2010 - anais eletrÔnicos lhia

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ANAIS ELETRNICOS

UNIDADE & DIVERSIDADEXX CICLO DE DEBATES EM HISTRIA ANTIGA

Rio de Janeiro 2012

ANAIS ELETRNICOS DO XX CICLO DE DEBATES EM HISTRIA ANTIGA UNIDADE & DIVERSIDADE NMERO 6 - ANO VI - 2012 ISSN: 1980-7015

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJREITOR: PROF. DR. CARLOS ANTNIO LEVI DA CONCEIO

INSTITUTO DE HISTRIA - IHDIRETOR: PROF. DR. FBIO DE SOUZA LESSA

LABORATRIO DE HISTRIA ANTIGACOORDENADOR: PROFA DRA. MARTA MEGA DE ANDRADE

EDITORES:PROF. DOUTORANDO ALEXANDRE SANTOS DE MORAES PROF. EDSON MOREIRA GUIMARES NETO PROF. DR. FBIO DE SOUZA LESSA PROFA. DRA. REGINA MARIA DA CUNHA BUSTAMANTE PROFA. DOUTORANDA VANESSA FERREIRA DE S CODEO

BUSTAMANTE,ReginaMariadaCunha;CODEO,VanessaFerreiradeS;LESSA, FbiodeSouza;MORAES,AlexandreSantosde(Orgs.) Anais Eletrnicos do XX Ciclo de Debates em Histria Antiga Unidade & Diversidade. Realizado no Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da UFRJ de 13 a 17 de setembrode2010. Rio de Janeiro, Setembro de 2012 Laboratrio de Histria Antiga ISSN 1980 7015 AnaisEletrnicosdoXXCiclodeDebatesemHistriaAntiga I. Histria Antiga II. Interdisciplinariedade III. Anais Eletrnicos IV. BUSTAMANTE,ReginaMariadaCunha;CODEO,VanessaFerreiradeS;LESSA, FbiodeSouza;MORAES,AlexandreSantosde,NETO,EdsonMoreiraGuimares A responsabilidade pelos artigos exclusiva de seus autores.

ndiceAdriana Conceio de Sousa...........................................................................................006 Alessandra Serra Viegas e Jean Felipe de Assis............................................................019 Alexandre G. Carvalho.....................................................................................................043 Alter Rodrigues Elvas Cordeiro........................................................................................052 Ana Carolina Caldeira Alonso..........................................................................................066 Ana Ceclia A. Nga e Josiane Gomes da Silva..............................................................080 Ana Gabrecht...................................................................................................................089 Ana Lcia Santos Coelho.................................................................................................093 Arlete Jos Mota..............................................................................................................106 Bruna Maria Campos Leito............................................................................................118 Bruna Moraes da Silva e Renata Cardoso de Souza......................................................128 Bruna Moraes da Silva.....................................................................................................136 Bruno dos Santos Silva....................................................................................................146 Camila Alves Jourdan......................................................................................................161 Carlos Eduardo da Costa Campos..................................................................................173 Carolline da Silva Soares.................................................................................................183 Christiano Laurett Neto....................................................................................................200 Cintia Prates Facuri..........................................................................................................212 Cintya Francisca dos Santos...........................................................................................230 Claudia dos Santos Gomes.............................................................................................244 Cludio Umpierre Carlan..................................................................................................262 Diego Ferreira Rosas.......................................................................................................271 Diego Vieira da Silva........................................................................................................284 Diogo dos Santos Silva....................................................................................................298 Eduarda Angelim Soares Souza......................................................................................307 Emerson Rocha de Almeida............................................................................................318 rika Rodrigues Corra....................................................................................................326 rika Vital Pedreira..........................................................................................................337 Estela de Melo Faria........................................................................................................346 Fabiano de Souza Coelho................................................................................................355 Flvia Maria Schlee Eyler e Paloma Brito........................................................................374 Gabriel Lohner Grf.........................................................................................................387 Giovanna Marina Giffoni..................................................................................................399 Giselle Moreira da Mata...................................................................................................411

Isabela Ferreira Silva Souza............................................................................................421 Ivan Vieira Neto................................................................................................................429 Joana Paula Pereira Correia............................................................................................442 Josiane Gomes da Silva..................................................................................................452 Las Luz de Menezes e Josiane Gomes da Silva............................................................466 Lalaine Rabelo.................................................................................................................478 Liliane Cristina Coelho.....................................................................................................485 Lolita Guimares Guerra..................................................................................................511 Luciana Ferreira da Silva.................................................................................................525 Lus Eduardo Formentini..................................................................................................532 Luis Filipe Bantim de Assumpo....................................................................................542 Luiz Maurcio Bentim da Rocha Menezes........................................................................555 Lyvia de Britto Perdigo Ferreira.....................................................................................565 Macsuelber de Cssio Barros da Cunha.........................................................................574 Marcella Albaine Farias da Costa....................................................................................583 Marcelo Coutinho de Oliveira...........................................................................................592 Marco Antnio Lima da Silva...........................................................................................601 Maria Anglica Rodrigues de Souza................................................................................608 Maria Elizabeth Bueno de Godoy....................................................................................615 Nicodemo Valim de Sena.................................................................................................624 Otvio Luiz Vieira Pinto....................................................................................................636 Patricia Cardoso Azoubel Zulli.........................................................................................646 Paulo Roberto Souza Da Silva.........................................................................................657 Pedro Vieira da Silva Peixoto...........................................................................................667 Poliane da Paixo Gonalves Pinto.................................................................................679 Priscila Cspede Cupello.................................................................................................690 Regina Coeli Pinheiro da Silva.........................................................................................706 Renata Cardoso de Sousa...............................................................................................721 Renata Sammer...............................................................................................................732 Robson Murilo Grando Della Torre..................................................................................755 Rodrigo Santos M. Oliveira..............................................................................................769 Rosane Dias de Alencar..................................................................................................777 Simone Rezende da Penha Mendes...............................................................................790 Tania Martins Santos.......................................................................................................799 Thais Rocha da Silva.......................................................................................................807 Tricia Magalhes Carnevale............................................................................................823 Victor Emmanuel Teixeira Mendes Abalada....................................................................829

CONFLITOS POLTICOS NO REINO VISIGODO E NO REINO FRANCO NOS SCULOS VI E VII: ALGUNS ASPECTOS Adriana Conceio de Sousa*

Introduo Este trabalho se insere em nossa pesquisa de mestrado, desenvolvida desde o incio de 2010 sob orientao da professora Dr. Leila Rodrigues da Silva, do PPGHC/UFRJ, e que tem como tema as ideologias de legitimao da monarquia visigoda no sculo VII, tal como se manifestam em duas narrativas elaboradas no perodo. Um dos documentos que so objeto da pesquisa em questo a narrativa hagiogrfica Vita Desiderii, escrita em 615, aproximadamente, pelo rei visigodo Sisebuto (612-621). Durante estudos realizados anteriormente sobre esta obra, ainda durante a graduao, certo dado atpico sobre a hagiografia chamou a nossa ateno: alm de ter sido produzida pelo rei o que, por si s, pode ser considerado incomum a narrativa trata de acontecimentos que teriam se dado no no reino visigodo, mas em um reino vizinho, o dos francos, ento governados pela dinastia merovngia. Desde ento, temos nos dedicado a refletir sobre, dentre outras questes, o possvel significado desse dado no que concerne s relaes polticas entre os dois reinos germnicos. A comunicao que aqui se apresenta uma iniciativa de reflexo sobre o tema, com o objetivo de indicar algumas das contribuies da historiografia recente ao estudo e compreenso das relaes entre os reinos franco e visigodo nos sculos VI e VII. Na primeira parte do texto, nossa exposio centrar-se- na questo da poltica matrimonial envolvendo os dois reinos no sculo VI. Na segunda, analisaremos alguns exemplos de

Mestranda do Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ). Bolsista Capes-UFRJ.

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interconexo entre as disputas polticas travadas no interior de cada um desses reinos no sculo VII.

Expanso territorial e poltica matrimonial no sculo VI As relaes entre francos e visigodos no sculo VI foram influenciadas, direta ou indiretamente, pelas conseqncias da Batalha de Vouill (507), em que os visigodos comandados por Alarico II (485-507) so derrotados pelos francos de Clvis (466-511). Este evento significativo no apenas porque marca o incio da transferncia do eixo poltico visigodo da Glia para a Hispania, mas tambm porque vrias iniciativas seriam tomadas pelos reis visigodos em relao aos reis merovngios nas dcadas seguintes, visando firmar laos de interdependncia poltica e dinstica entre os dois reinos. Tais laos teriam o propsito tanto de garantir a perpetuao de determinados grupos polticos visigodos e francos no poder, como tambm de frear o impulso expansionista franco em direo ao territrio visigodo. As trocas matrimoniais foram o principal recurso de que as duas monarquias lanaram mo para fins de aproximao mtua (WOOD, 1994, p. 169). O casamento entre Amalarico (526-531), filho de Alarico II, e Clotilde, filha do rei merovngio Clvis, resultou do ponto de vista diplomtico em um grande fracasso, desencadeando mais uma invaso franca ao invs de evit-la (CASTELLANOS, 2007, p. 78-79).1 Uma nova tentativa de aproximao ocorre com Atanagildo, que une suas duas filhas, Galsvinta e Brunequilda, com os reis francos Chilperico da Nustria e Sigeberto da Austrsia, respectivamente, na dcada de 560 (ISLA FREZ, 1990, p. 12).2 Nenhum dos dois casamentos tem o resultado esperado: Galsvinta encontrada morta pouco tempo

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depois de seu casamento, em 567, e a atuao que a rainha Brunequilda passa a ter no cenrio franco no seria nem um pouco favorvel aos interesses visigodos. Deve-se destacar aqui o papel desempenhado pelas guerras civis travadas pelos quatro netos de Clvis Chilperico (Nustria, 561-584), Cariberto (Aquitnia, 561567), Sigeberto (Austrsia, 561-575) e Gontro (Burgndia, 561-592) na definio da conjuntura poltica franca da segunda metade do sculo VI e de princpios do sculo VII. Aps a morte de Clotrio I (511-561), o reino franco repartido entre seus quatro filhos ainda vivos, que passam a lutar entre si com o fim de ampliar os seus prprios territrios. Marcelo Cndido da Silva assinala que as partilhas do reino franco, longe de seguir uma lgica puramente patrimonial como defendia a historiografia tradicional, obedeciam a critrios bem objetivos, tais como, por exemplo, a proporcionalidade do potencial econmico/tributrio das cidades e as particularidades polticas das aristocracias de cada provncia (SILVA, 2008, p. 142-163). Chilperico, que embora tenha tomado posse de Paris, termina por receber o menor dos reinos, inicia uma poltica externa agressiva em direo aos territrios governados pelos seus irmos, atitude que, para Edward James, seria fruto, dentre outros aspectos, da necessidade que o monarca em questo tinha de manter a fidelidade dos guerreiros a ele subordinados e da posio de seu reino, comprimido entre os outros trs e, logo, sem outras possibilidades de expanso. A morte de Cariberto em 567, e a subseqente diviso da Aquitnia entre os seus irmos, no encerra o conflito (JAMES, 1988, p. 169-172), que se prolongaria at 613, ano em que o filho de Chilperico, Clotrio II (584-629), conquista a Burgndia, ento governada por Brunequilda, regente durante a menoridade de seu bisneto, e unifica todo o Regnum Francorum sob sua autoridade.

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em meio a esses conflitos que devemos situar as alianas e conflitos entre francos e visigodos na segunda metade do sculo VI. O assassinato de Galsvinta, segundo Gregrio de Tours (ISLA FREZ, 1990, p. 12), teria sido obra de pessoas a servio de Fredegunda, uma das concubinas de Chilperico que passa posio de esposa oficial aps o incidente. A primeira conseqncia dentro do reino franco teria sido o aumento das hostilidades entre Chilperico e Sigeberto este, casado com a irm de Galsvinta, Brunequilda. Liuva (568-573) e, principalmente, Leovigildo (573-586), os reis visigodos que sucedem Atanagildo, morto em 568, ficam em uma posio delicada: mais do que antes, era agora praticamente impossvel buscar estabelecer relaes amistosas tanto com a Nustria quanto com a Austrsia. Em meados da dcada de 570, Leovigildo une seu filho mais velho, Hermenegildo, Ingunda, filha de Brunequilda e irm de Childeberto II, que elevado ao trono da Austrsia em 575, aps o assassinato de seu pai. Na dcada de 580, s voltas com a rebelio liderada por Hermenegildo, Leovigildo planeja unir Recaredo Rigunta, filha de Chilperico e Fredegunda, mas o casamento no chega a acontecer, por conta do assassinato do soberano da Nustria em 584. Alis, uma das motivaes da rebelio de Hermenegildo, no entendimento de Amancio Isla Frez, seria justamente a aproximao de Leovigildo a Chilperico. Vale lembrar que a esposa de Leovigildo, a rainha Gosvinta, sendo tambm viva de Atanagildo, era me de Brunequilda e de Galsvinta, esta assassinada na corte da Nustria. Um dos objetivos que Leovigildo tinha ao casar-se com a viva de seu antecessor era o de conquistar a adeso da aristocracia da Btica, provncia ao sul da Pennsula Ibrica, grupo que apoiara fortemente Atanagildo na sua ascenso ao poder. Esta tambm foi a regio que o monarca confiou a Hermenegildo, aps o casamento

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deste com Ingunda, neta de Gosvinta. Os acordos entre Leovigildo e Chilperico se deviam a aproximao que se operava na ocasio entre a Austrsia de Childeberto II e Brunequilda e a Burgndia de Gontro, que fragilizaria a situao da Septimania visigoda. Tais contatos, entretanto, no foram bem-vistos por Gosvinta e seus aliados, que teriam ento instigado Hermenegildo a assumir a posio de rei, em detrimento do pai, em 578, contando com o apoio de Austrsia, Burgndia e Bizncio (ISLA FREZ, 1990, p. 14-24). Ao iniciar-se a dcada de 580, no entanto, as relaes de fora no reino franco se alteram, e o quadro poltico no reino visigodo se modifica na mesma proporo. A morte de Chilperico, em 584, e o apoio que Gontro, temeroso diante da possibilidade de um fortalecimento excessivo de Childeberto II, dispensa viva Fredegunda e a Clotrio, na poca com 2 anos de idade, apesar dos protestos de Brunequilda e seu filho, dentre outros problemas, acabam por colocar Burgndia e Austrsia em lados opostos novamente. Esses fatos, somados falta do apoio das tropas bizantinas, fazem com que Hermenegildo termine por perder a guerra travada contra Leovigildo e acabe morto, em 585 (CASTELLANOS, 2004, p. 231).3 Seu filho Atanagildo, tomado como uma espcie de refm pelos bizantinos, passa a ser utilizado pelo imperador para forar Brunequilda e Childeberto II a apoiar Bizncio nos conflitos em que o Imprio se encontrava envolvido na Itlia (ISLA FREZ, 1990, p. 25-27). Gontro, a partir de ento, inicia uma poltica dbia em que se coloca como firme aliado de Brunequilda e Childeberto II, mas mantendo contatos com a rainha Fredegunda, que seria a maior inimiga dos dois, por conta de seu suposto envolvimento nas mortes de Galsvinta e Sigeberto. Aps uma nova tentativa de aproximao entre a monarquia visigoda, j representada por Recaredo

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(586-601), e a Austrsia, os contatos entre o reino visigodo e o reino franco escasseiam por algum tempo. A morte de Gontro, em 592, abre caminho para novas tentativas de pacificao da fronteira entre os reinos na regio prxima aos Pirineus. Na primeira dcada do sculo VII, o monarca visigodo Witerico (603-610) envia sua filha Ermemberga para casar-se com Teuderico II, neto de Brunequilda e governante formal da Burgndia. Segundo a Crnica de Fredegar, por instigao da av e da irm, Teuderico acaba devolvendo a princesa corte visigoda, retendo consigo o dote trazido por ela. A oposio da rainha ao matrimnio, no entendimento de Ian Wood, deveu-se frgil situao poltica em que ela se encontrava: fortes segmentos das aristocracias de Austrsia e Burgndia trabalharam no sentido de reduzir ao mnimo a influncia de Brunequilda sobre seu filho e seus netos o que fica demonstrado pelo fato de seu filho Childeberto ter sido afastado dela, ao assumir o trono, logo aps a morte do pai (575) e por ela ter sido exilada da Austrsia assim que seu neto Teudeberto alcanou a maioridade, o que teria ocorrido entre 599 e 602 (WOOD, 1994, p. 127-132; CASTELLANOS, 2004, p. 241). A poltica de molde constantiniano adotada pela rainha em relao aos assuntos eclesisticos certamente desagradou significativa parcela do episcopado da Burgndia (ROUCHE, 1986, p. 105-107), tradicionalmente habituado a uma maior autonomia em relao ao poder rgio (SILVA, 2008, p. 99-100, 117-126).4 No parecia nada conveniente, ento, a presena de uma outra rainha na corte, o que poderia levar a um enfraquecimento ainda maior da sua posio. Tais problemas no impediram, entretanto, que o papa Gregrio Magno (540-604) a tivesse entre seus principais interlocutores no reino franco (WOOD, 1994, p. 130).

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No lado visigodo, a devoluo da princesa obrigou a estratgia diplomtica dos reis de Toledo a se voltar para a Nustria de Clotrio II. Santiago Castellanos menciona o papel do governador da Narbonense, Bulgar, que intermediava durante do reinado de Gundemaro (610-612) as relaes entre francos e visigodos e mantinha a corte toledana informada sobre a movimentao poltico-militar na Austrsia e na Burgndia governadas pelos dois netos de Brunequilda os quais, na ocasio, encontravam-se em guerra. Possivelmente, as cartas de Bulgar serviram como fonte para a reconstituio que Sisebuto (612-621), sucessor imediato de Gundemaro, faz dos eventos ocorridos na Burgndia em sua Vita Desiderii (CASTELLANOS, 2004, p. 243).

3) Intervenes militares e relaes ambivalentes no sculo VII Neste item, nos dedicaremos anlise de alguns exemplos de associao entre visigodos e francos ao longo do sculo VII. A partir dos elementos apresentados poderemos demonstrar que as relaes entre os dois grupos germnicos nesse perodo podem ser caracterizadas por certa ambivalncia, j que a aproximao ou a hostilidade entre eles descrita nos textos pode ser associada menos a alguma espcie de norma identitria de matriz tnica, segundo a qual o outro seria sempre o inimigo ou o aliado, do que a interesses puramente conjunturais. A historiografia aponta que tanto a vitria de Clotrio II no reino franco (SILVA, 2008, p. 262-272 285-303; GEARY, 1988, p. 165-167), como a reorientao poltica do reino visigodo aps a converso de Recaredo em 589 (NAVARRO CORDERO, 2000, p. 117-118), marcam o incio de um processo de transformao na forma de conceber o exerccio do poder rgio, que passaria a estar profundamente marcada pela influncia crescente do episcopado na definio dos deveres e obrigaes

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do monarca. Um dos documentos que registram a concomitncia desse processo na Glia e na Hispania a Vita Desiderii, que como mencionamos acima, foi escrita pelo rei visigodo Sisebuto em princpios do VII sculo. Neste texto hagiogrfico, narrada a vida e a morte, por execuo, do bispo Desidrio de Vienne, cujo assassinato teria sido ordenado por Teodorico da Burgndia e sua av, a rainha Brunequilda, aps crticas que o prelado teria enunciado contra estes. A narrao se conclui com uma descrio pormenorizada da execuo da rainha pelas tropas de Clotrio II que no chega a ter seu nome mencionado. No decorrer do texto, a associao de toda atitude dos monarcas ao vcio, perversidade e ao pecado (MARTN, 1997, p. 126-131), refora a ilegitimidade de suas aes frente ao bispo Desidrio e tambm o seu governo de modo geral. A morte inesperada de Teoderico e a derrota dos exrcitos a servio de Brunequilda e sua captura por Clotrio II so apresentados como produtos diretos de uma vida e de um exerccio do poder rgio alheio aos preceitos cristos. Assim, esses personagens, na Vita Desiderii, so apontados como os antpodas do ideal de realeza e justia defendido pelo episcopado tanto no reino visigodo como na Glia de Clotrio II. Eles tm o seu exemplo instrumentalizado pelo poder poltico visigodo, representado por Sisebuto, que por meio deles visa expressar, do ponto de vista ideolgico, a conscincia das conseqncias do mau exerccio da autoridade rgia (FONTAINE, 1980, p. 98), e assim afirmar a continuidade da poltica de alianas da dinastia de Leovigildo e Recaredo, ratificando a sua fidelidade ao acordo estabelecido, desde 589, com o episcopado e os vrios setores da aristocracia hispano-goda. Ao levarmos em considerao que a Glia merovngia, sob domnio de Clotrio II, via a autoridade monrquica passar por um processo de institucionalizao de

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caractersticas semelhantes, entendemos que a difuso do culto de Desidrio pelo monarca franco (WOOD, 1994: p. 133-136) visa manifestar a adequao dele prprio s expectativas alimentadas pela aristocracia e pelo episcopado que apoiou o destronamento de Brunequilda e seus netos. Ao associar a Teuderico e Brunequilda a negao de valores fundamentais a legitimidade monrquica, Sisebuto contribui para o selamento de acordos no reino franco unificado sob a autoridade de Clotrio II, onde o reconhecimento e o apoio das aristocracias e do episcopado tambm se tornariam progressivamente mais fundamentais para a estabilidade do poder rgio (FONTAINE, 1980, p. 125-128). Denegrir a memria daqueles monarcas aparecia como uma estratgia essencial para impedir que os grupos que apoiaram aqueles no passado viessem a representar uma ameaa ao pacto recm-estabelecido. Se durante o reinado de Sisebuto, encontramos tal exemplo de colaborao poltica entre um rei franco e um rei visigodo, no podemos dizer que o acordo entre os dois reinos perdurou por muito tempo. O rei visigodo Suintila (621-630), sucessor quase imediato de Sisebuto, foi deposto por um movimento nobilirquico que teria contado com a colaborao de ningum menos que o rei franco Dagoberto (623-639), filho e sucessor de Clotrio II (COLLINS, 2005, p. 77; WOOD, 1994, p. 174). Aps este episdio, as referncias a interferncias francas no reino visigodo escasseiam at as ltimas dcadas daquele sculo. No ano de 672, durante o reinado de Wamba (672-680), ocorre na Septimania uma rebelio que, de acordo com o relato do bispo de Julian de Toledo, teria contado com a colaborao de aristocratas francos. No possumos evidncias documentais, alm da narrativa Historia Wambae Regis de Julian, que afirmem a participao dos francos nesse movimento, desse modo no podemos descartar a hiptese de o bispo ter

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elegido um inimigo externo simblico a quem os rebeldes poderiam ser associados (MARTIN, 1998, p. 278-280; BRONISCH, 2006, p. 19-20).5 Cabe salientar, entretanto, que a rebelio contra Wamba foi apenas mais um dentre os vrios acontecimentos que denotam as dificuldades que os reis de Toledo possuam no sentido de controlar a poro da Glia que permanecia sob controle visigodo (CASTELLANOS, 2004, p. 263278). Podemos supor que a proximidade com o vizinho tornava a Septimania um alvo de preocupao particular por parte dos reis toledanos, em funo do possvel entendimento de que a existncia de contatos dinsticos provveis entre a aristocracia daquela provncia e famlias da elite franca associada a reas prximas poderia potencializar perigosamente qualquer sublevao oriunda dali. Deve-se ressaltar, entretanto, que estudos recentes indicam que os vestgios materiais de contatos entre as populaes dos dois reinos naquela rea fronteiria so bastante escassos (MARTIN, 1998, p. 272-273). Em outras palavras, em um contexto identificado como de fortalecimento progressivo dos poderes locais em detrimento do centro poltico visigodo, Toledo, a proximidade com o reino franco deixa de ser entendida como uma condio de pacificao das fronteiras e do domnio territorial da monarquia, como podemos verificar ao longo do sculo VI e em princpios do sculo VII, para ser considerada um fator de risco a esse mesmo domnio.

4) Concluso Os aspectos aqui brevemente elencados apontam para a importncia de uma perspectiva mais ampla para a compreenso das interaes entre os reinos germnicos da Alta Idade Mdia. Diferentemente do que pregam alguns estudos que tentam

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identificar os reinos germnicos com uma suposta ancestralidade para com as naes europias modernas (LOPEZ DIAZ, 2008: p. 477-478), nossos estudos se filiam ao conjunto de pesquisas que, principalmente ao longo das ltimas dcadas, busca manter sempre em vista a especificidade das instituies e das relaes polticas daquele perodo histrico (GEARY, 2005: p. 24). As caractersticas das relaes entre francos e visigodos nos sculos VI-VII, em nosso entendimento, evidenciam tais especificidades. Podemos observar que, sem deixar de considerar as iniciativas intelectuais promovidas por autores da poca, predominantemente eclesisticos, no sentido de inserir as relaes polticas entre os germanos dentro de uma lgica institucional consoante com a teoria poltica de matriz romana e crist to cara ao pensamento da elite episcopal, as interaes entre os reinos germnicos foram em muitos casos orientadas segundo laos e conflitos dinsticos entre os vrios grupos nobilirquicos. A partir destes elementos, podemos reconhecer nas concepes polticas da poca a ausncia de uma fronteira claramente discernvel entre o que poderamos definir, segundo padres contemporneos, como uma esfera pblica e uma esfera privada de relaes sociais. O papel de tais alianas e divergncias nem sempre se restringia s trocas entre soberanos. As ligaes, reais ou supostas, entre aristocratas no-alinhados poltica rgia e famlias pertencentes ao outro grupo germnico, principalmente no caso do reino visigodo, foram considerados um fator de preocupao para os defensores das aes de cunho mais centralizador tomadas pelos monarcas.

5) Bibliografia BRONISCH, Alexander Pierre. El concepto de Espaa en la historiografa visigoda y asturiana. Norba. Revista de Historia, Extremadura, v. 19, p. 9-42, 2006.

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dessa reao seriam o rei Chilperico da Nustria e a prpria rainha Brunequilda, cujas polticas seriam orientadas por uma concepo de inspirao constantiniana sobre o papel da realeza no interior da Igreja. 5 Alexander P. Bronisch, por exemplo, acentua que o uso dos termos Hispania, associado ao grupo que apoiava Wamba, e Gallia, associado ao grupo que apoiava o usurpador Paulo, visaria justamente desqualificar a ao dos rebeldes, identificando-os como estrangeiros, j que o termo Hispania costumava ser utilizado como um sinnimo do prprio regnum wisigothorum, em sua dimenso territorial.

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UM S DEUS!? UNIDADE E DIVERSIDADE NO ASPECTO DIVINO PRESENTE NO TEXTO BBLICO: ENSAIO DE UMA ABORDAGEM TERICO-METODOLGICA E SUA APLICABILIDADE NO MUNDO DO TEXTO Jean Felipe de Assis * Alessandra Serra Viegas**

Todo perodo possui em si suas crises e cicatrizes. Contudo, h momentos em que as feridas tornam-se demasiado profundas para permanecerem inalteradas. Gradativamente o organismo procura eliminar seus flagelos em uma busca de autoconservao. Inadvertidamente, alguns pensam ter eliminado a necessidade da dor pelas respostas contingentes a processos particulares. A presena sempre presente de nossos limites e de nossas ponderaes finitas parece nos aprisionar em um ceticismo brutal que gradativamente corri tanto a episteme como a tica e, invariavelmente, coloca-nos em um relativismo to agudo que at mesmo afirmaes anteriormente to seguras de si teimam em revelar-se, sob as novas luzes, vazias. Diante do niilismo nada mais pode ser suportado, pois at mesmo o nada carece de contedo e a multiplicidade de aspectos do Absoluto passa a ser associada substncia em si. Confunde-se o passageiro com o Eterno, o transitrio com o Imutvel, o efmero com o Perene, o finito com o Infinito.

Graduado em Matemtica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Cursa o Mestrado em Histria da Cincia, Tcnicas e Epistemologia na UFRJ e est concluindo o Bacharelado em Teologia no Instituto Metodista Bennett. A pesquisa vinculada ao Bennett sobre o ambiente bblico orientada pela Profa. Ms. Alessandra Serra Viegas. Tambm devem ser destacadas a filosofia e historiografia da cincia, presentes no escopo da pesquisa para a tese de mestrado orientada pelo Prof. Dr. Ricardo Kubrusly. ** Mestre em Histria Comparada pelo Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduada em Letras - Portugus/Grego pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2005) e em Teologia - pelo Seminrio Teolgico Betel (2001). Cursa, como mestranda, desde maro de 2009, o Programa de Ps Graduao em Teologia na PUC-Rio na rea de Teologia Bblica.

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A razo Iluminada tanta luz possua a ponto de cegar a todos que nela encontravam abrigo. O Cogito Cartesiano saiu ferido em sua busca obstinada pela certeza. As causas necessrias resultaram em efeitos contingentes, mais parecidos com defeitos sob a tica determinista ou metafsica. A pobre induo moderna, assentada sobre bases empricas e em seu eufemismo latente em perspectivas materialistas, sucumbiu tanto em suas prprias foras, assim tambm pelo clamor transcendente e potico do Romantismo em seu Esprito imanente, pela pergunta a respeito do Ser na fenomenologia e pelo questionamentto da existncia. A racionalidade viu-se obrigada a ser substituda pela razoabilidade, diante de suas incertezas e paradoxos. O surgimento das geometrias no-euclidianas inicia um processo sem volta: a verdade no pode existir por si, o espao e o tempo no so necessariamente absolutos. Novas modelagens do cosmo pela Fsica surgem e nelas o ideal newtoniano aos poucos vai sendo transformado internamente e rejeitado de maneira geral. Da Relatividade Quntica tudo parece estar sob suspeita, a incerteza de Heinsenberg dentro da mais rdua e perfeita cincia parece indicar uma nova era, at mesmo devido polissemia e indeterminao do que incerto. Restava a sbia matemtica, nela todas as convices e seguranas permitiriam uma sobrevivncia distante desta instabilidade entre a palavra e o objeto, o pensamento e o mundo, pois ela em seu desejo metafsico mais profundo queria formar um monoltico entre o ser e o ser pensado. Invadida por paradoxos, incompletudes, indecidibilidades e tantas outras adjacncias urge uma nova perspectiva. Soma-se a tais desenvolvimentos epistemolgicos o surgimento da psicanlise, a eminncia da hermenutica diante da pluralidade contempornea, a emergncia e a dissoluo do estruturalismo, o avano

linguistco, o aparecimento da semntica pelos jogos de linguagem propiciando o surgimento de uma nova retrica e tantos outros fatores. No que tange ao conceito de Histria, Collingwood prope quatro perspectivas essenciais para o desenvolvimento da disciplina: ter uma episteme; interessar-se pelas aes do passado; dedicar-se interpretao das provas; ser favorvel ao autoconhecimento humano. Deste modo, j nos indica inicialmente o afastamento em relao ao pensamento historiogrfico do sculo XIX, mais especificamente a perspectiva positivista. Antes de avaliar as diferenas existentes entre as duas epistemologias presentes no desenvolvimento do pensamento historiogfico recente, faz-se necessrio expor de maneira sucinta as consequncias imediatas da proposta de Collingwood. Ora, aproximar a definio de histria de suas razes etimolgicas favorece um afastamento brutal das cincias da natureza, em especial dos mtodos positivos. Vista como uma investigao ou um inqurito a respeito das aes humanas praticadas no passado, a histria opera por meio da interpretao de documentos produzidos pela humanidade, tendo como serventia o autoconhecimento humano, isto , ensina-nos a respeito das prticas humanas e sobre a identidade do homem. O positivismo em sua nsia pela determinao dos fatos e o estabelecimento de suas respectivas leis, aos moldes do pensamento das cincias naturais, rompeu com as caractersticas vigentes na pesquisa historiogrfica, pois pressupunha tanto a objetividade na observao, como a imparcialidade. O receio materialista quanto ao pensamento hegeliano e o Esprito Absoluto em suas manifestaes lgicas e imanentes, reduziram a pesquisa mera determinao dos fatos. O surgimento das

cincias sociais busca inserir neste contexto uma hermenutica essencial na pesquisa historiogrfica, isto , rompe-se com os fatos em si, ao desejar estipular os nexos causais. O estudo a respeito do Mito diante das inmeras transformaes epistemolgicas paradigmtico, pois nos permite facilmente observar as variaes e abordagens dspares. Um estudo aprofundado a respeito do mito, tendo como fundamento o discurso filosfico, sociolgico, antropolgico, historiogrfico, teolgico e tantas outras grafias e logias que desempenham um determinante papel em um nosso autoestudo etnogrfico e etnolgico, demandaria no mnimo algumas dcadas. Contudo, de maneira sucinta, portanto, esquemtica e simplificadora, pode-se destacar no percurso partindo do Iluminismo, passando pelo Romantismo, e chegando pluralidade Contempornea, uma rejeio e uma posterior aceitao dos mitos, ou em outras palavras a sada de um processo de demitologizao para a remitologizao. O destaque para a ontologia, a epistemologia e suas intrnsecas inter-relaes no fruto do acaso ou desejo metafsico, mas ocorre diante da impossibilidade de um pensamento puramente emprico ou racional mais uma vez o despertar dogmtico de Kant se faz presente e, acrescido de toda uma reflexo posterior pode-se, contrariamente ao que lvaro de Campos, heternimo de Fernando Pessoa, poetizou, afirmar: de Hegel a Kant alguma coisa foi encontrada. As interpretaes plurais, nunca ambguas, mas distintas da perspectiva kantiana, ora apontam como sucessor imediato o Positivismo, ora o Romantismo. Os aspectos sintticos valorizados pelas cincias da natureza deveriam ser conjugados pelas perspectivas semnticas, ou seja, o esquecimento do Ser postulado por Heidegger j

se fazia sentir, enquanto a tcnica, de maneira rigorosa nos mtodos histricos de natureza crtica, afastava gradativamente o aspecto semntico, simblico e potico. Duas tendncias se unificariam de maneira sistemtica no incio do sculo XX: a lingustica e a etnografia comparada. A primeira, comumente associada inicialmente a Giambattista Vico, mostrou que o mito no apenas um desvio ou patologia da lngua e da linguagem, esta entendida como a busca pela apreenso do mundo em sua perfeio realista, pois gradativamente, associam-se a poesia, o mito e a linguagem como partes integrantes de uma substncia sem a qual a prpria realidade no faria sentido. A segunda perspectiva, seguindo o caminho sociolgico e antropolgico de Comte, Mller, Tylor e Lang, aponta para uma explicao cientfica do Mito, a qual resultou em um completo descrdito deste, pois o mesmo era visto como resposta a fenmenos incompreensveis, sendo, portanto, algo inacabado e pr-cientfico. Tal posicionamento se sustentava na uniformidade do psiquismo humano e no princpio da evoluo cultural, imediatamente questionados por inmeras tendncias filosficas e antropolgicas, dentre as quais a Fenomenologia e a Antropologia Cultural. O Esprito Romntico e sua fora vital no incio do existencialismo refletem uma posio funcionalista do mito, a partir da qual este passa a ser visto como um princpio eternamente vivo a desempenhar uma funo prtica na sociedade. Somam-se a isto o vnculo com o processo ritual e os aspectos da constituio psicolgica, ideolgica e artstica. Percebe-se de maneira clara a revitalizao do estudo a respeito dos mitos e sua importncia vital na pesquisa do sculo XX. De fato, como salientado, tal estudo apenas paradigmtico, pois acentua particularmente a discusso filosfica em torno da objetividade e da subjetividade, do realismo e do idealismo. Deste modo, o entendimento do mito

como uma iluso, uma mentira, ou um conhecimento pr-cientfico provm da oposio entre tradio e autonomia, poesia e cincia, concreto e abstrato, ordem e caos, estrutura e textura, objetividade e subjetividade, mito e logos todas estas dicotomias existentes a partir da percepo do duplo emprico transcendental oriunda da Modernidade. A anlise cultural de Boas, o ritualismo de Frazer, o funcionalismo ritualstico de Malinowski, o totemismo de Durkheim, o simbolismo lgico de Cassirer e a anlise estrutural de Lvi-Strauss, todas estas correntes de maneira significativa tangenciam ou encaram profundamente a relao entre indivduo e sociedade, caos e ordem, contingente e necessrio. possvel perceber, portanto, a busca de uma complementao entre crtica e tradio, objetividade e subjetividade, racionalidade e imaginao, a qual pode ser apontada na pesquisa historiogrfica pelo pensamento contundente de Thomas Macaulay ao analisar a Literatura e a Histria como atividades no antagnicas, mas interpenetradas reciprocamente, assinalando que esta tarefa dever ser feita pela imaginao e pela razo, prefigurando aquilo que Geertz postularia como a interdependncia entre etnografia e etnologia no trabalho de campo. Perspectiva to bem assinalada por Carlyle ao distinguir o artista e o arteso na perspectiva historiogrfica, isto , aqueles que percebem o todo e aqueles que focam no particular e pensam medir o incomensurvel, perpassar o imperscrutvel: For though the whole meaning lies far beyond our ken. Em um assalto potico, talvez devessem ser compostas historiografias literariamente, assinalaria Michelet, mostrando todas as nossas contradies e o nosso desejo de construir uma verdade. Contudo, a poesia fora exilada de h muito, deixando-nos na miopia perene e na impossibilidade de romper definitivamente com a dicotomia entre o explicar e o compreender. Resta-

nos uma remitologizao do Real e uma potica fundamentada justamente na nossa incomensurabilidade, complexidade e contradio.

Consideraes essenciais para analisar o monotesmo em Israel Pensar ao longo do tempo as diversas perspectivas teolgicas em Israel, ao menos aquelas que se encontram registradas na bblia hebraica e crist, implica necessariamente pensar uma multiplicidade. Acresce-se a isto a pluralidade essencial de toda cultura e fenmeno religioso. Deste modo, no h uma relao unvoca entre realidade material e reflexo teolgica, isto , mostra-se impossvel a partir dos dados histricos arrolar uma primazia ou lei fundamental entre uma realidade material e alguma conjectura cultural ou do pensamento. Deve-se ter em mente a crtica aos modelos evolucionistas feita por Franz Boas: Causas dessemelhantes podem implicar efeitos semelhantes. H ainda uma questo vinculada a uma reflexo de segunda ordem sobre o fenmeno religioso, mais propriamente no campo da filosofia, sociologia ou antropologia da religio, qual no desejamos de maneira alguma postular uma resposta definitiva: qual a substncia do sagrado e sua essncia? Posta de outro modo, o que permanece em aberto a identidade do ser divino e aquilo que faz com que o ser divino seja o que ele . Desta maneira, no possvel para uma discusso historiogrfica ou meramente exegtica ponderar sobre aspectos teolgicos ou metafsicos. Se assim procedesse, esta discusso estaria sempre sujeita a reflexos de reflexes, ou seja, por no ser possvel a efetiva e plena explorao de sua episteme, qualquer afirmao no mbito histrico a respeito da

identidade e manifestao do sagrado carece de fundamento e substancialidade. Mesmo no terreno helnico e no restante do mediterrneo antigo a pluralidade de seres divinos ou sua unidade discutvel. Seriam os deuses o reflexo de um supremo Bem ou somente possvel refletir a respeito de um Deus Uno aps confrontos especficos em uma alteridade religiosa tpica de um sincretismo? No caso particular de Israel deve-se ter em mente o exlio como o elemento catalisador das tradies, mas tambm ter muito cuidado e ateno com as origens e a evoluo de seus inmeros setores para a posterior formao nacional. Deste modo, faz-se necessria uma leitura que conjugue tanto a sincronia como a diacronia, ou seja, que analise as diversas transformaes sofridas pelo texto que identifica Israel religiosamente, mas tambm perceb-lo em seu formato final, com suas intenes e pragmticas em seu Sitz im Leben particular. Estudar, portanto, o surgimento e a consolidao do monotesmo no ambiente bblico, favorece estas anlises e tem como corolrio imediato a aproximao com o ambiente persa e, posteriormente, helenstico, os quais de maneira nica abrem caminho para diversas transformaes histricas, por exemplo, a dominao romana e o surgimento do movimento cristo. Os relatos da criao, abundantes ao longo do cnon, e a relao social, teolgica e poltica da populao israelita com o templo formam um material excelente de anlise, pois servem a trs propsitos bem definidos, a saber: possibilitam um estudo de tradies antigas a respeito da religiosidade e da crena deste povo; situam de maneira decisiva o lugar vivencial dos textos no perodo exlico e ps-exlico propiciando uma perspectiva hermenutica e pragmtica dos textos; e, por fim, permitem uma aproximao com perodos mais recentes. Desta forma, tal estudo no se encontra ancorado apenas em perspectivas historiogrficas,

mas deve ter slidas bases teolgicas e a multiplicidade de perspectivas presentes nas cincias da religio. Uma leitura meramente sincrnica do material bblico permite pressupor a existncia de uma unidade e uma centralidade da figura divina. A partir e pela degenerao do povo o culto a outros deuses passa a existir em Israel. Por outro lado, uma leitura baseada no ponto de vista diacrnico afirma o politesmo inicialmente em Israel, tendo a unidade divina sido concebida posteriormente. Em resumo: a construo do divino em Israel movimenta-se do monotesmo ao politesmo ou toma como base o caminho inverso? Uma pergunta ainda mais desconcertante: houve de fato um monotesmo em Israel? Ou mais profunda: a diversidade de relatos, a par de sua intensa e indescritvel beleza, no implica necessariamente uma pluralidade de deuses? Ou apenas seriam aspectos de um mesmo Deus? Ainda, como solucionarmos o dilema da unidade em dicotomias to latentes como a Teologia da Promessa firmada em uma aliana eterna com o acordo condicional embasado pela Teologia Deuteronomista? evidente que tais pensamentos sero equacionados de maneira rpida a partir do conceito de intersubjetividade e luz do pensamento teolgico-filosfico patrstico e medieval. Entretanto, ter-se-ia o direito de assumir a unidade divina e a diversidade teolgica como dogma fixo, ou postular-se-ia que a cada nova teologia h um novo deus em questo? Desta maneira, deseja-se abrir caminho para a interao entre as perspectivas intrabblicas na construo das caractersticas divinas e, ao mesmo tempo, facilitar a percepo da interatividade entre Israel e os outros povos. Os diversos grupos presentes na formao israelita cada um ao seu modo contribuem significativamente para o desenvolvimento de uma cultura e de uma concepo

teolgica. Desta maneira, no se deseja datar ou precisar a anterioridade de uma crena monotesta ou plural, mas pelo contrrio, perceber como esta interao favoreceu o desenvolvimento de uma sociedade, uma cultura e suas mltiplas teologias. No assumindo o processo genealgico, tpico do pensamento emprico e sensualista do positivismo, trs fases so marcantes na constituio do monotesmo israelita. Vejamo-las: a introduo de um Deus nico, diferente das divindades presentes nas cidades-estados cananeias, um ser divino de nome impronuncivel: YHWH; o estabelecimento da soberania de YHWH perante os outros deuses; e, por fim, o estabelecimento deste Deus como a nica divindade possvel de existncia. Hans Walter Wolff salienta que a caracterstica fundamental da divindade israelita dessacralizao da realidade, ou seja, h uma condenao de uma religiosidade animista ou ainda atrelada fertilidade ou outras perspectivas da ordem meramente natural. evidente que este aspecto transcendente no invalida de forma alguma a imanncia das aes divinas e seu perpassar histrico para a concepo de f. YHWH aparece de maneira triunfante em ideais de unicidade a partir de inmeros sincretismos com os deuses de outros povos estes que permanecem representados em ciclos narrativos dos grupos nmades, abramicos, mosaicos, sinaticos e tantos outros agregados ao que se convencionou chamar Israel. De maneira ainda mais aguda do que o comum, a religio israelense serviu para propiciar uma unidade cultural e etnolgica, a centralizao do culto no ideal de um templo, o qual rene em si todo o cosmo. Nisto os relatos da criao so dois exemplos emblemticos.

Inicialmente por uma srie de inter-relaes, impossveis de serem nitidamente esboadas, a introduo de YHWH posta em contrapartida aos mltiplos aspectos do deus El, no existindo de imediato uma negao da diversidade religiosa1. Interessante notar a possvel raiz etimolgica do tetragrama divino, a qual pode nos indicar perspectivas teolgicas profundas e um belo material para o estudo das religies no Crescente Frtil. Conforme j salientado, h um aspecto de transcendncia presente na figura de YHWH e em seu agir histrico, confirmado pela anlise filolgica, pois combinando as diversas abordagens sintticas e semnticas, pode-se induzir do nome divino uma frase significativa: Eu me revelo como aquele que se revela ou ainda eu sou atuante como aquele que se pe a trabalhar. Aprofundando um estudo comparativo seria possvel perceber a presena dos mesmos fonemas e letras em diversas divindades nos povos antigos. Nesta perspectiva, pode-se conjecturar a respeito da abreviatura Iau/Yaw para o nome divino. Tal conjectura razovel se forem levadas em considerao as comparaes culturais e lingusticas dos povos do Antigo Oriente Prximo e como se deu a formao religiosa dos hebreus, assim tambm a absoro de YHWH como seu Deus. Eis a primeira fase de uma monolatria que desembocaria em um forte monotesmo. Alm das perspectivas exegticas e filolgicas, deve-se pensar o fenmeno religioso e o contexto social como um todo, ou seja, uma abordagem complexa se faz necessria. Estudando o Deus dos povos indo-europeus, Joo Evangelista Martins Terra chegou ao vocbulo Deiwos-Dyaus presente em todos os ramos das lnguas conhecidas, pressupondo um patrimnio religioso comum a todos os povos que falavam uma protolngua indo-europeia. Terra, demonstrando a metodologia utilizada a partir dos estudos de Georges Dumzil, salienta:

No trabalho comparado, em primeiro lugar importante pesquisar o sistema, a estrutura: a mitologia, a teologia, a liturgia, isto , no nomes de deuses isolados, mas grupos de conceitos de deuses, porque uma religio no uma poeira de elementos; um sistema: os conceitos, os mitos, os ritos, a organizao social, a distribuio do trabalho, o corpo sacerdotal, a administrao do sagrado. A comparao deve incidir sobre o conjunto desses elementos (TERRA, 1999:248)2.

Relevante o conflito entre YHWH e os outros deuses, mais especificamente os baalins e outros deuses da fertilidade o ciclo de Elias e o livro do profeta Osias so bons indcios deste tema. O deus guerreiro e do deserto posto em contrapartida aos cultos agropastoris, tpicos de sociedades sedentrias. Neste caso tambm h registros do vocbulo Iau/Yaw designando um deus adversrio a Baal. Curiosidade intrigante: Se Iau/Yaw uma abreviatura de YHWH, o deus do povo hebreu, e nas escrituras hebraicas, isto , no Antigo Testamento, o inimigo-mor de YHWH Baal, o qual em muitos momentos chega a ser ironizado chamado pelo plural baalim (deuses sem uma importncia especfica e merecida), no escrito do povo cananeu Iau/Yaw s pode ser tambm inimigo-mor de Baal3. Quanto pesquisa a respeito Iau/Yaw no possvel uma anlise filolgica sem se remeter ao contexto histricosocial em que a divindade do panteo dos povos do Levante nome utilizado nas pesquisas mais recentes para a regio da meia-lua do Crescente Frtil tem seus registros. Vrias conjecturas de correntes arqueolgicas se interpem em torno da questo de Iau/Yaw. As duas principais entre os estudiosos apontam que: 1) o nome do deus fruto de emprstimo cultural e lingustico entre os vrios povos do Levante, em que figuram principalmente os mesopotmicos cananitas, os fencios e os israelitas; 2) o deus de origem essencialmente mesopotmica e tem seu registro at no Gilgamesh, sendo o prprio nome do amigo do protagonista, Enkidu, derivado do deus, pois seu nome Enki, mas tambm chamado Ea, o deus blico

dos povos antigos da regio. Vale o registro tanto do vocbulo como de sua suposta origem, visto a essencial presena dos emprstimos culturais e lingusticos nesta questo, da mesma forma o paralelo com o desenvolvimento do monotesmo em Israel. A centralidade de YHWH no pode ser entendida sem os contornos polticos prprios desta ao, ou seja, a diversidade religiosa aos poucos passa a ser condenada a partir de um credo universalizante a partir dos ideais jerusalimitanos. Alguns estudiosos, ao datarem o Cdigo da Aliana (x 20, 22-23, 29) e o Cdigo Deuteronmico (Dt 12-26) procuram enfatizar este carter sintetizador do pensamento judata. O perodo exlico marcado por uma pluralidade de formas, contudo, a fora centralizadora dos escritos Deuteronomistas e Sacerdotais marcou profundamente a reflexo a respeito desta experincia. Deste modo, por mais que seja possvel, e bastante provvel, um retorno aos cultos hbridos, a monolatria javista ganha contornos mais definidos em uma teologia exclusivista. Ora, o confronto entre o povo da terra (Am ha aretz) e os regressantes do exlio (golah) no ocorre apenas do ponto de vista poltico e econmico, mas tambm cultural e religioso, conforme a compilao da historiografia Deuteronomista, a Teologia Sacerdotal e as aes de Neemias e Esdras insinuam. Assim, ainda que muitas tradies encontrassem sobrevivncias em crculos de sabedoria, a perspectiva dominante, do agora teologicamente concebido remanescente fiel, pressupunham a afirmao da exclusividade de YHWH diante da incompatibilidade com as outras divindades e a centralidade do templo como um exemplo do poder irradiado de Jerusalm.

O estabelecimento do monotesmo propicia, de maneira indireta, porm no menos efetiva, que a centralizao do poder seja no perodo monrquico ou ps-exlico. Deve-se ponderar, contudo, a existncia de um reinado forte o suficiente antes do sculo VI e, da mesma forma, a existncia de uma fora religiosa unnime capaz de unificar os diversos cultos ao longo do territrio palestinense. Antes da destruio definitiva no ano setenta de nossa era, o templo em Jerusalm passou por uma concepo teolgica ideal, conforme pode ser observado nos relatos em torno da figura de Salomo, uma configurao poltica, conforme pode ser pensado a partir de Josias. Entretanto, somente a partir do ps-exlio o templo adquire conotaes centrais para a estruturao da comunidade, at que no perodo helenstico torna-se uma instituio sem a qual no possvel pensar Israel, dada a sua importncia poltica e econmica. Ao longo do tempo h a formao de uma hierarquia autoritria com aspectos de totalitarismos nos mltiplos sentidos possveis. Em resumo, pode-se destacar a consolidao do monotesmo em Israel no psexlio, justamente o perodo no qual a centralizao do culto e o poder poltico emanado do templo se fizeram mais necessrios. Somam-se a isto a produo intelectual e teolgica de inmeros crculos, impossveis de serem remontados objetivamente por metodologias histricas e literrias, fazendo uso de mitos e ciclos narrativos diversos. Deste modo, trs aspectos importantes da cultura religiosa israelita so conjugados e inter-relacionados por necessidades histricas: o templo, os textos sagrados e a crena monotesta. Destacados ao longo do texto, os relatos de criao no procuram inicialmente salientar aspectos cosmolgicos como entendidos contemporaneamente, mas, acima de todas as coisas, h um aspecto etnolgico profundo, assim tambm uma preocupao com a desarmonia e irracionalidade

evidenciadas pelo caos desculpas se fazem necessrias pelo excesso de termos de origem grega para um fenmeno presente no mundo semtico. Em busca de uma no-concluso... Segundo o mito egpcio de Toth/Theuth e do surgimento da escrita re-lidos e recontados no Fedro4 de Plato, registro escrito e memria oral so como leo e gua, no se misturam, apesar de conviverem juntas dentro de um mesmo recipiente. Interessante perceber como se fortaleceu ao longo dos anos (e assim o ainda hoje) uma hermenutica da tradio judaica que aponta os textos da Bblia Hebraica como registro fiel da histria oral de um povo. Esto a para comprovar as vrias marcas de oralidade presentes no texto, elencadas como partculas, assonncias e aliteraes, repeties, recorrncias, textos-espelho e, como principal elemento, a prosa potica hebraica ou a poesia acrstica5. Isso sem contar com os modelos proverbiais6 de 3 + 1, com o perigo da mulher alheia7 para o jovem que quer manter puro o seu caminho, com o tema do justo que sofre. Que Wolfgang Iser nos oua, pois qualquer ouvinte-leitor da palestina no ps-exlio, na dispora do perodo helenstico, das colnias judaicas medievais ou daqueles que voltaram para Israel em 1948 que tomasse conhecimento do texto que ouvisse ou tivesse em mos, completaria suas lacunas, suas deixas8 com o pr-conhecimento acumulado que seu ambiente cultural e social lhe incutiu mente. Chamando ainda Wittgenstein, seria notrio para aquele ouvinte-leitor do qual estamos falando, reconhecer todo e qualquer jogo de linguagem estabelecido pelo texto9. Para aqueles que s conhecem o registro escrito como ns fica o estudo, rduo e prazeroso, somam-se as conjecturas e descobre-se a incompletude. Utilizamos ferramentas ocidentais para

lidar com o oriente. Queremos transformar alteridade em identidade e nos aproximar. Ficamos literalmente somente a ver navios porque no somos fencios no sabemos constru-los nem trabalhar com eles. A memria coletiva ocidental beira ao esquecimento ao tratar da formao da figura do divino no Mediterrneo Antigo. Utilizamos termos gregos e elementos modernos para estruturar e consolidar nosso pensamento e continuamos a pesquisar. Contudo, um desafio se nos mostra. Ele instigante e apaixonante. O texto. O registro. Isso temos. A audio do inconsciente no podemos alcanar. Mas tentamos. Ricoeurianamente, o si-mesmo que concomitantemente ao outro10 em ns parece nos dizer, ou at clamar: Eis o texto, veja-se nele se for capaz! A textura do texto se realiza nas tessituras culturais e nas perspectivas do Ser que se encontra no ato da leitura e da re-leitura das estruturas, estas nunca acabadas em si mesmas. Deste modo, evitar-se-ia a aparncia de sabedoria apontada por Plato no mito acima descrito, pois a mimesis a partir de uma esttica e de uma hermenutica prprias no apenas projeta, mas vincula o homem nas teias e nas amarras do cosmo. O processo de consolidao do monotesmo em Israel somente se d no ps-exlio, onde se destacam os variados processos de formao da Teologia e do material literrio da cultura israelita. Nestas perspectivas os relatos de criao e a centralizao do templo adquirem fortes nuances: O vazio, a desordem e a selvageria devem ser redimensionados luz da f. As diretrizes principais do Pentateuco, dos livros sapienciais, da Histria Cronista e Deuteronomista e a releitura dos profetas esto intimamente correlacionados com o estabelecimento da figura divina e sua centralizao ainda que em cada Teologia um ser divino ou um aspecto do Absoluto seja posto em relevncia. Aspectos para outra prosa...

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Tal perspectiva pode ser pensada nos limites da teoria das fontes iniciada por Wellhausen. A centralidade da figura mosaica como representante mximo dos ensinamentos da Torah, em pararelo a Esdras, pontuado etnolgica e teologicamente pela introduo de YHWH. Para Fohrer, que situa a preponderncia do Javista sobre o Elosta, J traa a origem do javismo a partir de Gnesis 4,26, isto , da terceira gerao de homens. A adorao ao deus sob o nome de YHWH d-se desde ento, apesar de permanecer obscuro como se firmou o uso desse nome. Portanto, evidente que o deus que falou a todas as geraes posteriores e a Moiss YHWH. A relevncia est em que xodo 3,16 identifica claramente YHWH com o Deus de vossos pais, o Deus de Abrao, de Isaac e de Jac. Subjaz ao texto o fato de que o perodo e/ou a narrativa mosaica no assinala o aparecimento de um novo e at ento desconhecido deus, mas um deus j adorado alhures tornou-se, desde ento, o Deus de um grupo de israelitas. (FOHRER: 2006, p.82). Somente no captulo 3 do xodo, o verso 16 j a terceira ocorrncia da frmula Deus de vossos pais, o Deus de Abrao, de Isaac e de Jac. A mesma foi utilizada antes nos versos 6 (diretamente para Moiss, com o uso do pronome de segunda pessoa singular teus pais) e 15 (que seria dito por Moiss ao povo, utilizando ento vossos pais, idntico ao verso 16). A frmula da autoapresentao ser utilizada, ainda, em 6,2-3, reforando ainda mais o fato de que, somente no perodo mosaico, YHWH passa a ser conhecido por este nome, apesar de antes aparecer a Abrao, a Isaac e a Jac como El-Shaddai, mas, continua, pelo meu nome, YHWH, no lhes fui conhecido. Von Rad (2006:285) separa o J do E e discorre sobre a vocao de Moiss. Para o Javista, a vocao de Moiss se justifica unicamente na inteno de instruir os israelitas, no Egito, a respeito das intenes de YHWH (3,7; 16-20), do mesmo modo, Esdras responsvel por instruir o novo tabernculo e instaurar a Torah em Israel. Joo Evangelista Martins Terra a partir de pesquisas filolgicas, teolgicas e histricas sobre o Indoeuropeu, a protolngua de todos os povos e objeto de estudo de todos os cursos de lingustica comparada, chegou ao Deus destes povos. O autor parte do conceito de arqueologia lingustica, como caminho arqueologia cultural. Para ele, assim como para todo linguista, reconstruir uma protolngua (ou qualquer lngua falada ou morta) reconstruir uma cultura, pois uma lngua um fenmeno social (TERRA, 1999:30). Assim, atravs da arqueologia lingustica, pode-se realizar um estudo comparado dos fatos religiosos destes povos, postos em evidncia por meio de uma arqueologia do comportamento, das representaes e das instituies que pode detectar linhas do pensamento dos povos e sua evoluo ao longo do tempo. Percebem-se de maneira clara a importncia da linguagem e os resultados de uma anlise estrutural. Contudo, a partir da funo tripartida da teologia indo-europeia religiosa e jurdica; fora aplicada guerra; fecundidade ou produtividade h inmeros avanos necessrios nesta pesquisa, desde os limites geogrficos, ao prprio pensamento possvel de ser expresso nesta cultura. Mais um adendo para a analogia entre Iau/Yaw e o deus dos hebreus so os papiros de Elefantina, no Egito. Entre os textos h uma carta de 407 a.C. a qual registra um pedido dos judeus residentes na ilha3 2

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onde estava instalada uma colnia militar judaica desde o sculo VI a.C., talvez mesmo desde antes ao governador da Judia, Bagohi. Na carta, os judeus pedem que seja feita a reconstruo do templo ao deus Yaho, destrudo em 410, pois j trs anos se tinham passado e nenhuma providncia fora tomada. Ao mesmo tempo, os remetentes da carta dizem a Bagohi: Se conseguires que este santurio seja construdo, ters mais mrito diante de Yaho, o Deus do cu, do que um homem que lhe tivesse oferecido um holocausto e sacrifcios no valor de mil talentos de prata (VV.AA.,1985:96,97). Vejamos o mito, registrado no Fedro entre 274c-275c: Eu j ouvi que em Naucratis, no Egito, existia um dos antigos deuses daquela regio, aquele cujo pssaro sagrado se chama bis, e o nome do prprio deus Theuth. Foi ele que inventou os nmeros, a aritmtica, a geometria, a astronomia, o jogo de tabuleiro, os dados e, acima de tudo, as letras. O rei de todo o Egito naquele tempo era o deus Thamus, que vivia na grande cidade na regio ao norte, que os Gregos chamavam de Tebas egpcia, e eles chamavam o deus de Ammon. A ele veio Theuth para mostrar seus inventos, dizendo que esses deveriam ser distribudos a todos os egpcios. Mas Thamus perguntou qual o uso de cada um deles e, com Theuth enumerando seus usos, o rei louvava-os ou depreciava-os de acordo com o que ele aprovava ou desaprovava. Diz-se que Thamus disse muitas coisas para Theuth, mas os louvores e crticas a suas vrias invenes seriam muito longas para repetirmos. Mas quando chegou a vez da escrita, Theuth disse Essa inveno, rei, tornar os egpcios mais sbios e promover sua memria, pois isso que descobri um elixir (phrmakon) para a memria (mnmes) e para a sabedoria (sophas). Mas Thamus respondeu: muito inventivo Theuth, alguns tm a habilidade de descobrir as artes, outros tm a habilidade de saber qual o benefcio e malefcio para aqueles que as utilizam. E tu, que s o pai da escrita, foste conduzido pela tua afeio a atribuir-lhe um poder oposto ao que realmente possui. Pois isso vai produzir esquecimento na mente daqueles que a aprendem: eles no vo exercitar a memria por causa da sua confiana na escrita, que algo exterior (ksothen), provinda de caracteres alheios, e no vo eles mesmos praticar a lembrana interior (ndothen), por si mesmos. Tu inventaste um elixir da lembrana (hypomnseos), e no da memria (mnmes), e tu ofereces aos teus discpulos uma aparncia de sabedoria, no verdadeira sabedoria, pois se tornaro muito informados (polykooi [...] gignmenoi), sem instruo, (neu didakhs) e tero, assim, a aparncia de que sabem de vrias coisas (polygnmenes) quando na verdade so, na maior parte, ignorantes e difceis de conviver, j que no so sbios, mas apenas aparentam ser. Veja-se como dois exemplos paradigmticos todo o livro de Lamentaes de Jeremias e o Salmo 119, atribudo a Esdras por alguns pesquisadores. Ambos os textos formam um acrstico com todas as letras do alfabeto hebraico 22 consoantes por vrias vezes. Muitos exemplos se encontram em Provrbios 30, dos quais citamos alguns (vv.18-31): Estas trs coisas me maravilham; e quatro h que no conheo: 19 O caminho da guia no ar; o caminho da cobra na penha; o caminho do navio no meio do mar; e o caminho do homem com uma virgem. 20 O caminho da mulher adltera assim: ela come, depois limpa a sua boca e diz: No fiz nada de mal! 21 Por trs coisas se alvoroa a terra; e por quatro que no pode suportar: 22 Pelo servo, quando reina; e pelo tolo, quando vive na fartura; 23 Pela mulher odiosa, quando casada; e pela serva, quando fica herdeira da sua senhora. 24 Estas quatro coisas so das menores da terra, porm bem providas de sabedoria: 25 As formigas no so um povo forte; todavia no vero preparam a sua comida; 26 Os coelhos so um povo dbil; e contudo, pem a sua casa na rocha; 27 Os gafanhotos no tm rei; e contudo todos saem, e em bandos se repartem; 28 A aranha se pendura com as mos, e est nos palcios dos reis. 29 Estes trs tm um bom andar, e quatro passeiam airosamente; 30 O leo, o mais forte entre os animais, que no foge de nada; 31 O galgo; o bode tambm; e o rei a quem no se pode resistir. Provrbios 7:1-27 Filho meu, guarda as minhas palavras, e esconde dentro de ti os meus mandamentos. Guarda os meus mandamentos e vive; e a minha lei, como a menina dos teus olhos. 3 Ata-os aos teus dedos, escreve-os na tbua do teu corao. 4 Dize sabedoria: Tu s minha irm; e prudncia chama de tua parenta, 5 Para que elas te guardem da mulher alheia, da estranha que lisonjeia com as suas palavras. 6 Porque da janela da minha casa, olhando eu por minhas frestas, 7 Vi entre os simples, descobri entre os moos, um moo falto de juzo, 8 Que passava pela rua junto sua esquina, e seguia o caminho da sua casa; 9 No crepsculo, tarde do dia, na tenebrosa noite e na escurido. 10 E eis que uma mulher lhe saiu2 7 6 5 4

ao encontro com enfeites de prostituta, e astcia de corao. 11 Estava alvoroada e irrequieta; no paravam em sua casa os seus ps. 12 Foi para fora, depois pelas ruas, e ia espreitando por todos os cantos; 13 E chegou-se para ele e o beijou. Com face impudente lhe disse: 14 Sacrifcios pacficos tenho comigo; hoje paguei os meus votos. 15 Por isto sa ao teu encontro a buscar diligentemente a tua face, e te achei. 16 J cobri a minha cama com cobertas de tapearia, com obras lavradas, com linho fino do Egito. 17 J perfumei o meu leito com mirra, alos e canela. 18 Vem, saciemo-nos de amores at manh; alegremonos com amores. 19 Porque o marido no est em casa; foi fazer uma longa viagem; 20 Levou na sua mo um saquitel de dinheiro; voltar para casa s no dia marcado. 21 Assim, o seduziu com palavras muito suaves e o persuadiu com as lisonjas dos seus lbios. 22 E ele logo a segue, como o boi que vai para o matadouro, e como vai o insensato para o castigo das prises; 23 At que a flecha lhe atravesse o fgado; ou como a ave que se apressa para o lao, e no sabe que est armado contra a sua vida. 24 Agora pois, filhos, dai-me ouvidos, e estai atentos s palavras da minha boca. 25 No se desvie para os caminhos dela o teu corao, e no te deixes perder nas suas veredas. 26 Porque a muitos feridos derrubou; e so muitssimos os que por causa dela foram mortos. 27 A sua casa caminho do inferno que desce para as cmaras da morte. Wolfgang Iser, terico do movimento literrio que ficou conhecido como teoria ou esttica da recepo, prope duas questes que se interseccionam em relao ao texto que ser lido e que podemos aplicar bem vontade ao texto do Primeiro Testamento. A primeira delas a necessidade do texto ficcional conter mecanismos de controle que orientem o processo da comunicao. Como o prprio nome aponta, o prprio destes complexos orientar a leitura, contudo, ao mesmo tempo, exigir do leitor testar seu horizonte de expectativas sair daquilo que esperaria e abrir-se ao que seria o desconhecido, o estrangeiro. Da viria o indeterminado: seria posta prova a capacidade do leitor de preencher o indeterminado com um determinvel uma constituio de sentido no idntico ao que seria determinado, de acordo com seus prvios esquemas de ao. A segunda questo, imbricada primeira, refere-se ao dito e o no dito o operador do lugar vazio nos textos. A este somente o ouvinte-leitor ambientado na cultura e tradio hebraica pode se inserir. Afirmando que sempre se interpreta o texto, Iser, ao introduzir o operador do lugar vazio, faz com que caiba ao leitor suplement-lo para que o enredo flua (LIMA, 2002, p.26). Assim como em um dilogo a interpretao cobre os vazios contidos no espao entre a afirmao de um e a rplica do outro, na relao texto-leitor, embora o leitor no conhea a reao de seu parceiro, os textos, enunciados com vazios, exigem do leitor o seu preenchimento. A preocupao de Iser est no efeito que a obra causa (diferente de Jauss, que se importa com a maneira como a obra ser recebida), isto , na ponte que se estabelece entre um texto literrio possuidor de nfase nos vazios e dotado de um horizonte aberto e o leitor (LIMA, 2002, p.52). No exemplo que propomos, temos um complexo de controle que orienta o texto; entretanto, vrias possibilidades de interpretao a partir do efeito da obra podem ser produzidas. E somente por aqueles que lha prconhecem profundamente e nela se veem.9 8

No 7 das Investigaes Wittgenstein diz que podemos tambm imaginar que todo o processo do uso das palavras um daqueles jogos por meio dos quais as crianas aprendem sua lngua materna. Chamarei esses jogos de jogos de linguagem, e falarei muitas vezes de uma linguagem primitiva como de um jogo de linguagem (PI 7). Depois de 1930, Wittgenstein passa a traar uma analogia entre sistemas axiomticos e jogos de xadrez. A noo de uso muito importante para a compreenso dos jogos de linguagem. Assim como no xadrez se joga de acordo com a associao entre as peas e os possveis movimentos, e no relacionando peas a objetos, na linguagem, de forma anloga, a flexo das palavras e possibilidades de emprego que determinam o significado. Desta forma, o significado de uma palavra no provm diretamente do objeto que ela nomeia, mas do seu uso. A analogia se estende ao fato de que, assim como no xadrez, na linguagem so empregadas regras. Tais regras so as regras gramaticais do idioma vigente, estas regras sero as regras do jogo de linguagem. Percebe-se aqui que a noo do Tractatus Logico-Philosophicus de forma lgica, substituda agora pelas regras gramaticais. Wittgenstein, em sua autocrtica, percebe que a forma lgica deveria, tambm ela, ser enunciada por uma proposio, portanto, no era nada alm de outra proposio. Pode-se concluir, ento, que as palavras tm os seus significados determinados pelo jogo de linguagem no qual se integram. Fora destes jogos, as palavras ficam desconexas e perdem o sentido, tal qual as peas do jogo de xadrez fora de um tabuleiro de xadrez. Cada jogo de linguagem possui sua regra. Tais regras so anlogas a quaisquer regras que constituem o corpo de um jogo qualquer. Um aspecto importante disto que toda regra abre margem para

as excees. Portanto, conclui-se, que os limites dos jogos de linguagem no podem ser completamente estabelecidos. Tal qual num jogo de tnis, em que esto demarcados na quadra os limites em que a bola deve ser jogada. No entanto, nenhuma regra determina como a raquete deve ser empunhada, ou de que forma o jogador deve bater na bola, ou ainda com que velocidade ou efeito a bola deve ser jogada. As regras do jogo no demarcam todos os limites, e aqueles que demarcam no so rgidos, intransponveis. Por isso os estudiosos do texto hebraico do Primeiro Testamento podem se dar ao luxo de com ele brincar, mas a possibilidade de fazer o maior nmero de pontos ser sempre daquele que cultural, social, econmica e vivencialmente conhece a maioria das possibilidades de jogos de linguagem que o texto em questo possui, seja ele oral ou escrito. Situa-se, assim, a obra de Ricoeur em uma perspectiva geral ao propor a necessidade constante de um retorno ao pensamento aristotlico em suas mais variadas atualizaes com as perspectivas contemporneas. Destaca-se, do ponto de vista lgico, a negao dos pressupostos clssicos, especialmente, o princpio da identidade (RICOEUR:1991) a mesmidade e ipsidade, ou seja, o mesmo e o outro no mesmo ; assim como o estudo sobre a temporalidade e a perspectiva potica, em dilogo com as inmeras discusses a respeito do conceito de tempo e da perspectiva potica. Correlaciona-se contedo e forma, substncia e essncia, objeto formal e material, passado e futuro. O pensamento ricoeuriano tem como objetivo a insero do ser consciente no cosmo, ou seja, quer propor uma razo que no se limite tcnica, mas faa uso de seus avanos e por eles coopere. Ao mesmo tempo, anseia pelo reconhecimento de si, do outro e ser reconhecido (RICOEUR: 2005) como princpio tico que se estabelece tanto nos suportes da mimesis, como em sua pragmatizao na sociedade. De outro modo: no tempo e pela narrativa, o homem pode reconhecer a si mesmo como um outro e entrar automaticamente em percurso do reconhecimento, ou seja, o texto no apenas projeta-se no mundo, mas possibilita a insero do leitor por uma articulao entre a tradio em carter heteronmico e a liberdade autnoma do sujeito.10

AS DIFERENTES ABORDAGENS DO MODERNO E DA MODERNIDADE NO MUNDO ANTIGO Alexandre G. Carvalho1

Meu objetivo nesta comunicao apresentar uma reflexo sobre diferentes percepes do moderno e da modernidade no mundo antigo, procurando desvendar os motivos desta diversidade de abordagens, tendo como exemplo, a sociedade grega. Desde o sculo XIX em diante, o termo moderno tornou-se um marcador no apenas da cronologia, denotando um claro contraste com o antigo ou o medieval, mas de qualidade, avaliado em termos quase invariavelmente positivos. O contraste entre moderno e pr-moderno adquiriu maior importncia do que o contraste entre presente e passado; Este contraste teve tambm uma dimenso espacial; a modernidade estava localizada primeiramente na Europa e no Novo Mundo, enquanto a frica e a sia estavam associadas com o passado pr-moderno (MORLAY, 2009, p. 45) . A sensao de que se estava vivendo na modernidade resultou em uma nova compresenso da antiguidade clssica. Provocou-se novas questes e debates sobre a natureza da sociedade antiga, como tambm, como deveria ser analisada. Por um lado, tornou-se natural para muitos historiadores ver a antiguidade como pr-moderna, basicamente ou inteiramente diferente e separada do presente. Tal sociedade necessitava ser compreendida em seus prprios termos, e os historiadores, portanto, necessitavam delinear a natureza e a importncia das formas que se diferenciam das sociedades mais1

Professor Adjunto do departamento de Histria da Universidade Estadual do sudoeste da Bahia. Doutor em Histria pela PPG-UFF.

recentes e mais familiares. Por outro lado, na medida em que a modernidade podia ser vista como uma qualidade ao invs de um rtulo exclusivamente temporal, e porque as diferenas entre a antiguidade clssica e as outras sociedades pr-modernas parecem ser, pelo menos, to significantes quanto as diferenas entre a antiguidade e o presente, era inteiramente possvel para alguns historiadores ver a civilizao clssica como sendo de certo modo moderna, uma ocorrncia mais anterior do mesmo fenmeno que agora estava sendo sentida no presente (MORLAY, 2009, p. 6-7). Nos estudos dos aspectos econmicos e sociais da histria grega e romana, o debate incorreu rapidamente em duas posies que dominaram o tema desde ento. Geralmente, rotulados como primitivistas e modernistas, os protagonistas dessas abordagens focaram na questo de se ou no a economia antiga podia ser caracterizada como moderna, e se as diferenas entre antigo e moderno poderiam ser vistas como meramente quantitativas ao invs de qualitativas. Para Eduard Meyer e Rostovtezeff a antiguidade clssica parecia, em muitos aspectos, assemelhar-se ao incio do perodo moderno. Escreveram em momentos diferentes, o primeiro em 1910 e o segundo em 1963, mas viam no mundo antigo um mundo de comrcio difundido e sofisticado e com uma estrutura legal que sustentava as transaes econmicas. Portanto, um alto nvel de modernizao, e, sobretudo, uma rica e complexa cultura apreciada no somente pela rica elite, mas pela massa da populao. Para E. Meyer, a Antiguidade era uma cultura plenamente desenvolvida e em essncia absolutamente moderna. A introduo do comrcio e do dinheiro, no sculo VIII a.C., transformou as relaes econmicas e sociais e desintegrou as velhas relaes patriarcais, o campons se endividou e se arruinou. Ao desenvolver-se o comrcio e a indstria, surgiu entre a nobreza e os camponeses, nas cidades, a nova classe social dos

industriais e comerciantes, alm dos marinheiros e todos os trabalhadores livres que viviam dos novos ramos produtivos. Estes setores procuraram se unir aos camponeses para derrubar a domnio da nobreza e instaurar o regime da burguesia (MEYER, 1955, p. 87). A caracterstica da trajetria grega em oposio dos tempos modernos, consistiu em que l a cidade foi o nico e exclusivo expoente da vida poltica, o que resultou em uma disperso nacional em um sem nmero de pequenos estados. Os sculos VII e VI da histria da Grcia corresponderiam aos sculos XIV e XV d.C. na trajetria da histria moderna, e o V ao XVI. Portanto, na cultura da Antigidade, em um plano muito mais reduzido e sob formas muitas vezes distintas, se impuseram as mesmas influncias e os mesmos antagonismos que dominam o desenvolvimento moderno (MEYER, 1955, p. 89). A escravido desempenhou papel secundrio, pois seu nmero no foi maior do que nos reinos francos da primeira metade da Idade Mdia. No estamos, portanto, diante de uma trajetria progressiva, mas sim paralela, pois a Idade Mdia representa o retorno a condies e realidades que a Antigidade, no s do ponto de vista cultural, literrio, artstico e poltico, seno tambm do ponto de vista social, havia superado j por muito tempo. O trabalho livre, longe de ser um tardio sucessor da escravido, produto de largas etapas intermedirias, surge pelo contrrio no mesmo momento em que se manifesta tambm a escravido como um fator econmico importante; os dois tm a mesma Antiguidade e so, simplesmente, duas formas distintas e concorrentes que satisfazem a mesma necessidade econmica, expresso de uma transformao econmica que , no fundo, a mesma. O capital necessita da mo de obra barata e gil, subtrada as condies naturais da sociedade patriarcal, medieval, e que procura

explorar na maior extenso possvel. A forma jurdica em que a mo de obra explorada pelo capital se oferece tem do ponto de vista econmico uma importncia secundria. Se se pode escolher entre a escravido e o contrato do trabalho livre, em igualdade de condies se preferir a primeira (MEYER, 1955, p. 152-163). Para o russo M. Rostovtzeff, a ampliao do comrcio, os grandes melhoramentos tcnicos na agricultura e na indstria levaram a Grcia, no quinto sculo a.C., supremacia nos mercados mundiais. Outrossim, a produo e exportao de leo, vinho, manufaturas e artigos de luxo para todos os pases nos quais seus colonos haviam penetrado foram condies que permitiram aos gregos mostrar sua iniciativa no setor das finanas e abandonar os mtodos mais primitivos em favor de um sistema capitalista e de uma produo destinada a um mercado ilimitado. A transio para o capitalismo foi facilitada pela existncia da escravatura, reconhecida em toda parte como instituio, de cuja necessidade e normalidade ningum duvidava. Mas o Estado interferia na iniciativa capitalista. Dentro de cada Estado, o capital precisava combater as tendncias socialistas do governo e sua tendncia a se opor a todos que, pela riqueza ou pela superioridade intelectual e moral, erguiam-se acima do nvel geral. Assim, capitalismo e individualismo, crescendo irresistivelmente, entravam em constante conflito com as instituies democrticas, o que levava a uma instabilidade total, prejudicava o desenvolvimento saudvel do capitalismo, transformando-o em canais especulativos nos quais o Estado era impotente para interferir (ROSTOVTEZEFF, 1986, p. 217-218). A abordagem destes autores enuncia uma modernidade que compreendida em termos de um conjunto de distintos traos, tais como comrcio, cidades prsperas, atividade produtiva, capitalismo e assim por diante. O passado pode ser rotulado como

moderno quando exibe traos similares, e nesses termos a antiguidade c