2010_marciorobertoalvesdossantos
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
MRCIO ROBERTO ALVES DOS SANTOS
Fronteiras do serto baiano : 1640-1750
(Texto revisado em julho de 2010 a partir de observaes da banca examinadora)
Para a impresso deste texto, deve-se observar que as pginas 84, 190, 208, 280, 283 e 301
foram formatadas em papel tamanho A3 (42 x 29,7 cm), em razo dos contedos nelas
apresentados.
So Paulo
2010
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
Fronteiras do serto baiano : 1640-1750
Mrcio Roberto Alves dos Santos
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Histria.
Orientadora: Profa. Dra. Laura de Mello e Souza
So Paulo
2010
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
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FOLHA DE APROVAO
Mrcio Roberto Alves dos Santos
Fronteiras do serto baiano : 1640-1750
Tese apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Histria.
Aprovado em: 30/04/2010
Banca Examinadora
Profa. Dra. Laura de Mello e Souza Universidade de So Paulo
Prof. Dr. Erivaldo Fagundes Neves Universidade Estadual de Feira de Santana
Profa. Dra. Jnia Ferreira Furtado Universidade Federal de Minas Gerais
Prof. Dr. Pedro Lus Puntoni Universidade de So Paulo
Profa. Dra. Silvia Hunold Lara Universidade Estadual de Campinas
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AGRADECIMENTOS
No curso da meia dcada de trabalho que envolveu a elaborao deste estudo, algumas
contribuies foram decisivas. Laura de Mello e Souza, pelo aceite do projeto, pela orientao
e apoio e, sobretudo, pela inteligncia e perspiccia com que criticou os meus textos. Snia
Caldas Pessoa e Pedro Pessoa Santos, minha esposa e meu segundo filho, cujo estmulo,
solidariedade e carinho praticamente decidiram tudo. Alar Messias Marques Jnior, cuja
sensibilidade profissional abriu caminho para a licena de trabalho que me permitiu realizar as
disciplinas em So Paulo e boa parte da pesquisa documental. Tiago dos Reis Miranda, que
me brindou em Lisboa com um surpreendente conjunto de informaes e dicas de pesquisa,
entre as quais aquela que foi talvez a mais importante naquele inverno europeu de 2008,
quando me dirigiu para a Coleo Conde dos Arcos, no Arquivo da Universidade de Coimbra.
Marlene da Silva Oliveira, que, desde 2003, quando acessei pela primeira vez o Arquivo
Pblico da Bahia, tem generosamente me ajudado a resolver as inmeras demandas da
pesquisa documental naquele acervo.
No menos importantes foram as contribuies daquelas pessoas que, nas mais diversas
posies e contextos, se envolveram no projeto. Assumindo o grave risco de omitir algum,
lembro-me especialmente de Ana Pessoa Santos; Caio Boschi, pelas sugestes de pesquisa em
Portugal; a Condessa Teresa Schonborn, pela liberao do acesso ao arquivo privado da Casa
de Cadaval; Consuelo Novais Sampaio; Eduardo Frana Paiva e Regina Horta Duarte, pela
autorizao de acesso ao sistema de bibliotecas da UFMG; a equipe da Biblioteca da
Assembleia Legislativa de Minas Gerais; a equipe da Biblioteca da Faculdade de Filosofia e
Cincias Humanas da UFMG, na pessoa de Vilma Carvalho de Souza; Fernanda Olival; Filipe
Hanssen; Horacio Gutirrez; Iris Kantor; Leonardo Henrique de Noronha e Luiz Fernandes de
Assis, pela interlocuo despojada e amiga; Marcelo Renato Alves dos Santos, Maurcio
Reginaldo Alves dos Santos e Matheus Lima Alves, meus irmos e meu primeiro filho;
Mrcia Moiss Ribeiro e Aldair Carlos Rodrigues; Marco Antonio Silveira, pela interlocuo
e apoio; Maria Ftima de Melo Toledo; Maria Ruth Alves, minha me, fonte da qual tudo
comeou; Nuno Gonalo Monteiro; Pedro Cardim; Roberto Albino dos Passos e Rita de
Cssia Caldas Pessoa, com uma lembrana para a generosa acolhida que sempre me
proporcionaram em So Paulo; Ruth Schmitz de Castro; Silvia Hunold Lara; Urano Andrade;
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Vera Ferlini, que, na coordenao da Ctedra Jaime Corteso, foi compreensiva e solidria
durante os duros momentos pessoais por que passei em 2006 e 2007.
A Ctedra Jaime Corteso e a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
proveram os recursos financeiros que possibilitaram a minha estada em Portugal para a
pesquisa nos arquivos histricos daquele pas.
Com um registro especial do apoio recebido da equipe do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, agradeo aos funcionrios das instituies arquivsticas, centros de documentao
histrica e bibliotecas que percorri no Brasil e em Portugal.
banca examinadora do trabalho, composta, alm da orientadora, pelos professores doutores
Erivaldo Fagundes Neves, Jnia Ferreira Furtado, Pedro Lus Puntoni e Silvia Hunold Lara,
agradeo a leitura cuidadosa do texto e as diversas sugestes de aprimoramento dela
resultantes.
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RESUMO
SANTOS, M. R. A. dos. Fronteiras do serto baiano : 1640-1750. 2010. 433 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010. A anlise histrica da formao territorial dos sertes brasileiros mostra que, diferentemente do que sugerem os estudos da primeira metade do sculo XX e mesmo perspectivas historiogrficas mais recentes, o processo foi marcado por reverses, lacunas e descontinuidades que pem em xeque o modelo do territrio contnuo, da expanso geogrfica e da dilatao das fronteiras. O principal objetivo deste trabalho foi superar esse modelo a partir da abordagem de situaes de reverso da ocupao luso-brasileira do serto baiano, assim entendido o conjunto espacial constitudo, no perodo de 1640 a 1750, pelo interior da capitania da Bahia, Piau, norte do atual estado de Minas Gerais e margem esquerda do mdio So Francisco. Na problematizao proposta foram utilizadas as categorias de descontinuidade e reversibilidade espao-temporal da ocupao luso-brasileira. Para desenvolv-la foi necessrio rastrear a trajetria histrica das zonas de fronteira desse espao interior, de modo a realar o processo de formao do territrio luso-brasileiro como conquista e ocupao de antigos espaos tapuias. As zonas fronteirias foram tratadas como reas de frico entre o instvel territrio luso-brasileiro e os espaos nativos, sujeitas, portanto, constante ameaa de retomada indgena ou de esvaziamento pelas presses do meio. A mobilizao da categoria de fronteira resultou em anlises comparativas do espao estudado com outras regies fronteirias e iluminou as possibilidades analticas abertas pela aplicao dessa ferramenta terica compreenso da colonizao luso-brasileira do interior da Amrica portuguesa. Os fecundos resultados providos pela anlise da ocorrncia de expresses como fronteira, limite e ltima povoao na documentao consultada forneceram a garantia de que a fronteira foi um elemento histrico constitutivo da ocupao colonial dos sertes brasileiros. A utilizao de metodologia de anlise quantitativa de dados permitiu, por sua vez, o tratamento histrico das cinco principais estruturas de ocupao encontrveis nas zonas de fronteira do serto baiano no perodo estudado: o caminho, a sesmaria, a povoao, o posto militar e a misso religiosa. A principal concluso do estudo refere-se abordagem da ocupao territorial dos sertes no como o avano gradualmente positivado da civilizao luso-brasileira, mas como uma trajetria multidirecional, descontnua e irregular. Palavras-chaves: serto baiano, ocupao luso-brasileira, descontinuidade, reversibilidade, ndios tapuias.
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ABSTRACT
SANTOS, M. R. A. dos. Frontiers of the Bahia serto : 1640-1750. 2010. 433 f. Thesis (Doctoral) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010. The historical analysis of territorial formation of the Brazilian hinterlands shows that, unlike from what suggest the studies of the first half of the twentieth century and even more recent historiographical perspective, the process was marked by reversals, gaps and discontinuities that put into question the model of continuous territory, geographic expansion and expansion of the borders. The main objective of this work was to overcome this model through the approach of cases of reversal of the Luso-Brazilian occupation of Bahia serto, understood as the whole space constituted, in the period from 1640 to 1750, of the interior of the captaincy of Bahia, Piau, north of the current state of Minas Gerais and the left bank of the middle part of So Francisco. In the problem proposed have been used the categories of discontinuity and spatial-temporal reversibility of Luso-Brazilian occupation. To develop the problem, it has been necessary to trace the historical path of the frontier zones of that interior space in order to enhance the formation process of the Luso-Brazilian territory as conquest and occupation of former tapuias spaces. The frontier zones have been treated as friction areas between the unstable Luso-Brazilian territory and indigenous spaces, subject therefore to the constant threat of indigenous resumption or unsettlement because of the pressures of the environment. The mobilization of the category of frontier resulted in comparative analysis of the space studied with other frontier regions, and highlighted the analytical possibilities opened up by the application of this theoretical tool to understand the Luso-Brazilian colonization of the interior of Portuguese America. The fruitful results provided by the analysis of the occurrence of terms such as frontier, boundary and final settlement in the documents reviewed provided the guarantee that the frontier was a constitutive historic element of the colonial occupation of the Brazilian hinterlands. The use of methodology of quantitative analysis of the data allowed, in turn, the historical treatment of the five main structures of occupation findable in the frontier zones of Bahia serto in the period studied: the way, the allotment, the village, the military outpost and the religious mission. The main conclusion of the study refers to the approach of territorial occupation of the hinterlands not like the gradually constituted advance of Luso-Brazilian civilization, but as a multidirectional, discontinuous and irregular path. Keywords: Bahia serto, Luso-Brazilian occupation, discontinuity, reversibility, tapuia indians.
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Igreja da ilha de So Pedro .................................................................................. 295
Figura 2 Diagrama da sucesso de unidades territoriais na expanso linear regular ......... 364
Figura 3 Diagrama da sucesso de unidades territoriais na expanso linear irregular ....... 365
Figura 4 Parte do mapa do padre Cocleo, abrangendo a cidade de So Salvador, o
Recncavo Baiano e algumas das reas centrais do interior baiano ..................................... 376
Figura 5 Parte do mapa do padre Cocleo, abrangendo reas a oeste do mdio So Francisco
................................................................................................................................................ 378
Grfico 1 Distribuio percentual de sesmarias e de patentes militares no serto da Bahia
1650-1750 ............................................................................................................................. 309
Quadro 1 Distines entre os povos tupi e os povos tapuias do Brasil ............................... 45
Quadro 2 Esquema para quatro casos de conquista luso-brasileira de espaos do serto
baiano segunda metade do sculo XVII e primeira metade do sculo XVIII ...................... 84
Quadro 3 A Guerra dos Brbaros em duas perspectivas historiogrficas recentes ........ 115
Quadro 4 Misses religiosas e aldeamentos indgenas pioneiros no interior baiano 1660-
1750 ....................................................................................................................................... 301
Mapa 1 Espao de estudo ..................................................................................................... 28
Mapa 2 Caminhos principais do serto baiano 1640-1750 ............................................. 162
Mapa 3 Distribuio de sesmarias no interior da Bahia 1640-1750 ............................... 190
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Mapa 4 Distribuio de povoaes no interior da Bahia 1640-1750 .............................. 248
Mapa 5 Distribuio de patentes no interior da Bahia 1670-1689 .................................. 265
Mapa 6 Distribuio de patentes no interior da Bahia 1690-1709 .................................. 269
Mapa 7 Distribuio de patentes no interior da Bahia 1710-1729 .................................. 273
Mapa 8 Distribuio de patentes no interior da Bahia 1730-1750 .................................. 277
Mapa 9 Distribuio de misses religiosas no interior da Bahia 1660-1750 .................. 302
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 reas de sesmarias distribudas no interior da Bahia 1640-1750 .................... 208
Tabela 2 Razes de nomeao para postos militares no interior da Bahia - 1670-1750 .... 280
Tabela 3 Distribuio regional de patentes militares emitidas em razo de ameaa de
escravos negros fugidos, de criminalidade ou de ameaa indgena no interior baiano - 1670-
1750 ....................................................................................................................................... 283
Tabela 4 Distncias mdias entre unidades de ocupao em cursos fluviais do interior
baiano 173- ......................................................................................................................... 337
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AAPEB Anais do Arquivo Pblico do Estado da Bahia (ou Annaes do
Arquivo Publico e Inspetoria dos Monumentos ou Annaes do
Archivo Publico e Museu do Estado da Bahia)
ABN Anais da Biblioteca Nacional
ACC Arquivo da Casa de Cadaval
AHE Arquivo Histrico do Exrcito
AHU Arquivo Histrico Ultramarino
AMP Anais do Museu Paulista
AN Arquivo Nacional
ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo
APB Arquivo Pblico do Estado da Bahia
AUC Arquivo da Universidade de Coimbra
BA Biblioteca da Ajuda
BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
DA Documentos Avulsos de Interesse para a Histria e Costumes
de So Paulo
DH Documentos Histricos
DI Documentos Interessantes para a Histria e Costumes de So
Paulo (ou Publicao Oficial de Documentos Interessantes
para a Histria e Costumes de So Paulo)
IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
PAN Publicaes do Arquivo Nacional
RAPM Revista do Arquivo Pblico Mineiro
RIGHB Revista do Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia
RIHGB Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (ou
Revista Trimestral do Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro)
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SUMRIO
INTRODUO 17
PARTE I A CONQUISTA 33
1 NO MARCO ZERO 34
1.1 Territorialidades luso-brasileiras 34
1.2 Territorialidades indgenas 40
1.3 Reorientaes 52
2 A DINMICA DA CONQUISTA 57
2.1 As formas de conquista 57
2.2 Fluxos regionais 65
2.3 A no internao da expanso pernambucana 88
3 PRTICAS DE CONQUISTA E DE REAO INDGENA 92
3.1 Ataque e defesa 92
3.2 Adaptao resistente? 112
4 HOMENS FRONTEIROS 121
4.1 Consideraes preliminares 121
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4.2 Indivduos 125
4.3 Os homens fronteiros e a circulao colonial 146
PARTE II MODOS E RITMOS DE OCUPAO 151
5 O CAMINHO 152
5.1 Consideraes preliminares 152
5.2 O caminho e a sua abertura 153
5.3 Caminhos do serto baiano 160
5.4 Vias fluviais 174
5.5 Os caminhos e a poltica metropolitana 182
6 A SESMARIA 187
6.1 Consideraes preliminares 187
6.2 As sesmarias continentais 189
6.3 A distribuio de sesmarias entre 1670 e 1750 206
6.4 A fazenda de gado pioneira 216
7 A POVOAO 222
7.1 Consideraes preliminares 222
7.2 Santo Antonio da Conquista 223
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7.3 A distribuio de povoaes e distritos 245
8 O POSTO MILITAR 258
8.1 Consideraes preliminares 258
8.2 A distribuio de patentes entre 1650 e 1750 262
8.3 Razes de nomeao 278
9 A MISSO RELIGIOSA 286
9.1 A misso e a fronteira 286
9.2 As misses sertanejas 289
9.3 A distribuio de misses entre 1660 e 1750 298
10 OCUPAO E COLONIZAO 308
10.1 Ritmos de ocupao 308
10.2 A reversibilidade da ocupao 321
10.3 Base hidrogrfica e franjas pecurias 333
10.4 Ocupadores, moradores, colonos 343
11 AS REPRESENTAES ESPACIAIS DA OCUPAO 348
11.1 O serto 348
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11.2 A fronteira 360
11.3 A geometrizao da representao espacial da ocupao 368
11.4 A representao cartogrfica 373
12 O PROBLEMA DA FRONTEIRA 382
CONCLUSES 399
REFERNCIAS 407
ANEXOS 430
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INTRODUO
Em 1915 saiu luz o estudo Expanso geogrfica do Brasil at fins do sculo XVII, de
autoria do pesquisador mineiro Baslio de Magalhes. Dois anos depois, a monografia foi
premiada pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e, em 1935, includa pela
Companhia Editora Nacional na coleo Brasiliana, com acrscimos substanciais em relao
primeira verso.1 J a partir da publicao de 1915, o texto de Magalhes se tornou
referencial. Na realidade, seguia-se aos estudos da colonizao do interior brasileiro, lanados
entre as ltimas dcadas do sculo XIX e as primeiras do seguinte por autores como Teodoro
Sampaio, Pandi Calgeras, Joo Ribeiro e Orville Derby e, o mais destacado entre eles,
Capistrano de Abreu. Mas a extensa pesquisa documental e bibliogrfica, sempre
referenciada, o desenho sistemtico da obra, a periodizao segura, a organizao cronolgica
minuciosa dos eventos e o debate com historiadores antigos e contemporneos fizeram de
Expanso geogrfica... uma das grandes obras historiogrficas do Brasil das primeiras
dcadas do sculo XX.
Duas ideias fora mobilizam o texto de Baslio de Magalhes. A primeira est expressa no
prprio ttulo: a expanso como dilatao do territrio brasileiro, penetrao do interior e
rompimento da linha traada pelo Tratado de Tordesilhas. Em Magalhes a expanso
fundamentalmente uma ao paulista do sculo XVII, completada pelo gnio diplomtico de
Alexandre de Gusmo, que, em 1750, arrancou da Espanha e dos jesutas o Tratado de Madri.
O Brasil surge, assim, j no meado do sculo XVIII, por meio do reconhecimento do princpio
do uti possidetis, com a configurao geogrfica que tem hoje, praticamente inalterada desde
ento.
A segunda ideia fora, tomada de emprstimo a Joo Ribeiro, o territrio contnuo. A
colonizao da periferia brasileira dependeu da agregao geograficamente contnua de novos
espaos. o territrio vizinho que possibilita e impulsiona a ocupao de novas reas. Desta
forma, a colonizao do Rio de Janeiro s foi possvel depois de So Vicente e Esprito Santo;
de Sergipe e Alagoas, depois da Bahia e Pernambuco; do trecho de Laguna ao Rio Grande do
Sul, depois da posse da colnia do Sacramento, no rio da Prata. A colonizao portuguesa na
1 Magalhes, Baslio de. Expanso geographica do Brasil colonial. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. (Aproveito esta primeira nota para advertir que um erro comum do programa Word levou a que algumas notas de rodap fossem desviadas para pginas subsequentes quelas nas quais deveriam aparecer.)
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Amrica , portanto, uma expanso geograficamente contnua; no conhece a retrao e
tampouco a descontinuidade.
De certa forma o tema da formao territorial brasileira tributrio dessa matriz de anlise. A
colonizao como dilatao das fronteiras, a expanso geogrfica como processo que define o
contorno ideal do Brasil e a noo do territrio contnuo so os eixos em torno dos quais
gravitou, na primeira metade do sculo XX, a concepo histrica que fez da territorialidade
um atributo da nacionalidade. Para essa historiografia, a agregao de novos espaos,
realizada pelo esforo herico dos bandeirantes paulistas, tinha um sentido que se revela em
1750 e se confirma com a Independncia e a manuteno da integridade territorial brasileira.
E mesmo com o Estado Novo: como demonstrou Ktia Maria Abud, a obra histrica de
Cassiano Ricardo, produzida no contexto da ditadura varguista, realiza a remitificao do
bandeirante, fazendo dele um smbolo no mais somente paulista, mas nacional.2 O oeste, que
os bandeirantes do sculo XVII tinham conquistado para o territrio brasileiro, deveria ser, no
sculo XX, objeto de novas bandeiras de reocupao das suas vastas e frteis terras, de modo
a ampliar a base territorial da civilizao nacional.
Em 1991 o gegrafo Antonio Carlos Robert Moraes defendeu na Universidade de So Paulo a
tese de doutoramento intitulada Bases da formao territorial do Brasil: o territrio colonial
brasileiro no longo sculo XVI.3 O trabalho de Moraes retoma a discusso da formao
territorial brasileira, mas o faz sob novas bases tericas e histricas. No se trata mais da
construo da nacionalidade, mas da insero do territrio colonial brasileiro nos amplos
enquadramentos da economia-mundo europeia, da expanso ultramarina e da formao do
imprio colonial lusitano. Num jogo de sucessivas aproximaes, somos levados a um longo
passeio pela formao do capitalismo na Europa, pelo lugar de Portugal nesse processo e pelo
lugar dos territrios coloniais americanos na expanso lusitana e espanhola, para, j na quarta
parte do texto, chegarmos ao tema central, que d ttulo ao livro. O que o autor pretende, em
suma, clarear a dimenso espacial como elemento determinante na formao histrica
brasileira: o Brasil nasce e se desenvolve sob o signo da conquista territorial: trata-se da
2 Abud, Katia Maria. O sangue intimorato e as nobilssimas tradies (a construo de um smbolo paulista: o bandeirante). 1985. 242 f. Tese (Doutorado em Histria). Departamento de Histria, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 1985. 3 Moraes, Antonio Carlos Robert. Bases da formao territorial do Brasil: o territrio colonial brasileiro no "longo" sculo XVI. So Paulo : Hucitec, 2000.
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construo de uma sociedade e de um territrio, e mais, de uma sociedade que vai ter na
montagem do territrio um de seus elementos bsicos de coeso e identidade sociais.4
O objetivo suprir uma lacuna nas grandes obras da historiografia brasileira, nas quais, para o
autor, a questo territorial episdica. Segundo Moraes, a abordagem do territrio pela
historiografia envolta numa concepo juridicista, que s o apreende no plano formal da
definio legal das fronteiras. Para essa concepo, os marcos da histria territorial brasileira
estariam na assinatura dos tratados de Madri (1750) e de Santo Idelfonso (1777), que
redelimitaram as reas portuguesa e espanhola na Amrica do Sul. Desta forma, reduz-se a
conformao do territrio conformao legal de seus limites, tornando a histria territorial
um estudo do estabelecimento das fronteiras, conclui o autor.5
Na abordagem de Moraes o Estado metropolitano e a sua expanso imperial ocupam lugar
central. A colonizao lusitana na Amrica e a consequente formao do territrio colonial
so resultados, em ltima anlise, das motivaes geopolticas metropolitanas. O territrio
colonial nada mais do que um anexo no espao imperial da metrpole, sendo o Estado
portugus, mobilizado pela necessidade histrica de expanso, o agente impelidor da
colonizao dos espaos lusitanos na Amrica.
Para compreender o longo processo colonizador, Moraes estabelece uma periodizao, que
justifica como um mecanismo analtico que flui de uma leitura geogrfica da histria
colonial do Brasil, com maior embasamento para o perodo que foi objeto de anlise do
presente estudo [1580-1640], e com certa nfase nas determinaes da geografia poltica.6
Seis perodos so definidos e caracterizados: a descoberta e explorao das bordas litorneas
(1500-1530); a instalao efetiva (1530-1580); o perodo do Brasil hispnico (1580-1640); a
consolidao do domnio territorial e a integrao da Amrica portuguesa (segunda metade do
sculo XVII); o apogeu da explorao econmica (1700-1750); e a crise do Antigo Sistema
Colonial (segunda metade do sculo XVIII).
Os perodos decisivos na perspectiva com que trabalha Moraes so o terceiro e quarto. No
perodo filipino completam-se as etapas do descobrimento, instalao e consolidao da
4 Ibidem, p. 415. 5 Ibidem, p. 25. 6 Ibidem, p. 412.
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colonizao lusitana. No momento da unio das duas coroas j esto estabelecidas as bases do
domnio lusitano na Amrica do Sul. Os centros de irradiao da colonizao esto definidos
e uma formidvel rede de povoamentos costeiros distribua-se numa vasta poro da fachada
ocidental do Atlntico. Essas condies favorveis permitiram um fluxo povoador
metropolitano contnuo e ascendente, ao qual se soma a formao de linhagens luso-
americanas. Uma obra geopoltica de conquista havia sido realizada. O povoamento
colonial avanava nos espaos contguos, gerando zonas contnuas de ocupao e jogando
para diante as fronteiras do territrio ocupado.7 Essa entusistica anlise do perodo,
curiosamente, segue-se a uma citao de Capistrano de Abreu, no sentido oposto, que Moraes
incorpora com certa relutncia.8
O perodo da unio das duas coroas traz uma nova situao, na qual sobressaem duas
consequncias geopolticas bsicas: o incio da significativa expanso espacial ocorrida no
sculo XVII, processo responsvel pela configurao do territrio brasileiro contemporneo,
definindo-lhe eixos de ocupao e atingindo limites que viro a constituir muitas das suas
atuais fronteiras; e a fragmentao da soberania sobre o territrio brasileiro, processo pelo
qual o espao colonial desintegra-se em diferentes dominaes, apresentando-se sem unidade
poltica em meados do sculo XVII. Entre esses elementos de fragmentao, Moraes cita o
projeto missionrio da Igreja Catlica, que ocupa as bordas meridionais da colnia, a
organizao autnoma do Estado do Maranho e o enclave soberano de Palmares. Mas
identifica na longa invaso holandesa da costa nordeste a principal evidncia da fragmentao
apontada, caracterizando-a como a maior ameaa geopoltica experimentada pela colnia
portuguesa na Amrica do Sul.
O perodo seguinte (segunda metade do sculo XVII) o da retomada da soberania lusitana
sobre esses espaos de extraterritorialidade, o que se processa em consonncia com a
restaurao poltica do reino portugus. A consolidao do domnio territorial e a definitiva
integrao da Amrica portuguesa se do a partir do desalojamento dos holandeses, dos
ataques paulistas s misses jesuticas meridionais, da destruio de Palmares, da guerra ao
gentio e consequente devassamento de novas terras e, finalmente, da articulao terrestre com 7 Ibidem, p. 327-328. Grifos meus. 8 Para Capistrano, a histria do Brasil no sculo XVI elaborou-se em trechos exguos de Itamarac, Pernambuco, Bahia, Santo Amaro e So Vicente. Abreu, Joo Capistrano de. Captulos de histria colonial 1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. 5. ed. [Braslia]: Editora Universidade de Braslia, 1963, p. 68. Apud Moraes, op. cit., p. 326. Ou Abreu, Capistrano de. Captulos de histria colonial: 1500-1800. Braslia: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998. p. 52.
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o Maranho. A descoberta das minas, j no final do perodo, vem fornecer a esse conjunto
territorial j consolidado um setor econmico dominante, que polarizar as economias
regionais j assentadas, animando-as com seu dinamismo e compelindo-as expanso.9
Todos os elementos conspiram para a instalao do perodo seguinte, de apogeu da
explorao econmica do Brasil.
Numa nota de rodap, j aproximando-se do final do texto, Moraes revela a sua fonte
inspiradora:
Eduardo dOliveira Frana, depois de assinalar ser este um sculo mal estudado e de considerar que para o Brasil no foi negativa a poca filipina, salienta ter sido este o perodo em que a conquista se converteu em efetiva ocupao. Em suas palavras: O sculo XVII o sculo da colonizao. No mais conquista e depredao. Organizar um mundo para a produo sistemtica; e adiciona: Ento perdido o exclusivo do mundo lquido, rompidas em mil pontos as malhas da rede monopolista, as feitorias que vigiavam as guas deviam mudar-se em trampolins para os saltos pelos sertes adentro. Essa inverso do mundo colonial.... F. Novais aponta o esforo metropolitano no sentido de expandir o territrio de dominao colonial para alm das possibilidades da explorao econmica.10
No final desse decisivo e curto sculo XVII pois a trajetria de recuperao da soberania
lusitana e de integrao do territrio dura efetivamente apenas 60 anos, de 1640 a 1700
esto dadas as bases da formao territorial brasileira. Ou seja, a soberania lusitana estava
reafirmada sobre uma vasta poro do oriente sul-americano, abarcando conjuntos regionais
extensos, ncleos de colonizao, enclaves, e uma vasta zona de trnsito e visitao na
hinterlndia englobada na designao de serto.11 O autor ressalva: se a conformao
bsica do territrio brasileiro estava posta, isso no significa que estivesse consolidado o
domnio de todo o espao que o compunha:
O que se consolidava no final do Seiscentos era o controle pleno de uma superfcie j considervel, composta de ncleos de ocupao, alguns (como a Bahia, Pernambuco, So Paulo e Rio de Janeiro) j podendo ser considerados na escala de regies, visto agruparem uma rede de povoaes inter-relacionadas, objetivando um espao de povoamento contnuo. Tais ncleos atuaram como centros de difuso constante dos movimentos que acabam por conformar o territrio em foco.12
9 Moraes, Antonio Carlos Robert. Bases da formao territorial do Brasil: o territrio colonial brasileiro no "longo" sculo XVI. So Paulo : Hucitec, 2000. p. 415. 10 Ibidem, p. 405. 11 Ibidem, p. 401. 12 Ibidem, p. 402.
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Com o olhar voltado exclusivamente para os interesses geopolticos do Estado portugus,
Moraes acaba por cair em armadilhas semelhantes s que aponta na historiografia brasileira.
Somos apresentados a um avano contnuo e integrador da colonizao lusitana, que
incorpora irreversivelmente esfera da soberania portuguesa extensos espaos interiores da
Amrica. Tudo conflui, a partir do perodo filipino, para a situao ultimada em 1750, quando
o tratado de Madri d a forma legal para o contorno geogrfico definitivo do Brasil.
Fortemente lastreada na trajetria do Estado portugus, a periodizao proposta pelo autor
revira a cronologia da ocupao lusitana da Amrica e nos exibe um quadro precoce da
formao territorial brasileira. 1580, que Moraes v como o incio de um fluxo povoador
contnuo e ascendente, que avana nos espaos contguos e gera zonas contnuas de ocupao,
na verdade um momento em que a colonizao ainda bordeja a costa e se restringe a duas
reas litorneas no nordeste da colnia e alguns ncleos incipientes no centro-sul. 1640, por
seu turno, que para o autor teria inaugurado a consolidao do domnio territorial lusitano no
continente e a integrao da Amrica portuguesa, representa na realidade o marco inicial do
processo de interiorizao da colonizao, que comea tibiamente no meado do Seiscentos e
s se afirma como tendncia histrica a partir da dcada de 70. Apenas 13 anos antes desse
marco inicial, Frei Vicente do Salvador, que conhecia boa parte do Brasil, lanava o seu
famoso antema contra a negligncia dos portugueses, que no se animavam a deixar a costa e
adentrar o serto. Como falar em consolidao do domnio lusitano num perodo em que se
assiste aos mais vigorosos ataques tapuias contra a soberania lusitana, chegando ao corao
da Amrica portuguesa no Recncavo Baiano; tenaz resistncia de Palmares, que duraria at
os ltimos anos do sculo; derrota dos paulistas na provncia missioneira do sul, em 1641,
batidos pelos ndios aldeados armados pelos jesutas espanhis? Na realidade, a consolidao
e integrao que Moraes v em 1640 s se tornar realidade 110 anos depois.
No final do Seiscentos a esfera de soberania lusitana inclua as regies coloniais consolidadas
no litoral, mas em definitivo no chegava aos sertes da Amrica portuguesa. A, fora das
regies coloniais mineradoras, mantinha-se um estado de clara indefinio do controle sobre o
territrio ou melhor, uma definio particularizada do controle sobre o territrio. Duvido
mesmo que a categoria de soberania, normalmente utilizada como afirmao do poder
poltico e da autoridade de um Estado, que se exercem uniformemente sobre um mesmo
territrio, possa ser aplicada aos ritmos irregulares e diversidade de grupos envolvidos na
ocupao luso-brasileira dos sertes.
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Em 1999 o nmero 40 da revista Oceanos foi dedicado ao tema da formao territorial do
Brasil. Nove dos 11 artigos da edio abordam casos empricos da formao territorial
brasileira. Em apenas um desses artigos, de autoria de Luciano Figueiredo, temos um
vislumbre, no explicitado no texto, de uma situao histrica ligada ao que provisoriamente
chamaremos fronteira interna. O autor recupera eventos dos chamados motins do serto,
ocorridos no serto do So Francisco em 1736, bem como elementos da cultura poltica das
autoridades e do povo amotinado, para entender a questo do territrio a partir da dominao
poltica e da sublevao. Afora esse nico caso, cujo tema central est ligado mais histria
poltica do que histria territorial, os espaos abordados nos demais artigos empricos so
fronteiras externas nos perodos analisados: norte do Brasil em meados do sculo XVIII,
misses religiosas do Brasil meridional nos sculos XVI e XVII, Mato Grosso no
Setecentos.13 Ou as fronteiras externas so indiretamente tratadas a partir da cartografia dos
limites, da cartografia dos padres matemticos, diretamente ligada s discusses territoriais
com a Espanha, e dos tratados internacionais de demarcao de limites de 1750 e 1777.
As fronteiras internas esto relacionadas s resistncias, no interior da Amrica portuguesa, ao
avano da ocupao luso-brasileira. No esto ligadas, portanto, disputa por reas de
soberania portuguesa e espanhola na Amrica, mas a conflitos que se do no interior do
prprio territrio colonial lusitano, travados entre grupos luso-brasileiros e grupos indgenas,
principalmente tapuias. Trata-se de limites no institucionais, temporrios e colidentes, que se
estabelecem entre territrios de ocupao luso-brasileira e espaos habitados por tapuias.
nesse sentido que o termo fronteira aparece em vrios dos documentos histricos coletados
para este estudo, que sero objeto de anlise ao longo do texto.
A existncia de fronteiras internas nega a ideia do territrio contnuo. O conjunto das reas de
ocupao luso-brasileira vazado por espaos onde os exploradores, conquistadores e
ocupadores no podem entrar. A trajetria desse limite engendrado pela dinmica da
conquista e da reao indgena dificilmente captada na documentao, mas, para os grupos
luso-brasileiros que habitavam ou circulavam pelos sertes, expresses como fronteira do
gentio brbaro tinham um sentido bem preciso.
13 Para a distino entre fronteiras externas e internas, cf. Lattimore, Owen. The frontier in history. In: Lattimore, Owen. Studies in frontier history : collected papers : 1928-1958. Paris: Mouton, 1962. p. 469-491; e Lamouroux, Christian. Frontires de France, vues de Chine. Annales : Histoire, Sciences sociales. n. 5, p. 1029-1040, septembre-octobre 2003.
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A descontinuidade da ocupao luso-brasileira dos sertes manteve os ncleos pioneiros sob
constante presso das reas vizinhas no conquistadas. Alm da ameaa da retomada
indgena, esses enclaves tinham de conviver com as duras condies do meio: longas
distncias, estiagens, enchentes, doenas provocadas por guas malss, animais selvagens. O
ncleo luso-brasileiro tentava resistir a essas ameaas por diversos meios. A intensificao do
povoamento ajudava a preencher as reas de ocupao, estabelecendo, no seu interior, uma
relativa contiguidade entre as unidades luso-brasileiras. Fora dessas reas, contudo, mais uma
vez nos defrontamos com a descontinuidade da ocupao. O serto despovoado expresso
coeva parece ser, do ponto de vista dos primeiros ocupadores, uma condio inelutvel que
preenchia os largos espaos intermdios entre os ncleos pioneiros. claro que, do ponto de
vista dos antigos habitantes indgenas, era o ncleo luso-brasileiro a quebra da continuidade e,
medida que ele ganhava fora, tornava-se evidente que a ameaa era mais grave do que os
conflitos intertribais com os quais estavam acostumados.
A descontinuidade e a irregularidade da ocupao permitem supor que a expanso da
colonizao portuguesa no seja um dado indiscutvel. A ocupao luso-brasileira no
irreversvel e pode recuar. Lidas por um ngulo inverso, as fontes documentais podem ser
levadas a exprimir no mais somente a dinmica manifesta da uma colonizao que se
expande, mas o movimento sutil de uma ocupao que perde terreno.
Essa condio de reversibilidade da colonizao no resultou somente da descontinuidade
territorial da ocupao. Do lado luso-brasileiro da fronteira movimentavam-se grupos e
indivduos com interesses e perspectivas particulares, e muitas vezes conflitantes entre si, do
processo colonizador. Esses agentes sociais partiam de modelos civilizatrios distintos, tendo-
se instalado, em alguns casos, uma situao de conflito aberto pelo controle dos territrios
conquistados. Em outros casos preferiu-se uma estratgia de alianas e acordos. Essas
constataes podem parecer trustas, j que, em princpio, qualquer processo colonizador de
longa durao envolve interesses distintos e por vezes divergentes. Mas importante destacar
que a dbil presena do Estado portugus nos sertes contribuiu para extremar essas
diferenas e garantir aos grupos e potentados individuais uma condio de autonomia relativa
que no desfrutavam nas regies coloniais centrais. A colonizao do serto nordeste
constituiu, entre a segunda metade do sculo XVII e a primeira do seguinte, um conjunto
disforme de aes de grupos semi-autnomos, carente de um sentido nico e, portanto,
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destitudo de qualquer contedo de projeto.14 O processo colonizador se deu de forma
multidirecional, assumindo sentidos particulares, definidos pelos diferentes grupos que se
envolveram na conquista e ocupao dos sertes. A definio particularizada do processo
lastreou-se na polifonia de sentidos que marcou a territorializao luso-brasileira desses
antigos espaos tapuias. Entender essas diferenas entre os grupos colonizadores decisivo
para a compreenso do processo de ocupao luso-brasileira dos sertes do nordeste da
Amrica portuguesa.15
Essas hipteses sero testadas para o espao conhecido no perodo colonial como serto da
Bahia. Caio Prado Jnior, partindo dos fluxos de povoamento do interior, assim delimitou
histrica e geograficamente esse espao:
A penetrao comeou, j o vimos, desde o incio da colonizao e a partir de dois focos principais: Bahia e Pernambuco. A expanso, que neles respectivamente se origina, acaba confluindo e se confunde. Pode no entanto ser traada parte. A baiana, que por maior e mais caracterstica foi abordada acima, ocupa desde princpios do sculo XVIII toda a rea que compreende o atual territrio do Estado, inclusive a margem ocidental do So Francisco, ento ainda parte da capitania de Pernambuco; mais o Piau; e penetrando mesmo, num ltimo arranco, pioneiro ainda no momento que abordamos nossa histria, o Maranho, ocupa uma faixa de territrio que envolve o alto Itapicuru, rio das Balsas, e alcana o Tocantins na foz do seu afluente Manuel Alves Grande o chamado territrio dos Pastos Bons. Tudo isto, que se pode considerar serto baiano porque dali, em ltima instncia, que partem os povoadores e suas fazendas de gado, e se estabelecem as comunicaes, constitui o que Capistrano denominou com muita propriedade o serto interior, para distingui-lo do outro, o pernambucano, que seria o externo. Este ltimo mais prximo do litoral: da a designao.16
Do ponto de vista do tema deste estudo, so as seguintes as principais caractersticas naturais
e histricas desse espao: configurao natural mais ou menos homognea, com topografia
plana e vegetao de caatinga e cerrado, salientando-se traos distintivos em zonas especficas
como a Chapada Diamantina e o vale do So Francisco; ocupao indgena
predominantemente no tpica; ocupao colonial dispersiva, sem plos de atrao
significativos no interior do espao; presena de duas reas mineradoras com baixa
representatividade no contexto colonial; relao de interdependncia com regies coloniais
14 Evito deliberadamente a expresso serto nordestino, de vez que se refere a uma entidade sociocultural o Nordeste que s ganha sentido a partir do sculo XX. As expresses que aqui aparecem acrescidas do qualificativo nordeste dizem respeito to-somente localizao geogrfica dos espaos considerados. 15 O mesmo notou o historiador norte-americano Jack D. Forbes para os Estados Unidos: in most cases one simply cannot understand a particular European-Indian frontier unless the relevant Indian-Indian and European-European frontiers are also understood. Forbes, Jack D. Frontiers in american history and the role of the frontier historian. Ethnohistory, New York, v. 15, n. 2, p. 203-235, Spring, 1968, p. 213. 16 Prado Jnior, Caio. Formao do Brasil contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1999. p. 62-63.
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centrais, como o Recncavo Baiano e as Minas Gerais; povoamento luso-brasileiro
relativamente rarefeito; trocas materiais e culturais entre ndios e colonizadores menos
expressivas do que na faixa litornea; importncia decisiva do eixo de ocupao representado
pelo rio So Francisco.
No recorte geogrfico da pesquisa a delimitao proposta por Prado Jnior passou por
algumas modificaes importantes. Considerando-se que, tanto histrica quanto
administrativamente, o serto baiano chegou a abranger regies ao sul do limite meridional do
atual estado da Bahia, foram acrescidas ao espao estudado as reas entre esse limite e a barra
do rio das Velhas, hoje em territrio mineiro. Por outro lado, foi excludo o territrio dos
Pastos Bons, que, por ter sido parte do Estado do Maranho, administrativamente separado do
Estado do Brasil, teve uma trajetria histrica diferenciada em relao s reas estudadas.
Foram excludas ainda a zona costeira, que convencionei, a partir de um alvar de 1701,
constituir uma faixa de 10 lguas de largura ao longo do litoral;17 e os espaos a oeste do So
Francisco, considerando-se, nesse caso, apenas as reas ribeirinhas da margem esquerda do
rio. Com algumas excees, a conquista e a ocupao luso-brasileira no foram especialmente
significativas nesses espaos ocidentais, administrativamente pernambucanos. (Por interior da
Bahia, portanto, entenda-se o interior da capitania, e no do atual estado, que se estende a
oeste do vale so-franciscano).
Foi mantida, em relao delimitao de Prado Jnior, a margem ocidental do rio So
Francisco, pois a documentao confirma que, ainda que se tratasse de espao sob a jurisdio
da capitania de Pernambuco, sofreu forte influxo de povoamento a partir do sul e do
Recncavo Baiano.
As duas reas mineradoras baianas Jacobina e Rio das Contas foram consideradas no
estudo somente na medida da sua relao com as reas pecurias do serto baiano. Por
definio, ambas esto fora do espao geoeconmico considerado, cuja atividade econmica
majoritria a criao do gado bovino.
17 Alvar rgio suscitando a observncia da lei de 15 de fevereiro de 1688 obrigando os habitantes da Capitania da Bahia plantao de mandioca, 27/02/1701. ABN, Rio de Janeiro, v. XXXI, p. 90-91, 1909. Esse alvar estendia a rea de abrangncia de uma lei rgia de 1688, proibindo que, numa faixa de 10 lguas a partir da linha costeira, se tivesse gado de criar. A proibio visava garantir a existncia de terras para o plantio de mandioca, tendo em vista a carncia de farinha no Recncavo. De certa forma, essa norma legal delimitava a rea de expanso da pecuria e separava, portanto, o serto baiano da costa martima.
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No mapeamento realizado nos captulos 6, 7, 8 e 9 (segunda parte do estudo), o espao
considerado foi reduzido para o interior da capitania da Bahia stricto sensu, delimitado a leste
pela faixa costeira, ao norte e a oeste pelo rio So Francisco e ao sul pelo rio Pardo.18 No
foram considerados, portanto, o Piau e o atual norte de Minas, mas manteve-se a faixa
ribeirinha da margem esquerda do So Francisco. Essa reduo foi necessria para possibilitar
um enfoque mais uniforme e preciso sobre as regies sertanejas do interior da capitania,
permitindo, inclusive, a anlise quantitativa de dados realizada nos captulos 6 e 8.
Em resumo, convencionei, neste estudo, denominar serto baiano ao interior da capitania da
Bahia, acrescido do Piau, do norte das Minas Gerais e das reas ribeirinhas da banda
esquerda do So Francisco. Essa delimitao inspira-se nas concluses de Caio Prado Jnior,
acima transcritas, com as excees j anotadas do territrio maranhense dos Pastos Bons e dos
espaos a oeste do vale do So Francisco. Por outro lado, as expresses interior da Bahia e
correlatas indicam to-somente o espao interior da capitania, sem as reas vizinhas piauiense
e mineira (vide Mapa 1).
18 Segundo Marcos Paraguassu, no sculo XVIII a capitania da Bahia estendia-se, ao longo da costa atlntica, de Sergipe del-Rei foz do rio Pardo; a leste, at o rio So Francisco; ao sul, at uma rea disputada administrativamente com as Minas Gerais, formada pelos vales dos rios Mucuri, Jequitinhonha, Pardo e Verde Grande. Paraguassu, Marcos. Roteiros de viagem para os sertes da Bahia no sculo XVIII. In: Neves, Erivaldo Fagundes; Miguel, Antonieta. Caminhos do serto : ocupao territorial, sistema virio e intercmbios coloniais dos sertes da Bahia. [Salvador]: Editora Arcadia, 2007. p. 201-237. p. 201.
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Na construo do estudo concentrei-me na abordagem, a partir do recorte geogrfico definido,
das zonas de fronteira. No considerei, portanto, todo o serto baiano num sentido trivial,
mas antes busquei identificar, no interior desse espao, aquelas reas que, em algum momento
do perodo estudado, assumiram uma condio de fronteira. A trajetria histrica dessas zonas
fronteirias, enquanto tais, constitui o objeto deste estudo.
Duas alternativas se colocavam, no incio do desenvolvimento do projeto, para o tratamento
das questes histricas a que me propus. A primeira delas implicaria numa verticalizao
espacial do trabalho, concentrando a pesquisa numa rea geogrfica especfica, na qual seriam
testadas as hipteses. Esse caminho, ainda que parecesse a princpio mais atrativo, excluiria a
possibilidade de identificar tendncias e ritmos num plano geral e de estabelecer comparaes
e distines na trajetria histrica de diversas regies de um mesmo serto. Tambm o
mapeamento de concesses de sesmarias e nomeaes para postos militares, em relao aos
quais disponho de dados para o conjunto do serto baiano, seria prejudicado. Sendo assim,
optei pela segunda alternativa de uma abordagem geral das diversas zonas de fronteira do
serto baiano.
De um ponto de vista emprico, a identificao dessas zonas partiu de dois critrios: (1) sob o
enfoque territorial, a existncia de uma situao de vulnerabilidade do domnio luso-
brasileiro, com frequentes ameaas indgenas de retomada do territrio ou de esvaziamento da
sua ocupao; (2) sob o enfoque econmico, a presena de atividades produtivas no ligadas
diretamente ao mercado externo, de pequena escala e nvel tcnico incipiente. Esse critrio
abrange as reas criatrias de pequena escala, com emprego de baixo nmero de
trabalhadores, bem como cultivos agrcolas modestos, voltados para mercados locais ou
regionais, roas de subsistncia, salinas e atividades extrativistas. E exclui, como bvio, as
reas mineradoras e as reas de criao de gado de larga escala, com utilizao intensiva de
mo de obra.
As zonas de fronteira do serto baiano so estudadas no perodo de 1640 a 1750. O marco
cronolgico inicial explica-se pelos acontecimentos que, nas dcadas de 40 e 50 do
Seiscentos, direta ou indiretamente, relacionam-se ao avano luso-brasileiro pelo interior da
Amrica portuguesa. Entre esses acontecimentos, cito, em carter ainda introdutrio, a
Restaurao portuguesa (1640), a expulso dos holandeses do nordeste da colnia (1645 a
1654), a retomada de Angola aos holandeses (1648), a vitria dos exrcitos indgenas armados
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pelos jesutas contra as tentativas de invaso das misses do Brasil meridional por paulistas
caadores de ndios (1641) e a bandeira de Antonio Raposo Tavares (1648-1651). Esses
eventos externos e internos atuam como fatores decisivos ou relevantes para o incio da
instalao luso-brasileira no serto baiano. Cada um deles ser explorado detidamente no
primeiro captulo deste estudo.
A partir da quarta dcada do sculo seguinte defrontamo-nos mais uma vez com sinais de
novas tendncias histricas na formao territorial da Amrica portuguesa. Relatos de
reconhecimento como os de Joaquim Quaresma Delgado, que percorreu boa parte do serto
baiano e mineiro na primeira metade da dcada de 30 do XVIII, revelam que essas regies j
estavam ento parcialmente ocupadas por populaes luso-brasileiras, dedicadas
majoritariamente pecuria bovina.
A ocupao portuguesa de amplas reas interiores da poro centro-oriental do continente
mostra-se um fato irrefutvel no meado do sculo, levando a Espanha a reconhecer, por meio
do Tratado de Madri (1750), os limites territoriais j estabelecidos de fato por grupos luso-
brasileiros. Seria esse e no, como coloca Antonio Carlos Robert Moraes, a segunda metade
do sculo XVII19 o perodo de consolidao do domnio territorial lusitano no continente e
de integrao da Amrica portuguesa.
O incio do governo pombalino (1750) marca igualmente novas tendncias, que Moraes
define como a formulao de uma geopoltica explcita e densa para as terras brasileiras.20
possvel que se inicie nesse perodo a efetiva apropriao dos espaos interiores da Amrica
portuguesa pelo governo metropolitano. medida que se aproxima o meado do sculo,
diminui a ao autnoma ou semi-autnoma de grupos exploradores e conquistadores e ganha
fora a ao do Estado portugus no serto nordeste. A conquista dos sertes se torna, a partir
de ento, uma ao progressivamente mais oficial, referida aos interesses uniformes do
Imprio portugus e no aos objetivos particulares de grupos e indivduos luso-brasileiros.
O texto que se segue foi dividido em duas partes. Na primeira reconstituo a trajetria histrica
da conquista do serto baiano. Para isso parto, no captulo inicial, da situao do povoamento
19 Moraes, Antonio Carlos Robert. Bases da formao territorial do Brasil: o territrio colonial brasileiro no "longo" sculo XVI. So Paulo : Hucitec, 2000. p. 415. 20 Ibidem, p. 415-416.
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do nordeste da Amrica portuguesa no meado do sculo XVII, abordando as territorialidades
luso-brasileiras e as territorialidades indgenas nesse momento que se pode denominar marco
zero da anlise. Partindo desse marco, analiso os desdobramentos histricos que se seguiram,
buscando captar as razes conjunturais da intensificao da explorao do interior na segunda
metade do sculo XVII. A conquista territorial do serto baiano, por meio das guerras de
extermnio e de expulso movidas por foras luso-brasileiras, o tema do captulo seguinte.
Ao conjunto desses desdobramentos denomino dinmica da conquista. Os fluxos regionais da
conquista so analisados a partir de quatro casos de apossamento violento de terras por luso-
brasileiros. No terceiro captulo essa dinmica materializada, abordando-se as prticas de
conquista e de reao indgena. Nele analiso os recursos materiais e as tcnicas de que se
valiam conquistadores luso-brasileiros e povos indgenas nas guerras de conquista e de reao
invaso. Alguns dos personagens luso-brasileiros dessa trama, aos quais denomino homens
fronteiros, formam o tema do ltimo captulo da primeira parte. Trata-se dos indivduos que
lideraram a conquista, que so abordados nas variadas formas com que se inseriram no
processo. Nesse passo tem especial interesse a categoria de circulao colonial, desenvolvida
para caracterizar a ao multidirecional e os diversos papis assumidos pelos potentados
regionais e coloniais que se envolveram nas aes de conquista dos sertes.
Na segunda parte do trabalho o foco direcionado para os modos e ritmos da ocupao luso-
brasileira do interior da capitania da Bahia. A pergunta fundamental : realizada a conquista,
como se estruturou a ocupao? Para desenvolver esse problema, assumo a existncia de
cinco estruturas materiais principais de ocupao: o caminho, a sesmaria, a povoao, o posto
militar e a misso religiosa. Nos captulos 5 a 9 construo um mapeamento da distribuio
espacial e temporal de cada uma dessas estruturas, buscando caracterizar a partir da as
tendncias histricas em cada caso. No dcimo captulo coloco em discusso a ocupao e
colonizao do serto baiano a partir do cruzamento dos resultados quantitativos e da anlise
das tendncias histricas verificadas, consolidando as hipteses principais do trabalho. No
captulo seguinte deixo o plano material para abordar as representaes espaciais da
ocupao construdas por sertanistas, povoadores e autoridades coloniais. A suposio que
lastreia essa abordagem que tambm as formas de representao so estruturantes da
ocupao. Nesse passo empreendo uma anlise lexicogrfica e geogrfica da ocorrncia de
termos, expresses e descries que denotam as formas de representao mental da ocupao
do serto da Bahia. No ltimo captulo o problema da fronteira abordado de um ngulo
terico, aproveitando-se parte da extensa produo historiogrfica e geogrfica sobre essa
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categoria. O trabalho finalizado com algumas distines e definies categoriais que
considero decisivas para a utilizao da fronteira como ferramenta explicativa da ocupao do
interior da Amrica portuguesa.
Uma generalizao terminolgica foi assumida neste estudo. Longe de reproduzir um estigma
comum tanto nas fontes documentais dos sculos XVI e XVII quanto nas interpretaes
historiogrficas do sculo XIX, o uso frequente, neste estudo, do termo tapuia denota a
incmoda impossibilidade contempornea de, como definiu Marcos Galindo Lima, se
desmontar essa designao genrica e reconstruir identidades tnicas reconhecveis no
contexto histrico.21 Esse impasse, reconhecido por tantos quantos tm se debruado sobre a
histria das relaes entre luso-brasileiros e ndios no interior da Amrica portuguesa, coloca-
nos diante da bvia constatao de que estamos sempre lidando com fontes produzidas pelo
conquistador, ocupador ou intrprete luso-brasileiro ou euro-brasileiro, se pensarmos nos
missionrios no portugueses que atuaram nos sertes brasileiros. O olhar de que partem as
fontes, portanto, dificilmente outro que no o de uma territorialidade luso-brasileira que
avana sobre espaos indgenas e aqui penso tanto na territorializao material quanto na
territorializao simblica dos sertes. Esse olhar amalgamou identidades e obscureceu
distines tnicas que teriam sido decisivas para a nossa compreenso das sociedades
indgenas antes e depois da conquista luso-brasileira do interior. A discusso das
territorialidades indgenas, realizada no primeiro captulo deste estudo, passar
inevitavelmente pelo enfrentamento dessas questes, o que ser feito a partir das
contribuies da histria indgena e da antropologia contemporneas.
21 Deve-se registrar a lcida e corajosa declarao do autor, que assume ter voltado atrs, no seu trabalho de pesquisa histrica, na inteno inicial de desmontar o genrico tapuia e ajudar na reconstruo de identidades tnicas, tendo em vista a impraticabilidade da tarefa. Lima, Marcos Galindo. O governo das almas : a expanso colonial no pas dos Tapuia : 1651-1798. Tese (Doutorado em Lnguas e Cultura da Amrica Latina) Universidade de Leiden, Leiden, Blgica, 2004. p. 19.
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PARTE I A CONQUISTA
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1 NO MARCO ZERO
1.1 Territorialidades luso-brasileiras
Em 1650, com a costa pernambucana sob o domnio holands, o senhor de engenho Manoel
Fernandes da Cruz, que se identifica como um antigo morador de Pernambuco, envia Corte
portuguesa um interessante documento.22 Tratava-se de um plano de criao de rendas para o
enfrentamento da ocupao holandesa, que permitissem quer o resgate de Pernambuco por
dinheiro, quer a sua libertao por meio das armas, que requereria a construo de fortalezas e
a organizao de armadas. A essncia do plano de Cruz estava no estanco do comrcio dos
escravos negros de Angola para a costa brasileira, que seria assumido pela Real Fazenda pelo
prazo de cinco anos. No final do documento, o autor revela o seu interesse pessoal no plano:
dada a larga experincia que tinha das coisas do Brasil e de Angola, poderia assumir a
administrao do esquema comercial sugerido.
O que nos interessa no texto de Cruz no exatamente o seu plano comercial e as formas que
projetou para realiz-lo. No incio da sua exposio, o autor entende ser necessrio
demonstrar as grandezas do Brasil, que tinham atrado a cobia holandesa e justificavam, pela
renda gerada para os cofres lusitanos, a sua retomada por Portugal. A costa brasileira se
estendia por mais de 700 lguas do Maranho e Gro-Par at o rio da Prata e Buenos Aires,
encontrando-se, ao longo dela, bons portos, que permitiam trazer do Reino as coisas
necessrias ao Brasil e para l levar o acar e as demais drogas que a terra dava. Essa extensa
linha litornea tinha permitido o povoamento das terras costeiras das capitanias do Brasil,
ocupao essa que, todavia, se limitava a algumas poucas lguas a partir do oceano, tanto por
comodidade dos habitadores, quanto por no haver ento populao suficiente para povoar as
terras que se iniciavam depois da faixa costeira.
O serto do Brasil corria para o ocidente por um largo espao, de extenso quase igual, em
linha reta, ao comprimento da linha costeira. Esse espao se encontrava desabitado, mas 22 Cruz, Manoel Fernandes da. Arbtrio em benefcio comum que inculca o modo conveniente para se haver o resgate desta praa, em caso que o holands a largue por preo de dinheiro, ou bem se possa sustentar a guerra, quando pelas armas se liberte, e se socorra com um grosso emprstimo aos moradores, para levantarem seus engenhos e os fabricarem sem dispndio da fazenda Real. Ao qual precede uma breve notcia das propriedades, cmodos e das cpia de acar do estado do Brasil, em ordem ao conhecimento de sua importncia e aceitao do arbtrio, 20/08/1650. ACC. Cd. 1091 (K VIII 1b), fls. 1-5v. O autor do arbtrio no se identifica como senhor de engenho, sendo essa informao sobre ele fornecida por Mello, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada : guerra e acar no Nordeste, 1630-1654. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 217.
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sabia-se, pelo pouco que dele se tinha descoberto, consistir de terras frteis, nas quais se
poderiam instalar lavouras e criao de gados e fundar vilas e cidades. Podia ainda abrigar
minas de metais, salitre e pedras preciosas. Esse dilatado espao chegava at os confins do
Peru, de Cusco e das demais terras da costa do Mar Pacfico, razo pela qual seria o estado do
Brasil capaz de se fundar nele no s um reino, mas um grande imprio.
A oposio entre uma costa habitada e um serto despovoado, que abrigaria terras frteis e
reservas de minerais preciosos, vinha sendo repetida desde os primeiros cronistas
quinhentistas e encontrara eco, poucos anos antes do documento de Manoel Fernandes da
Cruz, nos comentrios de Frei Vicente do Salvador. Mas a representao de Cruz era quase
geomtrica e, ao relacionar a extenso da linha costeira e a profundidade das terras interiores,
aproximava-se curiosamente da realidade geogrfica do continente. Extenso da costa e
profundidade do interior, atributos opostos e complementares da territorialidade brasileira,
foram frequentemente destacados nas descries textuais e cartogrficas coloniais. No seu
texto, o hbil senhor de engenho reverberava uma percepo de costa extensa/serto profundo
que, analisada sculos depois, mostra ser parte de uma estrutura de representao comum a
tantos quantos se propuseram a descrever a ocupao luso-brasileira da Amrica.
O documento de Cruz, do qual destaquei esse par de opostos, posterior em dez anos
Restaurao lusitana e contemporneo das guerras de retomada da costa brasileira aos
holandeses. Durante a Unio Ibrica (1580-1640) partes importantes da costa nordeste e da
costa sul haviam sido ocupadas, mas em definitivo a caracterizao do perodo filipino como
de penetrao e conquista, como se fez num texto j antigo e parcialmente ultrapassado, no
encontra eco na anlise histrica.23 A ocupao luso-brasileira se manteve litornea, mais
expressiva na faixa nordeste, entre o Rio Grande do Norte e o sul da Bahia, e menos intensa
na faixa sul, entre o Rio de Janeiro e os ltimos ncleos meridionais paulistas (Iguape,
Cananeia e Paranagu).
No nordeste da colnia, que nos interessa mais de perto, a ocupao holandesa interrompera
as tmidas iniciativas de avano interior que pudessem ter surgido no perodo. Capistrano de
Abreu lembra, especificamente a propsito da penetrao ao longo do rio So Francisco, que
23 Wright, Antnia Fernanda P. de Almeida; Holanda, Srgio Buarque de. O Brasil no perodo dos Felipes. In: Holanda, Srgio Buarque de; Campos, Pedro Moacyr (Dir.). Histria geral da civilizao brasileira. So Paulo, Rio de Janeiro, Difel, 1976. t. I, 1. v, p. 181.
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o avano luso-brasileiro chegara at Penedo, elevada categoria de vila em 1630, mas fora
sustado pela invaso holandesa.24 A ocupao holandesa, presa ao objetivo comercial de
controle das praas aucareiras e escravagistas do Atlntico Sul, foi inevitavelmente costeira,
no tendo gerado movimentos significativos de adentramento do interior. E pode ter sido
mesmo despovoadora em relao hinterlndia mais prxima. Como mostrou Evaldo Cabral
de Mello, uma das medidas tomadas pelos holandeses para conter a resistncia luso-brasileira
foi ordenar a evacuao de uma faixa sertaneja situada entre 50 e 60 quilmetros da costa,
obrigando seus habitantes a se deslocarem para a marinha com bens mveis e animais.25
Ainda que no tenha sido de todo bem sucedida, a iniciativa holandesa representativa da
oposio entre as duas foras europeias em conflito no Brasil holands: um poder naval
batavo, concentrado na marinha, e uma resistncia luso-brasileira que se valia das rotas
terrestres que chegavam ao litoral a partir do interior. Essa resistncia, quando, na dcada de
40, tomou as propores de uma guerra contra a ocupao, foi tambm um fator a dificultar o
avano rumo ao serto profundo, pois concentrou as foras luso-brasileiras nas aes militares
em Pernambuco e nas demais capitanias do norte. Isso adiou, por exemplo, a soluo militar
contra os grupos indgenas hostis que acometiam as vilas baianas, ao que foi
protocolarmente deliberada em 1643 mas no pde ocorrer por falta de efetivos.26
Do outro lado do Atlntico, os ataques holandeses s zonas africanas reprodutoras de
escravos, controladas pelos portugueses, geraram efeitos importantes na dinmica de
ocupao territorial do Brasil. Lus Felipe de Alencastro mostrou que os ataques contra o
segmento africano do sistema escravista, formado pelas praas de So Jorge da Mina,
Benguela, Luanda, Fernando P, So Tom e Cabo Verde, desorganizaram o trfico atlntico
de escravos negros a partir da frica, at ento controlado pelos portugueses. Para o autor, os
reides martimos inimigos, as dificuldades no transporte das peas e a preferncia dos
assentistas instalados nos portos africanos pelo abastecimento da Amrica espanhola
provocaram, a partir da dcada de 20, uma penria de braos escravos no Brasil. A esses
fatores deve-se acrescentar a concorrncia antilhana na demanda pela mo de obra africana. O
24 Abreu, Joo Capistrano de. Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. In: Abreu, Joo Capistrano de. Captulos de histria colonial, 1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. 5. ed. [Braslia]: Editora Universidade de Braslia, 1963. p. 257-310. p. 259. 25 Mello, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada : guerra e acar no Nordeste, 1630-1654. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 290-291. 26 Assento tomado na relao da Bahia sobre a guerra aos ndios selvagens, extrado do livro 4. de ordens rgias ao governador e capito-general do Brasil, no ano de 1694 a 1695, 04/03/1669. RIHGB, Rio de Janeiro, v. 6, p. 391-398, 1865. p. 393. Ou [Assento], 04/03/1669. In: Silva, Igncio Accioli de Cerqueira e. Memrias histricas e polticas da Provincia da Bahia. Bahia : Imprensa Oficial do Estado, 1925. v. 2. p. 30-33. p. 30-31.
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nmero de escravos africanos desembarcados no Brasil, que fora de 150 mil entre 1601 e
1625, cai para um tero dessa cifra no perodo seguinte, entre 1626 e 1650.27
A consequncia, sempre segundo Alencastro, o recrudescimento do trfico de escravos
ndios na Amrica portuguesa. Da cidade da Bahia so enviadas expedies de apresamento
de tapuias ao mdio Paraguau. Em Pernambuco deflagrada, em 1625, guerra justa contra
os potiguares da serra da Raiz. Mas de So Paulo que partem as maiores expedies de
preao indgena, concentrando-se o primeiro alvo paulista nas grandes reservas de potenciais
escravos ndios existentes nas redues jesuticas do Guair, em territrio do atual estado do
Paran.28 Para a partem as bandeiras preadoras de Antonio Raposo Tavares (1628-1630), de
Manuel Preto (1629) e de outros bandeirantes, que se associaram aos castelhanos do Guair e
devastaram a provncia jesutica em 1631. Na sequncia, os ataques apresadores voltam-se
para as misses do Itatim, localizadas no atual Mato Grosso do Sul, saqueadas em 1632-1633,
e dos tapes, no sul do territrio gacho.29
John Manuel Monteiro colocou em questo duas interpretaes correntes na historiografia
sobre esse movimento.30 A primeira reviso do autor parte do ncleo da hiptese defendida
na sua tese de doutoramento: os assaltos paulistas s misses jesuticas meridionais tiveram
por objetivo suprir de escravos no os engenhos e canaviais da Bahia e de Pernambuco, mas
os empreendimentos agrcolas dos prprios paulistas no Planalto Meridional. Essa explicao
esvazia parte da dinmica intercontinental do movimento, voltando-se para uma razo
endgena do apresamento a necessidade de mo de obra na prpria capitania de So Paulo
e tirando o foco da conjuntura militar e econmica na Amrica e na frica como base
explicativa da ao paulista no interior do continente americano. Em Monteiro a explicao
do movimento mais estrutural e menos conjuntural (termos que o autor no utiliza): a
27 Alencastro, Lus Felipe de. O trato dos viventes: formao do Brasil no Atlntico Sul : Sculos XVI e XVII. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 191. 28 Para uma delimitao geogrfica clara do Guair, vide Ramn I. Cardozo. La antigua provncia de Guayr y la Villa Rica del Espirtu Santo (Buenos Aires, 1938). Apud Boxer, Charles Ralph. Salvador de S e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. So Paulo: Editora Nacional; Editora da Universidade de So Paulo, 1973. p. 41. (Com o objetivo de dar a maior preciso possvel s referncias bibliogrficas e documentais includas neste texto, optei, como recomendam os manuais de normalizao, por citar de forma completa as fontes utilizadas por outros autores e no consultadas diretamente, sempre seguidas do termo apud. Nesses casos a citao segue exatamente a referncia fornecida pelos autores consultados, cabendo-lhes a responsabilidade pelas informaes aqui registradas.) 29 Alencastro, op. cit., p. 191-192 e 69. Na exposio feita nos dois ltimos pargrafos segui, pari passu, a narrativa desse autor. 30 Monteiro, John Manuel. Negros da terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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constituio de uma fora de trabalho indgena uma caracterstica especfica e permanente
da economia paulista seiscentista, o que permitiu aos plantadores da capitania darem as costas
para o circuito comercial do Atlntico. O que mudou ao longo do sculo foram as condies
de apresamento, mas essas mudanas se inseriram no contexto interno da capitania de So
Paulo e no na dinmica das relaes e conflitos intercontinentais entre Amrica e frica.
Alencastro divide o problema em duas teses, ambas difundidas pela historiografia paulista. A
tese principal afirma que a demanda por escravos ndios respondia ruptura do trfico
negreiro atlntico. A tese secundria sustenta que a maior parte dos ndios apresados pelos
paulistas nas misses meridionais se destinava aos engenhos e canaviais do nordeste da
colnia. O autor refuta a segunda tese, confirmando a reviso proposta por Monteiro, no
sentido de que no h traos documentais comprovando a transferncia regular de escravos
ndios de So Paulo para a zona aucareira. Mas Alencastro corrobora a tese principal,
sustentando que de fato haveria uma relao de causalidade entre o desacerto conjuntural do
fluxo negreiro e as bandeiras ao Guair-Tapes. A demanda por escravos ndios teria crescido
em So Paulo exatamente porque a capitania passara a se colocar como a alternativa
econmica de abastecimento de alimentos para o resto da colnia, suprindo a carncia criada
pelo rompimento dos circuitos comerciais intercontinentais. Com isso, salva-se o argumento
principal do autor, de que a trajetria histrica da Amrica portuguesa estava presa, no
perodo, s flutuaes conjunturais do trfico negreiro do Atlntico Sul. Mesmo a economia
paulista, marginal no sistema atlntico, estaria sujeita a essa determinao.31
A segunda reviso proposta por Monteiro diz respeito escolha paulista dos alvos guarani
nas redues jesuticas meridionais. Para a maior parte dos historiadores, pelo menos desde
Capistrano de Abreu, os ataques teriam se concentrado nessa regio de misses jesuticas
porque ali se encontravam as presas mais tentadoras para caadores de escravos: Por que
aventurar-se a terras desvairadas, entre gente boal e rara, falando lnguas travadas e
incompreensveis, se perto demoravam aldeamentos numerosos, iniciados na arte da paz,
afeitos ao jugo da autoridade, doutrinados no abanheem?.32 Para Monteiro, essa noo
subestima, por um lado, a importncia da horticultura guarani, que teria atrado o interesse dos
portugueses desde o sculo XVI, e superestima, por outro, a eficcia do projeto aculturativo
31 Alencastro, Lus Felipe de. O trato dos viventes: formao do Brasil no Atlntico Sul : Sculos XVI e XVII. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 194-195. 32 Abreu, Capistrano de. Captulos de histria colonial: 1500-1800. Braslia: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998. p. 111. Abanheem, como se sabe, o nome tupi para a lngua geral.
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dos jesutas. As misses do Guair em sua maioria eram comunidades recm-formadas,
precrias e isoladas, debatendo-se em busca de uma base econmica vivel para sua
sobrevivncia.33 Para o autor, os ataques paulistas se concentraram nessa regio pela nica e
simples razo de que ali se encontravam nmeros considerveis de populaes guarani.
Do ponto de vista deste trabalho, interessa especificamente o fato de que, desde o incio do
sculo e at as vsperas do marco zero aqui proposto, o foco da ao sertanista paulista tenha
se concentrado nas provncias jesuticas meridionais da Amrica portuguesa.34 Ainda que se
conheam incurses espordicas de bandeirantes paulistas em outras regies da colnia,
sabemos que, at o meado do sculo, esses espaos ficaram mais ou menos preservados de
uma ao mais direta e incisiva dos sertanistas de So Paulo. Entre esses espaos est o serto
baiano, que, como veremos, s se tornar foco da ao vicentina com a participao paulista
nos eventos conhecidos como Guerra dos Brbaros, j na segunda metade do Seiscentos.
Alm da conjuntura internacional, tambm a dinmica ecolgica e econmica da instalao
lusitana na Amrica contribuiu para reter na costa, at o meado do sculo XVII, o movimento
ocupador luso-brasileiro. Uma pujante economia de exportao estava instalada no litoral e
para l se voltavam as energias luso-brasileiras. Capistrano de Abreu inicia o terceiro captulo
de Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil com a vvida descrio de uma paisagem
costeira rica e povoada, na qual se destaca o Recncavo Baiano e, em especial, a cidade do
Salvador, onde se congregaram significativos estmulos governamentais ao desenvolvimento
econmico. O mar desse pequeno mediterrneo garantia o servio dos engenhos, a exportao
do acar, a importao dos artigos necessrios ao funcionamento da economia e vida da
populao e a alimentao da gente pobre e dos escravos. A proximidade do litoral era
condio de sobrevivncia econmica para os engenhos, que, ainda que instalados na mata,
em razo da fertilidade dos terrenos e da abundncia de lenha, no podiam se afastar muito do
mar, para no sobrecarregarem os custos do transporte. A concluso inevitvel: [...] esta
gente no trocaria de boa vontade as vantagens da marinha pelas asperezas e descmodos das
brenhas do interior.35
33 Monteiro, John Manuel. Negros da terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 70. 34 Para John Manuel Monteiro, do ponto de vista da histria de So Paulo, o perodo 1610-1640 caracterizado pelos assaltos de maior envergadura contra os guarani. Monteiro, op. cit., p. 62. 35 Abreu, Joo Capistrano de. Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. In: Abreu, Joo Capistrano de. Captulos de histria colonial, 1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. 5. ed. [Braslia]: Editora Universidade de Braslia, 1963. p. 270.
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A resistncia do meio ter sido outro condicionante ecolgico do no avano pelo interior. O
cortejo de perigos e dificuldades a que se expunham os exploradores e primeiros ocupadores
do serto era quase interminvel: serras empinadas e fragosas; campos homogneos e
expostos ao sol, onde era possvel se perder; travessias de terrenos estreis e sem gua; rios
caudalosos ou de guas pestilentas; animais perigosos, como a ona, a cobra, o porco-do-
mato, a piranha; pragas e insetos daninhos, como o morcego, o bicho-de-p, o mosquito, a
formiga, a barata, o cupim, o carrapato, a pulga, o gafanhoto; doenas e males do corpo, como
a malria, a desinteria, as verminoses. E, principalmente, de distribuio generalizada pelo
espao interior da colnia, os grupos indgenas hostis, de lngua travada, que cronistas e
autores de documentos oficiais distinguem invariavelmente pela coragem e tenacidade com
que se defendiam dos invasores luso-brasileiros.
Srgio Buarque de Holanda desfiou e caracterizou a maior parte desses tormentos das frentes
pioneiras num dos captulos do seminal Caminhos e fronteiras.36 Muito do que reportou
Holanda para So Paulo e as suas reas de influncia direta se aplica a outros espaos da
Amrica portuguesa e a outros agentes de ocupao. As mesmas dificuldades de adentramento
e ocupao do interior se manifestaram de forma diferenciada em distintos espaos e perodos
da formao territorial da Amrica portuguesa. Doenas, animais selvagens e a ubqua
ameaa indigena parecem ter sido uma constante no longo e variegado processo de
territorializao luso-brasileira do interior americano.
1.2 Territorialidades indgenas
Nesta seo optei por abordar o tema das territorialidades indgenas no marco zero da
conquista do serto nordeste (1640) por um mtodo de sucessivas aproximaes espao-
temporais do objeto. A Amrica pr-conquista o plano macroscpico e o ponto de partida,
de onde passaremos anlise da ocupao indgena das terras baixas do continente, onde est
o Brasil, para chegar aos povos do interior e, especificamente, s populaes que habitavam o
serto nordeste quando se iniciou a sua conquista por grupos luso-brasileiros.
36 Holanda, Srgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. So Paulo: Companhia das Letras, 1994. cap. Frechas, feras, febres. p. 90-124.
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Os estudos contemporneos de histria indigena, antropologia e etnologia tm posto prova
muitas das certezas de que se cercou a abordagem convencional da Amrica pr-conquista.
Uma primeira e surpreendente constatao a de que em 1492 o continente seria mais
populoso do que a Europa, assim considerado o espao compreendido entre o Atlntico Norte
e os Urais. Pesquisas recentes indicam que a populao das trs Amricas seria, no final do
sculo XV, de 60 a 100 milhes, dos quais 8,5 milhes estariam nas terras baixas da Amrica
do Sul.37 No mesmo momento, a populao europeia estaria entre 60 e 80 milhes de pessoas.
reas como a vrzea amaznica teriam a altssima densidade demogrfica de 14,6
habitantes/km2, prxima da estimativa para a Pennsula Ibrica, que de 17 habitantes/km2.38
Como salientam os estudiosos, esses nmeros estimados pem-nos de frente concluso
incontornvel de que a Amrica no foi descoberta, mas invadida.
O nadir demogrfico da populao amerndia se encontraria, de acordo com os estudos
contemporneos, por volta de 1650, o que, do ponto de vista deste trabalho, nos informa que a
depopulao provocada pela invaso luso-brasileira do serto nordeste, iniciada exatamente
nesse momento, foi quantitativamente menos impactante sobre a populao americana total
do que as guerras de conquista de outras reas do continente. A explicao estatstica. Nas
estimativas da populao amerndia na poca do contato as plancies da Amrica do Sul, que
incluem o Brasil, ocupam um modesto terceiro lugar, com 8,5 milhes de indivduos, abaixo
do Mxico (21,4 milhes) e dos Andes (11,5 milhes).39 A dizimao sofrida pela populao
das terras baixas foi, portanto, em razo da sua relativamente reduzida representao
proporcional no conjunto das Amricas apenas 14,8% menos impactante sobre a
populao amerndia total. Esse efeito estatstico provocou o sugestivo fato de que o ponto
mnimo da populao amerndia total recaia exatamente no marco inicial da conquista do
serto nordeste. Nas dcadas seguintes ao meado do sculo XVII, enquanto a populao
indgena do serto nordeste sofria os drsticos efeitos da invaso luso-brasileira, a populao
indgena total das Amricas voltava a crescer.
37 Viveiros de Castro, Eduardo. Histrias amerndias (resenha de Histria dos ndios no Brasil, Manuela Carneiro da Cunha, org.). Novos Estudos Cebrap, 36, p. 22-33, 1993. p. 27. 38 Cunha, Manuela Carneiro da. Introduo. In: Cunha, Manuela Carneiro da (Org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: Fapesp, 1992. p. 9-24. p. 14. 39 Denevan, William M. Tabela Estimativa da populao indgena da Amrica na poca do contato europeu. In: Denevan, William M. The Native Population of the Americas in 1492 (Madison, Wis., 1976), p. 291. Apud Schwartz, Stuart B. e Lockhart, James. A Amrica Latina na poca colonial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. p. 57.
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A invaso europeia atingiu espaos habitados por povos que h milnios vinham
estabelecendo contato entre si e, nesse processo, produzindo uma histria rica e complexa.
Nas palavras de Eduardo Viveiros de Castro, num excelente texto sobre o tema,
[...] o mundo amerndio pr-colombiano era um tecido mais ou menos denso, mas sem falhas, em estado de fluxo constante, composto de gigantescos sistemas regionais que articulavam regies to distantes como a montaa peruana e a bacia do Orinoco, os Andes e o litoral de So Paulo. Fragmentos destes vastos complexos de troca comercial e cultural, matrimonial e guerreira, podem-se ver ainda hoje no rio Negro, no Alto Xingu, na Amaznia sub-andina ou no escudo da Guiana.40
Essa perspectiva evidentemente supera as noes, ideologicamente construdas, de povos
sem histria, na infncia da histria ou margem da histria, vivendo em estado de
isolamento e segregados uns dos outros. Os estudos de histria indgena tm apontado o fato
de que a atomizao das unidades sociais amerndias um fenmeno do perodo ps-
conquista, provocado pelo efeito desagregador das sociedades coloniais e nacionais. No
perodo pr-conquista as populaes indgenas se espalhavam pelo espao americano,
provavelmente cobrindo-o como um todo e mantendo um fluxo constante entre si.
A trama das aes e relaes das populaes indgenas no territrio continental produziu, ao
longo de milnios, alteraes significativas no meio, especialmente na cobertura vegetal dos
terrenos ocupados. O que hoje chamamos natureza seria o resultado histrico da longa ao
cultural desses povos sobre a configurao natural das terras americanas. A imagem de uma
natureza ednica, e portanto intocada, habitada por seres em estado da mais pura inocncia ou
da mais bruta barbrie, desfeita pelos estudos histricos e antropolgicos que mostram que o
meio foi um produto milenar da interveno humana no continente americano. E que a
histria das relaes dessas populaes entre si, e com o meio, to complexa quanto a
histria paralela dos povos europeus.
A invaso da Amrica por grupos humanos tecnolgica e militarmente mais equipados
interceptou a trajetria histrica das populaes amerndias contatadas, impondo drsticas
mudanas nos modos americanos de produo da vida. Como demonstraram Schwartz e
Lockhart, as estratgias de conquista e ocupao seguidas pelos europeus dependeram em
grande medida da organizao social dos diferentes povos conquistados ao longo do
continente. Nas terras baixas da Amrica do Sul os ibricos defrontaram-se com povos 40 Viveiros de Castro, Eduardo. Histrias amerndias (resenha de Histria dos ndios no Brasil, Manuela Carneiro da Cunha, org.). Novos Estudos Cebrap, 36, p. 22-33, 1993. p. 32.
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semissedentrios ou no sedentrios e as solues da conquista foram adaptadas a essa
realidade. A dizimao pura e simples, tambm utilizada nas reas dos povos sedentrios, foi
uma das formas encontradas para o avano sobre as novas terras. Onde e quando a dinmica
econmica o exigiu, optou-se pela escravizao integral ou parcial dos ndios. No Brasil,
desde o primeiro sculo da invaso, foi implantada a poltica dos descimentos, que consistiam
nos deslocamentos de povos inteiros para novas aldeias prximas aos estabelecimentos
portugueses. A legislao rgia prescrevia que os descimentos no envolvessem nenhum tipo
de violncia, devendo partir da persuaso dos grupos indgenas e ser sempre supervisionados
por um missionrio.41 Mas a realidade concreta foi outra: muitos descimentos implicaram no
uso da fora ou representaram uma forma simulada de arrebanhamento de mo de obra
escrava.
Schwartz e Lockhart criaram uma tipologia dos povos amerndios que se revela extremamente
til para o estudo das territorialidades indgenas do continente. Os ndios americanos se
distribuiriam em trs categorias: povos totalmente sedentrios, ou povos centrais, de
agricultura intensiva permanente, cidades e aldeias estveis, mecanismos rgidos de tributao
e populao densa; povos semissedentrios, de agricultura e aldeias sujeitas a mudanas
sazonais, caa ainda importante como forma de subsistncia, pagamento de tributos a
superiores pouco importante e no institucionalizado e populao menos densa do que nos
grupos centrais; e povos no sedentrios, de migraes frequentes num ciclo sazonal de caa e
coleta, sem agricultura, com moradias em acampamentos em vez de aldeias, unidades sociais
constitudas por pequenos bandos, tributos simblicos ou inexistentes e densidade
populacional extremamente baixa. Os povos centrais ocuparam principalmente a
Mesoamrica e o centro dos Andes, em reas hoje pertencentes ao Mxico central, pases da
Amrica Central, Peru e Bolvia. Os povos semissedentrios eram encontrados na periferia
dos territrios dos povos totalmente sedentrios, em regies dos atuais Chile, Colmbia e
norte do Mxico, e numa grande extenso espacial que ia do nordes