2 crianças, televisão e valores morais
TRANSCRIPT
2
Crianças, televisão e valores morais
Neste capítulo encontra-se uma revisão de literatura sobre os temas
envolvidos na pesquisa. Primeiramente apresento os resultados de pesquisas
realizadas anteriormente sobre crianças e televisão. Em seguida discuto alguns
conceitos relacionados ao estudo da moralidade, apresento algumas pesquisas
sobre o tema, e, finalmente, a concepção de criança que orienta o trabalho.
2.1 – Crianças e televisão: pesquisas anteriores
Os primeiros estudos sobre a relação entre crianças e televisão, nos
Estados Unidos e em países Europeus nasceram não de uma preocupação
acadêmica, mas de uma demanda da sociedade, preocupada com os efeitos
deste novo meio de comunicação, seja pelo seu conteúdo – violento, sexual, que
induz ao consumo – seja pelos danos causados pela sua forma – problemas de
visão, do joelho ou coluna pelo prolongado tempo em uma posição, etc., ou
ainda para preservar uma “alta cultura”. A urgência em agir e em proteger as
crianças para não serem vítimas dessas situações acabou por modelar as futuras
agendas de pesquisa sobre o tema. Isto aconteceu, não apenas com a televisão,
mas com os estudos sobre mídia de uma maneira geral, com os gibis e romances
rosa, o rádio, o cinema e cada novo meio que surgia. (DUARTE, 2007; PECORA,
et.al, 2007)
Pecora, Murray e Wartella (2007) realizaram uma revisão de 50 anos
de pesquisas sobre televisão e crianças nos Estados Unidos, iniciando no final da
década de 1940, junto com o advento da própria televisão, até os primeiros anos
do novo milênio. Segundo Pecora (2007), a cada década o número de pesquisas
aumentava e novos temas eram incorporados: dos primeiros estudos médicos,
no final dos anos 1940, passando pelos impactos na escola, padrões e
16
estereótipos de gênero e etnia, violência, consumo (primeiros estudos na década
de 1960), pesquisas sobre obesidade, a partir dos anos 1980, imagem corporal e
distúrbios alimentares, a partir da década de 1990, até as crianças multitarefas e
a interação delas com a TV e outros meios, além da mediação dos pais e co-
telespectadores no início deste milênio.
Nestes 50 anos, tanto a televisão quanto as crianças transformaram-se
drasticamente. Para a autora houve uma sutil mudança nas pesquisas sobre o
tema entre as décadas de 70 e 80, quando a televisão e outros meios de
comunicação de massa passaram a ser vistos como produtos culturais. As
pesquisas começaram a utilizar as teorias de Piaget e Bandura, embora as
tradicionais pesquisas de efeito não tenham desaparecido. A autora afirma,
ainda, que a década de 1980 foi marcada por livros que apontam uma mudança
de natureza na infância, a partir da televisão e dos demais meios de
comunicação de massa, que transformam suas atividades de lazer (Postman,
Meyrowitz e Elkind).
Pecora traça também um panorama da programação televisiva voltada
para o público infantil nestes 50 anos. No inicio era uma programação destinada
a preencher os horários ociosos e de pouca audiência do público adulto,
geralmente na hora do almoço ou no final da tarde, aos poucos o sábado de
manhã foi sendo incorporado e o número de horas semanais da programação foi
aumentando. Surgiram os desenhos animados, aperfeiçoaram-se as técnicas, a
criança passou cada vez mais a ser vista como consumidora. Na década de 70,
em consonância com as discussões da época, minorias étnicas passaram a ser
representadas, como em Globetrotters, passou a haver também uma maior
diversidade de gênero, antes dominado pelo sexo masculino. Surgiram a TV à
cores, nos anos 1960, depois a TV à cabo, nos anos 1980, e os canais com
programação 24 horas destinada às crianças.
A violência é um tema muito presente nas pesquisas estadunidenses
sobre crianças e televisão. Murray (2007) faz uma revisão de literatura sobre o
tema, onde apresenta resultados de diversos estudos – pesquisas de campo, de
laboratório, estudos quantitativos e longitudinais. Entre as principais conclusões:
17
crianças que assistem a conteúdos violentos na televisão demonstram um
aumento de comportamento agressivo e este efeito é duradouro. O conteúdo
violento afeta atitudes, valores e o comportamento dos telespectadores,
causando agressividade (uso da força para a resolução de problemas),
insensibilidade (tolerância de níveis de violência na sociedade) e medo (mean
world syndrome/risk of victimization).
Se por um lado a TV foi vista como um perigo para as crianças, mal a
ser combatido, por outro, havia também quem a visse como potencial para o
bem social, como a cura dos males da sociedade, entre eles a delinqüência
juvenil.
Segundo Pecora (2007) houve, desde o início, um número considerável
de esforços em usar a televisão como uma ferramenta educacional. Fran Norris,
o criador de um dos primeiros programas educativos, na década de 50,
vislumbrou a possibilidade de um “jardim de infância no ar”, ao ver sua filha
cantando os jingles da televisão. Muitos desses programas se pareciam em vários
aspectos com um jardim de infância, com artesanato, histórias, teatro, músicas,
etc. Foi na década de 1960, no entanto que surgiram experiências mais
significativas neste aspecto, com “Mister Roger´s Neighborhood” e “Sesame
Street”.
O programa “Sesame Street” foi objeto de muitas pesquisas nos
Estados Unidos, entre estudos longitudinais, surveys nacionais e pesquisas
experimentais, que comprovaram um impacto positivo na aprendizagem das
crianças. (HUSTON, et. al., 2007)
O projeto “Early Window” (WRIGHT, HUSTON, et al., 2001 ), dos
pesquisadores do CRITIC - Center of Research on the Influences of Televisiono n
Children – por exemplo, foi um estudo longitudinal de 3 anos, com 232 crianças
de 2 e 4 anos, de famílias de baixa renda. Entre as conclusões do estudo está o
fato de que, na relação criança/televisão/desempenho escolar deve-se levar em
conta, não apenas o número de horas que a criança passa assistindo à televisão,
preocupação central de muitos pais, pediatras e também de pesquisas
anteriores, mas o conteúdo dos programas assistidos. Os pesquisadores
18
encontraram uma associação positiva entre assistir a programas educativos e ter
um bom desempenho em testes escolares e de vocabulário. Já assistir a
programas de entretenimento (destinados ao público adulto ou infantil)
contribui negativamente para o desenvolvimento intelectual, talvez, segundo os
pesquisadores, por deslocar tempo de atividades educacionais e sociais, ou por
não exigir um esforço mental e envolvimento da criança. Assistir a programas
educativos desde cedo, segundo a pesquisa, parece ter efeitos duradouros e
influenciar as futuras escolhas de programas. Os pesquisadores falam de um
efeito bidirecional: crianças que obtiveram um bom desempenho nos testes, em
uma das quatro ondas, passavam, no período seguinte, a ver mais programas
educativos, assim como crianças que obtiveram um baixo desempenho,
passaram a assistir mais desenhos animados e programas gerais. Os autores
lembram, entretanto, que o foco da pesquisa foi “habilidades escolares”, mas
que crianças aprendem muitas outras coisas com a televisão, além disso, a
televisão não pode ser vista isolada de seu contexto e variáveis importantes não
foram controladas, como o nível de escolaridade dos pais, o incentivo a ver
televisão, o trabalho da escola, etc.
Outra pesquisa, Topeka Study, foi realizada com 271 crianças entre 3 e
5 anos de idade, também em perspectiva longitudinal. O desenvolvimento do
vocabulário foi notado em pré-escolares independente da formação dos pais,
gênero ou encorajamento dos pais para que o programa fosse assistido. O
mesmo desenvolvimento, entretanto, não foi observado entre as crianças a
partir dos 4 anos. Crianças que assistiram Sesame Street também eram as que
mais se dedicavam à leitura de livros de maneira espontânea, diferente dos que
lêem apenas ou que são indicados pela escola. (RICE et al., apud
HUSTON,BICHAN, LEE, WRIGHT, 2007)
O programa Sesame Street foi adaptado para outros países onde
obteve altos índices de audiência, assim como nos Estados Unidos, mas não
deixou de receber pesadas críticas. Entre elas a de pretensão de universalidade e
um caráter verticalizado da educação (CAPARELLI, 1982). No Brasil, foi produzido
19
pela rede Globo de televisão, em convênio com a TVE-Rio, com o nome de Vila
Sésamo.
No Brasil temos produzido um número considerável de pesquisas
sobre a relação de crianças e televisão, seja abordando diretamente essa relação
(PEREIRA, 2003; SALGADO, 2005; FERNANDES, 2003; DUARTE, 2008;
SACRAMENTO, MIGLIORA 2007; MOURA e GARCIA, 2007; ANDRADE, 2008;
TAVARES, 2009; DELORME, 2008), seja indiretamente ao enfocar a interação de
crianças com as mídias em geral, ou ainda ao refletir sobre a televisão e a
sociedade com um todo (FISCHER, 2007; BELLONI, 2004; JOBIM E SOUZA,
GAMBA JR., 2002; MACHADO, 2000 e outros)
Aqui apresentarei algumas pesquisas nacionais recentes que, de certo
modo, ajudaram a desenhar meu foco de pesquisa. Rita Ribes Pereira (2003) e
Raquel Salgado (2005) pesquisaram a relação de crianças de 5/6 anos com a
televisão, em uma escola de Educação Infantil, a primeira focando os anúncios
veiculados entre a programação e a segunda, os heróis dos desenhos animados.
Ambas defendem a necessidade de diálogo entre adultos e crianças, pautado em
uma relação alteritária. Segundo Pereira, a publicidade (que apareceu na fala das
crianças da pesquisa muito mais pelo merchandising do que pelos comerciais)
tradicionalmente é vista como a grande vilã dos apelos ao consumo, mas sua
força reside na falta de diálogo sobre o tema. “Não há como pensar o significado
que a mídia televisiva – e, nela, a publicidade – vem assumindo no cotidiano das
crianças, sem trazer para a reflexão, junto disto, os reordenamentos das relações
entre adultos e crianças, seja na família, seja na escola.” (2003, p. 246)
Salgado, por sua vez, discute os novos contornos que vêm assumindo
as relações entre adultos e crianças, a partir dos heróis dos desenhos animados,
cada vez mais representados por crianças, fortes, poderosas, corajosas, em
contraste com adultos indefesos e incompetentes, geralmente salvos por elas.
Há também a diferença entre os heróis de animação japonesa, cujos poderes são
resultados de um esforço pessoal, obstinação, sofrimento, mérito, ao contrário
dos heróis ocidentais, geralmente agraciados com poderes mágicos. Segundo a
pesquisadora, “os desenhos animados têm desnudado o fato de que tanto a
20
infância quanto a vida adulta não podem mais ser concebidas e tratadas como
mundos que conservam características rígidas e perenes” (2005, p. 233). Se por
um lado crianças se desfizeram de algumas amarras, como a de ser
representadas por uma imagem inocente e indefesa, cria-se outras, pelas idéias
que perpassam a cultura lúdica envolvida nas narrativas dos desenhos animados
(como nos jogos Yugioh), pautadas no incremento da produção e circulação de
capital e bens simbólicos, na expertise, no empreendedorismo, no consumo cada
vez maior de informações (que servem de passaporte para o jogo e conferem
status ao jogador). Para Salgado, temos uma desafiante tarefa, enquanto
educadores,
“que não se restringe a aprender a manipular com
mestria as ferramentas tecnológicas hoje disponíveis, como o
computador, a Internet e os jogos eletrônicos, ou assistir aos
programas televisivos como mero entretenimento ou
passatempo, mas remete ao resgate do diálogo entre as
gerações, mediado pelas novas tecnologias e discursos
midiáticos.” (ibdem, p. 237)
A pesquisadora sugere que esse resgate se dê através do lúdico,
tomando-o como espaço do trabalho pedagógico, penetrando no mundo de
brincadeiras e fantasias de crianças.
Adriana Hoffmann Fernandes (2003) pesquisou a relação de crianças
com desenhos animados. A pesquisa foi realizada em duas escolas, uma pública e
uma particular, localizadas no Rio de Janeiro e as crianças tinham entre 9 e 10
anos. Utilizando-se da teoria das mediações de Orozco Gomes como referencial
teórico e metodológico, a autora chega à conclusão de que os usos culturais da
TV e as interações com os colegas da escola foram mediadores valiosos na
produção de sentidos sobre os desenhos animados. “O olhar do outro foi
constitutivo do olhar que as crianças lançaram para a TV. Nos diálogos, nos
gestos, nos sorrisos os sentidos circulavam, modificavam-se e recriavam-se”. (p.
163) Fernandes acredita que os professores podem ampliar as possibilidades de
mediação, assim como neste caso os colegas de turma foram os mediadores
21
privilegiados, oferecendo para as crianças mais momentos de troca, discussão e
criação.
Entre 2004 e 2005, o Grupem desenvolveu uma pesquisa intitulada
“crianças e televisão”, partindo de um spot televisivo que convidava crianças
entre 8 e 12 anos, da Região Sudeste, a enviar cartas, desenhos ou mensagens
eletrônicas contando o que pensam a respeito do que vêem na tevê. (DUARTE,
2008) O grupo recebeu cerca de 1.000 respostas. Segundo as análises desse
material, as crianças têm muito a dizer sobre a televisão e querem ser ouvidas,
fazem críticas pertinentes e bem elaboradas, analisam a televisão com muita
competência, demonstram um conhecimento profundo sobre ela, não apenas de
seus programas, mas também de sua lógica interna de funcionamento. Elas
afirmam gostar de quase todos os gêneros, mas queixam-se do excesso de
violência veiculado nos telejornais, apesar de afirmarem sua importância. Para
essas crianças a principal função da TV é a difusão de idéias e informações,
embora reconheçam que nem tudo o que ela ensina seja bom e que existam
canais e programas educativos, que o fazem de maneira mais eficiente, correta e
“com menos violências” (DUARTE, LEITE E MIGLIORA, 2008, p. 99). Além disso, as
crianças citam os valores como o principal aprendizado.
Em uma segunda fase, a pesquisa do Grupem deu origem a duas
frentes de trabalho, uma pesquisa qualitativa de acompanhamento da
experiência de crianças com filmes e televisão através de oficinas
(SACRAMENTO, 2008) e uma quantitativa que mapeou práticas de uso e de
convivência das crianças com a televisão, nível sócio-econômico, consumo
cultural e possíveis fontes de mediação da relação delas com a TV (MIGLIORA,
2007).
A primeira delas, sob responsabilidade de Winston Sacramento,
buscava compreender como um grupo de aproximadamente 30 crianças, de
idade entre 8 e 13 anos, que nunca havia estado em uma sala de cinema, se
relacionava com produtos audiovisuais. Após 10 meses de contatos regulares,
com idas ao cinema e exibições de diferentes filmes, o pesquisador identificou
22
atravessamentos dos modos de ver televisão frente aos modos de ver cinema.
Segundo o autor,
“os resultados dessa pesquisa parecem indicar que o consumo em larga escala de uma programação pensada, desenhada e produzida a partir das especificidades do formato televisivo tem levado as crianças, aqui pesquisadas, a mobilizar dispositivos técnico-perceptivos, formas de atenção e de monitoramento específicos da gramática televisiva, para outros formatos audiovisuais como o cinema.” (2008, p. 85)
Rita Migliora, responsável pelo estudo quantitativo da segunda fase da
pesquisa do Grupem, realizou uma pesquisa de audiência, utilizando um
questionário auto-administrável, respondido por 718 crianças com idades entre 8
e 12 anos, estudantes de escolas dos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais
(oito públicas e três particulares). Entre as conclusões do estudo, a de que, ao
contrário do que se costuma crer, as crianças não estão abandonadas à TV. A
maioria delas vê TV acompanhada de pelo menos um adulto da família, e isto
não se dá por falta de opção, já que a maioria também declarou possuir mais de
um aparelho em casa. Nas palavras de Migliora:
“Ao que tudo indica, assistem acompanhadas por escolha. Não se pode afirmar que isto significa, necessariamente, uma melhor apropriação do conteúdo dos programas veiculados na tevê ou uma maior consciência crítica sobre o que estão assistindo, mas sugere que esta apropriação se dá de forma mais ampla e diversa do que se supunha, ou seja, sem interação com outros espectadores no momento de ver; o consumo de tevê parece ser compartilhado pelos membros destas famílias.” (2007, p. 103)
A autora sugere também que quando a escola faz da TV e dos
programas televisivos um dos seus temas de debate, em vez de prescrever
formas de ver ou desqualificar os programas assistidos pelos alunos, “cria boas
condições para que as crianças ampliem e qualifiquem as considerações que têm
a respeito do que vêem.” (p. 104) Além disso, a televisão se configurou como
uma das únicas formas de consumo cultural para muitas crianças da pesquisa.
Isto nos faz refletir, como educadores, não só a respeito da desigualdade de
oferta e de consumo cultural, mas sobre o papel da escola, em incluir ou deixar
23
de fora o único (quando não o único, sem dúvida o mais presente) consumo
cultural das crianças.
Andrade (2008) pesquisou a atenção e dispersão na relação de
crianças com a TV. Foram selecionados trechos de diversos gêneros de
programas televisivos, além de comerciais publicitários, e exibidos para crianças
de 10 a 13 anos, estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental, de uma escola
pública. As crianças, que já haviam preenchido um questionário em uma primeira
fase da pesquisa, foram entrevistadas individual e coletivamente. Para efeito de
análise, foram separadas em três grupos de acordo com o acesso a bens
culturais. Durante as exibições dos programas elas podiam escolher entre
avançar o trecho ou continuar assistindo. As idéias de atenção e dispersão foram
analisadas a partir das ações de estranhamento, aceitação e rejeição dos
programas. Ações diferentes para um mesmo gênero de programa foram
notadas e estavam relacionadas aos grupos divididos de acordo com o acesso
aos bens culturais (o grupo com maior acesso aos bens culturais apresentou
maior rejeição à telenovela, enquanto nos outros grupos a aceitação foi maciça).
Os programas educativos foram rejeitados pela maioria das crianças, que
disseram também não gostar do canal onde eram exibidos.
Tavares (2009) realizou, entre 2005 e 2007, uma pesquisa com crianças
do 5º ano do Ensino Fundamental, em duas escolas municipais do Rio de janeiro,
localizadas em bairros que se diferenciavam por apresentar o maior e o menor
número de equipamentos culturais da cidade. O objetivo era identificar de que
forma a linguagem televisiva estava presente na sala de aula e em que medida
esta presença contribuía para a construção das identidades das crianças. A
linguagem da televisão esteve presente nos modos de falar, de escrever, de se
vestir, nas roupas, nos cadernos, etc, “independente da vontade e do trabalho
desenvolvido pelas instituições e/ou pelos professores.” (p. 73) Segundo a
pesquisa, a linguagem televisiva impacta o entendimento de mundo, a idéia de
grupo, a linguagem, o imaginário e as brincadeiras das crianças. Os pais
interferem fortemente nas relações das crianças com a TV, o entorno da escola e
o nível sócio-econômico também fazem alguma diferença, ainda que sutilmente.
24
Já os professores, interferem pouco nesta relação, mas impactam
profundamente a maneira como a linguagem televisiva se manifesta na sala de
aula.
Delorme (2008) fez um estudo de cunho etnográfico em uma turma de
primeiro ano de uma escola municipal do Rio de Janeiro, visando compreender
as relações que crianças estabelecem com notícias de telejornais, suas
preferências, sentimentos, recortes que fazem do que vêem, além de
repercussões das notícias em suas vidas. As crianças, entendidas como seres
ativos, aptos a opinar, produtores e consumidores de cultura, foram estudadas
em suas narrativas, em interação com a escola e com seus pares. Em
consonância com pesquisas anteriores, (DUARTE, 2008; TAVARES, 2009) Delorme
afirma que as crianças assistem aos telejornais acompanhadas pelos adultos da
casa, demonstram conhecer aspectos próprios da gramática televisiva, queixam-
se das cenas de violência real, reconhecem a importância dos telejornais como
fonte de informações. Além disso, a autora destaca alguns aspectos que
caracterizam a vida das crianças pesquisadas na cidade do Rio de Janeiro, como o
medo da polícia e a imagem de jornalistas e policiais andando sempre juntos; o
sonho de se tornarem profissionais da televisão, quando adultos; o sentimento
de (in)visibilidade causado pela mídia, pela falta de representatividade de suas
comunidades e o ressentimento delas por não serem consideradas por suas
famílias e pela escola sujeitos participativos, capazes de conhecer, acompanhar,
compreender e questionar a realidade do mundo onde vivem.
Procurei apresentar algumas pesquisas, nacionais e internacionais,
que se dedicam à televisão e crianças. Essas pesquisas geralmente dividem-se
em análise dos produtos (do conteúdo dos programas televisivos ou de
anúncios), estudos de efeito, geralmente quantitativos e longitudinais que
buscam identificar os impactos da televisão em comportamentos das crianças
(como o comportamento agressivo ou aprendizagem), estudos de audiência,
também quantitativos, e de recepção, de cunho qualitativo. Estes últimos
buscam entender como pequenos grupos de espectadores se relacionam com o
conteúdo televisivo: como significam, interpretam, dão sentido, avaliam,
25
analisam, etc. É na esteira das pesquisas de recepção que se inscreve esta
pesquisa. A seguir discutirei brevemente a questão dos valores morais e
apresentarei algumas pesquisas sobre o tema.
2.2 – Valores Morais
Ao mesmo tempo em que observamos a crescente oferta de
programas televisivos elaborados exclusivamente para o público infantil, fala-se
em crise de valores, crise ética, em todos os setores da sociedade. Família e
escola discutem seus papéis e de quem é a tarefa de educar. A metáfora dos
limites é amplamente utilizada para sinalizar a necessidade de se pensar a
educação e preparar as crianças para agir em sociedade (LA TAILLE, 2006). Para
Georgen (2007), fala-se tanto em moral hoje porque os problemas morais
assumem dimensões assustadoras: a contradição entre a abundância e a miséria
gera um ambiente de barbárie, a falta de trabalho exclui multidões, a agressão
ao meio ambiente gera uma vulnerabilidade de proporções inusitadas que
ameaça a existência da própria humanidade, as doenças, epidemias, pandemias,
a vergonhosa onda de corrupção. Segundo o autor, “a sociedade capitalista
neoliberal assume diretrizes morais que invertem o imperativo da ética
kantiana3, condicionando o bom funcionamento do sistema ao uso do homem
como meio”. (p. 743)
O primeiro passo para uma discussão a respeito de valores morais é
definir o que são valores morais. Para Nucci (2000), “uma parte grande da
controvérsia envolvendo a educação moral diz respeito à definição de
moralidade. Em sua acepção cotidiana, moralidade refere-se simplesmente às
normas de condutas certas e erradas. No entanto, a questão é o que significa o
certo e o errado morais e quais critérios serão usados para julgar o erro nas
condutas.” (p. 74)
3 “age de forma tal, que nunca use a humanidade, seja em tua pessoa seja na pessoa de outrem,
como meio mas somente e sempre como fim” (KANT, apud FREITAG, 1992, P. 50)
26
Para Freitag (1992), da pergunta formulada por Kant - como devo agir
– derivam uma série de outras, como: como posso julgar a minha ação ou a dos
outros? Que valores, princípios devo usar para orientar esta ação? Como ter
certeza que agi/agirei da melhor forma? Para tratar estas questões de uma
maneira mais abrangente, a autora opta por um estudo multidisciplinar e busca
elementos na herança filosófica grega e da Ilustração, na teoria sociológica crítica
e na psicologia genética, utilizando como fio condutor deste estudo a autora
recorre à tragédia grega de Sófocles – Antígona4. Vale a pena nos determos
sobre sua linha de raciocínio.
Segundo a autora, as tragédias gregas tinham um caráter de educação
do público, ao encenar os vários pontos de vista de um problema, permitindo
que o público forme sua própria opinião, além da função de expressão artística
do dramaturgo e da função catártica, por meio da identificação das pessoas do
público com um ou outro personagem da peça.
“As situações não são sempre tão unívocas como no
caso de Antígona, nem tão dramáticas. Mesmo assim, envolvemo-
nos a cada momento, em cada situação concreta de vida, em
conflitos morais e optamos permanentemente pela saída certa ou
errada; surgem alternativas que por vezes podem ser fatais, outras
vezes, com um pouco de sorte, podem implicar novas
oportunidades, novos espaços de liberdade individuais e coletivos.”
(p. 274)
Freitag encontra na tragédia, nos diálogos platônicos e no sistema
filosófico de Aristóteles a expressão máxima da teoria moral entre os gregos,
onde a ação moral é indissociável da ação política e a virtude máxima é a
temperança. A justiça sintetiza o valor moral supremo. A felicidade e os
interesses da cada um são princípios norteadores da ação moral. Agir
corretamente é agir de acordo com a lei. A ordem social estabelecida, no
4 Antígona é filha de Édipo e irmã de Polinice, Etéocles e Ismena. Polinice e Etéocles morrem ao
lutarem entre si. Creonte, irmão de Jocasta e tirano de Tebas, enterra Etéocles, que o apoiava,
como herói e proíbe o enterro de Polinice, deixando Antígona e Ismena no dilema entre
obedecer a lei dos Deuses e a tradição de enterrar seus mortos ou a lei dos homens, da polis.
(Freitag, 1992, p. 21)
27
entanto, não é posta em questão, uma vez que mulheres, trabalhadores,
crianças e escravos continuam excluídos das decisões políticas. (IBID,p. 30)
A Psicologia traz uma mudança de paradigma para a questão da
moralidade, embora não garanta o resgate do indivíduo responsável, já que o
Comportamentalismo, a Gestalt e a Psicanálise, cada um a seu modo, teriam
completado o “trabalho de demolição” do indivíduo autônomo, iniciado por
Hegel e reforçado pelo discurso sociológico. Freitag apresenta as teorias de
Piaget e Kohlberg, que, segundo a autora, trabalham justamente “para resgatar a
noção do indivíduo moralmente consciente, dotado de razão e responsável por
seus julgamentos” (IBID, p. 167)
Kohlberg deu continuidade ao estudo piagetiano da moral, realizando
estudos longitudinais e interculturais, acrescentando dilemas morais à
metodologia e realizando projetos de educação moral. O pesquisador reformula
a teoria de seu precursor, ampliando de 3 para 6 estágios da consciência moral.
Como o trabalho de Kohlberg volta-se prioritariamente para adolescentes e
jovens adultos, nos limitaremos aqui à teoria de Piaget.
Jean Piaget (1977) investigou o julgamento moral nas crianças. Para
isto analisou o respeito às regras e normas de conduta, tanto do jogo social,
entre as crianças, como as prescritas pelos adultos. Segundo Piaget, “toda moral
consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve ser
procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras” (p. 11). O
pesquisador parte de pequenas histórias envolvendo problemas morais como o
roubo, a mentira, os desajeitamentos e as punições, contadas às crianças, e
chega à conclusão que existe um realismo moral, onde o respeito, por exemplo,
é unilateral (e não mútuo), as regras são exteriores e de caráter místico
(sagradas, imutáveis), a responsabilidade é objetiva, ou seja, o julgamento das
ações recai sobre o seu conteúdo, suas conseqüências, seus aspectos
quantitativos e não sobre as intenções dos sujeitos ao praticá-las.
Para Lauro de Oliveira Lima, o conceito de moral ultrapassa o de
conjunto de regras de uma sociedade, de acordo com as circunstâncias
28
históricas, políticas, geográficas e ideológicas, mas “algo essencial, resultante das
necessidades de equilíbrio do relacionamento.” (1980, p. 39, grifos do autor)
Yves de La Taille discute o uso dos termos “moralidade” e “eticidade”.
Em um dos artigos do autor (2001) eles são utilizados como sinônimos, dada sua
origem etimológica, em outros (LA TAILLE e TOGNETTA, 2008; LA TAILLE et al.,
2004;LA TAILLE, 2000;) o autor utiliza o termo “moral” como referente aos
deveres (como devo agir?) e reserva o termo “ética” para a “vida boa” (que vida
quero viver?). Segundo La Taille, essa é uma diferença convencional. Outra forma
de convenção seria adotar “moral” para se referir ao fato e “ética” para uma
reflexão sobre este. No uso cotidiano dessas palavras o termo “moral” vem
sendo cada vez mais substituído pelo termo “ética”. De acordo com o autor, isso
se deve apenas pelo fato deste último soar de forma mais liberal e sofisticada
enquanto o primeiro tem um peso autoritário, “moralista”. Em educação, por
exemplo, a experiência da “Educação Moral e Cívica” nos currículos durante a
ditadura militar, ajudou a carregar a palavra moral desse sentido de
autoritarismo e dogmatismo. Seja qual for a opção, os dois termos estão sempre
intimamente relacionados.
Puig (1998) utiliza o termo moral de uma forma bem ampla (não
apenas referente aos deveres em oposição à “vida boa”, ou separando fato de
reflexão, nem polarizando indivíduo e sociedade). O autor defende a construção
de uma personalidade moral, onde a moral não é algo pressuposto, mas “um
produto cultural cuja criação depende de cada sujeito e do conjunto de todos
eles”. (p. 70) A construção da personalidade moral é um processo em que
intervêm elementos socioculturais preexistentes, ao mesmo tempo em que cada
sujeito atua de modo responsável, autônomo e criativo, com o objetivo de
alcançar um modo de vida ótimo em um determinado meio, social, histórico e
cultural.
Nesse processo, intervêm elementos e dinamismos diversos:
diferentes meios sociais, em uma perspectiva ecológica – família, escola,
trabalho, espaços cívicos, meios de comunicação – que proporcionam inúmeras
experiências morais, com problemas morais contextualizados. Para resolver
29
esses problemas, ou conflitos, o indivíduo utiliza como recursos as capacidades
psicomorais – como autoconhecimento, conhecimento dos outros, juízo moral,
compreensão crítica, sensibilidade, disposição para o diálogo, etc. – e os guias
culturais de valor, produtos culturais que medeiam a ação sociomoral, servindo
de ferramentas que pautam e regulam as formas de vida de uma coletividade e
lhes dão significado.
O conjunto dos guias de valor forma o que Puig chama de cultura
moral de uma sociedade. O autor descreve alguns elementos dessa cultura: as
idéias morais (conceitos, teorias, máximas, valores), as tecnologias do eu (um
leque de práticas reflexivas e voluntárias que o indivíduo lança mão para
transformar-se, como a escrita de um diário ou a prática da confissão), além dos
modelos, pautas normativas (costumes, normas, leis) e instituições sociais.
Neste complexo processo de construção da personalidade moral, os
meios de comunicação de massa e entre eles a televisão, são meios sociais,
chamados por Puig de noomeio5, por possibilitarem a observação, o
conhecimento e a intervenção em meios a que propriamente não se pertence. O
autor acredita que constituem uma fonte muito relevante de experiências
morais: “além de oferecer vários problemas impossíveis de serem experienciados
diretamente, ou problemas desconhecidos, o que veiculam se relaciona com
tudo o que ocorre nos meios habituais de vida dos sujeitos.” (1998, p. 160)
Além dos meios de comunicação de massa e as redes comunicativas
fazerem parte do conjunto de diferentes meios sociais em que o sujeito se
encontra simultaneamente, os programas televisivos estão carregados de idéias
morais, modelos e pautas normativas, constituindo-se importantes guias
culturais de valores.
2.2.1 - Algumas pesquisas sobre moralidade e crianças
Yves de La Taille e colaboradores fizeram uma busca em base de dados
por artigos, teses e dissertações sobre o tema da moralidade, entre 1990 e 2003.
5 Ao lado dos micromeios, macromeios, mesomeios e exomeios. (p. 159)
30
Os autores concluem que, embora a produção de textos sobre ética e educação
tenha aumentado nos últimos anos do período analisado, ela ainda é pequena,
pelo menos não equivalente à preocupação atual e à demanda dos professores.
O número de pesquisas empíricas é pequeno (apenas 10 entre os 28 artigos
encontrados e nenhum deles vinculado diretamente às práticas educativas) (LA
TAILLE et al., 2004).
Vale e Alencar (2008) realizaram uma pesquisa com 30 crianças de
uma escola municipal do Espírito Santo, sendo 10 crianças de 7 anos, 10 de 10
anos e 10 de 13 anos, igualmente divididas quanto ao sexo. As pesquisadoras
apresentaram um dilema moral que envolvia falta de generosidade e fizeram
entrevistas buscando saber se a criança deveria ser punida ou não, porque e
como, em caso afirmativo, e se a professora não deveria castigá-la apenas nesta
situação ou em qualquer outra, em caso negativo. Entre os resultados, as autoras
destacam que
“a maioria dos participantes não só compreende e valoriza a generosidade como é capaz de diferenciar a falta dessa virtude de transgressões claramente morais. Os entrevistados de 7 anos que não sugeriram a punição para o personagem não generoso consideraram a ausência de generosidade como conduta de pouca gravidade, comparando-a com transgressões julgadas como merecedoras de punição. Tais entrevistados, no entanto, não explicitaram que essas transgressões se diferenciam da falta de generosidade pelo seu caráter de obrigatoriedade, como o fizeram os participantes de 10 e 13 anos.” (p. 243)
La Taille (2001) entrevistou 90 crianças, sendo um terço composto por
crianças de 6 anos, um terço de 9 anos e um terço de 12 anos, igualmente
divididas quanto ao sexo, para saber o lugar que a polidez ocupa na construção
da moral. As entrevistas eram constituídas de algumas perguntas abertas e
situações-problema. O autor conclui que a polidez pertence ao universo das
crianças de 6 a 12 anos, que a avaliam como conduta de certa gravidade, mas
optam pela educação (e não pelo castigo), principalmente no caso das crianças
de 9 e 12 anos. A falta de polidez é para as crianças menores um indício para se
31
julgar o caráter moral de uma pessoa (associando-a à falta de honestidade,
solidariedade e coragem), mas deixa de sê-lo para as crianças mais velhas.
Souza e colaboradores (2008) realizaram uma pesquisa a respeito do
julgamento de crianças sobre ações e sentimentos de personagens de dois
contos de fadas. Os pesquisadores realizaram entrevistas com 76 crianças de
idade entre 5 e 10 anos das cidades de São Paulo e São José dos Campos.
Segundo a pesquisa, a qualidade dos juízos parece evoluir com a idade, mas as
diferenças só são significativas quando comparadas idades mais distantes. As
crianças menores tendem a avaliar as ações baseadas em opiniões e fatos
encontrados explicitamente nas histórias, não mencionando os sentimentos dos
personagens. As crianças maiores, por sua vez, tendem a fazer mais inferências e
são capazes de identificar sentimentos opostos que coexistem, sem contradizer-
se. Isto está de acordo, segundo os pesquisadores, com a perspectiva piagetiana,
na qual se faz necessário colocar-se no lugar do outro para compreender as
ações e sentimentos desse outro.
Tendo apresentado algumas pesquisas sobre crianças e moralidade,
faz-se necessário explicitar a concepção de crianças que orienta este trabalho.
2.3 – Crianças
Muito se tem discutido sobre o conceito de infância ou das infâncias,
melhor dizendo, constituindo-se esse um campo multidisciplinar. Segundo
Kramer (2002), há no Brasil, nos últimos vinte anos, um esforço em “consolidar
uma visão da criança como cidadã, sujeito criativo, indivíduo social, produtora da
cultura e da história, ao mesmo tempo em que é produzida na história e na
cultura que lhe são contemporâneas.” (p. 43)
A Sociologia da Infância vem pensando as crianças como atores sociais
plenos, produtores de cultura e capazes de interpretar e interagir com adultos e
com seus pares. Estes estudos procuram compreender a sociedade a partir do
fenômeno social da infância, respeitando a diversidade dentro do grupo
32
geracional e estabelecendo uma relação alteritária entre adultos e crianças.
(SARMENTO, 2005)
Neste contexto, a psicologia do desenvolvimento, de uma forma geral,
e, mais especificamente a teoria piagetiana, têm sido alvo de muitas críticas.
Penso que as crianças são sujeitos criativos, produtores de cultura e de
história, capazes de interagir com adultos e com seus pares, embora não negue a
perspectiva do desenvolvimento. Ao olharmos para um bebê, uma criança de
cinco anos e outra de dez, por mais que entendamos que cada um desses
sujeitos interage com seus pares, com os adultos, que ressignifica, reinterpreta e
produz cultura, as diferenças pela maneira como essas interações acontecem
ficam gritantes. Um bebê, uma criança de cinco e uma de dez anos são muito
diferentes, visivelmente e qualitativamente diferentes e essas diferenças são
fortemente marcadas pela ausência, pela falta de características dos mais novos
em relação aos mais velhos.
Assumir isso não significa colocar as crianças em inferioridade em
relação aos adultos, nem tomar os níveis de desenvolvimento como etapas
estanques e rígidas, com idades estabelecidas. Penso que reconhecer que as
crianças se desenvolvem não requer que olhemos para elas apenas sob o ponto
de vista do que elas ainda não são capazes, assim como reconhecer que as
crianças são sujeitos não significa negar que elas se desenvolvem.
Essa é a concepção de crianças que orienta a pesquisa: sujeitos
ativos, produtores de cultura, capazes de interagir plenamente com seus pares e
com adultos, mas que não deixam de estar em desenvolvimento.
Jorge Larrosa (1998) fala da complexa relação entre adulto e criança e
da ideia que muitas vezes temos de que a infância é um enigma. Tal ideia sobre o
enigma ou o mistério infantil é, na verdade, mais uma forma de presunção dos
adultos que, ao falarem do que ainda não sabem, estão reforçando as muitas
coisas que sabem. Adultos – pedagogos, professores, pediatras, psicólogos,
produtores de programas infantis, todos sabem muito sobre as crianças, seus
modos de pensar, de agir, seus gostos, suas preferências etc. Para o autor,
pensar a criança como um outro é muito mais do que pensar sobre o que
33
sabemos dela ou o que ainda estamos por saber. “A alteridade da infância é algo
muito mais radical: nada mais e nada menos do que sua absoluta
heterogeneidade no que diz respeito a nós e a nosso mundo, sua absoluta
diferença”. (p. 70)
Penso que o grande desafio em pesquisa com crianças é construir uma
relação alteritária, sem abrir mão da posição de adulto. É não encará-las como
enigma nem ter a ilusão de que tudo se sabe sobre elas, não tratá-las como
ingênuas, não olhar apenas para o que lhes falta e ao mesmo tempo não
adultizá-las ou supor que não existam diferenças.
A criança está olhando para nós e para nosso mundo pela primeira vez,
e isso nos traz muitas inquietações. Por esse motivo, ela brinca com nosso lixo,
faz mil confusões com nossa linguagem e com nossas coisas, que estão já
“arrumadinhas”, presas às suas utilidades. É disso que Walter Benjamin fala em
muitos fragmentos de Rua de Mão Única e Infância em Berlim, quando menciona
as confusões com as palavras e as travessuras do Corcundinha (1995). Por isso o
conceito de infância está centralmente relacionado ao conceito de história do
filósofo. A relação entre adulto e criança é a relação das antigas com as novas
gerações, do passado, presente e futuro. Essa tensão entre as gerações está
presente na escola, nos brinquedos, no teatro, no cinema, nos livros infantis, nos
programas televisivos.