metafóri-ca e sinónima de mudança. Existe um elo interes-sante entre ela e a escrita: pois aquele que começa uma obra não é o mesmo que a acaba. Há uma transmutação evolutiva do ser no silêncio da es-crita, na escolha significativa de cada palavra, na fiel transposição da imaginação para a realidade. É certo que existem vários tipos de escrita, cada qual com as suas diferentes proposições e inten-ções, mas todas elas, quer queiramos ou não, operam uma mudança. Ninguém fica onde está quando escreve e quem lê é também obrigado a sair um pouco de si próprio. O escritor italiano Pavese dizia que “escrever é belo porque reúne duas alegrias: falar sozinho e falar para uma mul-tidão.” A beleza da escrita está, portanto, na sua capacidade de projectar para os outros um acto solitário de mudança. É como se ao sermos lidos por alguém não estivéssemos a mudar sozinhos. Ainda que não concordem connosco, ainda que nos digam: “estás completamente errado” ou “não gosto da forma como escreves”; a verdade é que uma crítica é um processo de mudança mú-tua entre aquele que expõe a sua problemática e o outro que se inteira desta para lhe oferecer a sua própria solução. Assim sendo, a escrita é um mo-nólogo que procura alguém com quem dialogar. Kant dizia que a Razão necessita de se imaginar um público para desenvolver de forma lógica as suas ideias e a defesa dos seus argumentos, asse-gurando e reforçando a sua autonomia ao longo de todo esse processo. Uma Razão alienada do mundo flutua no vazio e nunca poderá ter razão; nem para si nem para os outros. A revista De-sumbiga pretende ser, assim, o palco onde cada Razão se afirma, cada uma com mais ou menos razão, para uma metamorfose colectiva projecta-da a partir de cada indivíduo.

O que propomos aqui é uma liberdade para escrever, para mudar, para viver.

Ricardo Pereira Dias

* O CONTEÚDO DOS TEXTOS PUBLICADOS É DA EXCLUSIVA RESPONSABI-LIDADE DOS SEUS AUTORES

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Tema

Ilustração de Gonaçashttps://www.facebook.com/Gonacas

modernices., Catarina Jacinto Correia |Metamorfose, Daniela Zuzarte |

Era Metamorfose, Mª Emília Pereira |

Page 5: #19 Metamorfose

#19 des1biga 5

pelo inevitável sabor que sentia na boca, ao falar, ele sabia que isto era diferente.

------------------

há sempre tão diversos tipos de conversas.lamentavelmente, termina sempre no mesmo. “então, tudo bem?” “sim e conti-go?”, como se a (des)preocupação polida e envernizada fosse mais fácil de engolir. “mas, então, e novidades?” “ah, por aqui vai tudo na mesma” e bem que ela podia estar mal e mostrá-lo nas suas respostas que ninguém iria querer saber ou sequer reparar. tu ias continuar com a tua vida a navegar no ciberespaço. é a podridão do novo século.

“sabes quando tens um cartuxo de balas vazio? o fumo depois do disparo? a pólvora queimada? aquele cheiro que fica no ar?” “desculpa, estou atrasado, depois vemos isso”, mas depois não deu porque ela suicidou-se; tu mandaste flores e um postal electrónico “condolências para a família”.

«se navegasses em alto mar, terias tido mais resposta, pobre coitada»

só te respondem nas horas vagas. só nos respondemos uns aos outros nas horas vagas. fossem os teus olhos máquinas fotográficas e os teus ouvidos um gravador. corrijo; fosse o teu cérebro uma máquina de filmar, dessas ainda funcionantes a película, não!, daquelas que te mostram as texturas em 3D e o som em Sistema Surround. assim, poderias gravar estes momentos suspensos de não-diálogo para verem todos um dia, verem como somos todos a mesma escumalha, tão viciados no nosso próprio ego e na nossa própria história.

“era um gin tónico com limão” “são cinco tostões” e atiras cinco euros, sem re-parares sequer naquele velho merceeiro que não sabe funcionar com esta nova moeda. prestasses atenção e terias poupado uma batelada de dinheiro. “boa tarde” “adeus e bem-haja”, mas mal-haja digo eu que o mal corrompe tudo e todos.

“bem-haja!” diz ele outra vez “querida, tenho de passar pelo escritório…” respondes tu para o auricular.

-----------------------------

mas desta vez foi diferente. um bem-haja

Catarina Jacinto Correia

modernices.Tema

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#19 des1biga 6

São horas de dormir. Eu não quero dormir. Não quero fechar os olhos e esperar pelo amanhã. O relógio quase que me obriga a enterrar a ca-

beça na almofada, mas eu não quero, não deixo, não cedo. Olho para o ecrã e leio metamorfose. E instanta-neamente lembro-me daquele infeliz rapaz, invenção de Kafka, que teve a pouca sorte de um dia acordar no corpo de um bicho asqueroso.

E se um dia acordasses num corpo que não reco-nheces? Num corpo que sabes não ser o teu? E se um dia acordasses num corpo que não controlas? O mun-do à tua volta deixaria de fazer sentido? Imagina que querias dar um passo, e outro, e mais outro. A tua per-na estava lá, mas não era tua; querias pegar num copo, beber o teu copo de vinho. Sim, o copo era realmente teu, mas a mão continuava inerte, no teu colo, sem obedecer aos teus comandos. Quantas vezes olharias para cima à espera de respostas?

Eu vejo-o a olhar muitas vezes. Não sei se para cima, se para a frente, se para a parede decorada com um único quadro. Mas ele olha e anseia por respostas. Não uma resposta qualquer, mas aquela que ele quer ouvir. Aquela que lhe diga que um dia acordará com o seu corpo de volta. Que foi tudo uma brincadeira de mau gosto, uma partida de carnaval. Ele olha e es-pera que lhe digam que vai poder voltar a ir à casa de banho sozinho. Que vai poder voltar a deitar-se e le-vantar-se sem um terceiro braço que o puxe. Ele olha e espera ouvir que um dia vai acordar todas as manhãs na sua casa, no seu quarto, sete dias por semana. Faz

figas, com as forças que lhe restam, para poder voltar a sair de casa nos seus próprios pés, e não naqueles pés improvisados em forma de roda. Ele olha, e olha… Mas a cada olhar há um pouco de esperança que vai, para nunca mais voltar. Em cada olhar, há um choque com a realidade. Em cada olhar, há uma lágrima. Uma lágrima que grita pelo seu corpo de volta. Um olhar que pergunta o que é que lhe fizeram às pernas? Para onde é que elas foram? E os braços? Para onde é que eles estão a ir?

Há quem olhe para a metamorfose e pense na borboleta maravilhosa de cores estonteantes que sai do seu casulo. Eu penso no pobre rapaz que um dia acordou no corpo de um parasita. Eu penso naquele velhote que um dia acordou com um pouco menos de si. Aquele velhote que meu deu o apelido e que não pediu por nenhuma metamorfose, mas que a vida decidiu presenteá-lo com ELA. Penso no sofrimento inimaginável de viver num corpo que não controlo. Um corpo, que ainda que seja o meu, age como se não o fosse. E, acima de tudo, penso no quão injusta foi a natureza na sua distribuição de metamorfoses.

São horas de dormir. São horas de lhe dar um ter-ceiro braço e aconchegá-lo na cama. São horas de nos rendermos à triste metamorfose.

Daniela Zuzarte

Metamorfose

Tema

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AO UTOPISMO ILEGALIZADO!

À LABAREDA DO FUTURO!

ACORDA! NOITE MARGINAL DO SONHO...

… pois se as estrelas cadentes da vida incendias-sem a terra inteira; incensos de utopia exalariam a era metamorfose.

E para sempre, a utopia. O tempo em que as asas das aves afastarão o céu do nosso coração e nos con-substanciaremos em liberdade. A dissecação do ser revelado dissidente na tarde.

O combate das vidas sobreviventes, rasuradas, me-canizadas e que se continuam umas nas outras sem revolução. Gostava que nunca deixássemos a morte esmagar o sentido da vida. Mas não há sentido, mera-mente um quotidiano a que nos agarramos.

Lembro-me de uma terra em que, por exemplo, se nasce homem e se morre maçã ou então se nasce pás-saro e se morre jade. Ou ainda, em que se é cravo e se é amado labareda de fogo ou em que se é abandonado noite e se renasce areia. Não importa quem se é, mas a transformação; o fenómeno de relação com o mo-mento da existência.

Absurda é esta terra! Que ousa insistir na imutabi-lidade da nossa matéria, apesar de toda a heterogenei-dade de vivências, sensações e sonhos que experien-ciamos. Quer sejam por nossa vontade, quer não.

A transformação individual, nasce dos picos ébrios de intensa tristeza ou de intensa felicidade. A trans-formação colectiva dos picos sóbrios de generalizada revolta ou de generalizada liberdade.

A realidade é importante para o presente, a uto-pia para o futuro. Não abandonar o utopismo, sus-tentando uma permanente esperança, projectando a actualidade para uma posteridade de sonho. Amanhã não será utopia, mas urge que o amanhã seja pensa-do como utopia teórica. Para que, quando aplicada ao real, seja o mais próxima possível da perfeição ideali-zada.

Pois embora humanos, nem todos somos huma-nidade. Uma criação de qualquer tipo, a um dado instante, assume ânimo próprio. Assim e por isto, todas as arquitecturas de modelos sociais, económi-cos, políticos, entre isto tudo, talvez estejam no seu apogeu. Fervilhantes, rodopiam e dançam para deleite desorientado de todos nós. Como se a previsibilidade existisse, e não apenas a sua sombra. Porém, afirmo-o para sua exaltação: o ser humano fecunda na sua men-te conjunturas nobres. E maiores do que ele mesmo.

A intenção, nunca distante da libertação e da dig-nificação de qualquer ser humano , deve ser apren-dizagem obrigatória para as relações interpessoais, incluída em todos os sistemas políticos e teorias de organização social e comunitária.

A utopia tem de continuar, com uma força de san-gue absoluta, bruta e cega. E não só a utopia, mas igualmente a distopia. Sobretudo os casulos distópi-cos que acordam a utopia ainda com mais força. Para o movimento do mundo serão sempre precisos os an-tagonismos, do seu confronto nasce aquilo que preva-lecerá no próximo futuro.

Se eu realmente purgasse o som da minha voz com a alegria, eu mesma não me fugiria por entre o mistério da existência. Escapo-mo num lago de pen-samentos, acreditando que rumo em direcção a uma ignorância menos consciente que me angustie menos. Terei sempre tempo para ser o que não fui. E de nascer do nada para um nada ainda mais absoluto. E quando morrer quero ir para a cova do utopismo: nunca sou-be viver sem madrugadas inventadas.

Mas além de todas as utopias do meu espírito, es-pero por ti sentada no banco de um lugar ausente de era metamorfose. Quero abraçar-te até esse instante, até ao nascimento da era metamorfose.

Amo-te: deixa que uma estrela cadente seja a eter-nidade do meu coração.

MªEmília Pereira

Era MetamorfoseTema

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#19 des1biga 8

Fuga dInês Silvahttp://www.flickr.com/photos/memoriesofadreamer/sets/

Gonaçashttp://www.flickr.com/photos/

gonacas/sets/

e Frames

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e FramesHugo Mamedehttp://www.flickr.com/photos/memoriesofadreamer/sets/

Joana Santoshttp://umajoanasantos.word-press.com/category/analogic/

Editorial By Hearthttp://editorialbyheart.com

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Janela de Expressão

Ilustração de Eat You Alivewww.facebook.com/EatYouAliveIllustration

Maluco é Quem Usa Pantufas, José Durão |O Menino de Chocolate, Sara Nunes |

Enquanto Dança um Slow, Carreto |O Divino Casulo, José Durão |

Dissemos que teríamos que mudar, Ricardo Dias |A minha alma está ressequida, Catarina Jacinto Correia |

Que Borboletas?, Vasco Peixoto |Fica Comigo, Ulisses Peres |

Questão de Primaveras, Joana Marques |The True Religion of the Misfits, Eduardo Bento |

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Acordei e não tinha pés. Assim mesmo. Olhei para baixo, senti-me várias vezes, experimen-tei juntar as palmas dos cascos e os ditos cujos

haviam-se sumido! Mas com que lata?, perguntei-me. E ali fiquei a perguntar-me, pois, se é verdade que os calos foram desta para melhor, malditas botas de pele de biqueira de arrepelar, ficou-se a plastificada Bar-bie atrás do seu balcão hermeticamente selado a rir eternamente num sorriso que nem amarelo é, é mais verdade ainda que calos sem pés nem doem, nem me tiram da cama! Um acamado por ordem de um mun-do com máquinas, com homens, com combustível, com o maldito capacho e as malditas botas à entrada, a raiva com que eu lhes estou, ou estava, com tudo isto e ainda assim parada, parada sim porque sem aquilo que move o mundo, o mundo não avança. O dinhei-ro? Não rapaz, olha o dinheiro… Se nem dinheiro há para não avançar, haveria agora dinheiro para avançar o não avanço. Tirem daí o sentido! É o próprio ho-mem que não move o mundo. O seu mundo, já que existe o mundo do homem e o mundo que muda o

homem. O primeiro que é de todos, ou todos acham que é de cada um e que simplesmente têm o fardo de o partilhar com meia dúzia de outros biliões, Pron-to, lá começa a Gabriela na velha professora de cima, professora da vida dizia a minha tia, Uma senhora de uma simpatia elucidativa, enfim, pode ser mas lá es-colhe a dedo a sua elucidação carnal regular, o segun-do que é somente muito maior. Muito maior que tudo o que muda e todos os que mudam. E da mudança vem o risco, do risco o ajuste, do ajuste a mutação, da mutação a diferença, da diferença o poder, do poder o controlo, do controlo a peneira, da peneira o que fica. E o que fica? Fica o que mudou a tempo. Ou que teve a sorte de mudar. Seja como for, fica o que é de ferro, o que controla o ferro, o que tem mente de ferro, o que ferra os dentes no mundo que é seu, no mundo que o mudou e ainda lhe sobra um ou dois dentes para fer-rar nos que nem ferro, nem mente, nem dentes, nem o raio que as parta de umas botas que não lhes comes-sem os pés que não existem, porque foram comidos e porque decidiram fugir, nem nada têm esses infelizes.

Maluco É Quem Usa Pantufas

The Red Model, René Magritte

Janela de Expressão

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Mas infelizes são todos, não julguem que escapam. O mundo que não é deles cresce-lhes por cima, por baixo, pelos lados, por todo o lado. Nem o homem o vê crescer, tão ferrado que está no seu mundo e no mundo dos outros, bem queria o mundo que o ho-mem o visse, que visse as mudanças que o mundo lhe faz, A criança está lá mas o berço está vazio, resmun-gam insultados com o terem sido abandonados, Não, a criança está lá, grita o bêbedo, Olhem!, grita mais alto. Louco!, gritam de volta, mas louco sempre será o que vê, pois só alheado do seu mundo se pode ver o mundo que não é seu e que o muda. Mas os bêbedos rapidamente ficam sóbrios, de loucos passam a ma-lucos e nem dão ouvidos às dores dos calos das botas de pele das quais já só vêm metade porque a fúria é tanta que lhes tolda a vista, palavra de honra que estou possesso com a merda das botas!, nem o balúrdio que foram lhes tapa a boca!, e o mundo que o muda e que poderia ter passado a ser o seu foge-lhe, desvanece--se numa miragem triste e uivante de um ser ferido, não na carne mas na alma, que deixou a metade para trás e sangra incompleto, provavelmente condenado a uma eternidade de solidão. E o mundo do homem continua.

Entretanto acordo. Na minha cama passou um dia, lá fora não sei, não saí daqui, que remédio! Afasto o lençol que já se me assemelha uma bandeira a cobrir um caixão, ondulando devagarinho ao cadente som de uma Amazing Grace, levanto-me e caminho para a casa de banho. Um momento. Caminho? Eh lá, um milagre! Tão primitivamente me chamava o bipe-dismo de milénios, tão instintivamente me levava o

inconsciente de anos para a banheira, que quase não notava que tinha os cascos de volta! E tão belos que eles são, já nem me lembrava. Calosos como estavam e inacreditavelmente enormes como sempre, tanta conversa que já renderam, É com cada barco!, Com essas barbatanas deves ganhar sempre!, e por aí fora, num chorrilho de elogios disfarçados de troças. Vá lá que voltaram a tempo da segunda feira, tenho o meu mundo lá fora à espera. Só que para sair para o mun-do, tenho que calçar as infernais botas. Lá vai e…oh!, maravilha!, segundo milagre e nem uma hora passou! Morreram de fome as malditas! Como me sabe bem a pele sobre as peles e as marcas do suplício do ferro e da mente e dos dentes que não podem ir para outro lado senão para fora.

A Barbie plastificada, pobre pequena, essa conti-nua estática atrás do seu balcão hermeticamente sela-do, permanentemente alheada, presa num mundo que não a muda, um mundo seu que não avança, que lhe corta os pés e a amarra a uma cama, que lhe diz o que fazer para não poder fazer, que a encadeia com uma luz mais falsa do que a camélia de plástico que a velha professora de cima tem na varanda, que a faz repug-nar o louco bêbedo que de maluco não tem nada, que a faz calçar as botas e não se deixar afectar por elas.

Mas o mundo mudou as botas. As botas mudaram os pés. E pelo menos um homem mudou o seu cami-nho.

José Durão, 2 de Novembro de 2012

Janela de Expressão

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#19 des1biga 13

Era uma vez, um casal convencionalque tudo tinha de normal:muito amor, uma boa casa e empregos estáveis, enfim, o velho sonho português.

Mas, como um bom portuguêsnão dá 2 sem 3:“casamento feito, venha a gravidez!”

Assim, durante 9 meses o casal normalviveu uma felicidade um tanto-quanto convencio-nal,não fosse a velha tradiçãoque diz que desejo de grávida é imposiçãoe, tapando os olhos à razão,deu oportunidade ao pecado tradicional de ser chamado de desejo habitual.

No entanto, este pecado pouco tinha de originalnão fosse seu nome “chocolate”.Chocolate, chocolate, chocolate,era só o que a mãe grávida dizia, pensava e comia.

Desejos de grávida, mito ou verdade,nem a ciência sabe…Mas, o que o casal normal não sabiaera que um desejo tão doce poderia trazer consequências tão amargas.

Entretanto, entre tanto chocolatechegara o momento da verdade, e, sem grandes complicações,por parto normal, nasceu um bebé convencional.

Contudo, embora a gravidez já tivesse terminado,os desejos continuavame, o que fora outrora classificado como habitualganhara agora uma proporção desproporcional.

O desejo tornava-se então obsessão.Chocolate, chocolate, chocolate,era só o que a mamã dizia, pensava e comia.Mas entretanto, algo mais grave surgia, para grande afliçãoo bebé tornava-se motivo de preocupação.

Algo nele parecia não ser tão normal,a cor de sua pele chamava à atenção,um bebé que nascera saudável e rosadinhotomava agora o tom de um castanho clarinho.

Assustados com tão estranha situação,o casal correu com o bebé para o hospitalà procura de uma explicação e rápida solução.

Mas, o caso era tão pitorescoque nem o médico conseguiu esconder sua admi-ração:“Nunca vi caso como este em 20 anos de profissão!”

Ilustração de Sara Monteiro

O Menino de Chocolatede Sara Nunes

Janela de Expressão

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#19 des1biga 14

O som branco da estática nos vidros molhados da janela. Estiquei a mão para que as cinzas do cigarro não manchassem o lençol – não

que eu me importasse com isso: entre manchas ver-melhas de batom dos beijos perdidos e o amarelo do suor de outros corpos, alguns pontos cinzentos não fariam diferença.

A fraca luz da lâmpada pendente do tecto sujo, baça do fumo, assemelhava-se aos pensamentos da minha cabeça. Costumo aproveitar estes poucos mi-nutos de inércia para meditar. Lembram-me os já dis-tantes finais de tarde nas searas na minha avó, antes de vir morar nas calçadas frias e escuras do Porto.

Levantei-me e comecei a vaguear pelo quarto. Evito, mas cruzo-me com o espelho e vejo dois seios perfeitos, redondos, e cara de menina. Maturadora precoce, calcei a superioridade dos saltos aos 12 anos; realçava-me as curvas, diziam eles. Nos corredores, ao desfilar pelos cacifos, roubava apneias e olhares curio-sos dos rapazes mais velhos e isso deixava-me feliz. O que me faltava em conhecimento, tinha em experiên-cia – e o professor de Inglês sabia bem disso.

Alinhei os meus cabelos pretos com os dedos. Re-cordo-me do meu primeiro beijo: o sol de verão de final de tarde iluminava os seus caracóis loiros e face infantil, inocente, tenra dos 8 natais vividos. Num ges-to simulado, limpou-me a terra da cara (frutos de uma luta no monte onde costumávamos brincar) e puxou--me lentamente contra ele – quase que conseguia ou-vir o ruído do projector de filme, a emoção do público e os aplausos no fim.

Procurei as cuecas, perdidas algures na fome dele. Às vezes gostava de ser como as outras pessoas. Eu também tinha sonhos, sabias? Talvez pintora – a mi-nha mãe, nos seus episódios de mania, comentava o surrealismo dos meus traços coloridos, as eruditas temáticas que eu abordava naquelas curvas e linhas.

Enquanto dança um SlowCarreto

Poderia ela prever a tragédia, as lágrimas que eu der-ramaria sobre o seu corpo desvitalizado pelo meu pa-drasto. Dizem que cada um tem aquilo que merece; e assim foi feita justiça para ele também.

No ar ainda paira a fragância dele. Nem a sua au-sência de 30 minutos nem a erva fumada escondiam a sua presença fugaz. “Gostas que te fodam por trás?”. Para pergunta idiota, só silêncio provocador.

Lá fora chovia e no relógio eram horas de trabalho. Abri a porta e chamei pelo cliente seguinte.

ilustração de Andreia Césarhttps://www.facebook.com/AndreiaCesarsWork

Janela de Expressão

Page 15: #19 Metamorfose

#19 des1biga 15

São tempos como estesque nos fazem pensar.Não na vida ou na mortemas no que temos para dar.

São tempos assimque nos fazem querersaber ontem o amanhãe ainda poder viver.

São tempos deste géneroque nos fazem fugir,seja do mau ou do bom,ou do que está por definir.

São tempos como os de agoraque nos fazem largara corda, a pena, a espadae o barco por atracar.

São tempos desta naturezaque nos fazem fechar os olhos,trancar a luz e a confusãoe o caos que há aos molhos.

São tempos como os que háque nos fazem desenfrearvale abaixo, na escuridão,sem vela para manobrar.

São tempos tal qual estesque nos fazem desesperar,ceder os joelhos ao Mostrengoque vem para aniquilar.

Repentino, o grumete insurge:«Mas que leis são essas?Que opressor te urge?»

«Não serás tu o comandante?O vigário de ti mesmo?O Mestre de Dante?»

«Acaso esqueces o efeito- abyssus abyssum invocat –de rasgar o coração do peito?»

«Não…ah não! Não há quem o permita!»

«Aqui ao leme és mais do que tu!És as gentes que trazes na algibeira!És os caminhos palmilhados no tronco nu!És o Homem que te mostrou a as-neira!És a Mulher que te entregou cru!»

«Não meu Senhor…»

«Aqui sois o que não vai ao fundo:um grumete, um contra-mestre,um capitão sem medo do Mundo.»

«Acorde! Suba Senhor!Mais para cima!Mais para o interior!ACORDE!»

(A esperança ganha voz:«Grumete, esse homem, por certo,estará mais longe que perto?»

Sorri o pequeno:«De facto, meu Senhor,já mais perto que a dor.»

A luz iluminou-se:«Louvado sejas rapaz,se de tal eu não for capaz.»)

«Que tempo está agora meu Se-nhor?»

O homem desce instantâneo do céu.Sorri para o miúdo, suspira e revela graúdo:

«Está um tempo de mudança.São tempos destes que nos lem-bramque o Mostrengo já não nos conhe-ce.Clareiem os olhos e nada temam!»

«Está um tempo de viagem.São tempos como os que vêsque trazem o Sol mais pertoe reduzem a pequenez.»

«Está um tempo de vontadesque nos fazem querer andar.O Universo espera-nos miúdo,a jornada vai continuar!Não te preocupes com as trevas!Elas vão aparecer mas não avançar.Pensa: se não fôssemos feitos para vencer,seríamos capazes de sonhar?»

O Divino Casulode José Durão

Janela de Expressão

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#19 des1biga 16

Dissemos queteríamos que mudarDissemos que teríamos que mudar,Antes que as palavras nos mudassem Um ao outro

Como a parede fria que repete em ecoOs sentimentos que já não são.

Dissemos que teríamos que mudarAntes que o tempo nos mudasse Um ao outro

Como o vento que leva as folhas caídasDuma árvore da qual já não são.

Dissemos que teríamos que mudarAntes que o vazio nos mudasse Um ao outro

Como a própria vida que nos fogeDos momentos que já não são.

Dissemos que teríamos que mudarAntes que nos mudássemos Um ao outro

Só pelo prazer de negar ainda A própria razão.

Ricardo Dias

A minha alma está ressequida.

Velha.Como um livro antigo

Lido demasiadas vezes.Desfolhado e redesdobrado sem fim.

E que se desenrola com cada dedilharSalivado que por ele passa.

Com o seu valor e espírito e tudo.Mas ressequido. Esquecido numa prateleira.

A minha alma é como os livros que leio.

Como os livros que amo.Como os livros que todos ignoram.

O livro da minha vida.O livro do mundo.

Alma fechada em si (e sobre si).Aberta para todos.

Fechada e esquecida para os outros.

Nada. Morte. Nascimento.Tudo.

Catarina Jacinto Correia

Fotografia de Editorial by Heart

Janela de Expressão

Page 17: #19 Metamorfose

#19 des1biga 17

Agora, lagartas, crescemos e vemos a vida e não voamos,E ainda não podemos saber onde acabamos,Nem as folhas escolhemos, e comemos porque temos que comer.Não sabemos onde vamos e quem souber não vai a lado nenhum.Ou se calhar acaba por ir onde queria Por não saber aquilo que mais havia.Mas enquanto rastejamos nas folhas verdes o vento não nos tocaOs encontros são escassos e a escolha fácilE dali acreditamos que o mundo é do nosso tamanhoE que já é quase todo nosso ou será brevemente conquistado.Fechamos os olhos para as plantas que não são a nossaE rastejamos orgulhosamente na prisão que escolhemos.E no fim as lagartas que nunca foram borboletas não o foram porque não quiseram,Porque mesmo que andemos escondidos Há sempre um raio de sol ou uma gota de chuva que nos traz um bocadinho do mundoE há quem feche os olhos porque o desafio parece grande.E não sei se é preciso ficar imóvel muito tempo,Nem se o casulo não é para alguns eterno…Mas se um dia acordamos borboletas,E deixa de fazer sentido voar à volta da planta onde estivemosE subimos, e o vento nos traz aquilo que não tínhamos visto.Vemos que há muitas plantas, flores diferentes e janelasE outras borboletas e outras lagartas,E que aquilo que tem valor é mais do que a nossa primeira plantaE a cada local novo onde vamos ficamos mais perto de saber onde queremos estar.E percebemos que queremos ver mais.E vamos um bocadinho por nós e um bocadinho com o vento descobrindo,Pousando e voltando a voar e definindo as cores das nossas asas,Onde nos levam, onde se confundem e onde contrastam,E onde decidem parar de bater por um tempo e escolher outra folhaOu o parapeito de uma janela ou a flor diferente.Mas se um dia acordamos e somos uma borboleta maior?

Que borboletas?de Vasco Peixoto

Born to fly, Vladimir Kush

Janela de Expressão

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#19 des1biga 18

Tira-me o amargo da boca, tira-me a pedra do sapato, tira-me o ciúme, que é coisa louca, não me leves o pouco que tenho de sensato…

Tira-me um pouco de quase tudo, tira-me muito do quase nada… Deixa comigo este verso mudo, leva para longe a prosa ensaiada …

Tira-me o ódio, fá-lo por estes trilhos escassear… Tiro de ti, pura vontade de amar, a minha energia renovável. Por ela não tenho de procurar, bebo-a de ti, fonte inesgotável…

Tira-me a ignorância; devolve-me, nem que por um momento, a sabedoria… Materialismo, ob-sessão, ganância – contratempos do nosso tempo; imagens de um ”hoje em dia”…

Tira-me a solidão…a falta de gente…a tristeza… Deixa a tua mão a aquecer-me o coração… Isso basta-me; isso deixa-me contente… Essa é a mi-nha única certeza…

Tira-me e ficar-te-ei eternamente agradecido...

Deixa-me…! Aliás, não me deixes, fica comigo…

Fica comigode Ulisses Peres

Os seus olhos estão mais escurosE a alma mais baçaE as roupas novas poderiam estar esfarrapadas…Não faria diferença.

Caminha descalço pelos corredores da própria menteCortando os pés em cada vidro que pisaDeixando atrás apenas um rasto de poeira verme-lha.

Foge de todosProcurando estar sóCorre da solidão enquanto se afogaNo cheiro acre do suor da multidão que dança

Esqueceu as memórias que eram felizesAbandonou as esperanças De um dia poder ser um ser belo

E dorme assim, como que eternamenteEnrolado nos fios que teceuO casulo já quase apodreceu…

Mas ela ainda espera…Um dia, ele há-de emergirDe asas transparentesDe olhos clarose alma espelhadaE voarão juntos em direcção ao Sol!

É apenas uma questão de primaveras…

Questão dePrimaveras

de Joana Marques

Fotografias de Pictures of youhttp://picsofyou.tumblr.com/

Janela de Expressão

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#19 des1biga 19

I believe in starsI believe in angelsI believe in scarsI believe in the personal touch of pastels

Church bells ring outsideThere is a glow waiting for someone to flourishIs it you? Is it me?Who are you? Who am I? Why have I been put here?

It seems as though that we have been put here for a reasonThere’s always the punch line, the drunk line, the frontline...Everyone dreams, everyone concealsThere is no definition of spot on

Unwaveringly and consistently are we put on this rideThere is no line too far or too infamousThere is no such thing as a bigger or a smaller dreamWe are not a production company

Church bells keep ringing outside...

As the wind blows, leaves come and goWhy is this an ongoing scenery?And why is ephemerality such a big word?

Misery is a fearSatisfaction is a featBoth exist in conjunctionThere is always darkness where there’s light

You are the author of your canvasYou are the ringleader of your circusYou are a priest in this religionThere’s no room for forfeiting

Even though Judas was forgiven, He left scars that lasted foreverWhat begins as a dream and an ambitionMight end as an empty jar of safety

You are the soldier of your emptinessYou are the soldier of your own darkness Fill itIlluminate it

Life is a religionDevote itYou are not a sinner

The true religion of the misfits

Texto e fotografia de Eduardo [email protected]

Amen

Janela de Expressão

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#19 des1biga 20

Estórias Clínicas

O Olhar Clínico na sua essência deverá ser aquele, pelo qual nós olhamos e “despimos” a pessoa que temos à nossa frente e onde vamos começar a jogar com todos os dados ao nosso alcance...Um olhar para olhar o todo, que se constitui por todas as partes tão ricas de detalhe mais clínico ou menos clínico. Esse todo para ser alcançado, necessita de um esforço in-terno e de uma metamorfose da nossa parte... naquele mo-mento passamos a ser nós, o doente e toda a envolvência que se cria, isto é, o Momento Clínico! Que se inicia assim que avistamos aquela pessoa doente ou não, vamos saber! Sim, porque nem sempre estará doente, desta forma o nosso olhar clínico, tem também de ver o que não é clínico, mas que naturalmente fará parte da essência humana. Não devemos impor uma doença, um diagnóstico. relem-brar sempre o princípio da não maleficência, um princípio fundamental da Prática Clínica.

Diana Silva

The Doctor, Sir Luke Fildes

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Babilónia

Polifonia, Diogo Rodrigues |Carlos Paredes, Diogo Rodrigues |

A Metamorfose do bombeiro-leitor, J. Serafim |

imagem de www.facebook.com/glitchr

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#19 des1biga 22

BADBADNOTGOOD, Canada – jazz / hip hop instrumental

De Toronto, este trio post-hop lúdico e inovador sur-ge da imaginação de três estudantes de jazz com um amor partilhado pelo hip-hop, o teclista Matthew Ta-vares, o baixista Chester Hansen e o baterista Alexan-der Sowinski. Em 2011, apresentam aos seus professo-res uma composição baseada num tema da colectiva de rap “Odd Future”. Após essa rejeição, o próprio lí-der Tyler, The Creator vem a descobrir e a promover o vídeo, chegando mesmo a colaborar no seu primeiro álbum – BBNG (2011). A banda torna-se rapidamente conhecida no círculo musical, tal é a universalidade do seu apelo. Quem ouve BBNG não ouve um jazz típico, por vezes não ouve jazz de todo: as interpreta-ções estendem-se do hip-hop instrumental aos temas de videojogos (os veteranos de Zelda terão umas sur-presas). Quem ouve BBNG, terá uma oferta conside-rável entre dois álbuns de estúdio, produzidos pelos próprios, dois álbuns ao vivo, um EP e um single. Em apenas dois anos de história.

Ouvir:Odd Future Sessions Part 1 (OFWGKTA) (is.gd/odd-futuresessions)Electric Relaxation (A Tribe Called Quest) (is.gd/elec-tricrelaxation)CMYK/DMZ (James Blake) (is.gd/cmykdmz)Flashing Lights (Kanye West) (is.gd/flashinglights)

badbadnotgood.combadbadnotgood.bandcamp.comsoundcloud.com/badbadnotgood

TURBOWOLF ,UK – hard rock / metal al-ternativo / electronica

De Bristol, Turbowölf é um autêntico “cadáver esqui-sito”, combinando a guitarra pesada, o baixo sujo e os sintetizadores estridentes num riffing reminiscente de Led Zeppelin. Este tutti-frutti musical é acompanha-do de uma imagética singular: Turbowolf é o culto do vídeo lo-fi, do rock de garagem, e do glitch informáti-co. A guitarra distorcida com crunch para além da ra-zoabilidade, emulando o som de Jack White em Blue Orchid, e o cantor histérico.Curiosamente, funciona.E prova disso? Uma tour europeia em suporte dos Korn, que na minha opinião suplantam, uma apari-ção no festival Sonisphere em 2011, e um esperado primeiro álbum na mesma editora que os Cancer Bats (quem ouviu o clássico “Black Metal Bicycle”? – Some people call me a nihilist/Say I don’t believe a thing/I know that can’t be true/’cus baby I believe in you).Turbowölf destaca-se no panorama do metal pela sua inegável originalidade.

Ouvir:Let’s Die (is.gd/letsdie)Read and Write (is.gd/readandwrite) A Rose for the Crows (is.gd/aroseforthecrows)

turbowolves.blogspot.commyspace.com/turbowolfbandfacebook.com/turbowolf

Polifonia(do grego polyphonía, «abundância de vozes; polifonia»)

de Diogo Rodrigues

Babilónia

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Lotus, USA – jam band / rock experimental

Esta banda de Indiana tem anima-do o circuito estudantil norte-ameri-

cano desde 1999, sendo hoje imensa-mente popular no Midwest. Inspiram-se

na tradição das jam bands, cujo exemplo mais característico são os Phish, uma outra

banda rock “académica” de grande projecção ao longo das últimas três décadas (!), misturan-

do-a com a música electrónica. O último álbum, auto-intitulado, é uma obra-prima de grande va-

riedade: de rock indie instrumental a batidas hip--hop – composições estruturadas e progressivas.

Ouvir:Live at Red Rocks (is.gd/liveatredrocks)

Orchids (is.gd/orchids)

Yardangs, Portugal – rock alternativo

Lisboetas, os Yardangs modelam-se musicalmente nas estruturas que lhes dão nome – massivos rochedos es-culpidos pelo vento nos desertos áridos – wind carved rock ‘n’ roll. Já com uma aparição no BalconyTV Lis-boa, outra no 5 para a meia-noite, um concerto na PT Bluestation e outro no SWtmn, apresentam um rock bastante acessível, mas não de todo genérico. A banda, formada por Luís Fernandes, Ricardo Espiga, Henri-que Branco e José Pedro Esteves, já tem o primeiro EP gravado e acessível no SoundCloud, mas igualmente interessante é a versão acústica de “Into the Open” –

que à primeira exposição sugere uma forte influência de Radiohead, o riff simples e um cantar assombroso. É uma banda promissora.

Ouvir:Into the Open (unplugged) (is.gd/intotheopenlive)The Crossing (is.gd/thecrossing)

Facebook.com/yardangsmyspace.com/yardangsreverbnation.com/yardangs

lotusvibes.com | facebook.com/lotusvibes | myspace.com/lotusemail | souncloud.com/lotusvibes

Babilónia

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#19 des1biga 24

Budda Power Blues, Portugal – blues / funk /psychedelic rock

O trio bracarense, projecto paralelo de Budda, Nico e Tó Barbot, constrói um estilo único de fusão sobre o rock psicadélico de Jimi Hendrix, cujo álbum “Band of Gypsys” chegaram mesmo a reinterpretar, alternan-do entre o blues e os ritmos funk, o vocal e o instru-mental. Em Outubro último, fechando o festival Jazz na Praça, cantaram e deixaram saudade. O concerto ao vivo é altamente recomendado, os músicos extre-mamente competentes, mas é a ligação com o público que é verdadeiramente fascinante. Como introdução à banda, numa vertente mais atípica da mesma, sugiro que ouçam a versão blues de “Verdes Anos”, original-mente composta por Carlos Paredes sobre o motivo de Summertime (George Gershwin). É o regresso ao blues de um clássico português, a sensação é surreal, e a guitarra subtil.

Ouvir:Verdes Anos Slight Return (is.gd/verdesanosslightre-turn)Promo Kind of Gypsys (is.gd/promokindofgypsys)

Myspace.com/buddapowerbluesfacebook.com/buddapowerblues

Hiatus Kaiyote, Australia – soul fusão

O quarteto de Melbourne, formado em 2011, traz um soul maduro e distinto na manga, pleno de virtuosis-mo mas isento de esterilidades, em fusão natural com o hip-hop e o jazz. Lidera-o Nai Palm, vocalista e gui-tarrista, lirista e compositora, acompanhada pelo te-clista Simon Mavin, pelo baixista Paul Bender, e pelo baterista Perrin Moss. Sem esquecer os cantores de apoio – Jace, Laura e Jay Jay. Já com uma estética pró-pria, um primeiro EP gravado em estúdio próprio e editado online (Tawk Tomahawk), resta só mesmo…

“Oh yes!… hope they come to Europe soon, because the live show looksamazing.” — Gilles Peterson

Ouvir:Nakamarra (is.gd/nakamarra)Building a Ladder (is.gd/buildingaladder)

hiatuskaiyote.comhiatuskaiyote.bandcamp.comsoundcloud.com/hiatus-kaiyote

Babilónia

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#19 des1biga 25

Indubitavelmente um dos maiores artistas portu-gueses do último século, musicalmente incorrupto, tecnicamente irrepreensível.

Seguindo a tradição familiar, que remonta ao seu avô, inventor da guitarra e afinação coimbrãs, Carlos dedicou-se cedo ao seu instrumento, suplantando o próprio pai durante a adolescência. Depressa vieram as composições próprias, absolutamente singulares no panorama do fado – o artista transcendeu o géne-ro musical e explorou ao máximo o seu instrumen-to. Sem espaço para clichés musicais, tão comuns no fado, inventou para além da comum das imaginações, denotando uma elevada sensibilidade para a melo-dia – diz-se portanto que Carlos Paredes aproximou o fado do jazz e da música clássica. Porém, o seu estilo não é comparável que a si mesmo – de clássico tem certas melodias mais estruturadas, e as suas harmo-nias e modulações não são definitivamente caracterís-ticas do jazz.

O seu percurso divide-se entre Coimbra, cidade natal, Lisboa, cidade adoptiva, e Porto, cidade afecti-va. Com efeito, a sua ocupação de subsistência era a de arquivista de radiografias – não neste nosso hospi-tal, mas no S. Jorge. As inclinações esquerdistas, num período em que o esquerdismo era a única oposição possível, valeram-lhe dois anos de prisão. Sem guitar-ra, Carlos não deixou de praticar, desenvolver ideias e exercitar os dedos, servindo-se para isso de um sim-ples pente – naturalmente, a sua sanidade mental foi posta em causa – contudo o artista venceu o exílio sem a perder, apesar deste seu hiato criativo, profun-

damente lamentável.No período pós-revolução, foi mundialmente acla-

mado. Deste se conta a colaboração com o baixista Charlie Haden, e as posteriores com Mário Laginha, entre outros. De salientar os seus fiéis acompanhantes Fernando Alvim, e mais tarde Luísa Amaro, artistas de mérito próprio.

Acaba por falecer em 2004, deixando um enorme legado ao repertório do instrumento, entre compo-sições próprias e arranjos de composições alheias ou populares, um espólio fértil de gravações, e a abertura de todas as potencialidades técnicas e expressivas da guitarra portuguesa. Teve também o mérito de inter-nacionalizar o instrumento, num papel comparável ao de Amália Rodrigues com o fado moderno.

As suas composições mais populares são a imortal “Verdes Anos”, composta para o filme de 1966, e “Mu-dar de Vida”, para a peça homónima. Igualmente re-comendáveis, na minha opinião, são as “Variações em Ré Maior” e o impressionante “Movimento Perpétuo”. Numa linha mais vanguardista, a tradição da guitarra portuguesa é hoje continuada por Pedro Caldeira Ca-bral, autor de “Baile dos Carêtos”.

[Carlos Paredes, fotografado por Eduardo Gageiro]

Carlos Paredes

Diogo Rodrigues

Babilónia

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Não é fácil escrever sobre “Fahrenheit 451”, obra que há muitos anos tornou o recente-mente falecido Ray Bradbury num dos escri-

tores mais conhecidos de todos os tempos. Suponho que poderíamos simplesmente colocá-la ao lado de “1984” e tantos outros, que nos contam histórias so-bre futuros distópicos e aqueles que os habitam e que, por vezes, acabam por revoltar-se contra a sociedade onde (não) se inserem. O que torna, contudo, “Fah-renheit” especial é o objecto escolhido por Bradbury como centro dos acontecimentos – o livro. Todos nós já ouvimos falar de pelo menos um ou outro tempo na História em que os livros alimentavam foguei-ras. Hoje, é certo que o número e dimensão dessas fogueiras diminuíram – mas o acto de banir livros é ainda comum em muitas partes do mundo (mesmo em países ditos desenvolvidos), e isso é sem dúvida uma prova do poder que lhes é atribuído. Muitos deles influenciam multidões e servem de mote para muitas acções – daí que alguns os considerem perigosos.

“Fahrenheit 451” permite-nos vislumbrar um mundo em que as paredes das salas são gigantes ecrãs de televisão, os incêndios espontâneos não existem e os bombeiros não apagam fogos, dedicando-se em vez disso a queimar todo e qualquer livro que venha parar às suas mãos - e, se necessário for, a incendiar as ca-sas dos transgressores. Afinal de contas, os livros são a fonte de toda a discórdia, infelicidade e melancolia, e impedem que vivamos como iguais em morno e se-dado contentamento. O que há a fazer? Destruí-los, claro.

«It was a pleasure to burn.» É assim que começa. E é assim que conhecemos Montag, um promissor bom-beiro que até ali sempre se sentira extasiado com as chamas dançantes que impiedosamente devoravam os livros. Até ao dia em que conhece Clarisse, uma ado-lescente curiosa que, ao partilhar as suas ideias com ele, será o gatilho para muitas das questões que sur-

girão na mente de Montag: Afinal de contas, será que sou feliz? Por que é que as pessoas nunca discutem aquilo que é importante, sendo ao invés incessante-mente entretidas com algo que as faz não pensar? Por que é que todos mascaram a dor e a angústia, satu-rando os seus olhos e ouvidos com imagens sem nexo e ruídos ensurdecedores, em vez de comunicarem? ...

Mas será quando Montag vê uma mulher a imolar--se por amor aos livros que se apercebe de que a sua vida não mais poderá voltar ao que era. Montag revela então à esposa que quebrou a lei mais importante de todas - ele, bombeiro-incendiário, teria andado a acu-mular livros. E finalmente decide pegar num deles e saber o que tem lá dentro. O que escondem tantas pa-lavras? Será o seu poder tão terrível assim? Previsivel-mente, Montag acabará por sofrer pelas suas escolhas, sendo perseguido sem tréguas pelas autoridades e o seu temível Cão Mecânico.

“Fahrenheit” não tem de pertencer a um determi-nado espaço ou tempo. Por muitos anos que passem, poderá sempre ser apreciado como obra universal que é. A derradeira carta de amor à palavra escrita. Uma história original que nos faz sentir admiração. E esta pode dar lugar à comoção quando conhecemos os Homens-Livro, que desafiavam a noção de que a palavra escrita tinha de permanecer palpável, sendo que cada um deles se comprometia a reter um livro na memória, local que as chamas não poderiam alcançar. Em suma, recusavam o desaparecimento daquilo que nos define como seres humanos – o ser pensante, que pondera aquilo que o rodeia e o transmite aos outros.

Se gostam de ler, leiam este livro. Mas se gostam de ler e nutrem ainda um grande respeito pelos livros, então leiam-no também - urgentemente.

J. Serafim

A metamorfose do bombeiro-leitor«Fahrenheit 451: the temperature at which book-paper catches fire and burns.»

Nota: a imagem é de uma BD adptada do livro.

Babilónia

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Transmissão Oral

http://negativefeedback.deviantart.com

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Qual é o panorama atual da profissão mé-dica em Portugal?

Corremos o risco de dentro de pouco tempo co-meçar a haver excesso de médicos, não apenas médi-cos mal distribuídos, mas excesso de médicos – isto é consensual. Mais grave do que isso é a ter-se permiti-do nos últimos anos a existência de novas Faculdades de Medicina, no Algarve e em Aveiro. De uma forma geral, a Medicina em Portugal é de boa qualidade, nas com muitos indicadores desconhecidos. Em qualquer caso, existe ainda um certo desequilíbrio e até aparen-te comodidade, também financeira (basta ver as espe-cialidades escolhidas maioritariamente nos dois pri-meiros dias de escolha pelos que obtiveram notas mais altas) na escolha das especialidades. Também por isto era importante que houvesse um estudo nacional que permitisse, tanto quanto possível, identificar as neces-sidades nacionais nas diferentes especialidades e es-tabelecesse mesmo incentivos (não maioritariamente financeiros) nalgumas localidades; mas, para se esco-lher, há que conhecer na medida do exigível, e, neste sentido, é aqui que eu acho que o internato do ano co-mum (IAC) não deve de maneira nenhuma terminar, porque o sexto ano não é suficiente para que o jovem médico aperceba melhor que especialidade médica

quer escolher. Acabar com o actual ano comum será gravíssimo: por um lado porque não permite a prática do jovem médico em diferentes vertentes ( o 6º ano não basta; há quem acabe o curso sem ter ido ao bloco, sem ter visto um parto, sem ter colocado um espéculo vaginal…); por outro lado, porque, em consequência dificulta a escolha da especialidade e pode aumentar o número de insucessos e abandonos no início de espe-cialidades, com danos para todos. Assim, acabar com o IAC pode aumentar o panorama de pessoas insatis-feitas ou frustradas com a especialidade que venham a escolher por não terem tido contacto suficiente e tempo para amadurecer uma escolha: portanto, é uma medida que se pode revelar, com toda a probabilidade prejudicial e até contra producente em termos finan-ceiros, se é que o objectivo é poupar dinheiro ao SNS.

Até porque havendo dois anos a concor-rer para as mesmas vagas, vai ficar sempre metade de fora.

A não ser que dupliquem as vagas, o que é duvi-doso; aliás, isto fala-se, e comecei por aí, por haver excesso de médicos. Este ano parece que o SNS ainda vai absorver todos os internos do ano comum que vão começar a especialidade no início de 2013; para o ano já não há certeza que assim seja. Portanto, pode ha-ver jovens médicos que não conseguem obter vaga em 2014 para começar uma especialidade no SNS.

E o que é que se poderia fazer por esses es-tudantes?

Acho que se deveria começar por restringir o nú-mero de vagas – só que isto simplesmente é impopu-lar e os governantes não o decidem - mas muito mais impopular é ter médicos desempregados. As pessoas têm muitas ideias feitas e uma delas é a ideia de que há falta de médicos, o que é falso. O que se tem que fazer é limitar o número de vagas na entrada em Medici-na, rapidamente, o que até melhora a qualidade pe-dagógica na medida em que a rácio entre docentes e discentes é muito melhor, passa-se a ter aulas práticas com melhor qualidade, com o menos alunos à volta do assistente e dos doentes e permite reequacionar al-

O presente e o futuro da Medicina em Portugal

A realidade médica em Portugal está a mudar: planeiam-se alterações na entrada ao Inter-nato Médico, na Prova Nacional de Seriação e até na própria contractação médica. Dada a relevância e urgência destes assuntos, a Des1biga decidiu colocar algumas perguntas ao Manuel Abecassis, actual Presidente da ANEM, e ao Prof. Dr. Miguel Oliveira e Silva.

Transmissão OralFo

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Prof. Dr. Miguel Oliveira e Silva

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#19 des1biga 29

guns modelos de intervenção pedagógica, o que não se pode fazer neste momento.

Portanto, a grande vantagem é adequar as neces-sidades médicas ao País, o que até diminui a médio prazo, para daqui a 5/6 anos, os encargues do SNS com médicos no activo, porque daqui a 5/6 anos en-trarão muito menos médicos para a especialidade: o ministério gasta muito menos com os internos do ano comum e com os novos especialistas, porque o seu número diminuirá.

Portanto, corremos o risco de chegar a haver médicos formados sem emprego.

Que vão ser aconselhados, talvez mais uma vez pelo primeiro-ministro, a emigrar: estamos a pagar uma educação caríssima (a formação de cada médico custa ao Estado mais ou menos 70 mil euros) para os jovens médicos irem para a Suécia ou para a Irlanda, ou Reino Unido.

Há falta de médicos noutros sítios?Na Suécia há- aliás, há muitos portugueses a irem

para a Suécia e até já há quem vá fazer bancos a Ingla-terra, tipo 4 seguidos numa semana, e assim sobrevi-va.

Concorda que seja alterada a “prova do Harrison”?

Não discordo, desde que seja feita de uma forma clara e transparente, com regras perfeitamente visí-veis, com o tempo necessário para a adaptação aos estudantes, com uma prova bem-feita e que abranja outras áreas que não apenas a Medicina Interna, isto é, que não seja apenas uma tradução do que se passa nos EUA. Logo feita por portugueses competentes, se é que os há em número suficiente. É preciso cuidado.

Defende a existência de bibliografia?Claro que sim.

E a revisão de prova?A revisão de prova não me choca nada – até agora

a realidade tem mostrado que há sempre erros. Nos Estados Unidos não fazem revisão de prova porque as perguntas já foram testadas e mais que testadas, mas a realidade portuguesa é outra: até agora não houve nenhum exame de entrada na especialidade que não tivesse perguntas erradas (com várias hipóteses ou sem nenhuma certa), o que prova que tem que se fazer revisão de prova.

Mas acha que o Harrison é uma boa prova?Não. É muito limitada, acho que não se deve fa-

zer exame apenas a Medicina Interna, acho que deve haver Cirurgia, Obstetrícia, Pediatria, Saúde Mental...

Em relação à inclusão das médias no aces-so à especialidade, o que acha?

Eu acho muito bem que haja um fator de ponde-ração da média do curso, mas isso coloca-nos uma outra questão anterior, que é se há ou não uma certa tendência em certos cursos para classificar para cima ou para baixo. Isto é: uma média de 17 em Lisboa é o mesmo que uma média de 17 em Coimbra? É claro que há fórmulas estatísticas para equiparar, ver onde estão as medianas, as médias e as modas, e puxar para a direita e para a esquerda.

Concordo que a média entre, mas tem que se pen-sar muito bem se não há médias excessivamente me-xidas para baixo e para cima por hábitos locais na classificação.

E a qualidade do serviço médico que atualmente é considerado bom em Portugal vai começar a diminuir?

Corre-se o risco de alguns indicadores de saúde começarem a piorar, até a esperança média de vida. Alguns mais pessimistas temem que, fruto da crise, de maus hábitos de vida, má alimentação, stress, an-gústia, desemprego, mau acesso a cuidados de saúde, se tudo isso continuar acontecer, que alguns dos in-dicadores de saúde conhecidos ( e há muitos que não conhecemos…), passados alguns anos, venham a re-fletir isso. Oxalá que não, que esteja enganado.

Há algum tempo atrás falou-se nos media em contractos temporários de médicos…

Sim, houve empresas que contrataram médicos para fazer tarefas, mas isso é o destino mais negativo possível. Esta foi uma das razões por que foram feitas greves e manifestações e penso que o Ministério per-cebeu que foi um total disparate.

Acha que não vai avançar?Não. Não me parece que ninguém vá contractar

um médico como um técnico desumanizado e subs-tituível e descartável, como quem vai trabalhar à peça.

Em relação à ma distribuição de médicos pelas especialidades, acha que há alguma solução?

As soluções são sempre as mesmas: incentivo ma-terial, financeiro, na progressão na carreira, logístico – o Ministério pode dar casa às pessoas, no caso de jovens médicos, proporcionar emprego ao conjugue na mesma região, talvez um subsídio de instalação no

Transmissão Oral

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interior.

Sente que há algum esforço nesse senti-do?

Não, de maneira nenhuma. Não, mas é importan-te que haja se querem que a pessoa se fixe em Ponta Delgada, Bragança ou Portalegre, tem que haver um contexto de incentivos para isso.

Em relação às vagas de entrada no curso de medicina acha que vão começar a dimi-nuir?

Acho que deveriam, infelizmente, não sei se haverá essa coragem, porque os políticos têm medo que isso seja impopular e têm medo que depois, pessoas deso-nestas e demagogos, numa campanha eleitoral, criti-quem o governo e digam: “vocês reduziram o número de médicos em Portugal! Estão a dar cabo da saúde!”.

Porque haverá sempre gente desonesta ou idiota que dirá isso e, de facto, este argumento, que é desonesto, pode confundir muita gente. A sensação que eu tenho é que os políticos têm medo de serem acusados disto ou então não percebem que estão a causar um proble-ma gravíssimo que é o virtual excesso de médicos em Portugal. Não sei se haverá essa coragem, oxalá que sim.

Acha que os hospitais privados podem ser a solução?

Haverá sempre pessoas que arranjam emprego nos privados, mas não me parece que haja agora um nú-mero de vagas tão grande por preencher nos privados.

Obrigado.

Transmissão Oral

Sentes que a ANEM tem poder junto dos organismos decisores?

Sim, na medida em que nós temos sempre uma perspectiva diferente: alertamos as entidades que es-tão a decidir para outras perspectivas que eles nunca consideraram e que realmente depois vêem que fazem sentido. Eles estão a ver do lado de cima e nós estamos a ver do lado de estudantes que é quem vive isto no dia-a-dia e quem conhece melhor a realidade.

A manifestação dos estudantes de medici-

na em Maio deste ano, teve impacto?Acho que o impacto principal da manifestação não

foi tanto nos órgãos decisores, mas sim junto do pú-blico: demonstrar que afinal nós não estamos assim

tão bem quanto isso e há realmente muitos médicos. Contudo, da parte do ministério não houve respos-ta. A opinião pública é o nosso principal aliado e se a conquistarmos, os órgãos decisores virão atrás.

Qual é o panorama actual da profissão médica em Portugal?

Primeiro, não podemos esquecer o contexto social em que estamos. Tal como muitas outras profissões estão mal, a nossa também. É uma profissão depen-dente do estado do financiamento público. Por outro lado, ainda é uma profissão prestigiada, uma profis-são respeitável. Em termos de empregabilidade é uma profissão que está cada vez mais saturada e cada vez vai ser mais difícil para os futuros médicos encontrar emprego em Portugal. Há mais médicos a procurar al-ternativas lá fora porque a nossa situação também se traduz em piores condições de trabalho cá.

Queres esclarecer melhor o conceito vi-gente da “falta de médicos”?

A ANEM tem alertado há muito tempo: nós não temos uma falta de médicos em número absoluto, nós temos uma má distribuição dos médicos por região e por especialidade.

Mas as vagas do internato não estão de acordo com as necessidades do país?

As vagas do internato normalmente estão mais associadas àquilo que é a capacidade formativa, do que propriamente às necessidades do país. Se há uma especialidade que tem mais médicos, é natural que

Manuel Abecasis - Presidente da ANEMEntrevista realizada no dia 5 de Novembro

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#19 des1biga 31

Transmissão Oraltambém haja uma maior capacidade de formação. E assim vão sempre havendo cada vez mais médicos na-quela especialidade. Se há outra especialidade onde há poucos, eles estão muito mais distribuídos, têm muito mais trabalho, estão a acumular mais funções, o que não lhes permite ter mais capacidade formativa.

Concordas com a alteração na Prova Na-cional de Seriação?

A actual prova de seriação é aquela que todos nós conhecemos – o Harrison – e que tem todos os defei-tos que nós conhecemos, como perguntar coisas que não têm qualquer interesse na prática clínica futura. Tem uma coisa muito boa e que é importante preser-var que é o facto de ser igual para todos. Mas de resto, a prova não é boa e precisa de ser revista. Contudo, convém que a nova prova não perca as qualidades que esta tem: a equidade de condições, a possibilidade de uma revisão de prova e contestação dos resultados. Neste sentido é importante que haja um processo de revisão e de definição do novo modelo de PNS. Não é claro qual vai ser o novo modelo de prova e mesmo o modelo que que parece ser favorito (National Board Medical Examination – NBME), tem alguns proble-mas.

Em que ano se prevê a implementação des-ta prova?

Saiu presentemente um despacho, por parte do Se-cretário de Estado da Saúde e do Secretário de Estado do Ensino Superior que diz precisamente que será um novo modelo a implementar me 2015. Portanto para as pessoas que vão ingressar no internato médico em 2016.

E em relação ao término do ano comum, supostamente previsto para 2015?

O grupo de trabalho recomenda que o ano comum se extinga tendencialmente a partir de 2015, defen-dendo que a coexistência deste com o 6º ano é redun-dante. Mas, o 6ºano um ano é importante, é muito diferente entre todas as escolas e mesmo dentro da mesma escola nem todos têm as mesmas oportunida-des. Assim, o ano comum acaba por ser um ano que se consolida a prática clínica, adquirindo-se mais co-nhecimentos técnicos. No entanto, não acredito que isto seja realizável já em 2015, porque neste momen-to o grupo de trabalho reconhece que o 6º ano não substitui o ano comum, não dá a prática clínica que é necessária para prosseguir a formação, e portanto tem de haver um esforço muito maior, no sentido que o 6º ano se torne mais profissionalizante. Tenho muitas dúvidas e reservas que isto aconteça já em 2015 ou,

até, que aconteça no geral.

Se fosse implementado em 2015, 2 anos a concorreriam com provas diferentes?

Isso também é uma questão que o Ministério, neste momento, não tem resposta e não sabe.

Em relação à inclusão das médias no aces-so à especialidade?

A ANEM tem-se posicionado contra a inclusão das médias, porque tem sido difícil encontrar um méto-do que ponha as médias de todas as escolas de forma igual. Neste momento voltámos a procurar e a fazer um esforço muito grande junto de todos os estudan-tes para encontrá-lo. Chegámos à conclusão que não só somos contra porque não conseguimos encontrar um método, mas porque pensamos que à porta do in-ternato médico não faz sentido incluir a nota final do curso.

Que implicações pensas que estas altera-ções possam ter no futuro?

Por um lado, a extinção do ano comum iria dimi-nuir a despesa na formação de internos. No entanto seria preciso alterar o plano de formação de cada es-pecialidade, de modo a incluir mais formação genera-lista no início da especialidade. Quanto à nova PNS: esta poderá ser vantajosa, trazendo um 6ºano mais motivado e mais rico em termos de aprendizagem técnica e prática. Mas, se a nova prova não tiver em conta bibliografia, não houver possibilidade de revi-são de prova, de contestação das perguntas, isso vai constituir uma maior frustração dos estudantes, pois essas condições acabam por dar segurança e trans-parência à prova. Os resultados são públicos, as res-postas são públicas e toda a gente pode comprovar se a resposta está certa ou não. Isso tem implicação no momento da prova e também para as pessoas que se estão a preparar-se para a prova, porque é uma forma de conhecerem a prova antes de a fazerem.

Mas há hipótese de criar uma prova por-tuguesa?

Sim, isso é o que este grupo vai ter que definir. Para isso têm que existir pessoas preparadas e com dispo-nibilidade para fazer isso.Um dos principais proble-mas da atual prova é precisamente isso: não o fazem profissionalmente. O Harrison é feito por médicos com outros cargos e que têm o tempo muito preen-chido e sem preparação própria para fazer perguntas.

Em relação ao concurso B , falou-se tam-bém da sua extinção este ano.

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É um concurso para quem quer mudar de especia-lidade com poucas hipóteses de o realizar, nem é ga-rantido que a especialidade que os candidatos querem esteja disponível. O que o grupo de trabalho propôs foi que os candidatos sejam integrados no mesmo mapa de vagas que os candidatos do concurso A, mas limitando a possibilidade de escolha a 5% das vagas totais. Ou seja, eles podem ir para qualquer especia-lidade à partida, mas só podem ocupar 5% das vagas disponíveis. Até agora o concurso B tinha cerca de 100 vagas reservadas, agora passariam a ser 5% das vagas do concurso A.

Que implicações de um ano em que ocor-resse a fusão de dois anos?

N.A.-.Já aconteceu antes, quando o internato geral passou a um ano, mas na altura eram cerca de 700 pes-soas por ano, deu cerca de 1400 pessoas. Atualmente estão a entrar entre 1500 a 1600 por ano, já não é pro-priamente a mesma escala. A Administração Central do Sistema de Saúde já está a ter dificuldades em co-locar todos os candidatos, portanto se chegarmos a 3000 não vão haver vagas para todos.

E a possibilidade de prosseguir essa for-mação noutro país é viável?

É solução para algumas pessoas, mas o estrangei-ro não vai acolher 1500 pessoas num ano. Até por-que nós não somos o único país que produz médicos a mais. Não é uma coisa muito tradicional na europa e nos países desenvolvidos, mas por exemplo em países da América Latina e Ásia é muito comum.

E a questão de abrir vagas no privado, há essa possibilidade?

O grupo de trabalho analisou também a possibili-dade de abrir vagas no privado e chegou à conclusão que era possível, há instituições que têm capacidade formativa. Mas não será solução porque representam apenas 1% das vagas, se formos otimistas 5%, o que são cerca de 70 vagas.

E relativamente à equitatividade à for-mação estatal?

Seria necessário a ordem dos médicos avaliar o internato, garantindo igualdade de condições, venci-mento, formação e oportunidades.

Achas que as pessoas estão informadas acerca destas questões?

Têm sobretudo medo e há muitas razões para isso: muita incerteza, muitas coisas que considerávamos como certas e que agora não são. Mas pessoas estão

muito mais informadas.

Achas que as pessoas externas a medicina têm essas ideia?

Essa é a nossa grande batalha: tentar informar a população do que se passa. Já passa alguma ideia de que não somos aquilo que éramos há algum tempo.

As faculdades têm mantido ou reduzido vagas?

As faculdades têm mantido ou aumentado vagas.

E qual é a opinião do grupo de trabalho acerca disso?

Devem reduzir. Muitas faculdades têm mais pes-soas do que aquelas que conseguem formar. Vamos lançar um estudo sobre o nº de alunos /tutor nos anos clínicos nas várias escolas médicas. Temos nºs que chegam a ser muito preocupantes: 20 alunos/ tutor. Portanto não estão a receber conhecimento porque o que se pretende com um tutor é ter um ensino mais próximo, aprender com as atitudes dele, com os gestos dele… Com 20 pessoas isso não é possível. Além de não terem contacto com os doentes, quando tiverem de colher uma história clínica, só um ou dois colegas vão falar com o doente e as outras não vão ter oportu-nidade de fazer nada.

E relativamente às escolas médicas para licenciados de Aveiro e do Algarve?

A escola de Aveiro foi avaliada pela A3ES que deu um parecer desfavorável, não acreditando a Escola. Assim acredito que a escola será encerrada em breve. Recomendou-se ainda que os alunos fossem distri-buídos por outras faculdades. Neste momento estão à procura de faculdades disponíveis para receber estes alunos. Esperamos que as faculdades estejam dispo-níveis para ajudar, é uma falha do Estado que tem um “contrato” com eles [os estudantes] e que agora tem de o reparar. A do Algarve também foi avaliada, ainda não foram publicados os resultados. O que sabemos é que terá algumas recomendações mas que será acre-ditada.

Um comentário final.Há muitas coisas que vão a ser discutidas e nós

fazemos um esforço para informar toda a gente, mas todos têm de querer estar informados e de esclarecer as suas dúvidas. Que queiram dar a opinião mas não deixem de o fazer numa perspetiva a longo prazo e de perceberem realmente o que é o mais importante. No fundo quero deixar um apelo à participação: partici-pem!

Carreto, Mª Emília Pereira, Sara Nunes

Transmissão Oral

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O Português e o Mundo, Guilherme Bernardo |Bons Sons, Carreto |

Uma Questão de Liberdade, Erasmus, Ricardo Dias |

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Qual é coisa qual é ela que nos separa de viajar para destinos exóti-cos, muito quentes, muito frios, ou culturalmente completamente di-ferentes? Para além do famoso dinheiro, “argent” para uns, “Money” ou “grana” para outros, é o passaporte. Um pequeno caderno de cor vermelho tinto, com o brasão da república portuguesa a rasgar a capa, tal qual um submarino que emerge de um oceano, rasgando a sua su-perfície, ficando à tona daquela imensidão azul.

Primeira página: dados pessoais; nome, filiação, data de nascimento, estado civil, número de identificação. Somos um número nestes cader-ninhos. Um número que nos dá o direito de viajar, de conhecer novas terras, novas culturas, novos meios, novos ares, novas paisagens, novas pessoas, línguas, idiomas, credos, crenças, filosofias, escrita e maneira de pensar. São estas coisas e muito mais que nos fazem crescer, mudar, mutar, de dentro para fora, tal qual a lagarta que abandona o casulo após o milagre a que os cientistas chamam de metamorfose.

Pegando no caso de Portugal, este destino já não tão paradisíaco quanto isso. Fomos um país de emigrantes, nas décadas de 60 e 70. A partir de meados dos anos 80, tornámo-nos um país de imigrantes, até há bem pouco tempo, em que nos transformámos mais uma vez num país de emigrantes. Afinal de contas, o que somos nós? O que é Portu-gal?

Para mim, somos um país de trânsito, como sempre fomos desde a segunda guerra mundial. As pessoas ficam cá por tempo indetermina-do, algumas até passam a residir cá. Mas no final, e para a maioria das pessoas, somos um local de passagem. Em que é que isto se traduz? Tra-duz-se na nossa inabalável vontade de conhecer novos horizontes, de voar, de conhecer o mundo. Tal como os nossos antepassados, estamos agora a descobrir o mundo. No final, tudo se traduz no regresso a casa.

Porque para nós, portugueses, o mundo é a nossa casa.

Guilherme Silva “The Jinx” Bernardo

O Português e o mundo O caso do passaporte vermelho

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Bons Sons

Quem já foi a um festival de verão, já sabe como é: ver concertos ao longe ou ser com-pletamente esmagado na primeira fila, beber

cerveja até vomitar as refeições de 5 euros compradas nas barracas e passar noites em branco a ouvir “Oh Eeeeelsaaaa!”. Pois é, o Bons Sons não é nada disto.

A cerca de 5km de Tomar existe uma aldeia, Cem Soldos. Não se deixem intimidar pelo termo “aldeia” e pelos seus 1000 habitantes, pois há bastante vida e cul-tura nesta terra, começando pelo festival Bons Sons que ocorre a cada 2 anos, tendo sido 2012 a sua 4ª edição.

Em cartaz está em destaque a música portuguesa (não confundir com música popular portuguesa) e duas bandas espanholas convidadas, pelo preço de 35 euros (25 se comprado alguns meses antes). Bandas como Linda Martini, Paus, A Naifa, António Zambujo e Filho da Mãe mostram que existe talento dentro das nossas fronteiras.

Segue-se um pequeno comentário a algumas das atuações que se fizeram ouvir nestes quatro dias de festival.

Nuno PrataSentado à sombra, o público esperava os primeiros

acordes de Nuno Prata, enquanto este afinava pacien-temente a guitarra e desligava o som do seu telemóvel. E foi isso mesmo que aborreceu as 50 pessoas que as-sistiam: os acordes que se repetiam no mesmo ritmo e harmonia, as estruturas chatas, com letras algo enfa-donhas, sem uma melodia ou um dedilhar de guitar-ra. A genialidade dos Ornatos Violeta não vem, sem sombra de dúvida, deste músico.

Capitão FaustoSeguiram-se os Capitão Fausto, um grupo de miú-

dos que prometem dar uma sonoridade mais moder-na ao rock português. A voz algo rouca e atrevida de Tomás combina na perfeição com as linhas melódicas alegres dos sintetizadores de Francisco e das guitarras,

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num ritmo e ambiente geralmente disco, que pôs o público a dançar e a cantar em loop “põe a mão na Teresa e os pés no chão”.

Filho da MãeSozinho em palco, o Filho da Mãe (diz que não é

o único) mostrou que é possível criar música bastante criativa apenas com uma guitarra e uma caixa de efei-tos. Dedilhando a velocidades supersónicas e gravan-do linhas de guitarra por cima de outras, encheu as ruas que rondavam o Palco Giacometti com um som melancólico e vontade de ouvir mais.

See you later alligatorTrata-se de uma peça de teatro que, infelizmente,

não tive oportunidade de ver devido ao espaço limi-tado do auditório. Contudo, o facto de ser uma obra inspirada nos trabalhos de Franz Kafka, René Magrit-te, Samuel Beckett e Davide Enia garante que este é,

provavelmente, um grande espetáculo. Caso voltem a ver este nome, give it a shot.

El NaánUma das bandas espanholas convidadas, apresenta-

ram-se em palco com instrumentos peculiares e uma sonoridade folk bastante curiosa. Estiveram sempre acompanhados de outros elementos complementares à música, como um pequeno teatro de fantoches, pro-jeção de imagens surrealistas (nas quais se destacam as pinturas de Frida Kahlo), o vídeo de uma irlandesa a cantar, entre tantos outros pormenores que fizeram este espetáculo multimédia deveras agradável.

A NaifaAntes mesmo que começassem a tocar, já se sentia

o ambiente sombrio e depressivo que a banda carrega

consigo. Vieram apresentar o seu novo álbum, “Não se deitam comigo corações obedientes”, intercalando--o com temas mais antigos. A voz de Maria Antónia Mendes nem sempre se conseguiu entender, devido a problemas técnicos no som, o que é pena dado este ser um projeto que vive muito da letra das músicas.

O concerto não acabou sem se fazer ouvir uma música dedicada ao ex-membro João Aguardela, ao que se ouviu alguém gritar “Dedica uma a mim!” – (inserir aqui dura crítica à nova geração de jovens ig-norantes).

António ZambujoPara quem gosta de Fado mas está farto da mes-

ma estrutura de sempre e os temas que se repetem, então este é um artista a ouvir. Sem os músicos acom-panhantes habituais, Zambujo reinventou a saudade, o fado, os temas que afligem a população portuguesa, muitas vezes com ironia e algum atrevimento. Não

se fez aguardar muito no encore, mas foi sempre for-temente aplaudido, tanto pelos mais velhos como os mais novos.

Linda MartiniA noite esperou muito pela entrada em palco des-

tes habitantes da Casa Ocupada. O público, sempre fiel, cantou em plenos pulmões temas como “Amor Combate”, “Belarmino” e “Mulher a Dias”. Um con-certo cheio de energia, distorção e letras gritadas, sem faltar o instrumental “Este mar”, mergulhando o pú-blico em escuridão e flashes de luzes vermelhas, com riffs pesados e bateria forte.

PausDuas baterias em confronto, um teclado e uma gui-

tarra. Um arranjo de instrumentos que pode parecer

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estranho, mas cujos fãs já sabem que é fenomenal. O espetáculo foi intenso, com ritmos de Math Rock de time signatures fora do habitual e sons que relembram os Battles, mas mesmo assim com uma personalidade muito própria. O climax foi, sem dúvida, a “Descruza-da”, quando Joaquim largou as baquetas da sua bateria e se levantou para nos gritar “Na minha cara um olhar de faca. Na minha alma suada, o gume equilibrado”.

The Legendary TigermanFaltavam 30 minutos para a meia-noite e a taxa de

alcoolémia já ia alta, pelo que é difícil de descrever exatamente o que aconteceu. No entanto, um ambien-te western saía das mãos, pés e boca deste one-man--band, que nos cantava em inglês enquanto dedilhava a sua guitarra e produzia ritmo com os pés na bateria.

Muitos outros artistas mereciam destaque, mas este artigo já vai longo e o leitor já está cansado. Para além da música, o festivaleiro podia ainda fazer passeios de

burro, assistir a curtas-metragens e ver exposições. E já que falámos tão bem, há que apontar alguns pro-blemas que passaram pela própria organização: ao início sentimos que a população de Cem Soldos (e os próprios organizadores do evento) se divertiam a dar indicações contraditórias e a colocar setas que não davam a lado nenhum (até que percebemos que eles sabiam quase tanto como nós); para além disso, os preços da restauração (geralmente artesanal, tirando uma ou duas barracas) estavam exageradamente ele-vados, com cervejas a 1,30€ e bifanas a 2,50€ (o que vai contra o próprio conceito do festival).

Em resumo, é um festival diferente do habitual, bom para quem quer ouvir boa música e viver o cam-pismo e o espírito festivaleiro sem alguns dos dissabo-res que se sentem noutros eventos do género.

Carreto

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O homem é o único animal que depois de nas-cer tem que inventar a sua vida: ele nasce completamente nu, sem atributos naturais

que lhe indiquem concretamente a razão pela qual nasceu, e, portanto, abandonado pura e simplesmen-te à sua razão, ele tem que descobrir através dela um determinado propósito e sentido para a sua vida. Um homem que viva apenas segundo a lei dos animais sente cair sobre si um absurdo maior do que o próprio sentido absurdo da vida. Portanto, se para alguma coi-sa o homem nasceu foi para se inventar a si próprio. A essa invenção de si próprio, chamamos projecto de vida. A nossa vida é, assim, um projecto que se vai de-senhando livremente sobre uma folha de papel bran-ca que tem os seus próprios limites mas que, dentro dela, tudo é ainda sempre possível e indeterminado. À medida que desenhamos o que somos, vamos vendo que há traços que já não fazem sentido e que já não se ajustam ao que pretendemos ser. A maior dificuldade na invenção do ser humano é a sua incapacidade, por vezes, de se livrar destes traços incómodos que já não fazem sentido dentro do projecto actual. É aqui que Sartre nos vem libertar e, ao mesmo tempo, condenar à liberdade. O texto que aqui me proponho escrever não tem como objectivo expor toda a teoria de Sartre: não só perderia a grande parte dos leitores pelo cami-nho assim como acabaria por fugir do meu. O que me proponho fazer aqui é expor duma forma simples o ponto de vista de Sartre e transpô-lo para a minha ex-periência de Erasmus enquanto momento de ruptura com o meu projecto inicial.

Segundo Sartre, esta temporalidade a que perten-cemos não é possível ser encarada a partir das suas três dimensões: o passado, o presente e o futuro. “O único método possível para estudar a temporalidade é abordá-la como uma totalidade que domina as suas estruturas secundárias e que lhes dá um sentido.” Esta totalidade é a nossa consciência e Sartre refere-se a ela como o Para-si para a distinguir do Em-si. Esta distin-ção serve para ilustrar a natureza da consciência que não é nada mais que uma simples projecção de nós próprios, de isto que nós somos enquanto coisas que existem. Daí que, para Sartre, a existência precede a essência. Isto é, antes de sermos capazes de definir em nós uma essência, já nós existíamos segundo o modo de ser da coisa, do Em-si. Esta observação é pertinente pois, de facto, não consigo responder para mim mes-mo a seguinte pergunta: a partir de quando comecei a ser? Antes de me sentir ser eu já existia mas desco-nhecia a minha própria essência, não tinha consciên-cia de mim próprio, desta projecção de mim a mim mesmo. E depois, quando coloco uma nova pergunta, a tal que se segue: então afinal o que sou? Sou obriga-do a constatar que o que sou é como que um nada que se tenta passar por uma coisa, e daí que aquilo que sou não é essa coisa que penso ser mas a projecção dessa coisa que eu já era ainda antes de me sentir ser. Con-trariamente ao Em-si, à coisa, àquilo que é, o Para-si não pode ser definido antes de existir visto que ele se projecta, se escolhe e nega sempre o que ele é para sur-gir no ser que afirma. O Para-si nunca é a consequên-cia de causas antecedentes, mas de escolhas que fez no

Uma questão de liberdade, ErasmusPeregrinação

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momento em que outras possibilidades se ofereciam. Assim sendo, o sentido daquilo que me tornei nunca é definitivo: enquanto me encontrar neste mundo eu te-nho a livre obrigatoriedade de me escolher. Enquanto o Para-si não for abolido na morte, uma nova escolha pode sempre reorientar o sentido daquilo que ele é. O sentido aqui é sinónimo de projecto: desta projecção de nós próprios orientada para dar um rumo à nossa existência. E este projecto não tem, portanto, nada de definitivo. Ele é perpetuamente modificável. O Para-si pode a todo o momento modificar as escolhas do que ele é, basta para isso que escolha um outro projecto e que ele negue o que foi através do instante que cria uma nova temporalização. O Para-si é uma tempora-lidade absolutamente livre, isto é, uma temporalidade onde tudo a todo o momento é possível, uma liberda-de projectada e assombrada pelo espectro do instante. Esta liberdade conduz Sartre a defender que o passa-do não é determinado: o homem pode escolher o seu passado, pois ele escolhe e constrói o seu passado em função daquilo que ele projecta ser. Ele não reinventa o seu passado, mas ele escolhe guardar deste os acon-tecimentos em função daquilo que ele quer ser. Um tal conhecimento não é de todo apaziguador: qualquer que seja o meu passado eu sou livre e posso mudar radicalmente o projecto através de um novo acto, pois ninguém é definitivamente o que quer que seja. Esta liberdade é angustiante na medida em que a consciên-cia aspira a viver segundo o modo do Em-si, da essên-cia uma vez por todas estabelecida. Cada consciência sabe, angustiadamente, que um acto é sempre possível e necessariamente possível dentro do qual ela deverá se escolher. A angústia é um medo de si próprio, o medo da própria liberdade, visto que afinal não so-mos livres de não sermos livres. A consciência nega ao mesmo tempo que deseja a liberdade. É portanto compreensível que, a consciência angustiada pela sua própria liberdade, se tende a assegurar interpretando--se sob a forma do Em-si e que faça tudo para se es-quecer, por vezes, que é livre.

Agora que sabemos qual é a posição de Sartre so-bre a liberdade e de que forma inventamos um pro-jecto de vida à medida que nos escolhemos em cada situação, é chegado o momento de reflectir em que medida a experiência Erasmus pode mudar radical-mente o sentido de uma vida, de um projecto, de um Eu. Gaston Bachelard diz que “todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços onde sofremos e também obtivemos prazer a partir da solidão, onde desejámos a solidão, onde comprometemos a solidão são em nós inapagáveis (…) os espaços de solidão são constitutivos”. Portanto, chegamos a um pequeno quarto parisiense longe de todo o mundo que conhe-

cíamos e mesmo se era o nosso sonho fazer um Eras-mus em Paris, não podemos esquecer esta realidade: durante um ano inteiro vamos ficar neste pequeno quarto, abandonado a si próprio. E é precisamente neste abandono inicial que sentimos o peso negativo da liberdade a que se refere Sartre: a constatação de que afinal a vida é mesmo só nossa, de mais ninguém. Mas o peso associa-se sempre a um contraposto de leveza interagindo sobre a mesma situação. O roman-ce A Insustentável leveza do ser de Milan Kundera é um livro que explora muito bem esta dicotomia entre o peso e a leveza do nosso ser. Portanto, o peso da liberdade, isto é, o peso de estar sozinho na vida (que não é o mesmo que estar sozinho no mundo), é con-traposto e balanceado pela leveza da liberdade, isto é, pela oportunidade que nós temos de negar este peso no encontro com as mil possibilidades que a vida tem. E é aqui, precisamente aqui, que nos surge a constata-ção que apesar de estarmos sozinhos na vida, de ser-mos uma entidade singular, a vida em si é múltipla cabendo apenas a nós de entrarmos, ou não, na sua multiplicidade. O Erasmus começa por ser uma expe-riência de encontro consigo mesmo e depois alarga-se e expande-se no encontro com os outros. E durante todo este processo vamos nos reinventando à medida que nos escolhemos: num lugar onde o nosso passado é desconhecido ou até mesmo aquele que é conhecido tem pouco valor para a facticidade do presente, esta-mos constantemente a reescrever uma nova história de nós próprios, a criar um novo passado que irá dar outro sentido ao futuro. Quando damos por nós, num desses dias em que nos olhamos com maior atenção ao espelho, constatamos que a imagem que nela surge nos parece ironicamente estranha, e até nos pergun-tamos: “será que sou mesmo eu que estou aqui?” E a resposta é que sim, somos mesmo nós, a única dife-rença é que estamos a viver outra vida segundo outro projecto.

A experiência Erasmus tem dois momentos: o de partida e o de regresso. Na partida sabemos bem quem vai mas não sabemos bem o que nos espera, e no regresso sabemos bem o que nos espera mas já não sabemos bem quem volta. E é aqui, outra vez, que te-remos que nos escolher.

Ricardo Pereira Dias

[email protected]

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Ilustração de Gonaçashttps://www.facebook.com/Gonacas

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