2010. pedro kaliambai – 35

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    PEDRO KALIAMBA I 35

    Admito que j resolveste o enigma da Criao;e o teu destino? Aceito que desvendaste a Verdade;e o teu destino? Est bem, viveste cem anos felizese ainda tens muitos para viver; e o teu destino?

    Omar Kadhayam

    Pedro Kaliambai preparou 35 pinturas de pequeno formato com destino. Tendovisitado o espao da Q.Galeria h alguns meses atrs, o artista decidiu organizar umasequncia de telas que se lhe adequam, como se de uma espcie de pele artificial eidealizada se tratara. A pele humana constituda por camadas (derme, epiderme), semelhana das sobreposies de guache, ressurgindo, renovando-se emtranslucidez e transparncia sucessivas em pintura plena e expansiva.Verificam-se dois sentidos de leitura: o centrptoenquanto a composio se auto-centra, se coloca dentro de foco, se situa em si mesma; o centrfugo - enquanto cadaelemento, integrando a composio, permite uma expanso, ao nvel da percepovisual, atravessando o vidro e as fronteiras da moldura. Assim, atravs da conciliaode ambas foras, a pintura decorre do desenho que a chama e o expande.O desenho na sua pintura assume a acepo que lhe foi outorgado por artistas doRenascimento e da modernidade, entendendo-o como aspecto constitutivo dopensamento visual, como capacidade intelectual de sentido integrador; denotativo deum certo discernimento arquetpico, pois propicia (seno mesmo obriga) ao exercciodas capacidades intrnsecas que o artista deve promover e desenvolver para atingirunidade na sua obra.

    E j nos vidros da eternidadeCai meu calor, meu sopro respirado.

    Nela se grava um desenho pra sempre,

    Irreconhecvel de to recente.1

    O desenho, no significava apenas o conjunto dos traos mais ou menos simples, aslinhas ou o grfico que se prev signifiquem algo existente de ordemrepresentativa... Evoque-se Almada Negreiros quanto primazia (e definio) dodesenho, atendendo ao seu valor formativo, enquanto dom e exerccio educacional,actuando em consentaneidade manifesta, e por transposio, ao trabalho elaborativodo entendimento humano, indutor de conhecimento. A afinidade ao entendimentoreconhece-se pela forma como o prprio desenho se desenvolve: rapidez, clareza,simplicidade, ou seja, as qualidades que se reconhecem no desenho. O desenhoimpe disciplina, condio nica que a garante, assentimento e xito: obriga a

    1Ossip Mandelstam, Guarda minha fala para sempre, Lisboa, Assrio & Alvim, 1996, p. 107

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    aceitao da obedincia, um tipo de obedincia que significa lealdade para consigomesmo, "para com os nossos sentidos, rgos do entendimento."2Poder-se-ia ponderar se o desenho, efectivamente, corresponde experincia daautoridade pessoal que implica a considerao integral da pessoa; factor que, alis,o caracteriza como Arte, semelhana do modo como a personalidade individual estpara a pintura, pertencendo mesmo ao domnio da pintura. Ou seja, quanto o desenhoseja caminhoe simultaneamente finalizao - para a pintura, donde o caminho paraa mencionada autoridade pessoalseguindo a terminologia.

    A sua pintura emerge do que est por detrs, impele o espectador para a travessia deum tempo e espao que so nfimos, uma espcie de zonas intersticiais, de limbosdesconvencionalizados situados por detrs de segmentos, por detrs de contornos,por detrs de organismos inventados, por detrs de preenchimentos vividos, pordetrs de memrias consecutivasafirmando com Thomas Bernhard:

    Por trs das rvores h um outro mundo,eles descem em longos sulcospara as aldeias, para as florestas dos milnios,amanh perguntam por mim, ()3

    Nalgumas das suas telas os sulcos adivinham-se, conformando rugas que poderiamser excertos de paisagens romnticas ou naturalistas. A herana de uma assuno depaisagem que glosa a substncia e a identidade, quer do autor, quer dosespectadores. Cruzando vidas, os segmentos agrilhoados nas telas mnimas evocamno meu imaginrioa sabedoria de Daniel Arasse ao conceber a historiografia daarte atravs do conceito de detalhe. Pois as telas podem, assim seja, entender-secomo detalhes, cujo desocultamento cabe concretizar. Numa analogia ontolgica, aessncia e a existncia enfadam-se, desencantadas de querelas obsoletas. Um e si-mesmo, promovendo o desvelamento que as almas, as ideias e as sensibilidadesanseiam. Alm das subjectividades implcitas em cada uma das 35peas, existe esse

    mundo que as alimenta: fragmentos de folhas, pele de seres animais, estames,fsseis, cascas de rvores, barro da terra que se desprendetudo que nos rodeiasuscita pulsar, imprime uma respirao, decide um olhar demorado que atravesse ostempos distintivos das transposies na pintura.Vem-se35pinturas que sabem de permanncia, de estabilidade, de fixao.

    Um dia de primavera no fim do mundo. No fim do mundo, de novo o dia passa.O melro chora, como se fossem as suas lgrimasQue molham os ramos cimeiros das rvores.4

    Os contedos iconogrficos destas pinturas, quase reduzidos a minsculas notas

    essenciais, revelam rigorosa depurao e expressam uma conscincia austera, querem termos estticos, quer picturais. Os motivos apresentados atravessam o vidro queos abriga e expandem-se. As formas geomtricasde teor informal, nalguns casos -potencializam uma policromia clarificada e a fundamentao de desenho que asorganizam.Est-se perante 35episdios de pintura que contm em si percursos, jornadas epermanncias, acompanhando o ritmo de uma existncia. Pode divagar-se,desencadear narrativas sobre as substncias mais inesperadas: cada espectador, ao

    2Almada Negreiros, "O Desenho",Ensaios, Lisboa, INCM, 1990, p.27

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    Cf. Thomas Bernhard, Por trs das rvores h um outro mundo, Na Terra e no Inferno, Lisboa,Assrio & Alvim, 2000, pp.61 e ss.4Li Shang-YinChuva na Primavera e outros poemas, Lisboa, Assrio & Alvim, 2001, p.21

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    contempl-las, querer evoluir e participar na imensido de paisagem interna que aquise encontra plasmada.

    Maria de Ftima LambertLx, fev./Prt, mar. 2010