2013_dissertação_suzana do nascimento veiga

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Universidade Federal Rural de Pernambuco Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Programa de PósGraduação em História Social da Cultura Regional Suzana do Nascimento Veiga Segundo as judias costumavam fazer: As Dias-Fernandes e o Criptojudaismo Feminino no Pernambuco do Século XVI. Recife 2013

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Judaizantes no Pernambuco colonial.

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  • Universidade Federal Rural de Pernambuco

    Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao

    Programa de PsGraduao em Histria Social da

    Cultura Regional

    Suzana do Nascimento Veiga

    Segundo as judias costumavam fazer: As Dias-Fernandes e o Criptojudaismo

    Feminino no Pernambuco do Sculo XVI.

    Recife

    2013

  • Suzana do Nascimento Veiga

    Segundo as judias costumavam fazer: As Dias-Fernandes e o Criptojudaismo Feminino no

    Pernambuco do Sculo XVI.

    Dissertao apresentada, como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Mestre, ao Programa

    de Ps-Graduao em Histria Social da

    Cultura Regional, da Universidade Federal

    Rural de Pernambuco.

    Orientador: Prof. Dra. Suely Creuza Cordeiro de Almeida

    Coorientador (es): Prof. Dr. ngelo Adriano Faria de Assis

    Recife

    2013

  • Ficha catalogrfica

    V426s Veiga, Suzana do Nascimento Segundo as judias costumavam fazer: as dias-fernandes e o criptojudaismo feminino no Pernambuco do sculo XVI / Suzana do Nascimento Veiga. -- Recife, 2013. 137 f. : il. Orientadora: Suely Creuza Cordeiro de Almeida. Dissertao (Mestrado em Histria Social da Cultura Regional) Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de Histria, Recife, 2013. Referncias. 1. Histria da Inquisio 2. Histria dos cristos-novos 3. Histria das mulheres 4. Histria de Pernambuco 5. Histria da Amrica portuguesa I. Almeida, Suely Creuza Cordeiro de, orientadora II. Ttulo CDD 981

  • UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO

  • As guerreiras que inspiraram minha vida e escrita; Sazenase, Rosila e Suehelen.

  • AGRADECIMENTOS

    Acredito que este o momento mais difcil na escrita de uma dissertao. neste

    momento, que tomamos noo que est chegando ao fim uma jornada de quase trs anos de

    escrita, de discusses, de orientaes e de decises que nos tornam mais adultos, mais

    conscientes de nosso futuro e tambm das pessoas que contriburam e ainda contribuem para

    nossa formao intelectual e principalmente humana. Explicadas as razes, procurarei lembrar

    e deixar registrados meus agradecimentos s pessoas que me acompanharam nessa jornada e

    que contriburam para sua construo de uma ou de outra maneira.

    Meu agradecimento especial dedicado a Professora Dra. Suely Creuza Cordeiro de

    Almeida, especialmente por ter aceitado orientar uma bacharela de turismo, cuja nica

    bagagem na rea de histria era a paixo e a vontade de aprender. Por sua orientao

    criteriosa e firme, porm sempre carinhosa. Pela pacincia e incentivo nos momentos de

    desespero pelos quais passei ao longo de caminho. Enfim, por ter possibilitado a este texto

    estar hoje concludo e por ser um modelo de profissional e pessoa que inspira nossas carreiras.

    A ela, meu muito obrigado.

    Ao professor Dr. ngelo Adriano Faria de Assis, meu coorientador, por sua

    receptividade ao aceitar ler e corrigir meu trabalho, fazendo-o de maneira brilhante. Estendo

    meus agradecimentos Professora Marilia de Azambuja Ribeiro, por sua leitura crtica e

    avaliao criteriosa do texto, discutido durante a qualificao. Sem as leituras de ambos,

    muito do crescimento desta dissertao no seria possvel.

    Meu agradecimento especial Professora Dra. Kalina Vanderlei Paiva da Silva pelas

    contribuies e ateno dedicadas a meu trabalho, assim como pelas discusses em sala de

    aula durante a disciplina de Administrao da Amrica Portuguesa. E por sempre me receber

    com carinho, quando me infiltrava nas reunies de seus orientandos.

    Aos professores que me acompanharam durante o curso, meus agradecimentos se

    dedicam a Wellington Barbosa e Tiago de Melo Gomes. O primeiro pela leitura e correo

    acertada do projeto inicial de minha pesquisa; e o segundo pelas discusses de teoria que tanto

    nos enriqueceram como profissionais. A ambos devo muito de minha formao intelectual.

    professora Dra Tnia Neumman Kaufman agradeo por ter proporcionado minha

    introduo aos estudos de judasmo, dos cristos-novos e por abrir as portas do Arquivo

    Histrico Judaico de Pernambuco para o desenvolvimento de minha pesquisa. Foi por seu

  • incentivo que transformei esta em um projeto de mestrado. Sem seu auxlio, muito desta

    pesquisa no seria possvel.

    Da mesma forma agradeo a Janaina Guimares que, ainda em minha graduao em

    turismo, tive o prazer de conhecer e que se tornou uma referncia de historiadora para mim.

    Foi atravs de Janaina que tive meu primeiro contato com a Famlia Dias-Fernandes, e partiu

    dela o incentivo para iniciar minhas pesquisas no Arquivo Histrico Judaico.

    Agradeo tambm a todos os profissionais e direo do AHJPE, pela pacincia e

    auxilio nos dias em que minha pesquisa e meu texto tinham que estar frente de minhas

    obrigaes como funcionria da casa. A compreenso e carinho de vocs foi essencial neste

    momento.

    Alessandra pela pacincia e ajuda sempre disposta, para acudir em meio aos

    aperreios do caminho. Muito Obrigada, Al.

    Meus agradecimentos agora se voltam aqueles que so uma extenso da minha

    famlia, os amigos de sempre e os que acumulei nesta jornada.

    Rafaela Lira e Gustavo Mendona meu agradecimento especial por estarem comigo

    nos bons e maus momentos da escrita e construo deste trabalho. Pelas discusses, por

    nossas risadas e pela firme convico de que a histria da Amrica Portuguesa e Espanhola

    sempre ser nossa menina dos olhos. Ambos tm um lugar especial no meu corao.

    Acrescento a estes o trio de irmos que adotei como meus, Josu Lopez, Elba Chagas e

    Pollyana Calado que, cada um sua maneira, contribuiu para minha escrita e meu

    crescimento como pessoa. Por fim Emmanuelle Valeska (Manu) meu muito obrigado pela

    amizade e contribuio ao meu trabalho.

    As minhas irms por adoo e os cunhados agregados, Aline Bevenuto e Mona Lisa

    Nascimento que depois de quase quinze anos de amizade entendem quando eu digo que este

    fim de semana pra estudar. Stephanie Zumba e Gustavo Ayres pela amizade e apoio em

    meus dias de Arquivo. Juarlyson Jhones e Nuno Brito, por serem espelhos de historiadores

    e grandes contribuintes para minha pesquisa e discusses historiogrficas e literrias fora das

    salas de aula. A Daniel Irapun que me socorreu em momentos de desespero e Rayanne

    Aguiar, pela ajuda na correria da entrega dos documentos e pelas palavras de incentivo e

    amizade constante. Jssica Francielle e Thaysa Barbosa, irms e grandes incentivadoras do

    meu trabalho, me despertam tambm quando hora de pausar o corpo para descansar o

    crebro. A todos meu amor e eterna gratido.

    Aqueles que primeira e principalmente fazem da minha vida feliz, mesmo quando os

    dias so negros. Deus por me dar a vida e a possibilidade de viver ao lado de pessoas to

  • especiais. E minha famlia, meu tudo. Rosila e Elizio, meus pais e, antes de tudo, amigos e

    maiores incentivadores, tanto em minha formao como pessoa, quanto em minha formao

    intelectual. Meus irmos Suehelen e David, pelo amor demonstrado mesmo atravs das mais

    ferrenhas brigas. Minha av Sazenase, mulher guerreira, as minhas tias e tios Carlos, Pedro,

    Marinaze, Norma, Ansia e Eliza. E aos primos Edlon, Pollyanna, Evelyn, Israel, Isabelle,

    Guilherme, Stephanie e Emily. Em vocs est o meu corao.

    Por fim, CAPES pelo apoio financeiro, sem o qual muito deste trabalho no teria

    sido possvel.

    A todos aqueles que, embora no citados nominalmente, contriburam direta e

    indiretamente para a execuo deste trabalho. Meu muito obrigado.

  • Que do mesmo modo as mulheres se ataviem em traje honesto,

    com pudor e modstia, no com tranas, ou com ouro, ou

    prolas, ou vestidos preciosos,

    Mas (como convm a mulheres que fazem profisso de servir a

    Deus) com boas obras.

    A mulher aprenda em silncio, com toda a sujeio.

    No permito, porm, que a mulher ensine, nem use de autoridade

    sobre o marido, mas que esteja em silncio.

    Porque primeiro foi formado Ado, depois Eva.

    E Ado no foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu

    em transgresso.

    Salvar-se-, porm, dando luz filhos, se permanecer com

    modstia na f, no amor e na santificao.

    1 Timteo 2:8-15

  • RESUMO

    Este trabalho analisa a participao das mulheres da famlia Dias-Fernandes que, encabeadas

    pela matriarca Branca Dias, contriburam para a preservao de um judasmo clandestino

    (criptojudasmo) na Capitania de Pernambuco durante o sculo XVI. Observando para isso as

    configuraes sociais, polticas e econmicas que contriburam para a formao de novos

    sujeitos no imprio ultramarino portugus, entre estes os cristos-novos, Sendo estes ltimos,

    resultado de batismos forados de judeus ao catolicismo Romano, por parte de decreto vindo

    do poder Rgio em Portugal, no ano de 1497. A partir do nascimento do cristo-novo,

    comeam a se configurar novas formas de prticas de um judasmo secreto, que passa a ser

    perpetrado de portas adentro. Com isto acontece o surgimento em Portugal e, posteriormente, na Amrica portuguesa, de uma liderana feminina dos cultos criptojudaicos,

    j que as mulheres estavam basicamente ligadas religiosidade domstica. Com essa situao,

    a Igreja procura agir de forma a reprimir a heresia judaica, contando com a ao do Santo

    Oficio da Inquisio, de tribunais no Reino e de Visitaes Colnia Brasileira. Com a

    perseguio inquisitorial aos cristos-novos, especialmente s mulheres, surge, ento, um

    conjunto de documentao que propiciar uma construo acerca das prticas judaizantes e da

    resistncia feita pelas mulheres de ascendncia judaica na Capitania de Pernambuco.

    Palavras-chave: Cristos-novos Dias-Fernandes Inquisio - Portugal Pernambuco -

    Criptojudasmo.

  • ABSTRACT

    This paper analyzes the role of the women of the family Dias-Fernandes, who leaded by the

    matriarch Branca Dias, contributed to the preservation of a clandestine Judaism (Crypto-

    Judaism) in the province of Pernambuco during the sixteenth century. Regarding then, the

    social, political, economic and cultural settings which contributed to the formation of new

    subjects in the Portuguese overseas empire, among them, the New Christians who were the

    result of forced baptisms of Jews to Roman Catholicism, by a Royal decree in Portugal in the

    year 1497. With the birth of the New Christians, new forms of practices of a secret Judaism

    began to be arranged and started to be performed "indoors". Therefore, emerges in Portugal,

    and later in the Portuguese America, a female leadership of Crypto-Jewish services, since the

    women were primarily related to domestic religiosity. With this situation, the Church seeks to

    suppress the Jewish heresy, relying on the action of the Holy Office of the Inquisition, on

    courts in the Kingdom and on Visitations in the Colony of Brazil. From the inquisitorial

    persecution towards the Judaizing New Christians arises a documentation ensemble which

    will provides a construction about the Judaizers practices and the resistance made by the

    women of Jewish descent in the province of Pernambuco.

    Keywords: New Christians - Dias-Fernandes - Inquisition - Portugal Pernambuco Crypto-Judaism.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Potro. Fonte: Acervo AHJPE ................................................................................ 105

    Figura 2 Pol. Fonte: Acervo AHJPE ................................................................................... 118

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Lista dos profissionais cristos-novos de Olinda no perodo que corresponde a

    Visitao do Santo Oficio a Capitania de Pernambuco. (1593-1595) ...................................... 51

    Quadro 2 Listagem das prticas judaizantes pelas quais os membros da famlia Dias-

    Fernandes foram acusados mesa do visitador Heitor Furtado da Mendona ........................ 57

    Quadro 3 Filhos e Netos de Branca Dias e Diogo Fernandes na Inquisio ......................... 94

    Quadro 4 Datas referentes a vida de Beatriz Fernandes. ..................................................... 111

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AHJPE- Arquivo Histrico Judaico de Pernambuco.

    ANTT- Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

    IAHGP- Instituto Arqueolgico Histrico e Geogrfico de Pernambuco.

  • 12

    SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 13

    1 A INQUISIO E OS CRISTOS-NOVOS: DE PORTUGAL A AMRICA

    PORTUGUESA.........................................................................................................30

    1.1 Os cristos-novos e a Inquisio Portuguesa. ..................................................................... 31

    1.2 Os cristos novos em Pernambuco. .................................................................................... 40

    1.3 Primeira visitao do Santo Oficio Pernambuco: Formas de criptojudasmo colonial e o

    judaizar nas denncias mesa do Visitador. ................................................................ 48

    2 OS DIAS-FERNANDES: LUGARES, RETRATOS E VIVNCIAS DE UM (CRIPTO)

    JUDASMO EM TRANSFORMAO.................................................................64

    2.1 Das rendas de Viana as teias da Inquisio de Lisboa: A primeira e a segunda gerao

    criptojudaizante da Famlia Dias. ................................................................................. 64

    2.2 Olinda 1593. O Nome, o Sangue, e o Criptojudasmo. ...................................................... 72

    2.2.1 Diogo Fernandes: O sesmeiro judaizante do Camaragibe. ............................................. 74

    2.2.2 Branca Dias: Professora de coser e lavrar e Rabi da esnoga do Camaragibe. ......... 82

    2.3 Camaragibe: Terra das sinagogas ................................................................................... 89

    3 SEGUNDO AS JUDIAS COSTUMAVAM FAZER A HERANA DE BRANCA

    DIAS: FILHOS E NETOS NO TRIBUNAL DO SANTO OFICIO .................... 93

    3.1 No cuide que est entre mulherinhas seno entre gente de pedra e cal: Andresa, Ins,

    Guiomar, Isabel, Violante, Ana e Felipa. ..................................................................... 98

    3.2 Beatriz Fernandes: A alcorcovada judaizante. ................................................................. 106

    3.3 Mcula no sangue: A quarta gerao da famlia Dias-Fernandes sob suspeita de judasmo.120

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 127

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 132

  • 13

    INTRODUO

    Esta dissertao de mestrado, intitulada Segundo as judias costumavam fazer: As

    Dias-Fernandes e o Criptojudasmo Feminino no Pernambuco do Sculo XVI, partiu

    inicialmente da curiosidade despertada pelo personagem de Branca Dias na histria da

    Capitania de Pernambuco. As histrias em torno dela ultrapassam o limite da historiografia,

    para torn-la um smbolo lendrio de resistncia e muitas vezes de herosmo e martrio. Peas

    de teatro, romances e lendas transmitidas na oralidade so parte do repertrio que compe as

    ideias relacionadas Branca Dias. Na maior parte das obras, a matriarca retratada como uma

    judia de extraordinria presena de espirito, que lutou para conservar sua f ante a

    perseguio Inquisitorial. Na Historiografia, foi Jos Antnio Gonsalves de Mello, quem

    primeiro trabalhou os arquivos de denncias e processos da Torre do Tombo referentes

    Branca e sua famlia, em seu livro seminal, sobre a presena semita em Pernambuco; Gente

    da Nao. Evaldo Cabral de Mello em O nome e o sangue, tambm se encarregou de

    trabalhar a histria de Branca Dias e outros dois importantes personagens da famlia da

    mesma; Diogo Fernandes, marido e Beatriz Fernandes, filha da referida.

    Diferentemente do trabalho de J. A. G. de Mello, que possui um carter mais

    descritivo e quantitativo da histria desses personagens, mesmo porque seu livro se encarrega

    de um longo perodo de tempo e de um amplo objeto de estudo.1 Nosso trabalho se prope a

    uma anlise mais qualitativa, focando a multiplicidade das relaes da famlia Dias-

    Fernandes, suas formas de criptojudasmo e sua estrutura familiar. Intentamos direcionar

    nosso olhar para o ncleo domstico e problematizar suas relaes interpessoais e grupais. Em

    relao ao trabalho de E. C. de Mello a diferena se d na medida em que a perspectiva de

    anlise trazida em O nome e o Sangue, o carter genealgico da formao das famlias

    pernambucanas. Evaldo Cabral de Mello, busca encontrar as reminiscncias de um

    preconceito contra o sangue converso, que estando imbudo na sociedade colonial,

    permaneceu posteriormente de forma oculta. Este preconceito, levou, para Mello, a que

    alguns genealogistas, j no sc. XIX maquiassem os costados judaicos de grande parte das

    rvores genealgicas das tradicionais famlias Pernambucanas.2 Nosso trabalho obviamente

    1 Em Gente da Nao, Jos Antnio Gonsalves de Mello, estuda um perodo de dois sculos de presena semita

    em Pernambuco. 2 Evaldo Cabral de Mello em O nome e o sangue se refere ao famoso genealogista, Borges da Fonseca que

    esconde a descendncia de Branca Dias na formao da nobiliarquia pernambucana. MELLO, Evaldo Cabral

  • 14

    nos segue esta linha de estudo. Procuramos, sim, trabalhar com estes dados fornecidos pelos

    historiadores citados, para ampliar a discusso sobre os cristos-novos, o criptojudasmo e a

    sociedade colonial. Nos propondo entretanto, a uma anlise qualitativa. Procuramos observar

    a famlia Dias-Fernandes com um novo olhar, que alia novas abordagens tericas e

    metodolgicas.

    Com isto tencionamos trabalhar nos meandros entre a Histria social e a Histria da

    religio procurando construir a narrativa sobre a judaizante e sua famlia. Procuramos aliar

    esta trabalho ao uso dos instrumentos metodolgicos trazidos pela Micro-Histria de Carlo

    Ginzburg, na medida em que o mesmo pensa a relao homem, cultura e tempo, mas,

    especialmente no que trata da relao de personagens herticos e a relao dialgica que se

    estabelece entre herege e inquisidor.3 Dessa forma, nasceu a hiptese de criptojudasmo entre

    os componentes, especialmente mulheres, da famlia Dias-Fernandes. Procuramos trabalhar

    esta hiptese tendo como base os fortes indcios de rituais e prticas judaicas que cercavam a

    famlia e sua recorrente apreenso pelas teias do Santo Oficio por culpas deste mesmo

    crime. Tendo isto acontecido tanto no Reino em meados do sculo XVI, como na colnia

    no final do mesmo sculo e incio do seguinte.

    A hiptese gerada inicialmente, leva a alguns questionamentos que se engendram ao

    cerne de nosso trabalho: como era ser mulher e crist-nova na sociedade crist na Idade

    Moderna? Como eram vistos e tratados os cristos-novos? E, principalmente, como era a vida

    destes homens e mulheres no Reino de Portugal e em suas colnias no ultramar e sua relao

    cotidiana com a religiosidade? Buscamos entender o que e como estes descendentes de

    judeus, os cristos-novos, foram acolhidos pela sociedade ibrica moderna. Como sua

    converso foi enxergada, por esta ltima e de que forma a heresia judaica, ou crime de

    judasmo, foi julgado e punido pelo tribunal da Inquisio Portuguesa. Nosso trabalho, apesar

    de tratar da histria dos cristos-novos, ser primordialmente voltado observao das

    mulheres.

    Branca Dias o centro de nossa pesquisa, porm, pretendemos estender o crculo da

    histria para o ncleo familiar, que gravita em torno dela e de seu marido Diogo Fernandes.

    No cerne da problemtica de nosso trabalho, est a ao hertica atribuda a grande maioria

    dos membros da famlia, especialmente s mulheres, em relao a liderana do judasmo

    clandestino. Nos propusemos dessa forma, a entender o criptojudasmo da famlia, suas

    de. O nome e o sangue, uma parbola familiar no Pernambuco Colonial. So Paulo: Companhia das letras,

    2009. p. 78-81. 3 GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como antroplogo. Trad. Revista Brasileira de Histria. So Paulo: ANPUH-Marco Zero, set. 90-fev. 91, n 21

  • 15

    configuraes, particularidades e tambm o que era comum nas prticas do ncleo familiar.

    Mas, prioritariamente escolhemos problematizar a questo feminina dentro na relao das

    mulheres do cl com a inquisio. Elas foram repetidamente acusadas, por cristos, novos e

    velhos, muitas vezes at da prpria famlia de: judaizantes, de liderar rituais e prticas

    judaicas, de ensinarem e divulgarem o criptojudasmo e de darem continuidade a um resqucio

    da religiosidade ancestral, transmitindo a mesma de forma quase exclusivamente matrilinear.

    Para entendermos esta dinmica optamos por acessar a documentao Inquisitorial que se

    referia direta ou indiretamente aos Dias-Fernandes; denncias, processos e outros documentos

    que pudessem oferecer as bases para entendermos o objeto em questo. Outrossim,

    examinaremos de forma paralela ao criptojudasmo da famlia, a insero de seus membros na

    sociedade colonial, j que as relaes sociais e econmicas de cristos novos e velhos nem

    sempre acompanhavam a tendncia de intolerncia e excluso que era propagada pela Igreja e

    pela sociedade portuguesa.

    Para compreendermos o criptojudasmo, especialmente o feminino no trabalho de

    Angelo Adriano Faria de Assis; Macabias da Colnia.4 que encontramos a conceituao que

    almejamos abordar ao longo deste trabalho. Assis trabalha um conceito de criptojudasmo

    mltiplo, multifacetado e tambm mestio. O criptojudasmo era peculiar a cada realidade dos

    neoconversos judaizantes. Podia ser familiar, como no caso Dias-Fernandes, ou individual e

    em alguns casos grupal. Em nmero significativo era de transmisso matrilinear, mas podia

    tambm se configurar de outra forma. Na grande maioria das vezes, porm, possua como

    referencial o cristianismo, e ai podemos falar de seu carter mestio, pois agregava conjuntos

    simblicos de ambas as religies sem ser nenhuma, nem outra. No carter da transmisso

    matrilinear, Assis fala de um judasmo possvel, transmitido pelas mulheres, que em diversos

    momentos foram como grandes divulgadoras e sacerdotisas deste judasmo oculto.5

    Para Gorenstein, estes cristos-novos que judaizavam (...) estavam isolados do

    judasmo bblico e rabnico e imersos em um mundo cristo, 6 Seu entendimento de

    criptojudasmo, tambm nos auxilia a entende-lo como um sistema sem auto referncia, uma

    forma de religiosidade sempre associada religio dominante; o cristianismo.

    A convergncia do trabalho de Gorenstein com o de Assis, se d na medida que,

    ambos abordam como centro de seus trabalhos o papel das crists-novas no criptojudaismo

    4 ASSIS, ngelo Adriano Faria de. Macabias da colnia: Criptojudasmo feminino na Bahia-Sculos XVI-XVII, Niteri: Universidade Federal Fluminense, 2004 5 Idem, p. 12 6GORENSTEIN, Lina. A Inquisio contra as mulheres: Rio de Janeiro, sculos XVII e XVIII, So Paulo:

    Editora Humanitas/FAPESP,2005.

  • 16

    colonial e a relao das mesmas com a Inquisio. Sendo Assis para a Bahia do XVI e

    Gorenstein para o Rio de Janeiro do XVII e XVIII. So trabalhos norteadores quando se trata

    de entender os desdobramentos do papel feminino no criptojudaismo na colnia, e como o

    mesmo foi apreendido pela mquina inquisitorial. Entretanto, o trabalho de Assis mostra

    realidades denunciadas a Inquisio, bem mais ligadas a uma religiosidade incipiente e

    multiforme.

    O trabalho de Assis, nos apresenta o cl dos Antunes, liderados por Heitor Antunes e

    Ana Rodrigues, dois cristos-novos senhores de engenho no Recncavo Baiano, que foram

    exaustivamente acusados durante a primeira Visitao do Santo Oficio Bahia entre os anos

    de 1591 e 1593. Das denncias contra a famlia, nas quais, eram as mulheres o centro da ao

    hertica, resultaram processos no tribunal de Lisboa contra grande parte da famlia, incluindo

    os patriarcas Ana Rodrigues e Heitor Antunes. O trabalho de Assis com os Antunes na Bahia

    de fundamental importncia para o nosso, devido similaridade temporal e situacional que

    trata de famlias de cristos-novos, levados ao Santo Oficio durante a Primeira Visitao deste

    ao Brasil no sculo XVI. Ambas as famlias tiveram forte papel feminino na conduo das

    prticas criptojudaicas e eram proprietrias de engenho, com negcios bem sucedidos na

    colnia e de convivncia com a nobreza da terra como Heitor Antunes que:

    Pertencia a uma famlia de prestgio na Bahia Quinhentista. Cavaleiro del Rey e homem de confiana do governador-geral, o patriarca Heitor Antunes

    tornara-se exemplo do avano neoconverso na economia e sociedade luso-

    brasileiras. De comerciante enriquecido, passaria a dono de engenhos,

    fixando-se em Matoim, no Recncavo baiano, envolvido com a produo e

    mercancia do acar.7

    A similaridade das temticas se d tambm neste sentido j que como Heitor Antunes, Diogo

    Fernandes:

    Era pessoa da amizade da famlia Albuquerque, pois que D. Brites, mulher do

    donatrio, acompanhou-o nos seus ltimos momentos de vida e Jernimo de

    Albuquerque, irmo de D. Brites, recomendou-o `a ajuda rgia em carta

    endereada ao Prprio monarca. Nessa carta refere que ele, com outros companheiros de Viana, levantara um engenho em Pernambuco.8

    Em nossa pesquisa, nos propusemos a estudar o perodo que vai de 1497, data da

    converso forada dos judeus portugueses, e que se estende at o incio do sculo XVII, por

    volta de 1630, para assim englobar o contexto do nascimento de Branca Dias, que ocorreu por

    volta de 1505, at os descendentes da mesma na genealogia das principais famlias da

    7 ASSIS, op. cit., 2004, p.10 e 11. 8 MELLO, Jos Antnio Gonsalves de. Gente da Nao: cristos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. 2.

    ed. Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1989. P. 123.

  • 17

    capitania. Dentro deste perodo, faremos um movimento de ida e volta entre a Amrica

    Portuguesa e Portugal. Primeiramente, iremos focalizar a cidade de Viana da Foz do Lima,

    cidade natal de Branca Dias, onde a mesma se casou e viveu parte de sua vida. Em seguida,

    acompanharemos a vinda de Diogo Fernandes para Pernambuco e a consequente mudana de

    Branca Dias, com os filhos, para Lisboa, para viver junto a um irmo de Diogo. Esta foi

    seguida posteriormente pala me Violante Dias e pela irm Isabel. De Lisboa, onde as trs

    mulheres da famlia Dias foram presas pela Inquisio, embarcaremos junto com Branca e os

    filhos, depois de sua liberao do hbito penitencial, para Pernambuco, onde a mesma veio

    encontrar o marido. J em Pernambuco, dividiremos nossas atenes entre Olinda e

    Camaragibe, j que a famlia dividia seu tempo entre a casa na Vila de Olinda e o engenho

    Camaragibe, onde hoje se situa uma cidade do mesmo nome. Entender estes homens e

    mulheres e seus comportamentos, o fundamento de nossa pesquisa.

    Para Chartier um homem do sculo XVI deve ser inteligvel no relativamente a ns,

    mas aos seus contemporneos. Assim ele se posiciona ante um debate que est sempre

    presente entre os historiadores, pois a medida que construmos nossos trabalhos, podemos

    incorrer em anacronismos ao analisarmos nossos objetos de estudo. Com esta sentena,

    Chartier se utiliza de uma exemplificao do homem do sculo XVI para reforar a

    necessidade do historiador de abrir mo desses anacronismos to presentes em nossas anlises

    de realidades histricas j to distantes. Para ns, entretanto, a assertiva encerra no somente a

    questo terica essencial, mas o prprio recorte cronolgico do objeto em questo neste

    trabalho: homens e mulheres do sculo XVI.

    Tendo isto em vista, devemos dizer das fontes que nos utilizamos; No so as mesmas,

    fontes ideais para se analisar pessoas que estavam indo de encontro, ainda que pacificamente,

    ao poder poltico e religioso vigente. J que foram construdas dentro da mquina

    inquisitorial. Temos conscincia das manipulaes, indues, presses fsicas e psicolgicas,

    falsos testemunhos e confisses por presso, alm de outros fatores que pesavam sobre os

    hereges acusados e presos pelo Santo oficio. Entretanto, devemos ressaltar que, Foi a nsia

    de verdade por parte do inquisidor (a sua verdade, claro) que permitiu que chegasse at ns

    essa documentao extraordinariamente rica, embora profundamente deturpada.9 Ou seja,

    mesmo sendo a documentao comprometida pelas verdades da Inquisio, ela no perde seu

    valor e sua riqueza, em termos de anlise. Este tipo de anlise ; como diz Ginzburg; um

    terreno escorregadio, Porm, o silenciamento de algumas falas dos acusados acabam por

    9 GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como antroplogo. Trad. Revista Brasileira de Histria. So Paulo: ANPUH-Marco Zero, set. 90-fev. 91, n 21, pp. 9-20.

  • 18

    despertar outros meios de anlise. Tudo, cada gesto, cada tipo de confisso, cada pequena

    palavra, ou at mesmo o silncio pode ser utilizado para interpretar e construir analises acerca

    dos personagens. Mesmo com a desigualdade das posies entre inquisidor e acusado, o que

    havia nas mesas dos tribunais ainda era um dilogo e isto nos permite interpretaes e

    construes.

    As fontes sobre as quais nos debruamos, partem da documentao gerada pela

    Primeira visitao do Santo Oficio s Partes do Brasil, que ocorreu entre os anos de 1591 at

    1595, tendo visitao a Capitania de Pernambuco ocorrido entre os anos de 1593 a 1595.

    Esta documentao foi integralmente transcrita e publicada em forma de livro pela Fundao

    do Patrimnio Histrico e Artstico de Pernambuco FUNDARPE pelo trabalho do

    historiador Jos Antnio Gonsalves de Mello. Das denunciaes contidas no livro da Primeira

    visitao, se desdobram vrios processos do tribunal do Santo Oficio de Lisboa contra

    membros, mulheres da famlia Dias-Fernandes. Alm destes processos, trabalhamos com 3

    outros, movidos cerca de 50 anos antes do perodo da visitao de Pernambuco, que se

    constituiu a medida que o analisvamos, no centro de nosso trabalho, por mostrar o incio da

    trajetria da matriarca Branca Dias mesa do Santo Oficio, e das mulheres da famlia Dias: a

    me e a irm de Branca Dias, Violante e Isabel respectivamente. Branca Dias a personagem

    central da trama que nosso trabalho constri, e seu processo, assim como os processos de sua

    me e irm (ambas denunciantes do provvel judasmo de Branca) so de fundamental

    importncia para a construo dessa trama.

    Este processo (de Branca Dias) tem o nmero 5736 da Inquisio de Lisboa, o de sua

    me Violante Dias (5775-1) sua irm Isabel Dias (5775) esto hoje sob a salvaguarda do

    Arquivo Nacional da Torre do Tombo, assim como, os demais processos secundrios que

    utilizaremos e que so das filhas e das netas de Branca Dias, respectivamente: Brites

    Fernandes, (4580) Andresa Jorge (6321), Beatriz de Sousa(4273) e Catarina Favela(2304).

    Estes processos, Assim como os processos secundrios tambm utilizados por este trabalho,

    referentes a: Bento Teixeira, Brsia Pinta e Briolanja Fernandes esto disponibilizados

    integralmente de forma digitalizada no site da ANTT online. O processo principal, que trata

    de Branca Dias, possui cerca de 70 pginas, e o primeiro registro oficial sobre a judaizante

    que ser novamente mencionada em documentao oficial nas denncias da Visitao de

    Pernambuco. Nosso contato com esta documentao, que ocorreu em vista de uma pesquisa

    mais aprofundada sobre a crist-novaova e seus familiares, gerou os questionamentos aos

    quais nosso trabalho pretende elucidar e que j foram anteriormente enumerados.

  • 19

    Outras documentaes que utilizaremos neste trabalho, pertencem ao acervo do

    AHJPE, Arquivo Histrico Judaico de Pernambuco. Estes so: A cpia digitalizada do

    Monitrio de 1546, Tabelas dos profissionais cristos-novos de Pernambuco. Tambm nos

    utilizamos de uma carta de jernimo de Albuquerque, endereada ao Rei de Portugal, pedindo

    recursos para Diogo Fernandes e Branca Dias. Est carta est integralmente transcrita e se

    encontra disponvel na Revista do Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico

    Pernambucano de n 49, disponvel para consulta no Arquivo do Instituto.

    Levando em considerao as caractersticas de produo destas fontes e o lugar de sua

    produo: O Tribunal da Inquisio, assim como a sociedade na qual o mesmo pertencia,

    eram os mesmos marcadamente misginos e antijudaico. Se uma alma submetida ao

    julgamento do tribunal j tinha seu discurso silenciado10 pela soberania da infalibilidade do

    mesmo, para os cristos-novos acusados de crime de judasmo, a situao tomava contornos

    bem piores. O que no nos impede, como historiadores de entender que mesmo em situaes

    onde o discurso e as vozes daqueles eram silenciados, eles ainda existiam e existem.

    Neste sentido, pretendemos observar a realidade estudada, atravs de uma perspectiva

    de certa tolerncia e permeabilidade, nas prprias estruturas sociais do Imprio portugus.

    Apesar das legislaes, eclesistica e real, que determinava que em se tratando de cristos-

    novos todo o cuidado devia ser tomado e toda desconfiana levada em considerao, as

    fronteiras entre o comportamento de suspeita e aceitao social, no eram to definidas como

    se poderia acreditar inicialmente. Existia um entremeio uma certa permeabilidade das

    fronteiras culturais11, que permitiu aos cristos um contato muito aproximado com mouros e

    com os conversos. Em Cada um na sua lei. Stuart Schwartz trata de evidenciar como se deu a

    convivncia entre as trs principais religies monotestas que se estabeleceram na pennsula

    Ibrica tratando desta maleabilidade nas relaes sociais. Buscamos imprimir neste trabalho,

    como este sentido de relativismo permeava as relaes na Amrica Portuguesa. Era visvel o

    mesmo no fato de que, sendo de fama pblica o conhecimento de que os Dias-Fernandes

    eram judaizantes, ainda assim, as filhas e netas de Branca Dias e Diogo Fernandes,

    circulavam entre a nobreza da terra e fizeram bons casamentos com homens de fortuna e em

    sua maioria cristos-velhos na capitania. So estas possibilidades que se apresentaram neste

    trabalho, que nos permitiram buscar entender na construo do mesmo o quanto que o

    10 Esse silenciar relativo, j que trabalhamos com a possibilidade de dilogo entre inquisidor e ru, mesmo sendo as condies desfavorveis a este ltimo. 11 SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerncia religiosa e salvao no mundo atlntico ibrico. So Paulo: 2009, p.118

  • 20

    caminho da crena de cada um parece ter sido determinado mais por decises e convices

    individuais do que por caractersticas sociais12

    Esta histria encontra hoje ambiente mais aberto e propicio para ser ouvida que h

    algum tempo atrs. a histria dos sujeitos que esto nas margens como diz Albuquerque

    Junior 13, esta histria marginal que no deixa de ser histria, mas preciso sensibilidade para

    perceb-la mais do que v-la, preciso treinar o olhar, preciso buscar os recantos as fendas

    mal iluminadas e obscuras, para encontrar os retalhos que formam o tecido da histria.14

    Schwartz alerta que se esteja atento para ouvir as vozes dos homens e mulheres comuns e

    especialmente o que eles pensavam sobre: inquisio, tolerncias e acrescentaremos as

    variveis que nos interessam abordas: o papel das mulheres dentro do criptojudasmo.15

    Dessa forma, a histria da famlia Dias-Fernandes, e principalmente de seu ramo

    feminino pode hoje ser trabalhada com as ferramentas fornecidas por uma histria

    sociocultural que agrega a histria das mulheres, tratando esta ltima no como algo

    historicamente independente ou isolado e sim por sua caracterstica relacional com seus

    demais campos. Neste sentido, nos propomos a direcionar nossos olhares sobre as relaes

    sociais e os espaos onde estes homens e mulheres (Os Dias-Fernandes) se relacionavam,

    viviam, amavam, morriam e neste contexto entender onde o fio de suas vidas se entrelaavam

    com os fios de outras histrias, na economia, na poltica na religio. Propomo-nos a enxergar

    suas histrias como tambm: (...) uma histria de complementaridades, na qual as mulheres

    revelam as estratgias informais com que participaram na empresa de colonizao.16

    Michelle Perrot em seu livro As mulheres e os silncios da histria17, mesmo

    trabalhando em um perodo diferente do abordado nesta dissertao, demonstra como os

    discursos e ideias femininas foram por tanto tempo silenciados pela histria. A forma de

    Perrot compreender a realidade feminina silenciada, entretanto, que se torna em uma

    estratgia investigativa til a qualquer historiador que queira se debruar sobre histrias

    12 Idem, p. 149 13 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Histria: A arte de inventar o passado. Bauru, Edusc, 2007. 14Para Durval Muniz de Albuquerque Junior, a histria ao se comprometer em trazer a luz da verdade deixa de enxergar o que est nas sombras, o que est margem, lugar de onde, segundo Certeau, o prprio historiador

    estaria. Durval entende que o historiador deve enxergar alm do que lhe proposto, educar seu olhar para ter

    uma viso mais generosa dos personagens infames da histria uma viso segundo ele acostumada com as margens. Ver: ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. op. cit.,, 2007. 15 SCHWARTZ, op. cit.,2009. 16PRIORI, Mary Del. Ao sul do corpo: Condio feminina, maternidade e mentalidades no Brasil colnia,

    2 Ed. So Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 2. 17Seus murmrios e seus sussurros que correm na casa, insinuam-se nos vilarejos, fazedores de boas ou ms

    reputaes, circulam na cidade, misturados ao barulho do mercado ou das lojas, inflados s vezes por suspeitos e

    insidiosos rumores que flutuam nas margens da opinio. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silncios da

    histria. So Paulo: EDUSC, 2009, p. 9.

  • 21

    marginais. Perrot acredita que o ato de silenciar no cala, mas provoca outras formas de falar,

    ao serem silenciadas em algumas formaes sociais, ou mesmo falarem o que se quer ouvir

    como era muitas vezes o caso de homens e mulheres cristos-novos levados aos tribunais da

    Inquisio, as mulheres, os cristos-novos, e mesmo outros grupos inferiorizados encontraram

    meios e estratgias de perpetuar sua fala e sua memria.

    So as estratgias, segundo as quais Chartier18 cr, serem essenciais aos grupos

    humanos, especialmente os ditos dominados ou marginalizados. As estratgias

    forneceram a estas pessoas, meios de perpetuar sua memria. Mesmo porque, no tendo isto

    acontecido, no seria possvel uma histria dos cristos-novos, das mulheres, ou dos demais

    grupos margem das sociedade. Fosse esta a colonial, ou a recente sociedade industrial

    estudada por Perrot.

    E tambm a partir dessa estratgia investigativa de Perrot, que encontramos

    embasamento para buscar neste silncio que grita, a histria destes homens e mulheres,

    destas crists-novas, mulheres atlnticas que transportaram muitas de suas crenas e as (re)

    significaram em uma terra estrangeira. Que de tal forma engendraram costumes e hbitos,

    ditos judaicos, s vezes sem nem mesmo saber de seu contedo, no cotidiano da colnia, e

    levaram os cristos-velhos a pratic-los sem saber que eram prticas judaicas 19.

    Entender uma sociedade, as mltiplas relaes entre os atores sociais, sua percepo e

    apreenso das realidades e representaes, as ideias partilhadas e as inerentes a grupos

    especficos em que esto subsumidos os sujeitos, um dos pontos destacados por Chartier, em

    oposio a uma histria que prezava, a priori, pelas estatsticas. Logo, ele entroniza a questo

    do mundo como representao, partindo da perspectiva da anlise dos sujeitos e grupos,

    situando-os nos limites de sua cultura 20. De tal modo, teria o historiador a facilidade de

    perceber extratos da realidade histrica, vivida pelos atores na narrativa histrica. Assim,

    trata-se tambm de entender a percepo das mltiplas realidades vividas pelo objeto de

    estudo de um ponto de vista que, despidos, como ele alerta, de anacronismos (ou com o

    mnimo possvel), chegar tambm ao entendimento da relao homem-espao-tempo-cultura-

    comportamento.

    Tendo como exemplo as realidades histricas estudadas por este trabalho, onde se

    analisa uma famlia de cristos-novos acusados e, grande parte dos mesmos, condenados por

    18CHARTIER, Roger. A Histria Cultural entre prticas e representaes. Lisboa: DIFEL. 2002. 19Referencias encontradas em diversos depoimentos da PRIMEIRA Visitao do Santo Ofcio s partes do

    Brasil; Denunciaes e Confisses de Pernambuco 1593-1595. Prefcio de Jos Antnio Gonsalves de Mello.

    Recife, FUNDARPE. Diretoria de Assuntos Culturais 1984. 509+158 p. Il (Coleo pernambucana 2 fases. 14) 20 CHARTIER, Roger. O mundo como representao. Estud. av., So Paulo, v. 5, n. 11, abril, 1991.

  • 22

    crime de judasmo pelo tribunal do Santo Oficio, nos chamam a ateno diversos

    comportamentos da famlia, por sua especialidade: As mulheres esto colocadas na

    documentao inquisitorial como as responsveis pelo comportamento desviante. So elas

    acusadas pela possvel liderana de prticas e rituais judaicos, tais como: guarda de sbados,

    limpeza da casa e das roupas nas sextas-feiras, ensino e questionamentos sobre as leis de

    Moiss a alguns cristos novos etc. Ademais, a matriarca da famlia, Branca Dias, esteve

    frente dos negcios do marido em determinado perodo de tempo e se tornaria, junto com

    algumas das filhas, as primeiras professoras leigas de meninas na colnia. No intentamos

    com este trabalho tomar um primeiro impulso e definir os Dias-Fernandes como pessoas

    frente do seu tempo e a se encerra a questo da necessidade, to ressaltada por Chartier, de

    no tirar os personagens histricos de seu tempo, pois sendo ele (...) quem quer que seja,

    no pode subtrair-se s determinaes que regulam as maneiras de pensar e de agir de seus

    contemporneos.21 Este trabalho pretende a medida que escuta as vozes dos homens e

    mulheres dessa famlia, entender a construo de cada personagem e as peculiaridades de

    suas crenas e vivncias.

    C. Ginzburg, em seu clssico livro O queijo e os Vermes, analisa o caso singular de

    um moleiro da regio do Friule, que possua ideias bastante incomuns e inovadoras sobre a

    origem da vida. Ginzburg declara que, apesar de Menocchio ser aos olhos de seus

    conterrneos (...) um homem, ao menos em parte, diferente dos outros., sua singularidade

    possua limites precisos. Para o historiador, a prpria cultura de qualquer tempo permite uma

    flexibilidade, um horizonte de possibilidades latentes, o qual os sujeitos no podem

    ultrapassar sem correr o risco de entrar no delrio e na ausncia de comunicao.22

    Temos conscincia aqui do debate estabelecido em torno das ideias terico-

    metodolgicas trazidas pelos historiadores supracitados. Compreendemos as diferenas que

    regem as opes de trabalho de Ginzburg e de Chartier e as diferenas, de seus respectivos

    trabalhos e opes tericas, porm, como foi ressaltado por Guarato23 algumas das ideias de

    Ginzburg servem para preencher lacunas no trabalho de Chartier e vice versa. Este trabalho

    se prope a explorar os pontos onde as formas de abordagem terico-metodolgica de ambos

    conversam, convergem e completam-se. Buscamos assim, enriquecer o embasamento para a

    21 CHARTIER, op. cit.,. 2002. 22 GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: O cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela

    Inquisio. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.20. 23 GUARATO, Rafael. Por uma compreenso do conceito de representao. Histria e-Histria, v. 01, p. 01-

    18, 2010. Disponivel em: http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=127#_edn2 Acesso

    em 18 Maio 2013.

  • 23

    compreenso das realidades histricas analisadas que engendramos. Abaixo, deixaremos clara

    a forma como trabalharemos esses pressupostos.

    Tendo explicitado nosso entendimento da questo, resta-nos dizer que a posio de

    Ginzburg em relao questo do sujeito e sua poca entra em acordo com a de Chartier, na

    medida em que ambos entendem que, mesmo quando as circunstancias e situaes vividas

    pelo sujeito histrico forem inovadoras e diferentes, necessrio perceber o objeto de

    estudo, comparando-o com seus pares. E entender que as prticas e aes do sujeito, embora

    possam destoar da maioria, ainda assim esto intimamente ligadas com a cultura de sua poca.

    Podemos inferir que, por mais vanguardista que seja um indivduo, ou um comportamento

    grupal, um e outro atuam dentro de seus horizontes de possibilidades, reorganizando ideias,

    pensamentos, comportamentos e prticas de sua cultura, e no as ultrapassando. 24

    Nesse contexto, priorizamos a utilizao do conceito de representao, pois este

    agrega noes extremamente cabveis necessidade de se entender a maneira como qualquer

    grupo ou sujeito se representava e era representado. E mais uma vez, apesar de trabalharmos

    este conceito, dentro das linhas definidas por Chartier, cremos interessante e complementar

    produo de nossa narrativa trazer as noes de representao discutidas por Ginzburg.25

    Assim trabalhando, Ginzburg (que) define representao como substituio da coisa ausente

    e visibilidade da coisa presente e Chartier (que) fala em representao como ausncia do

    que ela representa e presena de algo ausente via representao. Por fim, ambas

    corroborando complementarmente para a compreenso das representaes do objeto de

    estudo.

    Para que trabalhemos desta forma, necessrio que apresentemos o prprio conceito

    de representao e principalmente, como entendemos a representao e sua aplicabilidade em

    nossa narrativa. Chartier entende a representao associada s prticas, para ele uma

    interdependente da outra. A representao se d na medida em que: um grupo representa suas

    prticas e que suas prticas so apreendidas enquanto representaes. Esta viso trazida pelo

    autor, no somente potencializa as relaes sociais, como permite apropriaes mltiplas do

    dito real. A representao portanto, permite uma maior fluidez de entendimentos e

    abordagem de acontecimentos, que do maiores possibilidades para a construo da narrativa

    histrica. Neste nterim, a anlise da representao trazida por Ginzburg vem a complementar

    24 GINZBURG, Carlo. op. cit.,2006. 25 GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexes sobre a distncia. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

  • 24

    o conceito de representao. Enquanto Chartier, traz a representao como lente para se

    enxergar todo o social e cultural, Ginzburg, traz a ideia dos indcios e prova. 26

    Para Ginzburg, a construo da narrativa histrica auxiliada pelos sobreditos.

    necessrio que o historiador investigue como um detetive os indcios. da que Ginzburg

    constri o seu paradigma indicirio que em uma estratgia de investigao utilizada pelos

    homens h milhares de anos, que consiste em agrupar dados aparentemente irrelevantes e com

    eles construir narrativas com sentido. Essa ideia se complementa com a de prova trazida pelo

    autor. Esta seria necessria, no para provar uma realidade histrica e sim para narrar uma

    (das) realidades histricas. Assim:

    Ginzburg privilegia a prova como meio de trazer as prticas em sua

    narrativa, sendo que essa prova assegurada pela metodologia, a descrio

    minuciosa, pela narrativa cuidadosamente elaborada que no positivista,

    pois apesar de produzir efeito de verdade, no a verdade em si. 27

    Quanto histriografia da Inquisio e dos cristos-novos, esta no nova, assim

    como tambm no novo a utilizao dos processos gerados pelo tribunal do Santo Oficio

    Portugus, seja no Reino ou nas colnias. No portanto desconhecida a importncia da

    documentao recolhida pelas aes do Santo Oficio na colnia. Entre Brasil e Portugal,

    inmeros trabalhos foram escritos dentro da temtica. Trabalhos sobre aspectos estruturais do

    tribunal, sua atuao, seus regimentos, a atuao dos inquisidores, sobre a natureza dos

    crimes, etc. porm a ao do tribunal em relao aos cristos- novos que apreende nosso

    interesse, por serem estes, o centro da discusso trazida por este trabalho.

    O incio da preocupao com a temtica Inquisio versus cristos-novos no Brasil,

    data das dcadas de 1970-80, com a publicao de obras seminais para a historiografia sobre a

    Inquisio e os cristos novos; dentre os quais podemos destacar: Inquisio: Cristos-novos

    na Bahia. De Anita Novinsky de 1970. A inquisio portuguesa e a sociedade colonial de

    Snia Aparecida Siqueira, de 1978 e Gente da nao: cristos-novos e judeus em

    Pernambuco- 1542- 1654. De 1989. A obra de Novinsky abriu precedentes no Brasil para o

    estudo dos cristos novos, sua religiosidade e sua relao com os tribunais inquisitoriais.

    Cristos-novos na Bahia, descreve um panorama contundente das relaes estabelecidas entre

    os cristos-novos e a sociedade crist, na qual estavam agora os mesmos inseridos. Em sua

    anlise, Novinsky constri sua tese, que engendra a ideia de um homem dividido, vivendo em

    meio a um choque de pertencimento. Nem so completamente cristos, visto que nem aceitos

    26 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictcio. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

    p. 11. 27 GUARATO, op. cit.,2013.

  • 25

    so completamente como tais, nem tampouco so judeus. Novinsky, desenvolve assim a ideia

    de um grupo mais ctico, que necessariamente religioso em relao ao cristianismo-judasmo.

    Para a autora, grande parte dos cristos-novos baianos no aceitavam em completude o

    cristianismo, mais por uma questo filosfica que por um apego ao judasmo, assim que

    vemos atravs dos documentos do Santo Oficio. Um ctico, para quem no so de

    importncia extrema nem os ritos catlicos nem os ritos judaicos.28

    Na mesma linha temtica, porm com abordagem diferenciadas, os trabalhos de Lina

    Gorenstein e ngelo Assis, j citados neste trabalho pela proximidade temtica e de

    abordagem a que se prope nosso trabalho, vieram enriquecer a discusso sobre os

    comportamentos e as relaes dos cristos-novos com a sociedade colonial, mas

    principalmente a relao das mulheres crists-novas com a Inquisio. Gorenstein trabalha em

    seu livro A inquisio contra as mulheres, uma srie de processos contra crists-novas entre

    os sculos XVII e XVIII, partindo da para a reconstruo do cenrio, onde as mesmas viviam

    no Rio de Janeiro, analisando suas relaes, a insero das famlias das mesmas na economia,

    sua educao, o criptojudasmo, etc. A mesma concorda com algumas das ideias de Novinsky

    quando diz que, a forma encontrada por alguns dos descendentes de judeus para continuar a

    guardar sua antiga f, foi associando-a ao cristianismo, porque este era seu sistema de

    referncia, j que no Reino no havia mais judasmo.

    Devemos voltar porm, anlise das obras destacadas anteriormente sobre a presena

    dos cristos-novos no Brasil. Para isto devemos sublinhar as diferenas marcantes entre os

    livros de Novinsky, Assis e Gorenstein, em relao ltima obra das trs que mencionamos

    ao iniciar esta discusso: O livro Gente da Nao de Jos Antnio Gonsalves de Mello. O

    trabalho de Mello, diferentemente dos trabalhos dos trs demais, focado na, e corremos aqui

    o risco de reducionismo, quantificao e enumerao das denncias, confisses e processos

    contra os cristos-novos durante a Primeira visitao do Santo Oficio Pernambuco, e dados

    sobre os mesmos e seu envolvimento com os negcios, a igreja e a nobreza da terra na

    capitania. No estamos claro, nos referindo segunda parte do livro, onde o autor trata da

    nao judaica no XVII em Pernambuco durante o perodo Holands, visto que nosso foco so

    os cristos-novos. Os trabalhos de Novinsky, Assis e Gorenstein por outro lado, so

    analticos. Enquanto o trabalho de Mello traz dados essenciais para as mais diversas

    discusses sobre os cristos-novos, a Inquisio e a prpria sociedade colonial, aqueles trs

    primeiros nos trazem analises contundentes de dados sobre a mesma temtica.

    28 NOVINSKY, Anita.Cristos Novos na Bahia: A Inquisio. So Paulo: Perspectiva, 1992, p. 143.

  • 26

    Em um outro vis, contamos com obras como a de Snia Siqueira, que trazem uma

    viso mais geral da sociedade colonial e das relaes mais abrangentes travadas entre os

    diversos grupos que a compunham. Sendo uma obra da dcada de 1970, a anlise de Siqueira

    contm um estudo perpassado pelo conceito de mentalidade, o que dificulta sua utilizao,

    isto porm, no compromete as consideraes da autora sobre os sujeitos, a igreja, e

    principalmente a atuao da Inquisio na colnia. A historiadora uma das primeiras a trazer

    para discusso sobre a Inquisio, questes ligadas administrao e funcionamento do

    tribunal. Foi contudo, com a obra de Bruno Feitler que a Inquisio na colnia foi trabalhada

    como instituio. Feitler constri sua abordagem trabalhando os aspectos institucionais da

    mquina inquisitorial, seu livro; Nas malhas da conscincia: Igreja e inquisio no Brasil,

    expe as formas e as redes pelas quais a Inquisio atuava, seus funcionrios, seus agentes, os

    sistemas de transmisso de denncias etc. Essas duas obras so fundamentais; a primeira, por

    seu carter clssico e suas consideraes pertinentes, a segunda por sua abordagem atual e por

    trabalhar um aspecto ainda pouco explorado que a Inquisio como instituio na colnia.

    No podemos deixar de citar os trabalhos de Daniela Calainho29 e Janaina Guimares

    que vem acrescentar tambm valiosas contribuies histria da Inquisio e dos cristos-

    novos no Brasil. Calainho em seu livro, Agentes da f: Familiares da inquisio portuguesa

    no Brasil colonial contribui para mostrar as relaes intricadas entre os agentes da f como

    era a relao pblico-privado entre os familiares do Santo Oficio, como era a relao dos

    familiares na colnia e os estatutos de pureza de sangue etc. J o trabalho de Guimares:

    Modos de Pensar, maneiras de Viver: cristos-novos em Pernambuco no sculo XVI pela

    proximidade temtica e espacial, vem contribuir com um panorama sobre as relaes

    socioeconmicas e culturais sobre os cristos-novos, que serve de base para entendermos o

    contexto vivido pelos Dias-Fernandes e suas relaes na colnia.

    Assim, dentro dos hipteses levantadas, nosso trabalho se insere dentro da linha dos

    trabalhos recentes sobre o trinmio: cristos-novos, criptojudasmo e inquisio. E se prope

    a abordar as caractersticas do criptojudasmo do cl Dias-Fernandes, entendendo para isso as

    redes de relaes: sociais, econmicas e polticas em que se inseriam os membros do cl e

    mais importante: como isto foi apreendido e perpetuado pelo Santo Oficio da Inquisio

    Portuguesa, durante o sculo XVI.

    O trabalho desenvolvido neste sentido, encontra eco nos pressupostos metodolgicos

    da Micro-Histria, que concebem os meios para se enxergar por uma nova escala, aquilo

    29 CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da f: familiares da Inquisio portuguesa no Brasil colonial. Bauru:

    Edusc, 2006.

  • 27

    que antes no podia ser visto. A analogia utilizada por Carlo Ginzburg30 quando o mesmo

    trata da questo das escalas de viso de determinado objeto utilizando um microscpio ou um

    telescpio, vem a propsito no sentido de esclarecer os diferentes tratamentos e olhares com

    os quais tratamos nossas fontes. A questo que inquieta Ginzburg o fato de saber em que

    situaes o historiador pode se utilizar das escalas macro e micro sem necessariamente

    dissocia-las. Mesmo porque, no h como trabalh-las independentemente e sim

    individualmente, porm de forma correlacionadas.

    No pretendemos com a utilizao desta metodologia enxergar similaridades entre a

    realidade trabalhada por Ginzburg com a nossa, sabemos no ser comparvel a realidade,

    documental, espacial ou estrutural trabalhada pelo historiador em questo. Entretanto a

    singularidade do mtodo sua adaptabilidade a contextos diversos, porm anlogos.

    Contextos que conversam e, portanto se permite utilizaes similares em sua anlise.

    A histria dos Dias-Fernandes micro sem por isto deixar de estar inserida em um

    contexto macro. Por isto este trabalho se utilizar primordialmente do microscpio, mas sem

    descartar o telescpio, a fim de compreender tambm o que acontece na escala maior,

    articulados numa relao de reciprocidade onda de alguma maneira um influencia o outro.

    E utilizando-se das ferramentas metodolgicas da Micro-Histria, que pretendemos

    construir a narrativa sobre a famlia Dias-Fernandes e de sua matriarca Branca Dias. Com o

    intuito de apreender o mximo possvel das personagens que figuram nesta histria, e que

    foram duplamente estigmatizadas, primeiro por sua condio de cristos-novos e judaizantes

    de sangue infecto e segundo, no caso feminino, por serem tambm mulheres. Apesar de

    toda a carga colocada sobre a figura feminina e sua condio inferior nas sociedades do

    perodo, procuramos pensar a mulher no como uma vtima, mas como um fruto das

    circunstncias, esta, que em um momento as estigmatizavam e logo em seguida legavam os

    meios para sua ascenso.

    Tendo em vista as discusses, consideraes e leituras bibliogrficas e das fontes que

    precederam este trabalho, decidimos por construir seu corpus da forma que explicitaremos a

    seguir.

    Construiremos nosso primeiro captulo buscando entender o panorama no qual se

    desenrolou a histria da famlia Dias-Fernandes e as ocorrncias que os levou a desenvolver

    os papis que sero discutidos neste trabalho, especialmente o da matriarca Branca Dias.

    necessrio para isso, acompanhar a trajetria dos cristos-novos desde o Portugal recm-

    30GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e histria. So Paulo: CIA das Letras, 1989, p. 10.

  • 28

    converso, at a colnia americana, entendendo como se travou sua relao e insero na

    sociedade portuguesa do XVI e posteriormente na recm-habitada colnia. Acompanhando os

    principais acontecimentos que vieram a interferir no cotidiano desta famlia.

    Dividiremos a histria da relao entre cristos-novos versus Inquisio em dois

    momentos: primeiramente analisaremos a Inquisio portuguesa e sua atuao contra a

    heresia judaica no Reino, e em um segundo momento analisaremos a atuao da Primeira

    Visitao do Santo Oficio s partes do Brasil onde procuraremos entender as noes de

    criptojudasmo e judaizar que foram trazidas para a mesa do visitador. Esse criptojudasmo

    apresentado como uma religiosidade multiforme, que foi vivida por estes judaizantes e

    apreendido pela Inquisio como formas facetadas. Procuraremos entender e analisar as

    algumas das formas do criptojudasmo encontradas na documentao sobre os Dias-Fernandes

    no Reino e na colnia. importante frisar que, estaremos tratando da visitao a Capitania de

    Pernambuco, ou seja, entre os anos de; 1593 e 1595, sabendo que a mesma comeou no ano

    de 1591 na capitania da Bahia.

    O que nos leva ao segundo captulo, que por sua vez, tem o objetivo de historicizar a

    trajetria da famlia Dias-Fernandes iniciada no Reino e dialogar com a chegada colnia.

    Especialmente a atuao de suas mulheres as quais encabeadas pela matriarca Branca Dias,

    foram responsveis pela manuteno de resqucios de judasmo na Capitania de Pernambuco,

    exercendo neste nterim, papis que no eram normalmente ocupados por mulheres, como o

    de lderes, como bem a elas se refere o historiador ngelo Assis de mulheres-rabi.31

    Observaremos porm, no somente sua liderana e papel diferenciado na religio, como

    tambm, nas demais reas de suas vidas, como nos negcios, assumindo engenhos,

    comercializando em lojas, dirigindo escolas para sustento de sua famlia, entre outras tantas

    histrias que a documentao nos traz.

    Procuraremos voltar aos meados dos quinhentos e analisar Branca Dias e seu ncleo

    familiar no Reino; sua me e irm, ambas denunciantes do crime de judasmo de Branca. Na

    capitania de Pernambuco, a meno de seus provveis crimes (e dizemos provveis, porque

    no foi a mesma processada no perodo da Primeira Visitao ao Brasil devido a insuficincia

    de provas) de judasmo, que esto registradas no Livro das denunciaes e confisses de

    Pernambuco.32

    31Idem, p. 256. 32. PRIMEIRA Visitao do Santo Ofcio s partes do Brasil; Denunciaes e Confisses de Pernambuco 1593-

    1595. Prefcio de Jos Antnio Gonsalves de Mello. Recife, FUNDARPE. Diretoria de Assuntos Culturais 1984.

    509+158 p. Il (Coleo pernambucana 2 fases. 14).

  • 29

    O terceiro Capitulo, tratar de analisar os processos referentes aos filhos e netos de

    Branca Dias, que sofreram acusaes de crime de judasmo pela Inquisio. Com isto,

    procuraremos mostrar no somente a trajetria da famlia com o Santo Oficio, como tambm

    trabalhar a hiptese da continuidade das prticas criptojudaicas iniciadas com a me de

    Branca Dias, a mesma e sua irm Isabel ainda no Reino, pelos filhos e netos de Branca.

    Este captulo tambm tratar de um tema bastante delicado, a loucura e a vida dos

    portadores de deficincia na colnia. A famlia de Branca Dias possua dois indivduos que

    eram portadores de necessidades especiais, um filho, Manoel Alonso que no possua os

    membros superiores e uma filha; Brites Fernandes, alcorcovada e tida por voz comum como,

    mulher de falta de juzo33. Acompanharemos neste capitulo principalmente as doenas

    relacionadas a Brites, que mais mencionada na documentao da poca que seu irmo, e que

    possui um extenso processo na Inquisio de Lisboa.

    33Em carta anexada ao processo da Irm Brites Fernandes, isto declarado ao visitador da capitania Heitor

    Furtado de Mendona por Jorge de paz irmo de Brites. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisio de

    Lisboa, Processo n 4580.

  • 30

    1-A INQUISIO E OS CRISTOS-NOVOS: DE PORTUGAL A AMRICA

    PORTUGUESA

    A instalao do tribunal da Inquisio em Portugal vinha acompanhar a tendncia de

    cristianizao dos Reinos Ibricos que se intensificou com as Guerras de Reconquista

    empreendidas pelos Reinos Espanhis para expulso dos mouros do territrio ibrico. Nesse

    contexto, as figuras que se destacam so as dos reis Isabel de Castela e Fernando de Arago,

    maiores responsveis por essa expulso.

    Findando as guerras, outro assunto passa a inquietar os monarcas: a comunidade

    judaica. Esta vinha no somente angariando espaos nos Reinos Ibricos, como um nmero

    crescente de judeus, impedidos de galgarem postos significativos dentro da estrutura poltico-

    administrativa dos Reinos, passaram a adotar o cristianismo como fachada a fim de lhes servir

    de acesso aos j citados postos.34 Combater essa heresia passa a ser o principal interesse de

    Castela e Arago. Essa situao culmina com a expulso dos judeus de nao dos Reinos

    espanhis em 1492, ordenado pelo Decreto de Alhambra ou dito de expulso e com a

    concesso da bula papal que cria a Inquisio hispnica, cujo principal objetivo combater a

    heresia judaica, ou seja, investigar cada converso com costado judaico. Essa situao alcana

    Portugal quando o monarca D. Manuel I assume o trono e pede em casamento D. Maria de

    Arago, filha de Isabel e Fernando. Decidido o casamento, vem com este o compromisso

    aceito por D. Manuel, de expulsar os judeus de seu territrio. Apesar de aceitar as condies e

    de escrever um dito de expulso semelhante para os judeus portugueses, D. Manuel cria

    meios para que a maior parte desses judeus fique no Reino at a data final concedida pelo

    dito, que seria em outubro de 1497. Chegada a data, os judeus ainda em terra portuguesa tm

    como nica opo a converso. Nascem assim os cristos-novos portugueses, tambm

    conhecidos como os batizados em p35. Depois de convertidos, podem esses indivduos ficar

    oficialmente sob o poder da Igreja.

    Findas as converses, Portugal comea a enfrentar o mesmo problema que os reinos

    vizinhos: uma grande massa de neoconversos, em que pelo menos uma parte no estava to

    34 Esses judeus convertidos ao cristianismo e que continuavam a praticar o judasmo ficaram conhecidos em

    Espanha como marranos. Unterman assim os define: Nome em espanhol para judeus convertidos ao cristianismo que se mantiveram secretamente ligados ao judasmo. A palavra tem conotao pejorativa,

    significando geralmente suno, e frequentemente aplicada a todos os criptojudeus, mas particularmente aos de origem ibrica. (...) UNTERMAN, Alan. Dicionrio judaico de lendas e tradies. Rio de Janeiro:

    JORGE Zahar Ed., 1992. p. 166. 35 Assim se designava o judeu convertido, que recebeu o batismo quando adulto, tornando-se por isso cristo-

    novo, em oposio ao cristo-velho, que recebia o mesmo sacramento sempre ab infantia, nos braos de

    padrinhos. LIPNER, Elias. Santa inquisio: terror e linguagem. Rio de Janeiro: Editora Documentrio, 1977.

    p. 32.

  • 31

    convencida de seu cristianismo. Esse momento vivido em Portugal viria a tomar outros rumos

    com a ascenso ao poder de D. Joo III, filho de D. Manuel e com a implantao feita por ele,

    da Inquisio Portuguesa em 1536, autorizada pelo Papa.36

    1.1 Os cristos-novos e a Inquisio Portuguesa

    Como vimos, a passagem que compreende o fim do sculo XV e o sculo XVI

    momento decisivo para a histria dos judeus portugueses e seus descendentes. Queremos

    sublinhar, entretanto, a importncia desse perodo de tempo no somente para os judeus

    posteriormente cristos-novos, mas tambm ressaltar as transformaes nas mais diversas

    esferas da vida social que ocorriam no Reino de Portugal, na Europa e mundo conhecido.

    Reformas religiosas, colonizao efetiva da Amrica portuguesa, intensificao do comrcio

    com o Oriente, redefinio nos contornos dos mapas, o nascimento da Inquisio ibrica, e

    uma enorme quantidade de neoconversos mouros, mas principalmente judeus buscando um

    lugar na sociedade crist. Todo esse panorama serve de fundo para a construo dos

    homens e da Sociedade Moderna.

    O sculo XVI marcadamente um perodo de transio e, como tal, carregava o signo

    da mudana. Nesse momento no somente Portugal, ou a Pennsula Ibrica, como tambm o

    resto da Europa, ou a maior parte dela, caminhavam para um distanciamento das formas,

    ideias e configuraes que marcaram a Idade Mdia.

    Portugal foi quem inicial e principalmente conseguiu vantagem nessa transio,

    consolidando-se nesse perodo como a maior potncia ultramarina, com entrepostos e colnias

    espalhados por diversas reas do planeta. Esses entrepostos e colnias forneciam para o Reino

    um percentual incalculvel de riquezas, proporcionando o surgimento de uma monarquia

    fortemente consolidada e entronizando o poder da Igreja Catlica como aliada da coroa

    portuguesa. J que a misso no ultramar no se resumia apenas ao acumulo de riquezas, uma

    das principais funes da colonizao era levar o evangelho ao maior nmero de almas

    possvel.

    Como antes mencionado, os homens modernos eram reflexos da conjuno entre as

    formas como viviam, os lugares que moravam, os livros que liam, como lutavam, rezavam,

    confessavam, denunciavam, casavam e morriam. Tudo isso contribuiu para a construo

    36 Para mais informaes sobre os ditos de expulso hispnico e portugus, sobre a converso forada de judeus

    e a implantao das Inquisies hispnica e portuguesa, consultar: SARAIVA, Antnio Jos. Inquisio e

    cristos-novos. 5. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1985. | LIPNER, Elias. Os batizados em p: estudos acerca

    da origem e da luta. Lisboa: Editora Vega, 1998. | SIQUEIRA, Snia Aparecida. A inquisio portuguesa e a

    sociedade colonial. So Paulo: Editora tica, 1978.

  • 32

    desses sujeitos mltiplos. Em obra clssica sobre a sociedade colonial portuguesa, Siqueira

    nos fornece uma descrio desse homem37. Muito embora a autora trabalhe com o conceito de

    mentalidade, no levaremos em considerao o conceito aplicado e, sim, o retrato preciso

    feito por ela, na exposio das caractersticas desses homens; sendo estes parte importante da

    sociedade portuguesa, que foram de certa forma, transportados para a colnia. Ela descreve

    esses homens como duais, divididos entre o mundo visvel e o invisvel:

    (...) Consciente de que o caminho para a aproximao a Deus era escalonado

    em sucessivos degraus da perfeio da virtude. Opondo-se a Ele ficava a

    ideia de vicio ligada a de homem natural com seus apetites para o alimento, a

    bebida, a luta, o jogo, a vanglria e os excessos sexuais. Tudo isso implicava

    numa concepo de justia, com seus corolrios de mrito, demrito, prmio

    e castigo, arrastando o conceito do valor medicinal das penas. Ideias

    elaboradas pela teologia, reestruturadas pela escolstica restaurada, que

    substantivavam o pensamento cristo do tempo. Pensamento que avivava a

    conscincia dualstica dos planos natural e sobrenatural, hspede provisrio

    do mundo, tangido a preparar seu fim eterno.38

    Esses homens eram produtos e produtores da sociedade portuguesa moderna. Isso nos

    leva a outra discusso que perpassa a das transformaes ocorridas nessa sociedade: a

    conscincia da pluralidade e da plasticidade dos sujeitos que a compunham. A descrio feita

    por Siqueira , antes de tudo, um apanhado geral das questes centrais que, acreditamos,

    davam forma aos sujeitos modernos. Portanto, eram apenas contornos para formas, que se

    adaptavam, mudavam e transformavam, apropriando (ou no) realidades, situaes, discursos

    etc. Mesmo tratando de reflexes acerca da justia no Antigo Regime, Antnio Manuel

    Hespanha declara que: a sociedade moderna no era, evidentemente, uma sociedade

    unanime. As pessoas no atuavam sempre da mesma maneira, mesmo em contextos prticos

    objetivamente equivalentes39.

    A afirmao de Hespanha complementa a de Siqueira, na medida em que serve de

    apoio para tratarmos de uma questo mais referente composio social que a composio

    subjetiva do sujeito ibrico moderno. Portugal, assim como a vizinha Espanha, contava no

    alvorecer da Idade Moderna com uma grande e fundamentada populao de mouros e judeus.

    O dito de Expulso ordenado pelos Reinos espanhis afetou significativamente os judeus

    portugueses, j que uma parte dos judeus espanhis expulsos se abrigou em Portugal sob os

    auspcios da boa convivncia entre o rei e a nao hebraica. Essa situao se arrasta por

    cinco anos at que ocorre o contrato de casamento entre D. Manuel e a infanta D. Maria, filha

    37 SIQUEIRA, op. cit., 1978. 38 Idem, p. 20. 39 HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecillitas: as bem-aventuranas da inferioridade nas sociedades do antigo

    regime. So Paulo: Ana Blume, 2010. p. 43.

  • 33

    dos reis Fernando e Isabel. Nesse contrato foi exigida a expulso dos infiis em territrio

    portugus.

    O fato ocorrido resulta na converso forada da grande maioria dos judeus

    portugueses. E assim nascia a gerao dos batizados em p. Charles Boxer entende esse

    momento como um divisor social. Para ele, a sociedade portuguesa passa a ser dividida entre

    dois grupos distintos: cristos-velhos e cristos-novos, ambos com representaes prprias, e

    construes distintas sobre o que era e especialmente o que no era um cristo. Antes, os

    judeus possuam seu lugar e representao como judeus. Passaram depois da converso a uma

    massa de neoconversos, que no se encaixavam devidamente na sociedade crist40. A

    converso forada dos judeus em Portugal gerou a diviso entre cristos novos e velhos a que

    Boxer se refere. Esse fato trouxe posteriormente Coroa preocupaes concernentes

    veracidade da f desses conversos, que culminou com a instalao do Santo Ofcio em solo

    portugus.41

    O Santo Ofcio foi instalado em 1536, depois de idas e vindas entre as peties reais e

    as determinaes das autoridades em Roma. Na sua introduo, j no havia nenhum judeu

    em solo portugus. Assim, quando o Santo Ofcio iniciou suas atividades, podia estender sua

    autoridade a todos no reino. Eram todos cristos, portanto, passveis de investigao e

    correo pelo tribunal.

    Durante o sculo XVI, a Inquisio passou por um processo bastante complicado de

    adaptao no Reino, no somente para os integrantes da mquina inquisitorial, como para

    os alvos da mesma. Isso ocorreu por vrios fatores, entre os quais, as disputas de poder

    existentes entre o brao eclesistico inquisitorial e o brao secular, responsvel pelas aes de

    aplicao das penas de cunho fsico aos indivduos processados pelo Santo Ofcio.

    A reformulao constante dos regimentos inquisitoriais era um dos motivos para a

    dificuldade da aplicao das aes legadas ao tribunal. Ao longo do sculo XVI a Inquisio

    portuguesa contou com os regimentos de 1541, 1552 e 1570. A mudana constante nesses

    regimentos dificultava sua apreenso e sua aplicao por parte dos inquisidores; assim como

    pelos demais funcionrios, que deviam se guiar pelo contedo do mesmo. Alm disso, outro

    problema dificultava a ao do Tribunal, que era a falta de pessoal, principalmente devido a

    40 BOXER, Charles R. O imprio martimo portugus. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 279-280. 41 BOXER, Charles R. A igreja militante e a expanso ibrica: 1440-1770. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

  • 34

    uma carncia crnica de meios financeiros, problemas ligados s habilitaes para os cargos

    e aos ordenados (em que era habitual o atraso nos pagamentos), sobrecarga de trabalho etc.42.

    O tribunal, dessa forma, estava constantemente trabalhando com menos inquisidores

    e deputados que o estipulado, com todos os perigos e falhas que tal situao acarretava43.

    Essas falhas eram: prises no executadas a tempo e processos acumulados gerando grande

    desorganizao no contedo arquivstico da instituio. Este ltimo, por exemplo, foi a

    salvao para grande parte dos judaizantes, que, uma vez processada e cumprida sua pena, se

    via novamente acusado do mesmo crime perante o tribunal. Ocorria que, por causa dessa falta

    de organizao nos arquivos dos processos, o tribunal diversas vezes no tomava

    conhecimento da denncia anterior do acusado; portanto, o mesmo era tratado como um ru

    comum, que era processado pela primeira vez. Branca Dias foi um desses casos. Acusada de

    judaizante, presa e condenada pelo Tribunal lisboeta entre os anos de 1543 e 1545, foi

    novamente acusada, estando j falecida, durante a Primeira Visitao do Santo Ofcio s

    partes do Brasil (1593-1595). As denncias contra ela foram encaminhadas ao mesmo tribunal

    que cinquenta anos antes a condenara, e mesmo assim, ela escapou; provavelmente pelo fato

    de no se saber de sua acusao anterior44.

    A estruturao do tribunal funcionava no somente com base nos Regimentos, como

    se apoiava em outros documentos que, diferentemente do contedo jurdico daquele primeiro,

    apresentava uma configurao mais ligada s aladas do social e da religio; como a carta

    Monitria de 1536 da qual trataremos, j que foi esta que Heitor Furtado de Mendona usou

    na visitao ao Brasil45.

    O Monitrio era o medidor principal para determinar as aes desviantes da f

    catlica. Ele era responsvel por definir, para os cristos, velhos ou novos, a imagem que eles

    deveriam ter deles mesmos e do outro. Assim, o Monitrio definia quais aes no eram

    comportamento cristo. Historiadoras/es como Lina Gorenstein, Anita Novinsky, Charles

    Boxer etc. concordam que a carta monitria servia muitas vezes para ensinar os cristos-

    novos a serem judeus. O monitrio tinha em princpio, uma funo educativa: mostrar o

    42 MEA. Elvira Cunha de Azevedo. O Santo Oficio portugus: da legislao prtica. In: Estudos em

    homenagem a Joo Francisco Marques. Porto: Ed. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ano. p.

    169. v. II. 43 Idem, Ibid. 44 O tribunal em acordo (mais frente referido) anexado ao processo de Beatriz Fernandes isenta Branca, Diogo

    e filhos do casal, j falecidos, pela insuficincia de provas e pela no condenao anterior de nenhum dos

    membros da famlia. 45 Lista desenvolvida dos fatos considerados delituosos pela Inquisio e dos indcios de judasmo, destinada a

    esclarecer as culpas prprias a serem confessados ou as alheias a serem denunciadas. O primeiro monitrio

    data de 1536 e foi utilizado na Primeira visitao a Pernambuco e Bahia entre os anos de 1591-1595 LIPNER, op. cit.,1977. p. 101-102.

  • 35

    que era heresia, para que os culpados pudessem ser denunciados46. Vejamos alguns dos

    principais comportamentos tidos como heresia judaica estabelecidos pelo Monitrio de 1536:

    1. E se sabeis, vistes ou ouvistes, que algumas pessoas, ou pessoa dos ditos Reinos, e senhorios de Portugal, ou estantes em eles, sendo cristo

    (seguindo ou aprovando os ritos, e cerimonias judaicas) guardaro, ou

    guardam os sbados em modo, e forma judaica, no fazendo, nem

    trabalhando com eles coisa alguma, vestindo-se, e ataviando-se de vestidos,

    roupas e joias de festa, e adereando-se, e alimentando-se as sextas-feiras

    ante suas casas, e fazendo de comer as ditas sextas-feiras para o sbado

    acendendo e mandando acender nas ditas sextas-feiras a tarde candeeiros

    limpos com mechas novas mais cedo que os outros dias, deixando assim

    acesos toda noite, at que eles por si mesmos se apaguem, tudo por honra,

    observncia, e guarda do sbado.

    2. Item, se degolam a carne, e aves, que ho de comer, forma e modo judaico, atravessando-lhe a garganta, provando, e tentando primeiro o cutelo

    na unha do dedo da mo, e cobrindo o sangue com terra por cerimnia

    judaica.

    3. Item, que no comem toucinho, nem lebre, nem coelho, nem aves afogadas, nem enguia, polvo nem congro, nem arraia, nem pescado, que no

    tenha escama, nem outras coisas proibidas ao judeu na lei velha.

    4. Item se sabem viram, ou ouviram, que jejuaram, ou jejuam, o jejum maior dos judeus, que cai no ms de setembro, no comendo em todo o dia

    arte a noite, que saiam as estrelas, e estando aquele dia do jejum maior,

    descalos, e comendo aquela noite carne, e tigeladas, pedindo perdo uns aos

    outros. Outrossim, se viram, ou ouviram, ou sabem alguma pessoa, ou

    pessoas jejuaram, ou jejuam o jejum da Rainha Ester por cerimnia judaica,

    e outros jejuns que os judeus costumavam de fazer, assim como os jejuns das

    segundas e quintas-feiras de cada semana, no comendo todo o dia, at a

    noite.

    5. Item, se solenizaro, ou solenizam as Pscoas dos judeus, assim como a Pscoa do po zimo, e das cabanas, e a Pscoa do corno, comendo po

    zimo, em bacios, e escudelas novas, por cerimnia da dita Pscoa, e assim

    se rezaram, ou rezam, oraes judaicas, assim como so os Psalmos

    penitenciais, sem Glria Patri, et Filio, et Siritu Sancto, e outras oraes de

    judeus, fazendo orao contra a parede, sabadeando, abaixando a cabea, e

    alevantando-a, a forma, e modo judaico, tendo, quando assim rezam, os

    atafalis, que so umas correias atadas nos braos, ou postas sobre a cabea.

    6. Item, se por morte de alguns, ou de algumas, comeram ou comem em mesas baixas, comendo pescados, ovos, e azeitonas, por amargura, e que

    esto detrs de porta, por d, quando algum, ou alguma morte, e que banham

    os defuntos, e lhes lanam cales de leno, amortalhando-os com camisa

    comprida, pondo-lhe em cima uma mortalha dobrada, maneira de capa,

    enterrando-os em terra virgem, e em covas muito fundas, chorando-os, com

    suas literias cantando, como fazem os judeus, e pondo-lhes na boca um gro

    de aljfar ou dinheiro douro, ou prata, dizendo, que para pagar a primeira

    pousada, cortando-lhes as unhas, e gardando-as, derramando e mandando

    derramar agua dos cntaros, e potes, quando algum, ou alguma morre,

    dizendo, que as almas dos defuntos se vem ali banhar, ou que o anjo

    percutiente, lavou a espada na gua.

    46 GORENSTEIN, op. cit.,2005. p. 56.

  • 36

    7. Item, que lanaram, e lanam s noites de So Joo Batista, e do natal, na gua dos cntaros e potes, ferros, ou po, ou vinho, dizendo, que aquelas

    noites se torna a gua em sangue.

    8. Item, se os pais deitam a beno aos filhos, pondo-lhes as mos sobre a cabea, abaixando-lhe a mo pelo rosto abaixo, sem fazer o sinal da cruz,

    forma, e modo judaico.

    9. Item, que quando nasceram, ou nascem seus filhos se os circuncidam, e lhe puseram, ou pem secretamente nomes de judeu.

    10. Item, se depois que batizaram, ou batizam seus filhos, lhes raparam ou rapam o leo, e a crisma, que lhes puseram, quando os batizaram.47

    Podemos observar que o Monitrio traz uma exposio detalhada das prticas que

    levariam os cristos-novos a serem declarados judaizantes se as praticassem. Um dado

    interessante, por exemplo, que podemos observar na documentao da famlia Dias-

    Fernandes, mais especificamente em se tratando de Branca Dias, o fato de a mesma, em seu

    primeiro processo, que data de 1543, ser acusada de prticas como: acrescentar outras mechas

    ao candeeiro, jejuar o jejum do yom kipur e da Rainha Ester, fazer pes zimos etc. Enquanto

    que, quando a mesma denunciada cerca de cinquenta anos depois, j em Pernambuco, os

    crimes j so os mais comumente denunciados, como: guarda de sbados, trocas de roupas e

    reunies imprprias com o intuito de praticar a antiga lei.48

    O papel do Monitrio era, portanto, alm da funo de mostrar o que eram as

    prticas desviantes da f catlica, uma espcie de roteiro, que dava formas aos personagens

    herticos, para moldar e definir as ideias e as representaes do que seria um judeu, uma

    bruxa, um maometano e os demais tipos herticos.49

    Concordamos com Lina Gorenstein, que aprofunda a questo quando entende o

    monitrio no somente como um meio de criao de personagens herticos para a sociedade

    crist, como tambm como provedor de um ensino da religio judaica aos prprios cristos-

    novos. Grande parte dos judaizantes no tinha um conhecimento especfico do que era

    judasmo, suas prticas estavam diludas e mescladas s do cristianismo. A maior parte deles

    no tivera contato algum com o judasmo portugus. Os que praticavam, eram resqucios de

    um judasmo basicamente transmitido pela memria e pela oralidade, sem livros, sem estudos,

    sem rabinos. Era um meio de preservar traos disformes de um judasmo ancestral.

    47 Carta Monitria 1536. Cpia digitalizada. Fonte: Acervo digital do Arquivo Histrico Judaico de Pernambuco. 48 Jejum de Ester (em hebraico Taanit Ester). Dia de jejum que cai entre treze de Adar, um dia antes de Purim.

    calcado ou no jejum feito por Ester antes de sua visita ao Rei da Prsia para pedir por seu povo (Ester a:16)

    ou no jejum dos judeus antes de se defenderem contra seus atacantes (baseado em Ester 9:2). UNTERMAN,

    op. cit.,1992. p. 94. 49 Quando usamos o termo judeu no contexto inquisitorial, deve-se entender judaizante, j que hipoteticamente a

    inquisio s teria poder de disciplinar os cristos batizados. O termo, porm utilizado dentro da

    documentao inquisitorial e, portanto, ser reproduzido neste trabalho.

  • 37

    Voltando afirmativa de Gorenstein sobre o monitrio, a mesma se baseia na leitura

    feita por Solange Alberro da situao dos cristos-novos na Amrica Espanhola. Alberro

    afirma que na falta de um ensino religioso verdadeiro, a leitura dos ditos de f promulgados

    pelo Santo Ofcio, onde se descrevem as principais prticas mosaicas, se constitua no meio

    mais importante para os judaizantes mexicanos conhecerem sua religio. Isso porque o

    judasmo praticado pelos criptojudeus estava, como dissemos anteriormente, muito longe de

    sua configurao original e, por isso mesmo:

    (...) no era mais um sistema autnomo e auto-referente. O cristianismo se

    tornara seu ponto comum de referncia. Algumas crenas criptojudaicas

    estavam em contraste explcito com as crenas crists, como a crenas no

    Deus nico, em contrapartida com a santssima Trindade crist; outras

    gradualmente