2001-3-direitoretoricamonografia
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Direito e RetóricaTRANSCRIPT
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Marco Antnio Sousa Alves
A importncia da retrica para o direito
para uma justificao razovel das decises
Monografia final de Curso de Graduao
apresentada Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais como requisito parcial
obteno do grau de Bacharel em Direito, nfase
em Cincia e Filosofia do Direito.
Orientadora: Miracy Barbosa de Sousa Gustin.
BELO HORIZONTE
2001
Marco AntonioText BoxCitar:
ALVES, Marco Antnio Sousa. A importncia da retrica para o direito: para uma justificao razovel das decises. Monografia de final de curso (Graduao em Direito) Orientadora: Miracy Barbosa de Souza Gustin. Belo Horizonte: UFMG, 2001. 112p. Disponvel em: http://ufmg.academia.edu/MarcoAntonioSousaAlves/Papers/1231080/A_importancia_da_retorica_para_o_direito_para_uma_justificacao_razoavel_das_decisoes. Acesso em: [data de acesso]
Contato: [email protected]
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Monografia defendida e aprovada, aos 27 de novembro de 2001,
pela banca examinadora constituda pelos professores:
_____________________________________________________ Professora Doutora Miracy Barbosa de Souza Gustin (Orientadora) __________________________________________________________________________ Professor Doutor Menelick de Carvalho Netto _______________________________________________________________
Professor Marcos Vincio Chein Feres (UFJF)
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SUMRIO
1. INTRODUO -------------------------------------------------------------------------------- 5
2. RETRICA: NOES FUNDAMENTAIS -------------------------------------------- 6
2.1. Retrica filosfica X retrica literria ------------------------------------------ 7
2.2. Entre a evidncia e o arbtrio ---------------------------------------------------- 10
2.3. Retrica X lgica ---------------------------------------------------------------------- 15
2.4. Auditrio ------------------------------------------------------------------------------ 20
3. RETRICA: BREVE HISTRIA ------------------------------------------------------- 22
3.1. Retrica clssica ---------------------------------------------------------------------- 22
3.2. Retrica na modernidade --------------------------------------------------------- 32
3.3. Retrica na contemporaneidade ------------------------------------------- 33
3.3.1. A nova retrica ---------------------------------------------------------------------- 34
3.3.2. A novssima retrica ----------------------------------------------------------------- 37
4. RETRICA FILOSFICA: BUSCA DE UMA NOVA RACIONALIDADE ---- 41
4.1. Origem da filosofia ------------------------------------------------------------- 43
4.2. Dialtica ------------------------------------------------------------------------------ 47
4.3. Teoria da argumentao: propostas contemporneas ----------------- 51
4.3.1. Toulmin ------------------------------------------------------------------------------ 53
4.3.2. Apel --------------------------------------------------------------------------------------- 55
4.3.3. Habermas ------------------------------------------------------------------------------ 59
4.3.4. Rorty --------------------------------------------------------------------------------------- 64
4.3.5. Perelman ------------------------------------------------------------------------------ 66
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5. RETRICA NO DIREITO: ACEITABILIDADE RACIONAL ---------------------- 70
5.1. Tendncias anti-retricas: positivismo de Kelsen ------------------------- 73
5.2. Aspectos do direito ------------------------------------------------------------- 75
5.2.1. Lgica jurdica X lgica formal ---------------------------------------------------- 75
5.2.2. A prova jurdica: presunes e fices ------------------------------------------- 79
5.2.3. O uso de noes confusas ---------------------------------------------------- 81
5.2.4. Um direito mais democrtico: aceitabilidade X obedincia --------------- 87
5.3. Racionalidade jurdica: tendncias contemporneas ----------------- 90
5.3.1. Dworkin ------------------------------------------------------------------------------ 91
5.3.2. Alexy --------------------------------------------------------------------------------------- 93
5.3.3. Habermas ------------------------------------------------------------------------------ 97
5.4. A razoabilidade -------------------------------------------------------------------- 100
5.4.1. Aulis Aarnio: o racional como razovel ----------------------------------------- 101
5.4.2. Perelman: o razovel e o desarrazoado em direito ------------------------ 106
6. CONCLUSO ----------------------------------------------------------------------------- 109
7. BIBLIOGRAFIA --------------------------------------------------------------------------- 112
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1. INTRODUO
A inquietao que deu origem a essa pesquisa pode ser resumida pela
busca de decises racionais no direito. Dessa busca, desdobram-se basicamente
dois problemas, um relacionado mais de perto com a atividade filosfica e outro
com o campo do direito. A questo chave a ser respondida como, e em que
condies, uma deciso jurdica ser racionalmente aceitvel. Essa questo,
eminentemente jurdica, pressupe uma outra questo de cunho filosfico, que
questiona o estatuto dessa "racionalidade".
O fenmeno retrico visto como constituindo uma das manifestaes do
fenmeno mais amplo da argumentao. O que caracteriza o ponto de vista
retrico a preocupao relativa s opinies e valores do auditrio a que se dirige
o orador e, mais precisamente, referente intensidade de adeso desse auditrio.
A partir dessa perspectiva, comumente chamada retrica filosfica, analisar-se- a
questo da racionalidade da argumentao filosfica.
Analisa-se o problema do direito numa perspectiva claramente retrica e
argumentativa. O direito visto como uma busca dialtica de uma boa soluo ao
conflito, o que difere em grande medida da mera conformidade a regras. Entende-
se que solues no arbitrrias aos problemas do direito no sero encontradas se
no se repensar sua racionalidade. As teorias da argumentao fornecem novas
perspectivas filosficas que podem ser muito teis nesse sentido.
A retrica servir tanto para a anlise filosfica, referente racionalidade,
como para a anlise jurdica. Procurar-se- ressaltar as diferenas existentes entre
a prtica argumentativa filosfica e jurdica tendo em vista as implicaes para
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uma possvel "racionalidade jurdica". No campo da argumentao jurdica, entra-
se no debate acerca da razoabilidade. Uma vez que para ser racional no
preciso se ater s provas evidentes e s verdades claras e distintas, a
razoabilidade passa a ocupar um novo posto. Recobrando seu valor, a
argumentao razovel servir em grande medida para o direito.
Ressaltando a importncia dos estudos retricos e argumentativos para a
filosofia e o direito, cito Perelman:
"A racionalidade da teoria da argumentao, a qual no dissocia a forma do fundo
do discurso, e que considera a variedade dos auditrios, exige a adaptao do
discurso aos efeitos procurados no auditrio do qual se pretende obter a adeso. A
organizao do discurso ser concebida em funo desta adeso; e assim tambm
a escolha e a apresentao dos argumentos, a amplitude e a ordem da
argumentao.
A teoria da argumentao, desenvolvida na retrica antiga que conheceu um
grande sucesso no Renascimento, sofreu um declnio a partir do sculo XVII, sob a
influncia das teses do racionalismo e do empirismo. A importncia dada, no sculo
XX, filosofia da linguagem e filosofia dos valores contribuiu para o renascimento
da teoria da argumentao, cujos efeitos se revelam especialmente relevantes na
renovao do estudo do raciocnio jurdico e filosfico" (1987:264).
2. RETRICA: NOES FUNDAMENTAIS
A retrica a arte de persuadir ou de convencer pelo discurso. No se
pretende aqui elaborar uma teoria geral da retrica. Tal opo se d basicamente
por dois motivos. Primeiro, porque ampliaria demais o objeto e exigiria uma
pesquisa que excederia o proposto nessa monografia e tambm a capacidade de
seu elaborador. Em segundo lugar, e este o principal motivo, porque no acredito
que seja possvel uma teoria geral da retrica. Prefere-se, como fazem Reboul,
Barthes e Perelman, falar em "retricas", que so mltiplas. Pretender algo em
comum a todas elas, uma espcie de essncia retrica, seria uma iluso. Ao
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contrrio, busca-se ressaltar alguns elementos que, antes de constiturem a
essncia da retrica, so apenas recorrentes em vrias prticas argumentativas.
Esses elementos no conjunto permitem o uso do termo retrica mais no sentido
wittgensteiniano de "semelhanas de famlia" do que num sentido essencialista.
Para uma melhor introduo ao fenmeno retrico, procurar-se- analisar
alguns de seus pontos de partida, sendo eles a distino entre retrica filosfica e
literria, a crtica busca da evidncia, a distino entre retrica e lgica e a noo
de auditrio.
2.1. Retrica filosfica X Retrica literria
A arte retrica comporta dois aspectos, o argumentativo e o oratrio.
Barthes divide a inventio retrica em dois grandes caminhos: o do convencimento
e o da comoo (1975:184). Convencer requer uma aparelhagem lgica ou
pseudolgica, chamada probatio, na qual o raciocnio faz uma violncia justa ao
esprito do ouvinte. Na comoo, ao contrrio, deve-se pensar no destinatrio, no
humor do auditrio. Plebe e Emanuele tambm reconhecem essa distino
definindo-a em termos de uma via retrico-dialtica e outra retrico-potica. As
duas frentes podem ser definidas como: "uma (derivada de Perelman), que v na
retrica "uma arma da dialtica"; e outra (...) que nela v "um instrumento da
potica" (1992:1). Entretanto, Plebe e Emanuele partem da convico de que h
uma acepo mais antiga da retrica, a da retrica como tpica ou arte do
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inventar, que constitui um todo mais amplo, sendo um estudo preliminar filosofia,
a lgica e a esttica (1992:7).
Para Reboul, " preciso negar-se opo mortal entre retrica da
argumentao e retrica do estilo. Uma nunca est sem a outra" (1998:90). A
importncia do elemento oratrio ou estilstico aumenta quanto mais urgente e
controverso for ao auditrio o objeto da discusso e menos acessvel for
argumentao lgica. Deve-se unificar os elementos racionais e efetivos num todo:
a retrica. Entretanto, Reboul tende sempre para a anlise argumentativa da
retrica, pendendo para a abordagem perelmaniana.
Ainda que nem sempre seja fcil distinguir os dois aspectos, importante
ressaltar a existncia de uma dimenso da retrica que no se resume a produzir
algo, mas que visa a compreender. A persuaso leva o homem a crer em algo
enquanto o convencimento leva-o compreenso de algo. Nesse ponto, voltamos
ao velho debate entre os filsofos, partidrios da verdade e da busca pelo
absoluto, e os retricos, partidrios da opinio e presos ao. Os filsofos
procurariam convencer seu auditrio e estariam preocupados com o carter
racional da adeso, j os retricos apenas persuadiriam seus ouvintes pela
emoo, preocupados com o resultado. Procurou-se sempre distinguir o
convencimento e persuaso a partir de um elemento isolado de todo contexto,
considerado racional em si mesmo. Infelizmente, no dispomos de tal evidncia.
Todo homem cr num conjunto de fatos e verdades como vlidos para todo ser
racional. Perelman pergunta se essa pretenso a uma validade absoluta para todo
auditrio composto de seres racionais no exorbitante (1970:37).
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Num primeiro momento, Perelman chama de persuasiva a argumentao
que vale para um auditrio particular e de convincente aquela que busca a adeso
de todo ser racional (1970:36). Ele reconhece que a nuana muito delicada e
depende da idia que o orador se faz da encarnao da razo (1970:38). A
tentativa de distinguir rigorosamente a persuaso do convencimento repousa sobre
uma filosofia excessivamente dualista, opondo no homem o ser de crena e
sentimentos ao ser de inteligncia e razo. Essa distino sempre imprecisa e
deve continuar assim na prtica. Enquanto a distino clssica entre razo e
vontade tinha contornos precisos, irredutveis entre si, a distino entre diversos
auditrios muito mais incerta, assim como a da representao que o orador faz
deles. Se o argumento no se apresenta como vlido em si mesmo, como a
evidncia, qual auditrio pode decidir o carter convincente, racionalmente vlido,
de uma argumentao?
A partir da, altera-se o foco de ateno. Ao invs de continuarmos preso
num absolutismo filosfico, no qual a razo seria uma espcie de faculdade
compartilhada por todo ser racional, procura-se, ao contrrio, ressaltar o aspecto
social do discurso (logos), sendo a razo equiparada a um auditrio privilegiado.
Uma vez que no dispomos de um ponto de vista privilegiado, divino, que sirva de
critrio evidente para a racionalidade, devemos ver o racional como algo que
pressupe uma prtica argumentativa humana, limitada, situada cultural e
historicamente. Atribui-se racionalidade ao discurso humano no devido a alguma
qualidade divina que este possua, mas unicamente pelo fato de que, em tal prtica,
tudo pode ser colocado em questo. A filosofia racional no porque tenha um
fundamento, mas porque um empreendimento auto-corretivo, onde nada est
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imune reviso. O importante passa a ser determinar a qualidade do auditrio ao
qual buscamos a adeso.
Apesar da dificuldade em separar o mbito racional do emocional, ou seja o
lado lgico e o estilstico da retrica, pode-se distinguir duas vertentes nos estudos
retricos, uma literria e outra filosfica. Como explica Perelman:
"...uma filosfica, cujo objetivo integrar na lgica as discusses sobre as
matrias controversas, porque incertas, e em que cada um dos adversrios
procura mostrar que sua opinio tem a seu favor a verdade ou a verossimilhana;
e outra, literria, cujo objetivo desenvolver o aspecto artstico do discurso e se
preocupa sobretudo com problemas da expresso". (1997:69)
Nesse trabalho, ressaltar-se- sobretudo o aspecto filosfico da retrica,
que aquele relacionado ao estudo dos meios de prova utilizados para se obter
uma adeso.
2.2. Entre a evidncia e o arbtrio
A retrica tem seu espao exatamente entre a evidncia e o arbtrio.
Quando temos evidncia no h possibilidade de troca de opinies, de deciso,
mas deve-se apenas concluir necessariamente, curvar-se diante daquilo que se
apresenta como uma prova irrefutvel. Do contrrio, quando estamos no campo do
arbtrio, da mera vontade que se impe, tambm no temos necessidade de troca
de opinies, uma vez que a simples violncia no precisa justificar-se, ela no abre
espao sequer para a persuaso. Procurar-se- em seguida analisar a importncia
do abandono da evidncia tanto na filosofia como no direito.
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A variedade de posicionamentos filosficos dogmticos coloca em relevo a
questo da evidncia. Ser que essa diafonia pode chegar a um termo utilizando-
se apenas processos de demonstrao ou de verificao? Para Descartes, uma
filosofia que no se torne cincia evidente, que se resuma mera opinio, no
merece que nos ocupemos dela. J Perelman define a filosofia exatamente de
maneira oposta, afirmando ser ela o "estudo sistemtico das noes confusas"
(1996:6). No se acredita mais em revelaes definitivas e imutveis e o sonho de
pr fim s disputas filosficas recorrendo ao clculo totalmente jogado por terra.
Referindo-se busca cartesiana pela certeza indubitvel, Margutti sugere que
"abandonemos esta trilha e tentemos caminhos alternativos, evitando as
extravagncias de suposies cticas muito radicais" (1999:322).
O descrdito em relao evidncia enviou vrios filsofos
contemporneos ao estudo da retrica. Segundo Margutti, "eles coincidem no
combate ao dogmatismo, na ligao da filosofia com a vida cotidiana e na tentativa
de fundamentar a filosofia na noo ciceroniana de controvrsia" (1998:15). Ruiz
de Aza ressalta no panorama atual o domnio da idia de que a filosofia um
"pensamento retrico, nem objetivo nem descritivo, mas antes persuasivo, cuja
nica finalidade fazer que a conversao se mantenha, longe de toda afirmao
de princpios ltimos e verdades incontroversas" (1992:189). Rejeita-se a violncia
da razo e o terrorismo da verdade. O fundacionismo, por se sentir na posse da
Verdade, adota posturas arrogantes e impede o dilogo, uma vez que a
legitimao epistmica se encontra para alm do dilogo inter-humano. O Tratado
da Argumentao de Perelman e Olbrechts-Tyteca, publicado em 1958, um
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marco nesses estudos e caracteriza-se pela ruptura com a concepo cartesiana
de razo e pela valorizao da argumentao em detrimento da evidncia.
Quando temos evidncias, as verdades so meras derivaes lgicas, o
orador impessoal, suas demonstraes so intemporais e o auditrio
irrelevante, cabendo a ele simplesmente curvar-se diante do que objetivamente
vlido. A argumentao importante justamente quando no dispomos de
evidncias. Uma verdade evidente, uma regra absoluta, so em si indiscutveis,
excluem a possibilidade de argumentao.
Para Perelman, a rejeio do absolutismo filosfico significa, acima de tudo,
a rejeio da evidncia e, ao mesmo tempo, a reabilitao da opinio (1997:365).
O conhecimento se torna um fenmeno humano. Parte-se do fato de que os
homens aderem a toda espcie de opinies com uma intensidade varivel. O
importante na argumentao no o que o orador considera verdadeiro ou falso,
mas a opinio daqueles aos quais ele se dirige. O auditrio tem assim o papel de
determinar a qualidade da argumentao.
O prprio Plato, lembrado sobretudo pela sua crtica ferrenha retrica
sofstica, expressa no Fedro a necessidade de se poder elaborar uma retrica
digna do filsofo, que seria aquela capaz de convencer os prprios deuses (273e).
Plato se deu conta exatamente da importncia do auditrio. No basta dizer a
Verdade, preciso ser verossmil. Para realizar a retrica filosfica, Plato altera a
qualidade do auditrio, dirigindo-se aos deuses.
O dogmtico exatamente aquele que adere a uma tese controversa, cuja
prova indiscutvel no pode ser fornecida, e recusa submet-la a uma livre
discusso. Sendo assim, ele recusa, nesse ponto, o exerccio da argumentao.
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Da mesma maneira funciona o ctico. Este, ao exigir uma prova constringente,
uma evidncia, desconhece como o dogmtico a dmarche argumentativa. O erro
deles no est em curvar-se diante da verdade absoluta ou em recusar o estatuto
definitivo dessa verdade, mas em equiparar a adeso a uma tese ao
reconhecimento da verdade absoluta desta1.
O pensamento filosfico se desenvolve e amadurece numa experincia de
trocas argumentativas, de objees levantadas contra certas teses. A forma de
raciocinar do filsofo antes a justificao, uma refutao das objees que uma
demonstrao ou uma verificao. Esse aspecto polmico da filosofia difere do
dedutivismo matemtico. Esse empreendimento de justificao que a filosofia
tem por caracterstica a ausncia de um juiz supremo, que garantir
derradeiramente a causa vencedora, a filosofia definitiva. Talvez a grandeza da
filosofia esteja justamente em nunca estar acabada (Perelman, 1996:276). Esse
pluralismo filosfico pede uma atitude de tolerncia e de dilogo. Tal como o juiz, o
filsofo deve ouvir pontos de vista opostos para decidir-se. Sua funo no
descrever e explicar objetivamente o real, mas posicionar-se com relao a ele.
Quanto ao direito, temos que a prtica jurdica essencialmente uma
questo de deciso, no qual vrias teses so igualmente defensveis e nenhuma
se impe com evidncia (Perelman, 1996:385). O desprezo da filosofia pelo direito
a expresso do "ideal absolutista em filosofia". Nessa viso, o filsofo parte de
princpios necessrios e evidentes, dos quais derivam verdades incontestveis,
uma espcie de viso divina das coisas. Dentre nossas opinies e crenas, esses
1 Cf. Perelman, 1970:82-83. Perelman aida mais contundente, utilizando ao invs de dogmtico o termo
fanatique.
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filsofos buscariam a rocha slida, o fundamento inabalvel de seu sistema
filosfico, uma evidncia que obrigaria todos os seres racionais a curvarem-se
diante da Verdade. Para esses "metafsicos apaixonados pelo absoluto" o direito
nada pode oferecer (Perelman, 1996:364).
O objetivo do direito organizar a dialtica entre vontades e razes
humanas, sabendo que ilusrio supor uma ordem apenas racional, que nunca
recorra violncia (Perelman, 1996:365). Ao contrrio das metafsicas
absolutistas, que oscilam da dvida absoluta certeza absoluta, o direito fica
sempre no meio-termo. A razo e a vontade no constituem uma dualidade
irredutvel, mas esto em constante interao. As teses iniciais de um sistema
jurdico no so consideradas como evidentes, mas tambm no so arbitrrias,
pois encontram em seu contexto social, poltico e histrico razes que as explicam
e justificam a aceitao (Perelman, 1996:371).
O direito envolve efetivamente um problema de deciso. Na tradio
filosfica, no houve lugar para a deciso, pois diante da verdade no cabe
escolha. A possibilidade de escolher correlativa de uma ignorncia. Dessa forma,
no se deve vincular a idia de razo idia de Verdade. "Diante da verdade,
temos de inclinar-nos, no temos de decidir" (Perelman, 1999:384). Quando se
trata de deciso, vrias teses so igualmente defensveis e nenhuma se impe
com evidncia.
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2.3. Retrica X Lgica
O elemento comum entre a retrica filosfica e a lgica est exatamente no
estudo das provas. Tal noo na retrica sofre um alargamento, sendo includo
aquilo que para a lgica formal seria tido como "pseudoprovas" ou ainda "falsas
provas". A melhor maneira de caracterizar os meios retricos de provas
justamente contrap-los aos meios lgicos. Logo de incio, deve-se ressaltar a
grande diferena entre a retrica e a lgica, na medida em que a primeira se
interessa sobretudo pela adeso e, ao contrrio da lgica, "uma vez que visa a
adeso, a argumentao retrica depende essencialmente do auditrio a que se
dirige" (Perelman, 1997:71).
A lgica formal pode ser caracterizada como uma teoria da demonstrao
rigorosa, na qual a aplicao de um clculo mecanizvel permite que sejam
derivadas concluses necessrias de determinadas premissas que so elas
mesmas colocadas fora de questo. O argumento coercivo e sua correo e
validade so avaliados tendo em vista unicamente sua adequao a determinadas
regras formais de inferncia.
A lgica formal apresentou um grande desenvolvimento no incio do sculo
XX, sobretudo a partir do desenvolvimento da lgica simblica. As teorias de
Boole, Morgan, Frege e Peano ressaltam o aspecto coercivo das inferncias
lgicas, fazendo com que a prpria lgica deixasse de ser filosfica para
transformar-se numa cincia rigorosa. Tal vertente da lgica formal analisada sob o
ngulo de sua estrutura matemtica recebeu o nome de "lgica matemtica".
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Afirmava-se que a lgica uma cincia formal por definio e, sendo assim, falar
numa lgica prpria ao direito consistia num grande equvoco.
Curiosamente, o prprio pai da lgica formal, Aristteles, no se contentou
com suas anlises da demonstrao apodctica desenvolvida nos Analticos. O
estagirita no ignorou uma teoria da argumentao baseada em provas dialticas,
objeto de estudo dos Tpicos. O Organon aristotlico tem assim um estudo das
provas muito mais abrangente e rico do que a tradio lgica preservou dele.
J a retrica, enquanto arte de persuadir e convencer, consiste
essencialmente no uso da argumentao, na qual no temos teses nem evidentes
nem arbitrrias. Ela no se resume ao argumento lgico nem sugesto pura e
simples. Para analisar a retrica em contraposio lgica, servir-se- sobretudo
da teoria da "nova retrica", que estuda exatamente a possibilidade de
argumentao e fundamentao racional sem a comprovao emprica e a
deduo lgica.
Enquanto a lgica raciocina sempre no interior de um sistema, que se supe
aceito, na retrica tudo pode ser questionado, a adeso sempre pode ser retirada.
Logo, no h coero na argumentao retrica, pois ela no se desenvolve no
interior de um sistema cujas premissas e regras de deduo so unvocas e
fixadas de maneira invarivel. (Perelman, 1997:77).
A noo de contradio, essencial na lgica, na retrica recebe uma
roupagem diferente, devendo ser substituda pela incompatibilidade, que o
resultado de uma deciso e no inconcebvel que se possa remov-la, ao passo
que diante de uma contradio seria preciso inclinar-se. Enquanto na lgica a
contradio leva ao absurdo, na retrica a incompatibilidade leva ao ridculo, que
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a desqualificao do interlocutor. Essa distino coloca a retrica frente a um
problema ausente na lgica, pois a retrica, por no ser coerciva, precisa dar-se
conta da amplitude da argumentao. No se sabe de antemo quais provas sero
suficientes para determinar a adeso (Perelman, 1997:77-80).
Como no formal, a retrica implica a ambigidade e confuso dos termos
no qual se baseia. Sempre se acreditou que a polissemia dos termos eram defeitos
graves, mas a retrica visa exatamente compreender como a noo confusa
manejada, qual o seu papel e o seu alcance, procurando mostrar que aquelas
noes tidas em geral por claras s o so mediante a eliminao de certos
equvocos, a partir de uma reduo (Perelman, 1997:81).
A idia de validade, que na lgica tem um papel fundamental, na retrica
passa a ser vista como eficcia. Mas a eficcia tomada como nico critrio no
permitiria distinguir o xito do charlato do filsofo eminente (Perelman, 1997:87).
Apesar disso, a retrica no buscar em um critrio absoluto a soluo para esse
problema. Ao invs disso, a retrica reconhecer que a nica garantia para os
nossos raciocnios est na qualidade do auditrio, ou seja, no grau de
discernimento dos ouvintes aos quais se dirige a argumentao. O argumento mais
vlido aquele que eficaz para o melhor auditrio possvel. Resumindo,
enquanto na lgica a validade estava relacionada a uma regra formal de inferncia,
na retrica a "validade" deve incorporar seu aspecto material, que a eficcia do
argumento num determinado auditrio.
Dentre as novas concepes da lgica retrica ressaltam-se tambm as de
Viehweg e Toulmin.
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Para Viehweg (1991), no h diviso entre argumentao dialtica, objeto
de estudo da Tpica, e a demonstrao dedutiva, objeto de estudo da lgica
formal. A lgica formal necessria porm insuficiente, pois esclarece apenas a
forma do pensamento. J a dialtica cuida da lgica do contedo. Segundo
Viehweg, " facilmente compreensvel que a interpretao pode perturbar
sensivelmente a estreiteza de um sistema dedutivo" (1991:39). Ope-se dessa
forma a lgica do contedo (interpretao), da forma do pensamento (lgica
formal). Enquanto a ltima vive da univocidade, a primeira vive do oposto. A
dialtica mostra a fecunda tenso do contraditrio e o aspecto simplista da lgica.
Viehweg explica a tradio anti-retrica a partir da distino feita entre a
lgica vista como techn e a lgica como episteme (scientia). A tcnica lgica
eqivale a uma teoria operativa, uma techn retrica tal como concebeu Grgias,
Aristteles e a escolstica. J a tradio anti-retrica privilegiou a viso da lgica
como episteme, como uma cincia formal que reflete o mundo, sendo vlida
sempre e em todo lugar.
No direito, a lgica jurdica supera o marco da lgica formal. O mbito
racional mais amplo que o da lgica formal. Para dar conta desse aspecto
material, complementar ao formal, Viehweg prope uma volta aos Tpicos de
Aristteles. Ele procura conciliar esses pontos de vista e afirma no mbito jurdico
que a teoria retrica seria um acrscimo teoria pura do direito de Kelsen, uma
espcie de complemento material. A lgica formal determinaria a estrutura da
demonstrao (sistema dedutivo) enquanto a tpica mostraria a estrutura da
argumentao. A distino entre a dogmtica e a zettica, enquanto investigao
ilimitada, devem ser em ltima instncia minimizada. Na prtica cotidiana do
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direito, as dogmatizaes so indispensveis. A zettica , por excelncia,
corretiva de toda dogmatizao. Uma disciplina completa do direito deve abarcar
conjunta e reciprocamente as atividades dogmticas e zetticas. Em suma, a
proposta de Viehweg aspira a uma criatividade jurdica controlvel. Para Viehweg:
"O sistema tpico est em permanente modificao. Suas respectivas
formulaes indicam, meramente, progressivas etapas da argumentao lidando
com problemas particulares. O sistema pode ser razoavelmente chamado de um
sistema aberto, j que a discusso, isto , seu enfoque de um problema particular,
est aberto a novos pontos de vista. Em relao ao seu contedo, este renuncia
noo de um argumento final ou decisivo, porm recomenda um mtodo de
argumentao que proceda no dedutivamente mas dialogicamente. Sua ultima
ratio o discurso razovel". (1969)
Para Toulmin (1964), a lgica algo que tem relao com a maneira como
os homens pensam, argumentam e efetivamente inferem. Seu estudo antes
descritivo do que prescritivo, ou seja, procura-se analisar na prtica como os
homens realmente argumentam. Toulmin desloca o centro de ateno da teoria
lgica para a prtica lgica (working logic). Sua crtica ainda mais radical que a
de Viehweg e Perelman, na medida em que sua teoria teria aplicao para a
argumentao em geral, e no somente para o direito ou para a razo prtica. A
lgica vista como jurisprudncia generalizada, ou seja, como algo similar a um
processo legal. Ope-se assim o modelo da geometria ao modelo da
jurisprudncia, no qual h um paralelismo entre processo racional e o processo
jurdico, sendo o bom argumento identificado quele que resiste a crtica, ao
tribunal da razo. Toulmin aponta duas grandes falhas na lgica tradicional:
primeiro, ela parte de argumentos infreqentes na prtica e, segundo, ela no leva
em considerao as diferenas entre garantia e respaldo e garantia e condio de
refutao, limitando-se a diferenciar as premissas da concluso. Ao contrrio da
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lgica formal, Toulmin no se interessa pelo estudo do argumento como um
encadeamento de raciocnio (a train of reasoning), mas, pelo contrrio, o que
interessa a Toulmin so os argumentos enquanto interaes humanas, ligados
experincia prtica. A correo de um argumento uma questo de procedimento,
de critrios substantivos e histricos apropriados para cada campo, mudando o
raciocnio conforme as diferentes situaes em que se argumenta. Toulmin
acrescenta tambm a noo de fora do argumento (soundness of argument), uma
vez que na vida prtica a passagem para a concluso no necessria, mas se d
por meio de qualificadores modais, tendo os argumentos intensidades variveis.
2.4. Auditrio
Ao estudar os meios de provas utilizados para se obter adeso, a retrica
filosfica implica necessariamente a noo de auditrio, que pode ser definido
como o conjunto daqueles aos quais se quer ganhar a adeso. Mudando o
auditrio, a argumentao muda de aspecto (Perelman, 1970:9-10). O importante
na argumentao no o que o orador considera verdadeiro ou falso, mas a
opinio daqueles aos quais se dirige. O auditrio tem assim o papel de determinar
a qualidade da argumentao e o comportamento do orador. (Perelman, 1970:31-
32).
Se o argumento no se apresenta como vlido em si mesmo, como a
evidncia, qual auditrio pode decidir o carter convincente, racionalmente vlido,
de uma argumentao? Perelman encontra na prtica filosfica ocidental trs
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espcies de auditrios considerados como privilegiados: o sujeito ele mesmo, o
interlocutor no dilogo e o auditrio universal (1970:39-40).
A argumentao consigo mesmo ou com um nico interlocutor foram
considerados auditrios privilegiados na medida em que o sujeito mesmo ou o
adversrio no dilogo foram vistos como a encarnao do auditrio universal. Esse
universal freqentemente a generalizao ilegtima de uma intuio particular. O
dilogo e a deliberao consigo mesmo so sempre encarnaes precrias do
auditrio universal. O auditrio universal tem importncia primordial enquanto
norma da argumentao objetiva, sendo descrito por Perelman como aquele
"constitudo por toda humanidade ou ao menos por todos os homens adultos e
normais" (1970:39).
A ampliao da noo de auditrio para a de auditrio universal discutvel.
Viehweg, por exemplo, entende que mesmo sem essa ampliao, a noo de
auditrio j representa uma ampliao essencial da racionalidade. Entretanto, se
se permanece na noo de auditrio particular, ter-se- problemas em se separar
a argumentao eficaz aqui e agora daquela que pretende ser verdadeira,
convincente, ou seja, eficaz para todo ser racional. Dificilmente se poder eximir tal
perspectiva de cair numa abordagem antropolgica restritiva. No captulo referente
retrica filosfica, e mais precisamente naquele dedicado a Perelman, procurar-
se- tratar mais detalhadamente esse assunto.
Quanto ao desinteresse da filosofia moderna em relao ao auditrio, tal se
explica em funo de seu esforo divino de purificao, de ascese, apoiada numa
relao entre sujeito e objeto, eu e Deus, devendo as verdades serem
reconhecidas por todo ser de razo, a quem elas deveriam se impor pela sua
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evidncia. Assim, a verdade, a razo e a evidncia permitiam dispensar a adeso
efetiva do auditrio (Perelman, 1197:180-181).
Resumindo, temos que:
"O que caracteriza o ponto de vista retrico em filosofia a preocupao
fundamental relativa s opinies e aos valores do auditrio a que se dirige o
orador e, mais particularmente, referente intensidade de adeso desse auditrio
a cada uma das teses invocadas pelo orador" (Perelman, 1997:181).
3. RETRICA: BREVE HISTRIA
3.4. A retrica clssica 2
A retrica antiga girar entre dois plos: o da prtica judiciria e o da
dialtica filosfica. No mbito judicirio, quando se conhece a verdade, a causa se
extingue e no h mais o contraditrio. Os antigos observaram isso e buscaram
elaborar uma teoria que desse conta desse aspecto verossmil do direito, que
recebeu o nome de retrica. A retrica terica teve assim sua origem na prtica
judiciria na Siclia por volta de 465 a.C. Nessa poca, houve na Siclia inmeros
processos de propriedade, uma vez que tais direitos eram ainda bastante obscuros
e confusos. Tais processos tiveram por caracterstica a mobilizao de grandes
jris populares, onde o importante era ser eloqente para persuadir. Tal eloquncia
transformou-se rapidamente em objeto de estudo e seus primeiros expoentes
2 Para este breve estudo histrico, as principais fontes foram: Plebe (1978), Barthes (1975), Reboul (1998),
Cassin (1986), Tordesillas (1986), Dixsaut (1986), Plebe & Emanuele (1992), Perelman (1997), alm dos
dilogos platnicos e textos aristotlicos.
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23
foram Empdocles, Crax e Tsias, que afirmavam ser capazes de persuadir
qualquer pessoa de qualquer coisa.
O primeiro a levar a retrica siciliana para a Grcia continental foi
Protgoras. Com os sofistas, a retrica serviu como uma doutrina capaz de
legitimar tanto a violncia como a tolerncia. Protgoras defendia uma espcie de
relativismo pragmtico, para o qual no h verdade em si e o importante aquilo
que lhe permite fazer-se valer e impor-se. Privado da realidade objetiva, o discurso
humano (logos) fica sem referente e no tem outro critrio seno o prprio
sucesso. Protgoras sabia modelar os discursos (tornando-os longos ou concisos)
e buscava encontrar as palavras mais convenientes. A nica cincia possvel a
do discurso, a retrica. A finalidade dessa retrica no encontrar o verdadeiro,
mas sim dominar atravs da palavra. Ela distancia-se do saber para degenerar-se
num poder.
A retrica esttica e propriamente literria deve seu surgimento a Grgias.
Protgoras pode ser considerado o pai da retrica prtica, enquanto Grgias foi o
primeiro terico da arte retrica como disciplina independente. Ele se preocupou
sobretudo com o estudo da eficcia do logos, tanto na prosa (discurso sem metro)
como na poesia (discurso com metro). Apesar de delimitar a disciplina retrica,
Grgias estuda essa arte como criadora de crenas e no de ensinamentos. Seu
poder puramente persuasivo e no cientfico: sempre possvel adaptar o
discurso ao auditrio com habilidade tcnica e no cientfica (kairs)3. O valor de
3 Segundo Tordesillas: "En rhtorique, le kairs est le principe qui gouverne le choix dune argumentation, les
moyens utiliss pour prouver et, plus particulirement , le style adopt. (...) L'examen des diverses
reprsentation de la notion de kairs et l'analyse des occurrences du terme convergent pour dgager une notion
qui lie le temps, la circonstance, le degr, la proportion et la mesure" (1986:33-34).
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24
uma argumentao deve ser estudado dentro de um contexto de opinies (doxa), e
no se refere cincia.
Iscrates, grande humanista ateniense, afirma que a retrica s aceitvel
se estiver a servio de uma causa honesta e nobre. Dessa forma, ele procura
moralizar a retrica, que deixa de ser vista como um discurso meramente
persuasivo para ser produtora de sabedoria. Mas essa sabedoria, condio da
justia e da verdade, depende, em cada caso, da doxa, sendo assim uma espcie
de bom senso4. A persuaso muda de natureza, deixando de ser a imposio de
uma opinio para ser antes a criadora de modelos de civilizao, de cultura e de
homens. Apesar da histria ocidental ter classificado Iscrates ao lado dos
sofistas, ele se diz "filsofo" e anti-sofista. Iscrates era discpulo tanto de Grgias
como de Scrates e seu pensamento reflete essa posio intermediria. Ele estava
convencido de que o homem no pode conhecer as coisas como so, assim busca
integrar a filosofia na arte do discurso, sendo ela para a alma o que a ginstica
para o corpo. A filosofia est ligada aprendizagem, ao trabalho e cultura, e no
a uma cincia que desconhece a imprevisibilidade e a diversidade dos coisas no
mundo. Ele rejeita a possibilidade de uma cincia do logos e de qualquer
codificao dos processos discursivos. A retrica est unida potica e aqueles
que dissociam a argumentao da criao so chamados sofistas5.
4 Para Dixsaut, "La dtermination de la pense comme bon sens suffit elle seule pour exclure Isocrate de
l'histoire de la philosophie" (1986:68). Ele afirma mais adiante que "grce Nietzsche nous pouvons entendre
la philosophie d'Isocrate autrement que comme un sens commun" (1986:85). 5 " Ceux qu'Isocrate nomme "sophistes" sont tous ceux qui participent cette entreprise de dmembrement,
d'autonomisation des champs. De la dissociation nat la dmesure, c'est--dire l'autonomie des fins. Commence
alors l'histoire de la connaissance pour la connaissance, du pouvoir pour le pouvoir, de la parole pour la parole,
de l'art pour l'art... Isocrate, ce Grec des Grecs, n'assigne au savoir d'autre fin que la vie. (...) Tel est le point
central partir duquel nous pouvons la fois comprendre pourquoi nous ne comprenons plus Isocrate,
pourquoi ses textes sont devenus pour nous inclassables et dcevants. (Dixsaut, 1986:75).
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25
Tais concepes fizeram de Iscrates alvo de vrios ataques de Plato.
Alis, no dilogo Grgias, parece que o grande visado era ele e no o prprio
Grgias. Plato sustenta o existncia de uma "cincia" no domnio da justia e da
felicidade e aproxima a filosofia da medicina e a retrica da culinria, como uma
arte que se vale da ignorncia do auditrio. Iscrates replicaria que a "cincia"
(episteme) de Plato, que se ope a retrica (doxa), ainda est para ser feita e
estar sempre, pois o homem poder chegar apenas a opinies mais ou menos
justas. Apesar de afirmar que a cincia (episteme) pertence apenas aos deuses,
Iscrates no nega a sopha, mas a iguala phrnesis. A certeza, universalidade e
unidade da cincia so negadas em favor da pluralidade de opinies e da
falibilidade de toda reflexo.
A relao de Plato com a retrica difere ao longo de sua vida intelectual,
oscilando entre o desprezo e a valorizao da boa retrica. Entretanto, Plato
manteve sempre um discurso de cunho cientfico, dizendo-se adversrio da
retrica. Quanto ao seu mestre, Scrates, sua relao com a retrica tambm
dbia, devido sobretudo ao fato de no ter deixado nada escrito. O "verdadeiro
Scrates" j foi objeto de inmeras discusses entre os "gregfilos" e no seria
pertinente entrar nessa querela. Apesar das divergncias, seguindo a leitura de
Plebe, entendo que Scrates tenha professado com grande xito a tcnica
retrica, e v-lo como um adversrio irredutvel da sofstica e da retrica analis-
lo apenas pelos olhos de Plato (1978:21).
Os dilogos de Plato que trataram mais diretamente do problema retrico
so o Grgias e o Fedro. No Grgias, Plato mostra claramente sua antipatia e
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26
desprezo pela arte retrica. Alis, a retrica no seria nem cincia nem uma
verdadeira arte, mas apenas uma habilidade prtica (465a). A retrica no tem
nenhum comprometimento com o valor de seu contedo e no tem necessidade
alguma de conhecer os assuntos de que trata, mas apenas de encontrar um meio
de persuadir (459b-c). O Grgias representa o pice da reao platnica retrica
sofstica e contribuiu em grande medida para o posterior descrdito lanado sobre
a retrica.
Apesar de ser um texto extremamente anti-retrico, vrios especialistas
acentuam tambm que a ateno que Plato revelar posteriormente retrica j
est antecipada aqui. Plebe, por exemplo, chega a afirmar que: "Plato no tinha
outro objetivo seno o de demolir a retrica; mas, das entrelinhas da polmica
transparece um vivo interesse e at uma certa atrao por essa arte por ele to
violentamente combatida" (1978:25).
Enquanto no Grgias Plato critica toda a retrica, no Fedro, obra bem
posterior, ele distinge a retrica sofstica da dialtica e ressalta o valor desta
ltima. No Fedro, Plato parece dar uma interpretao mais condescendente da
retrica, procurando reabilit-la. Nesse dilogo, o Scrates platnico afirma a
necessidade e a importncia de se examinar melhor a retrica humana (266d).
Plato observa que no basta estar na verdade, mas tambm preciso conduzir o
seu interlocutor para a verdade6. Para tal, faz-se necessrio uma retrica que, ao
contrrio do demagogo, visar sempre a verdade (260e). claro que no se trata
da retrica sofstica, considerada uma m retrica, uma arte descompromissada
6 Segundo Brisson, "La connaissance du vrai, pour l'tre humain du moins, n'est pas immdiate. Elle exige
l'application d'une mthode: la dialectique" (2000:137).
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com a verdade, chamada de logosofia. Mas a retrica pode tambm servir ao
mtodo dialtico, que o mtodo da verdadeira filosofia7. Tal retrica no buscaria
a adeso das multides mas dos prprios deuses8. Plato classifica tal retrica de
psicagogia (formao das almas pela palavra), que busca a conduo das almas
para a verdade (261a). Essa retrica est assim comprometida com a verdade e
dever ser chamada mais propriamente de dialtica.
Em Aristteles, a retrica ocupa um posto intermedirio entre a potica e a
filosofia, numa escala que ascendente no sentido intelectualista. A retrica
definida como a "faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser
capaz de gerar a persuaso" (Arte Retrica, livro I, cap.2, I, p.34). A verdadeira
retrica deve ser uma tcnica rigorosa do argumentar. A retrica de Aristteles
sobretudo uma retrica da prova, do raciocnio, do silogismo aproximativo.
Contudo, Aristteles celebra a utilidade da retrica e no o seu poder. Ainda que
possa ser usada desonestamente, tal no subtrai o seu valor. O estagirita d uma
fundamentao mais slida retrica, privilegiando no o seu poder de dominar,
mas o seu poder de defender-se. preciso ser capaz de defender to bem o
contra como o pr no para torn-los equivalentes, mas para compreender o
mecanismo da argumentao adversria e assim a refutar. Aristteles acredita que
o verdadeiro e o justo so por natureza mais fortes que seus contrrios.
Aristteles admite ao mesmo tempo a cincia exata de Plato e a
argumentao do prefervel. Para o estagirita, existem dois mundos: o mundo
7 Para Brisson, "Platon refuse ainsi la rhtorique son autonomie: elle dpend d'une autre technique, la
dialectique, qui s'efforce d'atteindre au vrai dont dpend le vraisemblable" (2000:138). 8 Segundo Dis, "... le but n'en est pas d'apprendre dire et faire ce qui plat aux hommes, mais d'apprendre
dire et faire, autant que possible, ce qui plat aux dieux" (1927:424).
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28
divino, etreo, com movimentos necessrios, portanto calculveis e previsveis; e o
mundo sublunar, a Terra, lugar do acaso, da contingncia, da imprevisibilidade,
aberto ao humana, onde impossvel uma cincia perfeita, havendo apenas o
verossmil, o provvel. O primeiro mundo seria cognoscvel pela razo
demonstrativa enquanto o segundo seria o campo da retrica. Ao conciliar a
episteme e a doxa, ele no coloca a retrica num plano inferior, como a prova do
pobre, uma espcie de "quebra-galho" devido a ignorncia dos auditrios
populares. O estagirita procura ao contrrio ressaltar a importncia da arte de
defender-se argumentando em situaes nas quais a demonstrao no
possvel.
Aristteles encontra racionalidade para alm da lgica analtica,
demonstrativa, acreditando ser possvel uma lgica da discusso e do dilogo, um
raciocnio silogstico para realizar a condio de confrontabilidade, sempre
obrigado a comunicao com outra pessoa. A dialtica a prtica da discusso
orientada a comprovar a fora de uma tese. As premissas do silogismo dialtico se
apresentam assim de forma interrogativa, e no afirmativa como na demonstrao.
Seu ponto de partida no a certeza, mas antes o problema. O raciocnio dialtico
se move entre dois plos: de um lado cientfico e do outro construdo sobre
opinies. Sua funo ordenar o mundo das opinies. Enquanto a lgica realiza
uma demonstrao irrefutvel, pelo mtodo das evidncias, os entimemas ou
silogismos retricos partem do convincente, cujas premissas podem ser refutadas.
Aristteles classifica as premissas retricas em quatro grupos: as provas, os
exemplos, as verossimilhanas e os sinais. Nenhuma dessas premissas possui o
rigor das premissas lgicas e apresentam grau de certeza varivel. De cada uma
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dessas premissas deriva um tipo diferente de entimema: o entimema apodctico9, o
entimema indutivo10
, o entimema anapodctico11
e o entimema aparente12
.
O que diferencia o silogismo dialtico do erstico que o primeiro se funda
em premissas provveis, que Aristteles define como aquelas opinies recebidas
por todos, ou pela maioria, ou pelos sbios, e, entre estes ltimos, pelos mais
notveis e pelos mais ilustres (Tpicos, liv.I, cap.1, 100b), sendo a erstica uma
falsificao da dialtica, uma vez que se assenta em opinies que na aparncia
so provveis, mas que na realidade no so. O raciocnio dialtico, tal como foi
formulado por Aristteles, foi grandemente injustiado ao ser equiparado erstica,
a uma mera tcnica a servio de interesses mesquinhos.
Um conceito que ser trabalhado por Aristteles e que apresentar um
interesse especial para o direito ser o de topoi. Os topoi so lugares de onde se
podem tirar argumentos para uma causa, mtodos de argumentao. Os topoi se
dividem em lugares comuns e lugares especficos. Os lugares comuns so os que
versam sobre tudo e formam silogismos tanto a respeito da justia, da fsica como
de qualquer assunto. So eles trs: o possvel-impossvel, o existente-inexistente e
o mais-menos. J os lugares especficos so aqueles relativos a cada espcie,
sendo a expresso de conhecimentos particulares. A Tpica consistia
originariamente numa coletnea de lugares comuns de dialtica e apenas em
9 Tal entimema o indcio certo, que no pode ser de outra forma. Ele se aproxima do silogismo cientfico,
embora se baseie apenas numa universalidade de experincia. (ver Barthes, 1975:191-192) 10
A induo as vezes oposta ao entimema e noutras tido como uma de suas sub-espcies. (ver Plebe,
1978:45) 11
A certeza de tal entimema est na idia de geral que, ao contrrio do universal, no-necessrio e
determinado pela opinio do maior nmero. (ver Barthes, 1975:192-193) 12
O sinal um indcio mais ambguo, muito incerto. De to incerto, Quintiliano o exclui da tcnica do orador.
(ver Barthes, 1975:193)
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30
Aristteles ela se transforma em mtodo, que nos deixa em condio de fornecer
concluses verossmeis sobre qualquer assunto proposto.
Aps Plato e Aristteles, num perodo por vezes denominado segunda
sofstica, assiste-se o fortalecimento de uma retrica filosfica. Segundo Cassin:
"essa inverso sofstica/filosofia, e a vitria sofstica, operou-se sob o terreno da
retrica e no da filosofia, e isso devido a insistncia no "falar a" em detrimento ao
"falar de", pela importncia dada desde s origens no papel farmacutico13 da
linguagem"14 (1986:15).
Para os esticos, a retrica passou a eqivaler-se dialtica, identificada
com o "falar bem", que significava o mesmo que dizer a verdade. A retrica era
alm de uma arte uma cincia, ou seja, exatamente o oposto que Plato afirmou
em Grgias. A retrica, alada condio de cincia, passou a compor
organicamente a filosofia ao lado da dialtica.
Com maior interesse para o direito temos a doutrina retrica de
Hermgoras, que apesar de no ter a profundidade filosfica de Aristteles,
apontado como um dos mais importantes retricos da antigidade. Ele institui uma
diviso geral na retrica entre o gnero racional e o gnero legal. O gnero
racional aquela que visa o verdadeiro, ou seja, a retrica racionalista e
filosfica. Quanto ao gnero legal, temos aqui a retrica acentuadamente jurdica,
que visa o justo. Hermgoras divide o gnero legal em quatro subgrupos: quando a
letra da lei no concorda com seu esprito, quando temos leis contrrias, quando
13
O papel farmecutico dado linguagem refere-se a seu poder similar ao de uma droga, um phrmakon, que
tanto pode ser o remdio que cura como o veneno que mata. No caso do discurso, tal tem a propriedade de
conduzir tanto para a verdade como para o erro. (ver Derrida, 1997) 14
No original: "Cette inversion sophistique/philosophie, et la victoire sophistique, s'est opre sur le terrain de
la rhtorique et non de la philosophie par une insistance sur le "parler " au dtriment du "parler de", par
l'accent mis ds l'origine sur le rle pharmaceutique du langage".
-
31
temos ambigidade e, por fim, quando tem-se o silogismo. Esses quatro subgrupos
indicam aspectos que sero bastante estudados pela hermenutica jurdica.
No seu perodo latino, a retrica voltar a elevar-se ao nvel das disputas
filosficas sobretudo a partir de Ccero, que sustentar o carter complementar
entre a retrica e a filosofia. No possvel ser bom orador sem a filosofia e nem
deve o filsofo ignorar e muito menos desprezar a retrica. Ccero moraliza a
retrica e reage contra o ensino das escolas, reivindicando o homem honesto
contra a especializao. Ccero caracteriza-se sobretudo pela desintelectualizao
de Aristteles (abandono da retrica sistemtica), pela busca da clareza, pela
nacionalizao da retrica (adaptada a Roma), pela juno com o empirismo
profissional e pela vocao grande cultura. Segundo Plebe, "pode dizer-se que,
em Ccero, chega ao ponto mais alto a valorizao da retrica como cincia
complementar da filosofia na Antigidade" (1978:70).
Aps experimentar o seu ponto alto em Ccero, a retrica latina entra em
crise. Ainda vir Quintiliano, um retor oficial de grande fama, que assume posio
semelhante a de Ccero no que se refere relao entre a retrica e a filosofia. E
um pouco depois Tcito, que via uma contradio no fato da retrica ser ensinada
no Imprio Romano, onde no havia democracia e, portanto, as decises no eram
submetidas a debates pblicos. Sendo assim, Tcito entende que o ensino da
eloquncia em Roma era totalmente artificial, ornamental e vazio. Por fim, a
retrica se diluir num sincretismo. Contudo, tal crise no significou a morte da
retrica, que ocupar um lugar no trivium, ao lado da gramtica e da lgica.
-
32
3.5. A retrica na modernidade
Segundo Barthes, a retrica ser a "prima infeliz do trivium", relacionada
sobretudo com o aspecto meramente ornamental, reputado acidental com relao
verdade a ao fato (1975:167). O trivium transformou-se em bivium, sendo a
retrica absorvida pela gramtica e pela lgica (Kuentz, 1975:113). A partir do
sculo XII e XIII a lgica passa a dominar, repelindo a retrica e absorvendo
inclusive a gramtica. O domnio retrico no parou de diminuir, passando a ser
equiparado a uma forma de pr-saber confuso e nebuloso, uma pseudocincia que
teria dado origem s cincias humanas. Seu recuo foi inversamente proporcional
aos progressos experimentados pela filologia, psicologia, lgica formal e
antropologia.
A promoo do valor da evidncia, que se basta a si mesma e dispensa a
linguagem ou serve dela apenas como instrumento, a grande responsvel pelo
grande descrdito em relao retrica. Tal evidncia, segundo Barthes, toma trs
direes: uma evidncia pessoal, como no protestantismo, uma evidncia racional,
como no cartesianismo, e uma evidncia sensvel, como no empirismo
(1975:175)15
. A retrica perde completamente suas ambies lgicas e, quando
tolerada, no passa de um ornamento.
Ao reconhecer apenas a evidncia, a modernidade significou o desprezo
completo pela retrica. A evidncia pessoal desdobrou-se no romantismo, e a
15
Perelman tambm utiliza essa distino, dizendo: "o critrio de evidncia, fosse a evidncia pessoal do
protestantismo, a evidncia racional do cartesianismo ou a evidncia sensvel dos empiristas, s podia
desqualificar a retrica" (1997:88).
-
33
evidncia racional e sensvel no positivismo. Em comparao aos gregos, os
modernos foram muito mais otimistas com relao prtica filosfica. Mesmo
Plato, conhecido por sua exacerbada idealidade e apelo evidncia, cincia
exata, teve mais sensibilidade terica ao tratar do problema retrico, propondo a
dialtica como uma espcie de mtodo retrico para se alcanar a verdade. Os
modernos apegaram-se apenas evidncia e no constituem assim um perodo
histrico relevante para se pensar a retrica.
3.6. A retrica na contemporaneidade
Apesar da flagrante derrota da retrica no plano filosfico, ainda pode-se
encontrar vrios ecos contrrios. Nietzsche, por exemplo, contraria a viso
platnica da imoralidade sofstica e, a partir de uma inverso dos valores, faz o
elogio de Clicles. As novas correntes filosficas surgidas na virada do sculo XIX
para o XX refletiram em grande medida uma desconfiana em relao ao otimismo
moderno em suas evidncias. No sem fundamento que se chama comumente
ao filsofo ps-moderno de ps-nietzscheano. No se pretender analisar aqui
todas essas correntes, o que seria uma empreitada de flego. Antes, busca-se
somente ressaltar a vinda desses novos ventos filosficos.
Para restringir-se ao aspecto retrico dessa transformao, que assume
propores muito mais amplas, procurar-se- analisar duas propostas referentes a
esse campo. Uma nascida em meados do sculo XX com Perelman e que recebeu
o nome de "nova retrica" e outra surgida recentemente com Boaventura de Sousa
-
34
Santos e que recebeu o nome de "novssima retrica" em explcita meno
proposta perelmaniana.
3.6.1. A nova retrica
A nova retrica difere em vrios aspectos da antiga, a comear pelo
alargamento de seu campo e pelo seu aspecto fragmentrio. Num primeiro
momento, houve um renascimento da retrica puramente literria, sem relao
com a persuaso e o convencimento16
. retrica literria ope-se Perelman e
Olbrechts-Tyteca que, j em 1958, no Tratado da Argumentao, procuram
reabilitar a grande tradio retrica de Aristteles, elaborando uma teoria do
discurso persuasivo e convincente.
J na primeira parte dessa monografia vrios pontos do nova retrica foram
trabalhados e ainda o sero em diversos tens posteriores. Sendo assim, torna-se
desnecessria uma longa explicitao dessa teoria, que constitui o fundo mesmo
desse trabalho e est espalhada ao longo de todo o seu desenvolvimento. Busca-
se aqui apenas apresentar resumidamente cinco pontos principais da proposta de
Perelman, sendo eles:
a) a ligao com a abordagem clssica;
b) a argumentao inclu juzos de valor;
c) a argumentao se d na linguagem coloquial;
d) a nova retrica prope um estudo descritivo;
16
Nesse movimento, iniciado nos anos 60, esto Jean Cohen, o Grupo , Roland Barthes e Grard Genette.
Eles se preocuparam sobretudo em conhecer os procedimentos da linguagem caractersticos da literatura.
-
35
e) o auditrio um conceito de fundamental importncia.
A nova retrica analisa a possibilidade de argumentao e fundamentao
racional sem a comprovao emprica e a deduo lgica. Inclu-se os juzos de
valor na argumentao racional. Enquanto a lgica formal limitava-se aos
imperativos, a nova retrica estendeu o setor da linguagem e encorajou a
passagem do imperativo para a persuaso e vice-versa. Perelman insiste sempre
na insuficincia do raciocnio dedutivo e indutivo. Na sua opinio, o estudo dos
argumentos no se prende a uma teoria da demonstrao rigorosa. Aristteles, o
fundador da lgica formal, teria sido o primeiro a constatar isso. O Organon
comporta, ao lado dos Analticos, os Tpicos, do qual se extrai concluses
verossmeis, representando uma forma diversa de raciocinar. Raciocinar no se
resume a inferir, calcular e demonstrar, mas consiste tambm em fornecer razes
pr ou contra uma dada tese. Para Perelman, parece inaceitvel ignorar esses
argumentos a pretexto de que so alheios lgica formal. O prprio pai da lgica
formal, Aristteles, no deixou de tratar da lgica da controvrsia.
A perspectiva retrica pe claramente o problema semitico e desperta o
interesse pela dialgica, no sentido da lgica operativa. A pragmtica o campo
da retrica. A nova retrica se esfora para fazer compreensvel toda
argumentao dentro da situao do discurso. Partindo-se da pragmtica, procura-
se tornar compreensvel todos os demais resultados do pensamento. O acontecer
cotidiano se desenvolve diferentemente do modelo semntico: aquilo que aqui e
agora aceito, resulta de uma situao de comunicao complexa. Na retrica, o
que interessa elucidar como se leva a cabo a comunicao, sendo necessrio
investigar o permanente processo de criao que na situao de discurso produz
-
36
significados lingsticos. O uso da linguagem tem aqui importncia especial, pois
impede-se a mecnica rgida e possibilita-se uma criao flexvel e controlvel.
Quanto ao carter descritivo levado a cabo no estudo da nova retrica,
segundo Perelman a filosofia pode lucrar muito abandonando sua tradio anti-
retrica e procurando aprender mais com o direito. A anlise de como se raciocina
efetivamente sobre valores pode servir de elemento para modificar inteiramente a
perspectiva do raciocnio em geral. A situao do filsofo se parece muito mais
com a do juiz do que com a do matemtico: a ele tambm cabe decidir17
. Como diz
Perelman, a anlise das decises judicirias fornece, assim, um excelente
material para a constituio de uma lgica dos juzos de valor, integrados numa
teoria geral da argumentao" (1996:620). Perelman prope assim um estudo
descritivo, que parte de como os homens efetivamente argumentam e constri, a
partir da, os esquemas argumentativos.
Quanto noo de auditrio, ela essencial em qualquer perspectiva
retrica, na qual o argumento no impessoal, mas busca a adeso do auditrio.
Podemos conceitu-lo como o conjunto daqueles dos quais se quer ganhar a
adeso. A argumentao correta aquela que eficaz sobre o auditrio, tendo por
base a plausibilidade. Perelman distingue vrios tipos de auditrios e o nico
critrio para avaliar os argumentos est na qualidade do auditrio.
17
Quanto importncia do modelo jurdico na argumentao filosfica, ver o debate entre Perelman e Ricoeur
(Perelman. 1996:119-122)
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37
3.6.2. A novssima retrica
A proposta de Boaventura de Sousa Santos (2000), sua "novssima
retrica", insere-se numa rede terica que incorpora, alm da nova retrica de
Perelman, a crtica epistemolgica, realizada por pensadores como Nietzsche,
Heidegger, Gadamer e Foucault, e a influncia do pragmatismo americano via
James, Dewey e tambm a leitura de Habermas.
O problema retrico apresenta-se para Boaventura dentro de seu estudo
acerca do conhecimento emancipatrio, como uma espcie de estratgia para
proliferar as comunidades interpretativas. O resultado do conhecimento retrico
sempre provisrio, fruto de uma negociao de sentido realizada num auditrio
relevante. Ao contrrio de Perelman, que chega na questo retrica a partir da
lgica, Boaventura tem preocupaes sobretudo de cunho epistemolgico e
sociolgico.
Boaventura distingue na retrica, em sua relao com a cincia, duas
verses: uma fraca e outra forte. A primeira encontra retrica na cincia e a
segunda v toda a cincia como retrica (2000:98). Boaventura assume a segunda
verso, mais radical, e desenvolver um longo estudo crtico da cincia moderna
(ocidental, capitalista e sexista) procurando elaborar uma cincia ps-moderna
fundada na tolerncia, na prudncia, no encantamento da natureza, no carter
retrico e na solidariedade. Desses elementos, o que interessa aqui seu aspecto
retrico, e sobretudo sua crtica dirigida contra a retrica de Perelman.
Na leitura de Boaventura de Sousa Santos (2000:98-106), podemos
distinguir cinco crticas principais levantadas contra a proposta de Perelman. A
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38
primeira, afirma que a nova retrica eminentemente tcnica, e por isso no
consegue adjudicar entre a persuaso e o convencimento. Em segundo lugar, o
auditrio e a comunidade seriam imutveis para Perelman. A nova retrica no
reflete os processos sociais de incluso ou excluso e encara o auditrio apenas
como um dado. Em terceiro lugar, a nova retrica seria manipuladora, constituda
por oradores que visam apenas influenciar e no se consideram eles mesmos
influenciados. Em quarto lugar, a distino perelmaniana entre orador e auditrio
teria dado ao orador um papel preponderante, sendo ele o protagonista dessa
relao, algo semelhante ao que ocorre na relao da cincia moderna entre
sujeito e objeto. Por fim, em quinto lugar, a nova retrica estaria presa
necessidade de topoi fixos, trabalhando com a estabilidade e a durao das
premissas. Em suma, Boaventura conclui que a retrica de Perelman demasiado
moderna para contribuir para o conhecimento ps-moderno.
Na "novssima retrica" intensifica-se a dimenso dialgica. A distino
orador-auditrio perde sua rigidez e se transforma numa seqncia dinmica de
posies com resultados sempre inacabados. Os topoi so postos em questo,
inventa-se novos topoi, novos campos de conhecimento partilhado e novas
batalhas argumentativas (2000:105). Trs elementos, no mnimo, so essenciais
para se entender a proposta de Boaventura: a sociologia da retrica, a neo-
comunidade e a tpica social.
Na sociologia da retrica, o auditrio est em permanente formao, no
sendo algo fixo, mas ao contrrio um processo social. Inclui-se nesse estudo
tambm a relao entre os auditrios. Observa-se assim toda uma preocupao
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sociolgica referente prtica argumentativa, devendo-se levar em considerao
os processos de incluso e excluso, as relaes de poder, etc.
A neo-comunidade definida como a constelao de neo-auditrios
relevantes, um processo scio-histrico que parte do consenso local-imediato
mnimo sobre pressupostos de um discurso argumentativo que permita identificar o
colonialismo como forma de ignorncia e avana medida que a argumentao
mais solidria (2000:109).
E a tpica social parte da idia de que existem tantos sensos comuns
quantos so os domnios tpicos. As comunidades so relaes sociais e os
auditrios so vistos como enquadramentos argumentativos dessas relaes,
existentes numa dada formao social. Nas formaes sociais capitalistas,
Boaventura encontra seis domnios tpicos: o espao domstico, o da produo, o
do mercado, o da comunidade, o da cidadania e o mundial. Como no pode haver
emancipao sem uma tpica de emancipao (2000:110), prope-se assim, para
cada domnio tpico respectivamente a seguinte superao: da tpica patriarcal
para a da libertao da mulher, da tpica capitalista para a eco-socialista, da tpica
do consumismo para a das necessidades fundamentais, da tpica chauvinista para
a cosmopolita, da tpica democrtica fraca para a forte e, por fim, da tpica do
Norte para a do Sul. Para Boaventura, "a inveno social de um novo
conhecimento emancipatrio (...) uma das condies essenciais para romper
com a auto-reproduo do capitalismo" (2000:117). Nesse sentido, ele buscar em
vrias oportunidades desenvolver esse projeto de criao de novos sensos
comuns emancipatrios, que se caracterizam sobretudo pelo carter solidrio,
participativo e reencantado.
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Para concluir esse estudo histrico, seria interessante voltar ao debate entre
Perelman e Boaventura, no sentido de procurar tomar uma posio em relao a
essas duas propostas. Apesar da incluso de aspectos sociolgicos e
epistemolgicos na problemtica retrica constituir uma postura interessante e
pertinente, no se v em Boaventura uma concatenao que seria ideal desses
elementos. Alm disso, ressaltar o aspecto social da prtica argumentativa
acarreta uma srie de problemas lgicos que deveriam ser tratados
detalhadamente, como a questo da validade ou eficcia da argumentao. Talvez
por faltar esse estudo, Boaventura acaba assumindo uma distino que do ponto
de vista lgico bastante perigosa, que aquela entre persuaso e
convencimento. Boaventura acusa a nova retrica de ser tcnica exatamente
porque no consegue adjudicar entre esses dois plos. De um lado, a adeso
baseada na motivao para agir e, de outro, a adeso baseada na avaliao das
razes para agir. Boaventura privilegia o convencimento e acentua as razes em
detrimento dos resultados. Como foi ressaltado, diferenciar persuaso de
convencimento de maneira rgida constituiu um resqucio vindo desde a Grcia
Antiga, que opunha os sofistas dos filsofos, e assenta-se numa concepo
ingnua da razo, como procurar-se- mostrar no prximo captulo, consagrado
retrica filosfica.
Uma vez que o objetivo desse estudo est voltado para a questo da
racionalidade, privilegiar-se- a proposta de Perelman relativa retrica. No se
quer com isso dizer que a "novssima retrica" errou em todas as suas crticas
dirigidas contra a "nova retrica" e que a incluso do aspecto sociolgico e
epistemolgico no so interessantes para a problemtica retrica. Ao contrrio,
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41
constituem um campo frtil e que deve ser explorado. Porm, ater-se- aqui a
questo da retrica enquanto uma postura filosfica para se pensar a racionalidade
e o direito. Alongar mais suas relaes com a sociologia e a epistemologia seria
alargar em excesso o campo o ser tratado e desviaria o texto.
4. RETRICA FILOSFICA: BUSCA DE UMA NOVA RACIONALIDADE
Assiste-se, h quarenta anos, a um lento renascimento da importncia da
retrica. A perspectiva retrica permite compreender melhor o prprio
empreendimento filosfico, definindo-o consoante uma racionalidade que
ultrapassa a idia de verdade, sendo o apelo razo compreendido como um
discurso dirigido a um auditrio.
Quando as premissas no so evidentes em si, mas apenas parecem
verdadeiras a um auditrio particular, aparentemente camos num relativismo ("a
cada um sua verdade"). Mas a objeo de que a retrica no est a servio da
"verdade" repousa sobre uma idia falaciosa da verdade, na qual seria verdadeiro
aquilo que espelha de alguma maneira a realidade. A retrica filosfica procura
explicar o que se tem por racional, verdadeiro e objetivo sem contudo recorrer a
uma concepo ingnua da razo, como uma espcie de faculdade divina
partilhada por todo ser humano. Reboul chega a dizer que " iluso infantil opomos
a razo adulta" (1998:230). Nesse sentido, chamar tal perspectiva de relativista
no auxilia em nada a prtica filosfica, mas ao contrrio procura pensar a filosofia
a partir de clivagens eternas: de um lado verdades eternas e de outro relativismo.
Tais posturas partem da idia de que a filosofia desde sempre deve ser analisada
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necessariamente como uma oscilao entre dois plos eternos e, independente de
qualquer pesquisa, no possvel elaborar novos conceitos que deixem
impertinente tal ciso. Nesse sentido, vale lembrar Heidegger que, quando
elaborou sua crtica ao ctico e postulao de verdades eternas, alertou para o
perigo das fissuras filosficas. Sua ontologia existencial do Dasein repousava
numa via nova, que no se deixava classificar como antropolgica ou subjetiva
idealista. Dizia Heidegger:
"Pode-se chamar isso uma filosofia antropocntrica ou idealista subjetivista. Mas
tais etiquetas no dizem nada quanto atividade filosfica, elas so destinadas
apenas a fazer valer sem fundamento tal ou qual ponto de vista, ou ainda a
estigmatiz-lo demagogicamente de maneira tambm completamente arbitrria"18
(Heidegger, 18, p.269).
O alerta de Heidegger importante aqui para se pensar a retrica filosfica
que, embora esteja bastante distante da ontologia heideggeriana, tambm procura
novos conceitos e rompe com antigas cises filosficas. claro que existe o risco
de cair-se num relativismo, mas para que tal crtica seja realizada, deve-se
esclarecer a partir de onde ela feita. Costuma-se criticar o pluralismo filosfico a
partir de um ponto de vista divino, de algum que possa julgar todos os auditrios
possveis sem partir de nenhum. Infelizmente, no dispomos desse ponto de vista
privilegiado, o que nos convida a uma prtica filosfica mais tolerante, baseada no
discurso no constringente. Pode-se dizer que os auditrios se julgam uns aos
outros e que procurar julgar a todos os auditrios querer ser Deus, ou seja, uma
tarefa exorbitante e ilusria. O esforo da retrica filosfica estaria exatamente em
18
No francs: "On peut nommer cela une philosophie ou idaliste subjectiviste. Mais de telles tiquettes ne
disent rien quant l'activit philosophique, elles ne sont destines qu' faire valoir sans fondement tel ou tel
point de vue, ou encore le stigmatiser dmagogiquement de manire tout aussi arbitraire".
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43
estudar a racionalidade sem partir de uma idealizao divina da razo e sem
contudo cair num relativismo.
Para realizar o estudo da retrica filosfica enquanto busca de uma nova
racionalidade, procurar-se- num primeiro momento analisar a origem da prtica
filosfica como atividade mtica e depois avaliar como se deu a passagem para a
dialtica, enquanto mtodo da argumentao filosfica. Aps esse estudo dos
antecedentes histricos, procurar-se- explicitar em que consiste a teoria da
argumentao e avaliar algumas de suas propostas contemporneas.
4.1. Origem da filosofia 19
A filosofia surge de uma disposio retrica associada a um treinamento
dialtico e um estmulo agonstico. Ela fruto da sabedoria grega e tem sua
origem no culto dlfico. Para entender o impulso que deu origem filosofia,
preciso investigar a relao entre o delrio e o mito e o delrio e a sabedoria como
matrizes do pensamento filosfico. A princpio, a sabedoria estava relacionada com
a exaltao religiosa e tinha um carter agnico. Enigmas eram propostos aos
homens pelos deuses (Apolo20
) ou atravs do orculo. Ao se colocar um enigma, o
agonismo evidente, pois a derrota significa a morte. Nesse sentido, quando
dipo vence a Esfinge, conseguindo desvendar o enigma proposto, tal faanha
19
Esse estudo baseia-se sobretudo em Colli (1996). 20
Apolo simboliza o olho penetrante, seu culto celebra a sabedoria. Contrrio a Nietzsche, afirma Colli que "a
esfera do conhecimento e da sabedoria liga-se com muito mais naturalidade a Apolo do que a Dionsio. Falar
de Dionsio como o deus do conhecimento e da verdade, entendidos estritamente como intuies de uma
angstia radical, significa pressupor na Grcia um Schopenhauer que l no existiu" (1996:13).
-
44
significou a morte do carter oracular e divino dos problemas propostos. O debate
desviou-se da relao Deus-homem para a relao homem-homem.
Tambm o labirinto, na mitologia grega, remete a essa idia do desafio
divino. Como no enigma, o labirinto um jogo que se transforma num trgico
desafio, em perigo mortal do qual apenas o sbio ou o heri podem se salvar. O
labirinto uma armadilha, uma espcie de confuso geomtrica, racional, tal como
um problema matemtico de enormes propores, dentro do qual o homem se
perde. Segundo Colli:
"A forma geomtrica do Labirinto, com sua insondvel complexidade, inventada
por um jogo bizarro e perverso do intelecto, alude a uma perdio, a um perigo
mortal que insidia o homem, quando este se arrisca a enfrentar o deus. (...) O
conflito deus-homem, que na visibilidade representado simbolicamente pelo
Labirinto, na sua transposio interior e abstrata encontra seu smbolo no enigma."
(1996:23).
Aos poucos o fundo religioso desaparece e emerge o carter humano. A
razo humanizada pela dialtica, que se caracteriza por ser um discurso
autnomo que tem seu lugar na esfera pblica. "Essa prtica de discusso foi o
bero da razo em geral, da disciplina lgica, de todo o refinamento discursivo"
(Colli, 1996:65). O agonismo entretanto continua presente, mas na dialtica o
enigma humanizado (relao homem X homem). Tambm o filsofo colocado
frente a um desafio que precisa ser vencido. Segundo Colli:
"A dialtica nasce no terreno do agonismo. Quando o fundo religioso se afastou e
o impulso cognoscitivo no precisa mais ser estimulado por um desafio do deus,
quando uma disputa pelo conhecimento entre os homens no mais requer que
estes sejam advinhos, eis que aparece um agonismo apenas humano." (1996:63).
Enquanto a razo existente na exaltao religiosa versava sobre um objeto
externo discusso mesma, existente numa outra esfera privilegiada, com o
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45
processo de humanizao da razo esta transforma-se num discurso autnomo,
que se d na esfera pblica. A retrica surge nesse processo de humanizao da
razo como uma variante degenerada da dialtica. A retrica preserva o carter
agnico, porm o feixe dialtico tradicional entre os dois adversrios desaparece e
aparece no lugar desse nico adversrio um auditrio, que para ser conquistado
deve ser tambm analisado quanto ao seu carter emocional. "Dramaticidade,
dialtica, retrica, viso teortica e escrita constituem os elementos bsicos do
surgimento da filosofia e do conhecimento cientfico" (Paviani, 1993:52). Nesse
sentido, Grgias vai dizer que no existe mais sbio, mas apenas sofistas,
assumindo assim explicitamente o niilismo terico.
A distino entre sofia e filosofia importante para clarear como se deu o
surgimento da segunda e o descrdito da primeira. A sofia est relacionada
exaltao religiosa, a alguma forma de intuio privilegiada. J a filosofia relaciona-
se ao discurso. Plato diferenciou a figura do filsofo daquela do sbio. A sofia
divina e o sbio um homem divino. Jamais Scrates se disse sbio, e seu mrito
estaria em ter vivido filosofando, ou seja, examinando a si mesmo e aos outros,
interrogando, refutando, dialogando e colocando prova. A grande sabedoria
humana consistiria em saber que preciso filosofar. Curiosamente a tradio leu a
filosofia platnica como um saber equivalente em tudo sofia. Segundo Dixsaut:
"Tudo aquilo que nos dilogos constituam a diferena da filosofia entrou dentro do
campo da sofia e virou objeto para uma sofia. (...) Depois de Plato, o nome
(filsofo) permanecer, designando exatamente aquilo que antes dele, num
sentido ou noutro, era chamado sofia"21 (1985:56).
21
No original: "Tout ce qui dans les Dialogues constitue la diffrence de la philosophia est entr dans le champ
de la sophia, est devenue objet pour une sophia. (...) Aprs Platon, le nom restera, dsignant trs exactement ce
qui avant lui, dans un sens ou dans un autre, s'tait appel sophia."
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46
Ressalta-se tambm como importante a passagem da tradio oral para a
expresso escrita. Plato observou bem como a filosofia escrita tinha um carter
dbio, pois significava tambm a morte do pensamento vivo ao transformar os
debates filosficos em algo fixo, o que contrariava a dinmica mesma do logos.
Talvez por isso Plato tenha escrito sob a forma de dilogos, procurando preservar
ao mximo o movimento inerente ao logos. O ensino na Academia era
essencialmente oral e paralelo aos textos, destinados ao grande pblico, parece
sustentvel que Plato tivesse desenvolvido as "teorias no-escritas", de carter
esotrico e restrito apenas aos iniciados.
Querer apartar completamente Plato do misticismo, lendo-o como apenas
intelectualista, mascarar grande parte do contedo de seus dilogos e procurar,
como fizeram os modernos, racionalizar os gregos. Na Grcia Antiga existiam ecos
mltiplos de bruxaria, cultos primitivos e tcnicas de iluso, e a busca da verdade
filosfica constitua algo novo, o chamado "milagre grego", mas que no existia
completamente dissociado dos demais elementos, sobretudo antes de Aristteles
ter definido de maneira mais clara o estatuto mesmo da filosofia. As foras que
entram na atividade filosfica assemelham-se quelas presentes nos orculos e a
distino entre essas atividades no se deu facilmente. Alis, de se questionar
se ainda hoje o carter de iniciao e encantamento esto realmente apartados da
prtica filosfica. O que permanece do mito na filosofia torna-se uma presena
desafiadora.
Nesse intento de buscar na filosofia uma prtica distinta da exaltao
religiosa, Plato teria sido o primeiro a colocar claramente o problema. De um lado,
tinha-se o orculo, o discurso mtico e de outro a sofstica, mera tcnica retrica de
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47
persuaso. Com o orculo estava a verdade, porm em seu aspecto intuitivo, no
discursivo. Com os sofistas estava a arte do discurso, porm sem
comprometimento com a verdade. Em seus dilogos de juventude essa questo
ainda no se colocava claramente, somente aps o Fedro que a exigncia de uma
retrica e de uma filosofia eficazes juntaram-se aspirao em direo verdade
e sua busca. Segundo Brs:
"Eros de uma s vez feiticeiro, encantador, iniciador aos mistrios filosficos da
verdade, da autenticidade e da felicidade. Uma vez efetuada a desmistificao,
precisava-se recorrer a novos meios que vo talvez transformar a atitude do
filsofo em relao busca da verdade"22 (1968:359).
Plato encontrou nos pitagricos, que preservavam ainda o carter oracular,
a possibilidade de transpor suas teorias a partir do logos discursivo, que seria
agora comprometido com a verdade. Esse discurso respeitava um mtodo prprio,
a dialtica ou boa retrica, e nesse espao intermedirio Plato ergueu a filosofia.
"A dialtica a nica cincia digna desse nome. Instaurando um uso diferente do
logos, sabendo interrogar e responder, ela sabe tambm que no h outra
modalidade de saber" (Dixsaut, 1985:66).
Resumindo a transio do enigma divino filosofia tem-se, primeiramente, a
relao Deus-homem, num segundo momento tem-se a relao advinho-advinho,
em que se preserva o carter oracular do debate (possvel apenas entre os
"iniciados" na sofia) e, por fim, a relao homem-homem, atravs de um logos
22
No original: "Ers est la fois le sorcier, l'enchanteur, l'initiateur aux mystres philosophiques de la vrit,
de l'authenticit et du bonheur. Une fois effectue la dmystification, il faudra avoir recours de nouveaux
moyens qui vont peut-tre transformer l'attitude du philosophe envers la recherche de la vri."
-
48
discursivo (dialtica). Numa linha tem-se: exaltao religiosa, enigma oracular,
sabedoria e filosofia.
4.2. A dialtica
A dialtica a arte do discurso vivo, do discurso a dois. "O dilogo
agressivo, tem em mira uma vitria que no predeterminada: uma batalha de
silogismos" (Barthes, 1975:172). O processo binrio (sim ou no) e renem-se
testemunhos contraditrios. "Tudo codificado, ritualizado num manual que
regulamenta minuciosamente a disputatio, para impedir a discusso de desviar-se"
(Barthes, 1975:173). Procura-se levar o oponente a se contradizer, para assim
domin-lo, elimin-lo e anul-lo. Clicles, no dilogo Grgias, prefere calar-se a
contradizer-se. O silogismo a arma e ambos combatentes so carrascos que
tentam castrar-se mutuamente. A dialtica no nem moral nem imoral, mas
apenas um jogo. Como todo jogo, existem regras que devem ser preservadas, e
foram exatamente essas regras que Aristteles insistiu que diferenciava a dialtica
da sofstica, enquanto mera trapaa.
Reboul define a dialtica como "um jogo cujo objetivo consiste em provar ou
refutar uma tese respeitando-se as regras do raciocnio" (1998:32). Entretanto, no
uso filosfico da dialtica, abandona-se o mero jogo tendo em vista o cumprimento
de um papel epistemolgico. O filsofo no joga apenas, mas busca se utilizar da
dialtica para buscar a verdade. Segundo Reboul:
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"no uso filosfico, tm-se em mente todas as objees possveis, ainda que estas
jamais tenham sido formuladas nem sejam formulveis. O filsofo est diante de
um adversrio que renasce a cada instante, pois est sempre insatisfeito: ele
mesmo" (1998:33).
Relacionando a retrica com a dialtica, pode-se dizer que essas duas
disciplinas se entrecruzam, se opem e se identificam s vezes. muito difcil
precisar em que consistiu exatamente essas disciplinas, tendo em vista que em
suas origens temos as mais variadas concepes. As opinies dos especialistas
contemporneos refletem essa confuso e tornam uma descrio ainda mais
complicada. Nesse estudo, adota-se a viso partilhada pela maioria dos autores
analisados23
, na qual a retrica uma tcnica do discurso que busca o
convencimento e a persuaso podendo utilizar a dialtica como instrumento
intelectual, enquanto a dialtica um jogo intelectual que, dentre as suas possveis
aplicaes, comporta a retrica.
O esquema da dialtica funciona com dois oradores: o defensor e o
atacante. O atacante aquele que prope a pergunta inicial e dirige toda a
discusso. O atacante tem uma grande vantagem a seu favor, sendo considerado
o perfeito dialtico, aquele que lana a flecha e espera o momento em que ela
acertar seu adversrio (a violncia protelada de Apolo). Ao defen