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Dimitri Fazito de Almeida Rezende
Transnacionalismo e Etnicidade A Construo Simblica do Romanesthn
(Nao Cigana)
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Sociologia. rea de Concentrao: Sociologia da Cultura
Orientador: Prof. Leonardo H.G. Fgoli Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas UFMG
2000
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Para Dilermando, Simone e Adriana
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AGRADECIMENTOS Quando celebramos o encerramento de um trabalho ou de uma etapa
importante em nossa vida, tendemos a ignorar o rduo caminho percorrido ao reduzi-
lo a memrias esparsas ou, muitas vezes, ao recri -lo de forma mais agradvel, mais
cheio de glrias e certezas do que realmente foi.
Porm, se estivermos mais atentos aos impactos que esse processo de
descoberta, conhecimento e convivncia produz em nossas vidas, perceberemos toda a
riqueza que nos traz a experincia vivida. Lembramo-nos e revivemos cada momento
de dificuldade e superao, cada momento de desespero e revelao. Todos os
infortnios e glrias se mostram como momentos encadeados em um processo
existencial singular que nos atinge profundamente.
Seguindo esta via de autocrtica e autoconhecimento descobrimos que nunca
estamos ss, e que existem aqueles que nos acompanham em nossa jornada,
carregando um fardo muitas vezes imperceptvel para ns mesmos ou para aqueles
que nos observam distncia esses merecem um lugar de destaque em nossa
memria e o reconhecimento de sua contribuio para o trmino de mais uma etapa.
Deste modo, posso dizer com muito orgulho ter sido orientando do professor e
antroplogo Leonardo Hiplito Genaro Fgoli, a quem devo meu maior agradecimento
por ter-me guiado e proporcionado o melhor aprendizado nesta longa caminhada.
Com pacincia, simplicidade e amizade, Leonardo soube dar-me motivao,
segurana e liberdade naqueles momentos mais difceis, quando chegamos a nos
desesperar e querer abandonar tudo e todos; com a mesma ateno, nos momentos de
maior impetuosidade, tambm soube apontar-me as falhas e limitaes, alertando-me
para as responsabilidades necessrias ao desenvolvimento equilibrado e ordenado de
qualquer trabalho em nossas prprias vidas. Obrigado, Leonardo, por ter sido mais
que um professor e por ter me ensinado mais que os direitos e deveres do aluno, pois
suas lies, guardadas em minha memria, dizem respeito a valores e atitudes para
toda uma existncia.
Agradeo tambm ao antroplogo Frans Moonen, a quem devo muitas de
minhas indagaes e inquietaes, tericas e prticas, no s com relao aos ciganos
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mas tambm a toda a sociedade. Alm disto, devo a ele o suporte inestimvel do
amigo que ouviu pacientemente meus lamentos e alegrias durante o complicado
processo de realizao desta dissertao.
A Rodrigo Corra Teixeira devo meus mais sinceros e acalorados
agradecimentos. Companheiro de estrada h tanto tempo, de estrias e de rivalidades
(futebolsticas), este bem-humorado e competente ciganlogo teve participao
insubstituvel em minha vida acadmica, mais propriamente em meu processo de
descoberta dos ciganos. De um amigo verdadeiro no se esquece o valor, Rodrigo.
Devo tambm agradecer o apoio e considerao de todo o Departamento de
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, que transformei
em meu lar durante longo tempo. Agradeo a todos os professores que, de forma
direta ou indireta, tomaram parte e influram em meu aprendizado e na minha
formao profissional e humana.
Em especial, agradeo a Antnio Luiz Paixo (in memorian) e Vincius Jos
Caldeira Brant (in memorian) por terem sempre me incentivado na busca do
Conhecimento em si mesmo como o significado mais nobre e valoroso do profissional
acadmico. E, como conseqncia moralmente necessria, a luta incessante pela
aplicao universal deste Conhecimento nossa convivncia cotidiana, modificando e
melhorando nossas condies de vida na sociedade.
Agradeo tambm o apoio institucional da Universidade Federal de Minas
Gerais que me acolheu por tanto tempo, assim como o apoio financeiro recebido ao
longo de dois anos, enquanto bolsista de ps-graduao do Mestrado em Sociologia,
conferido pela agncia nacional fomentadora de pesquisa e ensino acadmico, CNPq.
Expresso aqui meu profundo e sincero agradecimento a toda a comunidade
cigana de Belo Horizonte que me acolheu afetuosamente em todos os momentos da
pesquisa. Este trabalho no poderia ter sido concludo sem sua colaborao e
consentimento. Alm disto, sou grato pela possibilidade de ter conhecido os ciganos e
ter aprendido com eles valores to nobres como a solidariedade, a humildade e o
prazer de viver o dia-a-dia.
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Agradeo tambm aos meus pais, Dilermando e Simone. No basta dizer que
sem eles no estaria escrevendo estas linhas e que nenhum trabalho teria sido feito.
Agradeo-lhes por terem me proporcionado a vida e, mais importante, valoriz-la
verdadeiramente. Este trabalho simboliza o reconhecimento e respeito que sempre
terei por tudo o que fizeram por mim. Tantas vezes o sacrifcio de cuidar e educar se
mostrou incondicional, tantas vezes o amor dado se mostrou sem limites que o
resultado deste trabalho torna-se pequeno mas no menos digno que tudo aquilo de
que fui depositrio. Por tudo isto, mais uma vez, obrigado, pai e me.
s minhas irms e a todos os parentes e amigos no citados mas no menos
queridos (porque so muitos), que direta ou indiretamente conviveram comigo durante
todo esse tempo, dando-me suporte emocional para superar os vrios momentos de
dificuldade, quero deixar aqui meus agradecimentos.
Finalmente, no poderia deixar de agradecer a pessoa que tem sido, sob todos
os aspectos, o centro de minha vida e vocao. Agradeo profundamente a Adriana
Seixas que participou e participa de cada momento de minha vida. A pessoa que me
suporta sem condies ou ressalvas, que me espelha e me revela nos momentos mais
difceis e nos mais felizes. Agradeo-lhe por caminhar ao meu lado, mesmo sabendo
que poder colher tanto louros quanto encargos, tanto sucesso quanto infortnio e
tanto alegria quanto tristeza. Se o faz por amor e carinho, o mesmo que sinto por ela.
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SUMRIO RESUMO________________________________________________________________6 INTRODUO ___________________________________________________________7 CAPTULO 1. TEORIAS SOBRE ETNICIDADE E IDENTIDADE ______________ 18 1.1 O Fenmeno tnico ____________________________________________________ 19 1.2 Novos Mapas, Novas Rotas: etnicidade, ideologia e interesse ___________________ 23 1.3 Etnicidade Enquanto Focus de Solidariedade ________________________________ 33 1.4 Identidades, Comunidades e Smbolos: performance, afetividade e tradio ________ 41 1.4.1 Cadenza ____________________________________________________________ 47 CAPTULO 2. ETNICIDADE CIGANA E RESISTNCIA CULTURAL _________ 49 2.1 Ciganos no Brasil: um caleidoscpio tnico __________________________________ 50 2.2 Resistncia Cultural: o drama de uma minoria ________________________________ 55 2.3 Socialidade e Identidade Performativa: por que somos todos irmos?______________ 62 2.4 A Arte da Fragmentao: etnicidade e inveno ______________________________ 70 2.5 A Etnizao do Espao e a Ampliao do Local ______________________________ 76 2.5.1 Um esboo alternativo: parentesco, poltica e territorialidade ___________________ 76 2.5.2 Etnizando a comunidade: estilo cultural e interstcios espaciais__________________84 CAPTULO 3. BREVE HISTRIA DAS REPRESENTAES SOBRE OS CIGANOS________________________________________________________________88 3.1 Desconstruindo Representaes ___________________________________________ 88 3.2 Discursos Cientficos, Mitos e Perseguies __________________________________ 93 3.3 Traficando Mitos e Representaes ________________________________________ 108 3.3.1 Nomadismo enquanto mito_____________________________________________ 109 CAPTULO 4. ROMANESTHN A CONSTRUO SIMBLICA DA COMUNIDADE TRANSNACIONAL ______________________________________ 116 4.1 Para Uma Crtica Nao Moderna e ao Nacionalismo ________________________ 118 4.2 A Mitoprtica da Nao Cigana: um exerccio de imaginao etnogrfica________ 126 4.2.1 Movimentos nacionalistas ciganos _______________________________________ 133 4.2.2 Poltica da etnicidade: vozes ciganas____________________________________ 144 4.2.3 Vozes ciganas....vozes hbridas _________________________________________ 146 4.3 Palavras Finais ________________________________________________________ 161 5. CONCLUSO _________________________________________________________164 5.1 Transnacionalismo e Resistncia Cultural ___________________________________ 164 5.2 Tradio Cultural em Movimento: as disporas ______________________________ 169 5.3 Territrio Etnizado: parentesco e romanes __________________________________ 175 5.4 Romanesthn: a inveno do espao cigano _________________________________ 177 5.5 Unidade na Diversidade _________________________________________________ 183 6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS _____________________________________ 186 7. ANEXOS_____________________________________________________________ 191
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RESUMO Este estudo tem como objetivo compreender os processos de construo do Romanesthn (Nao Cigana), atravs das representaes simblicas e prticas cotidianas daqueles diversos grupos rotulados por um mesmo termo ciganos.
A partir desta discusso sobre a organizao social da comunidade cigana, abordada a questo da etnicidade, da formao de grupos tnicos e de suas fronteiras e identidades. Procurando uma alternativa terica (interpretativista e interacionista) que permitisse a compreenso do fenmeno tnico como experincia (performance) social, dinmica e pervasiva, inscrita no contexto das relaes intertnicas, desenvolvemos o conceito de etnizao denotando transitoriedade e relatividade das aes, identidades e atores, em um processo sociodramtico.
Finalmente, aplicando anlise da Nao Cigana nossa compreenso sobre o fenmeno tnico como processo performativo, deparamo-nos com a questo recente da formao das comunidades transnacionais, a modificao das relaes entre estas comunidades, e a emergncia de novas identidades e grupos no contexto da globalizao. Portanto, a organizao social cigana (organizao social das categorias tnicas, identidades, fronteiras e ideologias) vista a partir deste duplo processo social, de etnizao e transnacionalismo, caractersticos do mundo contemporneo. Palavras-chave : Ciganos; Romanesthn; Etnicidade (Etnizao); Transnacionalismo; Experincia Social; Identidade; Comunidade Transnacional.
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INTRODUO
Todos ns, alguma vez em nossas vidas, j nos deparamos com os ciganos. As
imagens de mulheres em seus vestidos coloridos nas esquinas de uma cidade
movimentada lendo a sorte dos transeuntes pelas linhas das mos, ou ento as
barracas de lona, empoeiradas pelas longas viagens, estacionadas ao longo de alguma
estrada no interior do pas, muitas vezes so vistas com certo receio, outras vezes
invejadas e idealizadas em nossos sonhos.
No imaginrio gadjo, isto , no-cigano, os ciganos so representados de
diversas maneiras, atravs de imagens paradoxais. A imagem do cigano pode
representar liberdade, alegria e tradio, ou, por outro lado, indolncia, marginalidade
e parasitismo.
Na realidade, as representaes sobre os ciganos fundem esses diversos
aspectos, tendo contribudo decisivamente para o destino de milhares de indivduos ao
longo de sculos de existncia. Porm, o que mais nos impressiona ao conhecermos os
ciganos encontrarmos uma tradio cultural to diversa e ao mesmo tempo to
unificada, como um mosaico multicultural.
O maior problema para se compreender o ser cigano desvendar o enigma
deste mosaico multicultural, pois, muitas vezes, o termo cigano pode no passar de
um rtulo, uma imagem construda pelo imaginrio gadjo. Descobre-se que aqueles a
quem chamamos ciganos so indivduos com biografias, valores e sentimentos muito
diferentes entre si, e que, no entanto, continuam a ser tratados como pessoas idnticas.
Quando iniciei meu trabalho em 1993, integrando um grupo de estudos,
pensava encontrar pessoas mais ou menos parecidas com a populao de Belo
Horizonte, pois, quando no conhecemos os ciganos, com freqncia os imaginamos
indivduos como outros quaisquer. A diferena para muitos de ns pode estar apenas
no comportamento indivduos marginais, preguiosos e sujos que vivem de
uma maneira extica por no aceitarem viver corretamente, segundo as regras de
nossa sociedade.
Com estes mesmos preconceitos em mente, ao conhecer os ciganos no
imaginava encontrar uma tradio cultural organizada, completamente diferente da
minha e localizada dentro da regio metropolitana de Belo Horizonte, como uma
aldeia indgena isolada no meio de uma selva de pedra.
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Quando se chega a uma comunidade cigana, muitas vezes no se encontra
qualquer sinal fsico delimitando fronteiras e territrios. Entretanto, sentimos uma
mudana no ambiente e nele percebemos um local onde o tempo parece fluir
lentamente, mais calmo e parcimonioso; o espao se apresenta mais denso e
concentrado e as cores adquirem tonalidades mais fortes e contrastantes. Sentimo-nos
submergir em outra cultura, em outra realidade social, no apenas num mundo extico
que apresenta aleatoriamente elementos estranhos, mas uma realidade onde o sentido
e o significado das coisas parecem provocar sensaes e experincias diferentes.
Com o passar do tempo, estas experincias de estranhamento tornam-se mais
intensas e podemos ento compreender que, de fato, estamos em um lugar onde outra
cultura domina o tempo e o espao ao nosso redor.
Esta a primeira atitude que devemos tomar em relao aos ciganos: adotar
uma perspectiva antropolgica que reconhea o cigano como Outro. Embora
atualmente vivam no meio urbano entre nossas casas, constituem uma tradio
cultural muito antiga e dispersa espacialmente.
Os ciganos, ao contrrio do que a maioria das pessoas (no-ciganas) imagina,
muitas vezes se mostram completamente diferentes dos esteretipos mais comuns
(como ladres de criancinhas, preguiosos, selvagens, ignorantes, etc.).1
A atribuio de comportamentos desviantes aos ciganos como tem sido
apontado por alguns pesquisadores sobre a cultura cigana 2 , na realidade, uma
estratgia que visa sua descaracterizao como indivduo portador de uma tradio
cultural, original e autntica.
Este fato, tambm abordado neste trabalho, a conseqncia de uma
compreenso equivocada da tradio cultural cigana que, como poderemos ver, gerou
e continua a gerar comportamentos e polticas discriminatrias em relao aos
ciganos, alm de tornar ainda mais confusa a origem e essncia que definem essa
tradio.
A compreenso da cultura cigana como um mosaico foi mais uma
conseqncia do meu trabalho do que um objetivo cuidadosamente calculado. Isto
porque, ao iniciar a pesquisa junto aos ciganos no tinha em mente encontrar uma
tradio cultural complexa e fragmentada, mas apenas uma cultura homognea e
isolada em meio urbano.
1 As anlises sobre estes e outros esteretipos sero aprofundadas no captulo 3. 2 Por exemplo, HANCOCK, 1987 e SIBLEY, 1981.
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No entanto, ao final de uma pesquisa visando obrigaes formais de uma
disciplina antropolgica, comecei a me perguntar, junto a outros colegas, como
aqueles ciganos poderiam resistir s foras assimilacionistas da sociedade envolvente.
Mais do que isto, eu me questionava sobre como esta tradio cultural conseguira se
manter por tantos sculos de sofrimento e perseguies, conservando um ncleo
cultural denso, onde lngua, vestimentas, organizao familiar e tantos outros valores
se mantinham vivos, perpetuando-se mas transformando-se ao longo das geraes.
Este questionamento inicial foi se modificando ao longo destes anos, no s
devido ao maior contato com os ciganos mas tambm s minhas prprias definies
tericas no campo da antropologia, que se modificaram de maneira intensa ao longo
do curso de graduao e do mestrado.
Ao iniciar a pesquisa com os ciganos acreditava poder encontrar na
Antropologia (e mesmo nas outras Cincias Sociais) a possibilidade de explicar
determinados fenmenos de ordem sociolgica, atravs de modelos formais mais ou
menos sofisticados e precisos. Este fato importante porque determinou, inicialmente,
minhas perspectivas tericas para tratar os ciganos e minha percepo (pessoal) sobre
eles.
Em primeiro lugar, o que realmente havia me interessado no estudo deste
grupo era a possibilidade de esclarecer problemas tericos da Antropologia, mais
especificamente, a Antropologia das Relaes Intertnicas.
Assim, os ciganos signficavam para mim apenas um objeto para se
pesquisar (ou, se se quiser, utilizando mais hermeticamente a expresso de unidades
empricas de anlise) como se trabalha nas tradies de pesquisas sociolgicas
convencionais e duras (funcionalismo, por exemplo).
Afinal, partindo da idia de que a Antropologia , ou pelo menos deve lutar
para ser, uma Cincia semelhante Fsica (Hardscience), ela deveria buscar aquilo
que invarivel, formal e destitudo de subjetividade: tratar o objeto antropolgico
como dado a priori.
Portanto, nada mais evidente para ns, cientistas, do que o fato de ciganos,
ndios, drogados e homossexuais serem concebidos em nossas pesquisas como
unidades empricas de anlise. Em outras palavras, seguindo os passos de uma
Antropologia mais dura e positiva, como a Antropologia Funcional-Estruturalista
ou a Ecologia Cultural, por exemplo, minha tendncia inicial foi conceber os ciganos
como um objeto de anlise dado a priori.
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Alimentado pelo desejo de desvendar o fenmeno tnico, suas causas, relaes
e lgica de contato, acreditei que os ciganos poderiam se constituir em interessante
objeto para minhas anlises tericas, apontando para problemas empricos pouco
compreendidos e, principalmente, conduzindo-me a solues tericas refinadas.
E foi assim que, durante muito tempo me perdi em meio aos conceitos e
teorias, aos quais valorizava excessivamente, perdendo de vista a compreenso e a
convivncia com os ciganos.
No entanto, entendia que a adoo dessas perspectivas tericas mais
convencionais, como o funcionalismo, determinariam minha viso e percepo sobre
o problema emprico, ou seja, sobre a vida dos ciganos propriamente ditos.
Ao longo do curso de ps-graduao passei a acreditar que a Antropologia no
deveria se preocupar com o fato de ser Cincia ou no, pois isto na realidade no to
importante. Muitas vezes esta questo se torna um problema de terminologia mais que
qualquer outra coisa. O que importa que ela produz um tipo de conhecimento rico e
interessante, que nos possibilita uma melhor compreenso de outras culturas e
pessoas, desenvolvendo o respeito mtuo, consolidando a legitimidade da convivncia
multicultural, cada vez mais comum em nosso planeta.3
Ao contrrio do que possa parecer, cheguei a estas transformaes devido
muito mais aos ciganos do que aos questionamentos tericos. Posso afirmar que, pela
pequena convivncia mas grande aprendizado com os ciganos, acabei me interessando
por perspectivas antropolgicas mais recentes, diferentes daquelas que me
condicionaram, no incio da pesquisa, a ter os ciganos apenas como unidades
empricas de anlise.
Passei a adotar perspectivas interpretativistas e interacionistas, buscando
compreender a cultura e o fenmeno tnico a partir da observao e anlise dos
smbolos e experincias vividas pelos atores sociais.
Creio que a leitura desta dissertao mostrar os diferentes matizes deste
conflito pessoal entre diversas perspectivas. Entretanto, a perspectiva dominante neste
trabalho tem a compreenso da cultura como sistema simblico autnomo, sua
principal caracterstica. Isto , a cultura aqui entendida no como um fato (ou coisa)
dado a priori, mas antes, como o produto das aes reflexivas dos atores que atravs
3 A este respeito conferir especialmente GEERTZ, 1995. Sem dvida, muitas das minhas questes tericas foram esclarecidas por Geertz e, embora seu nome no seja citado muitas vezes ao longo deste trabalho, minhas anlises receberam influncia decisiva de suas idias sobre o propsito do conhecimento antropolgico.
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de smbolos, representaes e experincias cotidianas constroem, criam e recriam a
todo o momento uma tradio e comunidade de valores.
Minha compreenso da tradio cultural cigana, e, com ela, a compreenso do
fenmeno tnico (tratado ao longo deste trabalho pelo termo etnicidade), parte da
aceitao de que a Antropologia lida fundamentalmente com sistemas simblicos e,
neste sentido, deve buscar compreender a cultura como texto (Clifford Geertz).4
Junto idia de texto, introduzi os conceitos de performance ou experincia,
um tanto borradas nos textos de Geertz,5 mas complementadas pelas anlises de
Victor Turner6 sobre as relaes sociais compreensivas e sociodramticas que
organizam cotidianamente as tradies culturais. Neste caso, as tradies culturais so
concebidas tambm como processos dinmicos e interativos, encenados ou
dramatizados socialmente, transformando a cultura em um fenmeno reflexivo e
performativo.
Pode-se constatar, ainda, outras presenas importantes neste trabalho, como o
j citado Victor Turner, Fredrik Barth, Erving Goffman, Ulf Hannerz, Pierre Bourdieu
e Marshall Sahlins.7 De fato, no me prendi a nenhuma destas influncias mas tentei
desenvolver minhas prprias anlises fundindo algumas idias aqui e ali. Estas fuses
e alteraes de perspectivas, s vezes bruscas, so conseqncias de uma busca
pessoal em relao aos ciganos. Em outras palavras, minha tentativa de compreender
a essncia do ser cigano fez com que alterasse muitas vezes minhas perspectivas
tericas. Isto porque parecia-me impossvel compreender esta tradio cultural sem
entend-la como um sistema simblico autnomo e, mais que isto, como uma tradio
pervasiva, ou seja, em constante transformao, onde as experincias conectam de
maneira densa o passado e o presente das pessoas em uma matriz de relaes
sociais.
Como poderemos ver ao longo deste trabalho, as anlises feitas sobre
etnicidade e nacionalismo acabam se adaptando s anlises sobre a tradio cultural
cigana. Deste modo, o que deveria ser apenas uma unidade emprica de anlise no
4 GEERTZ, 1973:15. Geertz afirma que a cultura como uma teia de significados, sendo a interpretao dos sistemas simblicos como textos culturais a maneira mais apropriada para compreendermos os smbolos e experincias de outras pessoas e tradies culturais. 5 Principalmente em seu Thick Description de 1973. J em Blurred Genres (GEERTZ, 1983) os questionamentos sobre a ao social, prticas e exp erincias so colocadas com maior detalhe, sem no entanto apresentar alteraes significativas em relao ao texto de 1973. 6 Cf. Especialmente, The Anthropology of Performance, in TURNER, 1987. 7 TURNER, 1969 e 1987; BARTH, 1976 e 1992, principalmente; GOFFMAN, 1986; HANNERZ, 1996; BOURDIEU, 1980b; SAHLINS, 1990 e 1997.
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incio deste projeto, constituiu-se no problema fundamental da pesquisa: como
explicar a unidade na diversidade? Ou, por que e como grupos e categorias
tnicas, por vezes to distintas, buscam um sentido de unidade entre si como
meio de sobrevivncia e resistncia cotidianas?
Devo dizer que meu contato com os ciganos se deu graas necessidade de
uma pesquisa coletiva para a disciplina de Antropologia III do curso de graduao de
Cincias Sociais.8 Iniciamos um trabalho junto a uma comunidade de ciganos Roma
(kalderash) na regio metropolitana de Belo Horizonte, que durou todo o primeiro
semestre de 1993.
Intrigado com a realidade vivida pelos ciganos, e acreditando na possibilidade
de desenvolver uma importante pesquisa sobre etnicidade a partir da anlise dessa
tradio cultural, resolvi continuar estudando este grupo ao final do curso.
Entretanto, devo dizer que minha pesquisa, cujo resultado final se encontra
nesta dissertao, alm das inmeras transformaes sofridas nestes ltimos anos,
tambm encontrou obstculos e criou outros tantos, condicionando perguntas e
respostas, dados e conceitos. As dificuldades foram muitas, de ordem terica ou
prtica, mas principalmente a dificuldade de estabelecer um trabalho de campo ideal.
De fato, uma pesquisa antropolgica adequada deve partir de um trabalho de
campo longo e intenso, que possibilite ao pesquisador compreender mais
intensamente uma realidade cultural distinta da sua.
No caso de minha pesquisa, este trabalho foi minimizado, limitando-se a
algumas incurses a campo tambm chamadas de visitas. bem verdade que
algumas se estenderam por perodos um pouco mais longos, mas foram contatos
ocasionais e intermitentes.
Assim, os momentos principais de contato se deram entre 25 de junho a 4 de
julho de 1994; 9 a 21 de setembro de 1994; 5 a 10 de abril de 1995; 1 a 16 de
dezembro de 1995; 10 a 15 de janeiro de 1996. Posteriormente, os encontros
ocorreram de forma aleatria, em momentos e locais diferentes.
Minha pesquisa foi ento condicionada a esta forma de trabalho de campo e,
por isto, para complementar a ausncia relativa de dados de campo, procurei me
apoiar em uma bibliografia mais abrangente sobre os ciganos. Mesmo sabendo que
isto no substitue o conhecimento emprico realizado atravs do trabalho de campo,
8 Esta disciplina foi ministrada pelo professor Pierre Sanchis. Sem definir exatamente o que fazer, fui convidado a participar de um grupo de pesquisa, por Artur Versiani Neto ento, meu colega de curso, a quem devo minha gratido pela introduo aos estudos ciganos.
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creio que a bibliografia deve ser valorizada como uma fonte vlida de dados
alternativos.
Devido a este aspecto bibliogrfico, ser possvel notar a ausncia de
concluses mais especficas em alguns momentos, principalmente em relao
anlise de alguns smbolos ciganos ou fenmenos culturais mais densos que
necessitam de uma melhor compreenso e vivncia da realidade cultural do Outro.
O maior problema terico encontrado nesta pesquisa, devido ao restrito
trabalho de campo, foi a anlise dos diversos nveis de etnicidade e suas relaes com
as representaes simblicas sobre os grupos e subcategorias anlise da
gramaticalidade e dos campos semnticos. Isto , saber quando se est falando de
ciganos ou quando se fala de Roma, Calon, kalderash, lovara etc. Em primeiro lugar,
os dados de campo se referem principalmente realidade kalderash, pois meu
trabalho com Calons foi apenas introdutrio. Em segundo lugar, a generalizao sobre
a tradio cultural cigana (e o que chamo aqui de mitoprtica da Nao Cigana)
dependeu em larga medida dos dados fornecidos por outros pesquisadores (vide
bibliografia) que partiam de dados e preocupaes tericas diferentes das minhas.
Creio que a parte mais difcil desta pesquisa foi coordenar esses diversos
dados com as perspectivas tericas. Tentei encontrar um meio termo que explicasse os
ciganos por eles mesmos, apontando para as diferenas internas dos grupos e,
principalmente, como esses grupos, apesar dessas diferenas, elaboram uma unidade,
muitas vezes apenas simblica, resistindo s foras externas do mundo gadjo.
Por encontrar uma diversidade to grande entre os ciganos e, ainda assim,
reconhecer a semelhana de itinerrios, experincias e valores, minha perspectiva
terica teve a todo momento que se adaptar s exigncias empricas.
Logo no primeiro captulo, em que me refiro s teorias sobre etnicidade e
identidade tnica, esta adaptao da teoria prtica pode ser facilmente percebida.
Depois de analisar diversas tendncias e perspectivas tericas, conclu que nenhuma
atende satisfatoriamente s condies da tradio cultural cigana. Isto , nenhuma
teoria sobre a etnicidade parece capaz de explicar por completo o processo de
organizao social das categorias e relaes tnicas dentro deste mosaico cultural
cigano.
Procurei ento uma alternativa terica, trabalhando sobre algumas idias e
conceitos diferentes que muitas vezes no tinham relao com o problema tnico em
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si. Assim, consegui formular um conceito um pouco diferente localizado pelos termos
etnizar ou etnizao.9
A caracterstica conceitual destes termos, como veremos no captulo 1, est na
compreenso do fenmeno tnico como processo simblico. Isto , as relaes sociais
ocorreriam em um campo simblico (no contexto das tradies culturais) e assim
criariam fluxos dinmicos de interao que conectam experincias, sentimentos,
valores e interpretaes diversas em uma rede (ou matriz) de relaes sociais de
carcter tnico.
A etnicidade, entendida como processo simblico, tem nas experincias
(performance) dos atores e suas interpretaes o seu ponto nodal. Em outras palavras,
dentro do contexto intertnico, as experincias dos atores e suas interpretaes
classificam os grupos (organizando-os em categorias tnicas distintas) e suas relaes
diferenciadas, estabelecendo uma nova lgica de contato.10
No segundo captulo, apresento algumas descries generalizadas sobre os
ciganos, coligindo os dados apresentados por uma bibliografia ampla, sua histria,
organizao social e smbolos culturais essenciais como o chamado romanes. Alm
disto, inicio a discusso sobre a importncia do Romanesthn, ou da mitoprtica da
Nao Cigana, como problema central a ser trabalhado nesta pesquisa.
Na realidade, a justificativa desta dissertao est nas anlises sobre o
Romanesthn (literalmente, Lar do Ser Cigano) pois, como veremos, este parece ser
um smbolo dominante para a compreenso da unidade cigana.11 Alm disto, sob a
perspectiva de uma poltica da etnicidade, a partir do que poderia ser tratado como
mitoprtica da Nao Cigana, poderemos compreender melhor os movimentos
nacionalistas ciganos e tambm outras disputas polticas no nvel local.
Ainda, ao final do captulo 2, apresento, de forma suscinta, a principal tese
desta dissertao: para compreenso da tradio cultural cigana como um
mosaico multicultural pretendo mostrar o fundamento das relaes intertnicas
9 Devo dizer que a contribuio e suporte do Professor Leonardo Fgoli foi essencial neste momento, pois a adaptao e mesmo inovao terica sobre a etnicidade atravs da formulao deste novo conceito de etnizao foi-me sugerida por ele. Tambm fao, aqui, uma referncia ao trabalho pioneiro de Roberto Cardoso de Oliveira (1976), que j expe uma preocupao em revitalizar o conceito de etnia. 10 Ver principalmente BARTH, 1992 e BOURDIEU, 1980b; tambm TURNER, 1987. 11 Ao longo do segundo captulo procuro mostrar como o Romanesthn e o romanes atuam como smbolos dominantes e multirreferenciais. Segundo Victor Turner, os smbolos dominantes so aqueles que condensam em si diversos significados, aes e sentimentos. So, principalmente, aqueles smbolos que expressam valores axiomticos presentes em todo o sistema social. Cf. TURNER, 1969: 22.
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entre os ciganos, atravs da articulao da percepo nativa sobre o espao social
e a organizao social do grupo sobre uma estrutura de parentesco flexvel e
dinmica.
No terceiro captulo, procuro mostrar mais detalhadamente a histria das
perseguies e discriminaes contra os ciganos. Porm, o ponto principal
desenvolvido neste captulo diz respeito s representaes coletivas sobre o cigano e
sua cultura. Parto de uma anlise do imaginrio gadjo em relao aos ciganos, na
tentativa de explicar a construo de esteretipos, a caracterizao de atitudes
preconceituosas, os comportamentos e polticas discriminatrias.
Apio-me em algumas idias de Pierre Bourdieu (1980a e b) para mostrar
como a mitoprtica da Nao Cigana funde elementos discursivos do imaginrio
cientfico e mitolgico dos gadj com as representaes prprias do imaginrio
cigano. Esta estranha fuso de representaes simblicas possibilitou a justificativa
para perseguies e extermnio de milhares de ciganos ao longo destes sculos
(especialmente o genocdio promovido durante a Segunda Grande Guerra, conhecido
pelos ciganos como Porraimos), alm de outros equvocos representacionais sobre
a tradio cultural cigana.
Neste sentido, discuto, ao final do captulo 3, um tpico sobre o nomadismo
cigano, no intuito de reforar a tese da etnicidade-parentesco-espao, introduzida no
segundo captulo. Ali, tento mostrar que o nomadismo se constitui em uma
representao simblica importante para a organizao social cigana ligada
diretamente essncia tnica cigana, integrando espao e parentesco de maneira
singular.
No quarto e ltimo captulo, discuto mais detalhadamente o processo de
construo simblica da comunidade cigana atravs da mitoprtica do Romanesthn.
Lano ali a idia da comunidade cigana como comunidade imaginada e
transnacional pois, como veremos, para compreenso da organizao social da vida
em comunidade, a tradio cultural cigana apresenta peculiaridades que seriam
melhor entendidas a partir de uma renovao conceitual.12 Discuto brevemente, no
incio do captulo, algumas teorias antropolgicas sobre o nacionalismo e a formao
das comunidades nacionais (tnicas) e transnacionais, situando em meio
problematizao terica o caso dos ciganos. Para isto, apresento um relato sobre a
histria dos movimentos nacionalistas ciganos e a atual poltica da etnicidade cigana
12 Neste ponto foram imprescindveis os trabalhos de Benedict Anderson (1991) e Ulf Hannerz (1996).
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16
integrada ao nacionalismo como a formao e o funcionamento das organizaes e
associaes internacionais pr-ciganas.
Alm disto, tento mostrar como as relaes comunitrias organizam o local e o
transnacional. Isto , como a singularidade da organizao social cigana determina as
relaes sociais em um nvel local e outro transnacional, condicionando tambm a
imaginao de uma comunidade transnacional (Romanesthn).
Finalmente, na concluso, aprofundo a tese de que os ciganos constituem
comunidades transnacionais apesar da grande fragmentao interna entre diversas
categorias tnicas e nveis de interao matrizes locais e transnacionais. Defendo a
idia de que os ciganos embora exista uma grande diversidade e uma constante
fuso de vrias representaes do imaginrio gadjo e cigano possuem um valor, ou
melhor, um smbolo dominante comum, o romanes. Este smbolo parece ser capaz de
integrar parentesco e espacialidade com o objetivo de unificar tradies diversas e
permitir a resistncia cultural durante sculos de conflitos e disporas.
Desta forma, procuro mostrar que a relao do parentesco cigano com a
percepo nativa e experincia do espao social corresponde a uma espcie de
amlgama tnico , ou seja, um smbolo de ciganidade o chamado romanes ,
responsvel pela construo da comunidade transnacional cigana, ou o
Romanesthn propriamente dito. Este smbolo , que pode ser entendido aqui como a
condensao da essncia do ser cigano (a ciganidade), onipresente e fundamental
para a sobrevivncia de qualquer comunidade cigana. Ao integrar parentesco e espao
segundo as foras (regras, valores e sentimentos) simblicas contidas no romanes, a
tradio cultural cigana inaugura a possibilidade de existncia de uma comunidade
transnacional.
Minha experincia pessoal com os ciganos parece ter funcionado como um
aprendizado que, vagarosamente, foi provocando mudanas em minha maneira de
pensar e de sentir as relaes humanas.
Sem qualquer demagogia, gostaria de dizer que aprendi a gostar realmente
deste povo to rico de sentimentos e experincias mas tambm sofrido e discriminado.
Aprendi a gostar dos ciganos, a sentir orgulho e tentar viver a realidade to
intensamente quanto eles; a valorizar as coisas simples da vida e, principalmente, a
convivncia humana e a solidariedade, que parecem estar presentes em todas as
comunidades ciganas, independente de sua raiz tnica.
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Agradeo aos ciganos por muitas lies como estas, alm do fato de que
minha prpria compreenso sobre a Antropologia e as Cincias Sociais tem se
modificado radicalmente graas ao meu aprendizado e convivncia com esta tradio
cultural.
Espero que estas mudanas internas e experincias pessoais tenham sido
transmitidas pelas linhas deste trabalho. E que, deste modo, outras pessoas possam
compartilhar comigo e com os ciganos estas descobertas e transformaes.
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18
CAPTULO 1.
TEORIAS SOBRE ETNICIDADE E IDENTIDADE
O mundo cotemporneo se defronta com a emergncia de variados grupos
sociais, minoritrios e distintos, que colocam um problema para ser resolvido ou, pelo
menos, para ser compreendido: a presena da diversidade ou pluralidade cultural. O
Outro nos mostra cotidianamente e com uma proximidade perturbadora que
as coisas podem ser diferentes do que concebemos como certezas.
Desde homossexuais, camponeses, pentecostais ou viciados em fliperama, at
as expresses mais contundentes de uma tradio cultural peculiar, como uma minoria
indiana em West End, famlias de imigrantes latinos nas bordas de Miami, ou mesmo
ciganos modernos na periferia de Belo Horizonte todos vem mostrar limites que
nos criam um certo mal estar.
Nestes ltimos 40 anos tem se tornado cada vez mais evidente a preocupao
das cincias sociais com temas como multiculturalismo, relaes intertnicas, etno-
nacionalismos, racismo etc, pois, enquanto se podia contemplar a diferena para alm-
mar como nas polticas imperialistas dos estados europeus 13 a proteo contra o
contato parecia estar garantida. No entanto, hoje o problema se resume a estarmos
prximos demais e no termos como evit-lo, tendo em vista as transformaes
culturais ocorridas no mundo contemporneo.
No obstante, a convivncia dificilmente pacfica pois, com freqncia,
surgem tentativas as mais variadas com o objetivo de conter o avano dessas novas
formas de organizao social. Ainda que tenhamos conscincia dos direitos dos
outros dificilmente conseguimos imagin-los a no ser como aberraes sociais
(e/ou culturais) que, de alguma maneira, merecem um tratamento diferenciado.
Isto freqentemente se evidencia ao analisarmos as polticas pblicas dos
Estados e suas instituies. Excluso, segregao, racismo, xenofobia, preconceito,
discriminao? Todos estes elementos so reaes que podem ser percebidas em
relao emergncia dos novos grupos tnicos, minorias nacionais e raciais.
13 Para uma anlise da relao entre o programa das cincias sociais sobre relaes intertnicas e raciais e a poltica imperialista europia e norte-americana do incio deste sculo cf. COHEN, 1978; HUGUES , 1973.
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19
Este captulo procura apresentar as diversas perspectivas tericas sobre
relaes tnicas e raciais e suas conseqncias nestes ltimos 40 anos nas cincias
sociais. Pretendo, assim, resenhar os principais pontos ou temas discutidos ao longo
destes anos, analisar o desenvolvimento de conceitos centrais como etnicidade, raa,
grupos tnicos, nacionalismo, etc e apresentar, brevemente, uma anlise das novas
tendncias nos diversos campos das cincias sociais, procurando explicitar minha
compreenso sobre o tema.
1.1 O Fenmeno tnico
O termo etnia e seus derivados parece terem sido usados com freqncia como
resposta politicamente correta s transformaes dos Estados Coloniais europeus e
s correntes migratrias de populaes do terceiro mundo para a Europa e os Estados
Unidos, em fins da dcada de 1940.14
A questo era como tratar de forma democrtica negros, judeus, italianos,
chineses, argelinos e tantos outros que se espremiam cada vez mais no espao
pequeno e tenso das grandes metrpoles europias e americanas. A idia de raa, e a
concepo biolgica carregada de etnocentrismo por este termo,15 criava grande
constrangimento entre os cientistas sociais, e por isso mesmo deveria ser substituda
por uma perspectiva mais pluralista e sociolgica.
A definio de etnia e, conseqentemente, de etnicidade16 remete a um
processo de interao social entre grupos culturalmente distintos (segundo a
perspectiva prpria dos atores) onde, em geral, as relaes ocorrem de maneira
desigual. Deste modo, a etnia no o mesmo que cultura, pois ela existe apenas na
situao de contato intercultural, ou seja, existe apenas como processo de interao
que tem como princpio elementar a oposio entre grupos organizacionalmente
14 COHEN, 1978; GLAZER e MOYNIHAM, 1975; BANKS , 1996. 15 Importante mencionar a grande contribuio de Franz Boas no terreno da antropologia. E ainda, para mais detalhes sobre o tema do racismo e a etnicidade, ver BANTON, 1997. 16 Parece-me que a diferena entre etnia e etnicidade se resume apenas noo mais especfica de transitoriedade ou de dinmica do segundo termo. Assim sendo, utilizarei com mais freqencia o termo etnicidade que denota, portanto, uma perspectiva interacionista e relacional (cf. BARTH, 1992).
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diferentes.17 Por exemplo, Roberto Cardoso de Oliveira decompe a etnia em duas
dimenses: identidade e estrutura social. Identidade, de carter minoritrio, isto ,
cujos portadores pertenceriam a grupos minoritrios atuais ou histricos, [] oposta
a uma identidade majoritria que estaria associada a grupos dominantes geralmente
instalados nos aparelhos de Estado [].18 J no nvel da estrutura social estes grupos
diversos minoritrios ou no comporiam um sistema social de dominao
caracterizado pelo conflito intertnico ou frico intertnica.19
Por outro lado, a etnia entendida como produtora de relaes assimtricas
entre dois ou mais grupos culturais, em um sistema social caracterizado pela
dominao, pressupe a existncia de ideologias de carter etnocntrico capazes de
representar as aes dos grupos em questo. Desta forma, Cardoso de Oliveira
entende a identidade tnica como uma representao coletiva de um determinado
grupo inserido numa situao de contato.20 Portanto, identidades e categorias tnicas
so representaes coletivas produzidas em contextos sociais de contato intercultural.
Analiticamente, seguindo os passos de Cardoso de Oliveira podemos
visualizar, entre as vrias alternativas tericas sobre a etnicidade, uma nfase
diferenciada, ora sobre os aspectos representacionais como as identidades, fronteiras
ou ideologias tnicas,21 ora sobre aspectos mais instrumentais ou prticos como a
organizao dos grupos tnicos propriamente ditos ou a organizao poltica dos
mercados de trabalho e movimentos tnicos, por exemplo.22
Porm, embora encontremos com freqncia a nfase em uma dimenso ou
noutra, ou seja, na dimenso simblica ou prtica para definir o fenmeno tnico,
melhor optarmos por compreender a etnicidade como um processo performativo,
onde discursos e prticas sociais se encontram integrados, definindo o sentido
(simblico) das fronteiras, identidades e aes individuais e coletivas.23
Fredrik Barth, em sua Introduo coletnea Ethnic Groups and Boundaries
(1969), parece ser o primeiro cientista social a afirmar o carter organizacional dos
grupos tnicos, tendo como ponto de partida uma aproximao interacionista.
17 BARTH, 1976. 18 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978: 248. (Grifo meu). 19 s relaes assimtricas e de dominao desenvolvidas na situao de contato, ou conflito intertnico propriamente dito, Cardoso de Oliveira (1976) d o nome de frico intertnica. 20 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976: 5-6; 1978: 249. 21 GEERTZ, 1973; ISAACS, 1975; PARSONS, 1975; ARONSON, 1976; CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976; CAIUBY NOVAES , 1993. 22 COHEN, 1974; MITCHELL, 1974; DESPRES , 1975; BARTH, 1976; HECHTER, 1986; WALLMAN, 1986. 23 BOURDIEU, 1980b: 64.
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At ento, antroplogos e outros cientistas sociais tratavam como tribos o
que viria a ser classificado como grupos tnicos. Elas eram caracterizadas como
unidades culturais fixas e isoladas , sendo entendidas como dados priori. Barth,
avanando na anlise sobre etnicidade, criticou as perspectivas que viam nessas
tribos simples unidades portadoras de cultura. Assim, procurou sintetizar os
principais aspectos que definiriam um grupo tnico e suas fronteiras: 1- so grupos
que se auto-perpetuam biologicamente; 2- compartilham valores culturais bsicos que
se manifestam em formas culturais definidas como o parentesco, lngua, religio, etc.;
3- formam um grupo que se integra em uma rede de comunicao e interao; e 4- os
membros do grupo se identificam e so identificados por outros como pertencentes
a uma categoria especfica de interao.24
Portanto, a superao do modelo que reduzia os grupos tnicos a unidades
portadoras de cultura ou tribos como isolados culturais encontrar-se-ia no
aspecto instrumental da etnicidade, implicando a transitoriedade e manipulao
constante dos limites ou fronteiras tribais (tnicas neste caso) e dos traos culturais
que so negociados pelos indivduos e grupos em interao.
O aspecto fundamental para a formao e definio do grupo tnico no
mais a tribo ou isolado cultural aquele salientado no quarto ponto, ou seja, a
adscrio categorial que implica a auto-identificao dos grupos e a identificao
feita pelos outros como pertencentes a uma categoria especfica de interao. Assim,
se nos concentrarmos no que socialmente efetivo, os grupos tnicos so considerados como uma forma de organizao social. Uma adscrio25 categorial uma adscrio tnica quando classifica uma pessoa de acordo com sua identidade bsica mais geral, supostamente determinada por sua origem e sua formao. No momento em que os atores se utilizam das identidades tnicas para categorizarem-se a si mesmos e aos outros com fins de interao, ento formam grupos tnicos neste sentido de organizao.26
Barth considera assim o processo de formao dos grupos tnicos como
tipos de organizao como o ponto-chave para a compreenso da etnicidade e,
conseqentemente, da identidade tnica. Esta deve ser entendida como uma categoria
de adscrio que possibilita ao indivduo sentir-se membro de um grupo ou classe de
24 BARTH, 1976: 11. 25 Muita ateno para este termo (traduzido do original em ingls adscriptive) que significa identificao ou atribuio no sentido de estar inscrito, inerente, em um grupo ou uma classe. 26BARTH, 1976: 15.
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22
pessoas e que contribui para o fortalecimento de uma solidariedade interna do prprio
grupo.
Alm disto, a identidade tnica entendida como categoria de adscrio visa
tambm a classificao de indivduos e grupos em um rtulo ou esteretipo
determinado por outros. Neste sentido, a identidade tnica o resultado de um
processo dicotmico desenvolvido na situao de contato intercultural, apresentando
primeiro um aspecto subjetivo, ou de auto-identificao e construo interna da
solidariedade do grupo e, depois, um aspecto objetivo expresso na adscrio
categorial feita pelos outros, ou seja, a rotulao ou o processo bsico de classificao
definido nos esteretipos.27
Ao compreendermos os grupos tnicos como formas sociais de
organizao adaptadas a uma dada situao de contato, passamos a perceber a
pervasividade caracterstica da etnicidade.
Como observou Barth, as fronteiras tnicas e os traos culturais so dinmicos
e no se fixam em uma identidade tnica imutvel. Isto no quer dizer, entretanto, que
a etnicidade do grupo no permanea, pois ela se concentra em seu sentido
organizacional e no em seu contedo cultural, como eram caracterizadas as tribos
at ento. Barth conclui assim que,
como pertencer a uma categoria tnica implica ser certo tipo de pessoa, com determinada identidade bsica, isto tambm implica o direito de julgar e ser julgado de acordo com normas pertinentes para tal identidade. Mas nenhuma destas classes de contedos culturais se infere a partir de uma lista descritiva dos traos ou diferenas culturais (). Em outras palavras, as categorias tnicas oferecem recipientes organizacionais [organizational vessels] capazes de receber diversas propores e formas de contedo dos sistemas socioculturais.28
Portanto, existe a possibilidade de grupos culturalmente distintos assumirem
uma identidade tnica exclusiva a despeito da ausncia de traos ou valores morais
(diacrticos) comuns aos grupos.29 Como afirmou Barth, o que importa o sentido
peculiar de organizao das experincias cotidianas dos grupos, ou noutras palavras, o
27 BARTH, 1976; EIDHEIN, 1976; JENKINS , 1986: CAIUBY NOVAES , 1993. 28 BARTH, 1976: 16. 29 Para exemplos deste tipo de situao de contato intertnico ver BARTH, 1976, sobre a organizao poltica dos Pathans, e MOERMAN, 1965, sobre a construo da identidade dos Lue. Ver trabalho de FIGOLI, 1983 e 1984, um estudo sobre os ndios do Alto Rio Negro, de onde tirei algumas idias para o caso dos ciganos. Ver tambm FAZITO, 1998 onde discuto fato semelhante entre ciganos Roma e Calon em Belo Horizonte.
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23
mecanismo de manipulao dos traos e fronteiras tnicas presentes na situao de
contato.
Desta forma, ao contrrio das crticas de Ronald Cohen ao modelo
desenvolvido por Barth, a etnicidade pode ser entendida como recurso social e
poltico em uma relao entre grupos culturalmente distintos. Para Cohen, a falha no
modelo de Barth estaria numa suposta reificao das fronteiras e identidades tnicas
em formas especficas de organizao. Isto , a preocupao de Barth em salientar a
caracterstica de permanncia ou resistncia dos grupos tnicos ao longo do tempo e
do espao apontaria para uma reificao do contedo cultural de tais grupos, em
formas organizacionais supostamente imutveis.30 Porm, Barth, ao deslocar o foco de
anlise para a organizao social das experincias (culturais), nos permite
compreender a etnicidade e os grupos tnicos como formas dinmicas de interao.31
O que se apresenta peculiar ao fenmeno tnico o fato dos grupos
manterem uma identidade flexvel e resistente, conferindo ao mesmo tempo
estabilidade e a possibilidade da mudana. Deste modo, as fronteiras e
identidades tnicas, antes de serem estticas ou reificadoras de um processo de
interao, so manipuladas cotidianamente pelos indivduos e grupos de acordo
com o tipo de organizao de suas experincias.
1.2 Novos Mapas, Novas Rotas: etnicidade, ideologia e interesse
Embora Barth concentre sua anlise no processo de formao dos grupos
tnicos, seu trabalho abre novas possibilidades no campo da etnicidade. Outros
autores desenvolveram suas pesquisas concentrando esforos sobre outros aspectos
das relaes intertnicas como a identidade, a ideologia e as fronteiras tnicas. De um
modo j presente nos trabalhos anteriores de Barth, a etnicidade passa a ser entendida
como recurso social manipulado ou negociado nas interaes de grupos culturalmente
distintos.
Nas anlises sobre a etnicidade como recurso (poltico, principalmente),
alguns autores tendem a se concentrar nos aspectos representacionais, buscando uma
compreenso das identidades e ideologias tnicas desenvolvidas na situao de
30 COHEN, 1978. 31 Cf. BARTH, 1992.
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24
contato.32 A etnicidade, neste caso, percebida como manifestao de representaes
coletivas produzidas socialmente em uma situao de contato, apresentando
ideologias de carcter tnico, identidades e fronteiras.
Para Cardoso de Oliveira, por exemplo, a identidade tnica o resultado de
uma adscrio categorial (coletiva) que coloca em evidncia diferenas culturais. A
identidade tnica uma categoria social produzida em situaes sociais onde impera
essencialmente o conflito entre sociedades em competio.
Portanto, a identidade contrastiva pois opera negando a existncia do
Outro. Como afirma Cardoso de Oliveira:
a identidade contrastiva parece se constituir na essncia da identidade tnica, isto , a base da qual esta se define. Implica a afirmao do ns diante dos outros. Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciao em relao a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. uma identidade que surge por oposio. Ela no se afirma isoladamente. No caso da identidade tnica ela se afirma negando a outra identidade, etnocentricamente por ela visualizada.33
Segundo esse autor, esta identidade opera no contexto dos sistemas
intertnicos que se constituem em totalidades sincrticas, isto , situaes de contato
entre duas populaes dialeticamente unificadas atravs de interesses diametralmente
opostos, ainda que interdependentes ().34 Esta situao sui generis, chamada de
frico intertnica por Cardoso de Oliveira, caracteriza-se por seus aspectos
competitivos e, no mais das vezes, conflituosos, assumindo este contato muitas vezes
propores totais ().35
A competio advinda das relaes assimtricas entre os grupos refora o
etnocentrismo entendido como uma ideologia tnica. Assim, da situao de contato
emergem representaes que fundamentam as relaes sociais no interior, e apenas no
interior desta situao.36 Neste sentido, ideologias, identidades e fronteiras tnicas
poderiam ser concebidas como recursos em uma situao especfica de contato
32 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976; ARONSON, 1976. 33 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976: 5-6. 34 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972: 117. 35 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972: 118. 36 Mais adiante apresentarei uma alternativa conceitual, pretendendo compreender o fenmeno tnico como performance (experincia social), produto e produtora de smbolos. Assim, poderemos entender que a situao de contato tambm um estado em processo, ou seja, poderamos dizer que a situao de contato foi ou est etnizada. As ideologias, identidades e fronteiras tambm so dinmicas e pervasivas, e assim tenderamos a v-las como aspectos etnizados ou etnizveis que podem configurar a interao em um dado momento.
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25
assimtrico (por exemplo, o tribalismo na frica). E a etnicidade, a partir da, seria
tratada como um sistema de representaes que emerge atravs do contato e interao
entre grupos diferentes.
Dan Aronson afirma que a etnicidade um tipo especfico de ideologia que se
baseia nas diferenas culturais. Assim, o sistema de smbolos tnicos ou a
etnicidade propriamente dita cria conscincia coletiva, produz afirmaes sobre a
condio e perspectiva da sociedade (vista como certos tipos de ns e eles), tornando
possvel o compromisso e as aes construtivas. A etnicidade deve ser ento um tipo
particular de ideologia.37
Mais do que isto, dada a prpria situao do contato (assimetria cultural), este
sistema de smbolos tnicos seria o produto do dissenso, ou seja, do conflito de
vises de mundo, das diferenas de origem, laos e interesses.
Para Aronson, a etnicidade constantemente instilada nestas situaes
concretas de contato, tanto no plano discursivo, onde os valores morais dos grupos so
diferentes e s vezes antagnicos, como no plano comportamental, onde podemos
identificar uma espcie de desengajamento dos indivduos e grupos presentes na
arena poltica. Isto , quando tais grupos ou indivduos no compartilham valores,
experincias e sentimentos com outros grupos em interao, podemos nos deparar
com processos de excluso social e, neste momento, observamos o que Aronson
chama de desengajamento poltico. Portanto,
uma ideologia tnica afirma que ns no concordamos com os valores essenciais (ou objetivos e fins) do sistema, e que ns queremos, conseqentemente, ficar ss (talvez com recursos suficientes) para podermos perseguir nossos prprios objetivos ().38
Alm disto, podemos dizer que Aronson utiliza aqui a noo de ideologia
como sistema cultural seguindo a definio de Clifford Geertz.39 Conseqentemente,
a etnicidade deve ser entendida tambm como sistema cultural, ou seja, um sistema de
smbolos tnicos responsvel pela produo de esquemas mentais, mapas, metforas e
sentimentos dos indivduos e grupos estabelecidos numa situao de contato cultural.
37 ARONSON, 1976: 13. 38 ARONSON, 1976: 15. 39 Para Geertz, a ideologia deve ser entendida como um sistema cultural que se configura em um modelo simblico ativo, isto , um modelo de esquemas, mapas, imagens e metforas que conferem
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26
A identidade tnica vista como representao coletiva, responsvel pela
atualizao cotidiana das ideologias e tradies dos grupos tnicos, apresentaria como
principal funo mas no apenas esta a fixao de atributos (diacrticos),
concretos ou simblicos, aos indivduos e grupos. O que importa que estes atributos
esto arranjados coerentemente dentro de um sistema de representaes conferindo
um significado social s aes sociais.
A identidade, neste caso, funciona como recurso social que fundamenta a
solidariedade do grupo a partir do momento em que atributos e valores sociais passam
a ser reconhecidos e assimilados coletivamente.
Para alguns autores,40 a fixao de atributos e valores pela identidade tnica s
pode ser compreendida se analisarmos a interao entre os grupos atravs da relao
estabelecida entre discursos e prticas sociais.
Assim, Caiuby, por exemplo, sugere que () a identidade s pode ser
evocada no plano do discurso e surge como recurso para a criao de um ns coletivo.
Este ns se refere a uma identidade (igualdade) que efetivamente nunca se verifica,
mas que um recurso indispensvel ao nosso sistema de representaes.41
Deste modo, a identidade tnica pode atuar como um recurso utilizado pelos
grupos tnicos na situao de contato, com o objetivo de articular e legitimar, em um
plano discursivo, valores, interesses e sentimentos comuns. A comunidade tnica
parece surgir a partir desta primeira tentativa de estabelecer uma categoria expressiva
e exclusiva de distino a identidade tnica.
A solidariedade fabricada pela comunidade tnica se apresenta como
qualquer tipo de solidariedade social onde o elemento essencial o consenso coletivo.
Mas, alm da construo da ordem coletiva, esta solidariedade tambm se encontra
particularizada no interior de um processo intenso de negao. Esse tipo de
solidariedade emerge de uma situao adversa e no apenas da harmonia da ordem
moral, no sentido durkheimiano onde a diferena e, como mostrou Aronson, o
dissenso cumprem um papel fundamental. A identidade tnica (identidade
contrastiva), e sua ideologia so o produto de uma solidariedade fabricada tambm
por experincias marcadas pelo contraste, pela excluso, pela diferena e pelo
conflito.
significados s aes humanas. A ideologia serve, portanto, como um guia cultural de respostas s dvidas apresentadas pela natureza humana. Cf.: GEERTZ, 1973: 215-220. 40 BOURDIEU, 1980a; CAIUBY NOVAES , 1993; CUNHA, 1978. 41 CAIUBY NOVAES , 1993: 24.
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27
Podemos ento concluir, primeiro, que a etnicidade incorporada tanto nos
discursos quanto nas prticas ou experincias cotidianas de indivduos e grupos;
segundo, que as identidades, ideologias e fronteiras podem ser consideradas como
produtoras (ou pelo menos facilitadoras) de um tipo de solidariedade social onde o
consenso interno e, principalmente, o dissenso externo caracterizam a organizao
social do grupo ou do que podemos chamar de comunidade tnica.
Manuela Carneiro da Cunha, em interessante trabalho, salienta o aspecto
organizacional da comunidade tnica sem no entanto abrir mo da dimenso
discursiva como ponto de partida para a compreenso da formao dos grupos
tnicos.42
Assim como Max Weber, Cunha procura mostrar o sentido organizacional
desses grupos definidos como comunidades polticas. Porm, enquanto em Weber43 as
comunidades tnicas eram formas de organizao responsveis pela distribuio de
poder entre grupos e indivduos, para Cunha, mais que isto, o estabelecimento das
comunidades tnicas implica a conquista e produo de espaos sociais estratgicos.
Cunha parece focalizar os aspectos substantivos incorporados pela etnicidade
apresentando a linguagem como o fator essencial de expresso e organizao tnica.
Os grupos se utilizariam da linguagem como um recurso manipulvel, de maneira
estratgica, com o objetivo de demarcar, etnicamente, os espaos sociais em disputa.
O carter manipulativo, estratgico e instrumental da etnicidade fica
evidenciado no processo que transforma a linguagem, meio bsico de comunicao,
em um veculo social de organizao poltica dos grupos em torno do poder e outros
recursos sociais. Assim, a linguagem passa a ser entendida como retrica, produtora
de percepes e sentimentos, identidades e fronteiras, significados e metforas.
A noo de retrica, aqui, nos permite entender porque a etnicidade to
pervasiva, to flexvel e ao mesmo tempo to resistente. A retrica, como o
significado de um signo, s pode ser compreendida em um dado contexto, sendo que
esta retrica tnica capaz de fabricar novas expresses e significados, reinventando
at mesmo os valores culturais pertencentes tradio, aparentemente fixos e
arraigados.
42 CUNHA, 1978. 43 Para Weber, as comunidades tnicas fundamentam uma ao comunitria especfica, isto , poltica. Ao contrrio das classes que organizam a distribuio (econmica) do poder nas situaes de mercado, as comunidades tnicas se assemelham bastante aos estamentos, onde o poder distribudo de acordo com os laos primordiais da origem social e da honra estamental. (Cf.: WEBER,1982: 221-2).
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28
O drama social que experimentam as culturas em contato possibilita a
constante reinveno de suas tradies, com o objetivo de se adaptarem
organizacionalmente e captarem recursos da melhor maneira possvel. Por isto, apenas
a existncia de uma origem comum, a despeito da fora afetiva do lao de sangue, no
garante uma mesma identificao tnica.
Como afirma Manuela Carneiro da Cunha, o significado de um signo no
intrnseco, mas funo do discurso em que se encontra inserido e de sua estrutura. A
construo da identidade tnica extrai, assim, da chamada tradio elementos culturais
que, sob a aparncia de serem idnticos a si mesmos, ocultam o fato essencial de que,
fora do todo em que foram criados, seu sentido se alterou.44
Mas a alterao do significado o resultado da manipulao atravs de
discursos e prticas expressos por uma retrica particular, ou seja, a prpria
etnicidade. Em um outro sentido, Cunha v esta forma de retrica como a objetivao
das relaes de produo em um contexto cultural definido. Assim, a etnicidade,
alm de ser uma forma particular de retrica, pode ser vista tambm como um
tipo organizacional das relaes de produo.45
Abner Cohen parte do princpio de que a etnicidade essencialmente uma
forma de interao entre grupos culturais operando em um mesmo contexto.46 Desta
forma, o carter tnico presente no sistema social s pode existir desde que haja um
conjunto de smbolos, normas, valores e interesses diferenciados culturalmente.
Segundo Cohen, a etnicidade depende da capacidade que o sistema simblico de um
grupo tem para se impor, objetivamente, sobre outro. Assim, os smbolos (tnicos,
neste caso) do territrio, parentesco, religio, linguagem etc. so responsveis pela
criao de uma objetividade que se impe sobre a experincia cotidiana dos grupos e
indivduos. Esta objetividade gerada pelos smbolos responsvel pela etnicidade que
deve ser assimilada reflexivamente pelos indivduos em suas prticas cotidianas. Por
isto, segundo Cohen, experincias de grupos e indivduos ao longo da situao de
contato so, com freqncia, tensas e conflituosas, pois a oposio de um sistema de
smbolos em relao a outro pode gerar desequilbrio e desigualdade. Em
Interessante notar ainda, como ser analisado mais adiante, a influncia desta noo weberiana da etnicidade e nacionalismo sobre o pensamento de Clifford Geertz. 44 CUNHA, 1978: 2. 45 Diferentemente da sociedade capitalista ocidental, onde as relaes desiguais de produo se expressam e engendram, segundo Marx, as classes sociais, para Manuela Carneiro da Cunha, nas culturas do contato, estas relaes de produo seriam expressas pela etnicidade. 46 COHEN, 1974: xi.
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conseqncia, a situao de contato intertnico pode fundamentar a competio pelo
poder de deciso e de distribuio dos recursos sociais.
Como vimos, para Cohen a etnicidade definida numa situao onde se
confrontam diferentes sistemas simblicos (representacionais) que agem
objetivamente sobre as experincias individuais (subjetivas). Assim,
um grupo tnico no simplesmente a soma total de seus membros individuais, e sua cultura no a soma total das estratgias adotadas por indivduos isolados. Normas, crenas e valores so efetivos e tm seu prprio poder de constrangimento simplesmente pelo fato de serem representaes coletivas de um grupo e estarem moldados sobre este grupo.47
Embora Cohen ressalte a importncia das prticas individuais, da manipulao
das regras, smbolos e valores, esta capacidade instrumental dos indivduos para
escolher estratgias de acordo com seu interesse , de fato, moldada pelo sistema de
representaes coletivas. As estratgias so manipuladas de acordo com os interesses
dos grupos representados coletivamente e tais interesses so, assim, expressos
atravs de um sistema simblico organizado.
O fenmeno do tribalismo surge em um momento em que a imigrao de
grandes grupos e a desordem dos centros urbanos toma lugar no cenrio da maioria
dos Novos Estados Africanos. As cidades africanas recebiam grande contingente
populacional devido aos conflitos de independncia e s dissenses polticas entre
vrios grupos tribais. Verificava-se ainda a modificao das regras no mercado de
trabalho, provocando o deslocamento de grandes grupos de populao para as cidades
em busca de trabalho.
Deste fenmeno emergiram situaes de contato em que grupos variados
passaram a interagir de maneira competitiva e conflituosa na disputa por recursos
locais. A etnicidade passa a ter um lado importante na vida das pessoas, pois
contribua para a organizao dos grupos e para a distribuio dos recursos sociais.
Segundo Cohen (e outros antroplogos britnicos),48 a etnicidade parece
emergir dessa situao de contato no meio urbano, onde os grupos tnicos podem se
organizar em linhas informais de ao, a partir de interesses coletivos especficos ,
47 COHEN, 1974: xiii. 48 Ver coletnea organizada por Abner Cohen (Urban Ethnicity, 1974), que expressa a mudana das perspectivas antropolgicas adotadas pela antropologia social britnica em relao ao fenmeno tnico e tribalismo.
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e assim funcionam como mecanismo de proteo e organizao que possibilita a
competio por recursos e poder.
Para Cohen, devido dificuldade para se organizarem em linhas formais de
ao poltica (Estado, sociedade civil ou mercado), os grupos tnicos acabam por se
tornar grupos polticos informais de interesse esta seria a caracterstica essencial de
um grupo tnico.49 Estes grupos articularo sua organizao em linhas informais,
fazendo uso do parentesco, redes de amizade, rituais, cerimnias, e outras atividades
simblicas que esto implcitas no que conhecido como estilo de vida.50
Cohen aponta para um aspecto importante sobre a etnicidade e o
desenvolvimento do nacionalismo contemporneo. Ao mesmo tempo em que os
grupos tnicos desempenham um papel fundamental na proteo de interesses
coletivos e na consecuo de objetivos para o grupo, constituem-se tambm em
grupos informais de ao, permitindo a integrao de indivduos em situaes de
contato instveis, em contextos sociais flexveis e processos de integrao
pervasivos.
Os grupos tnicos permitem a emergncia de uma organizao em que
aparentemente apenas o Estado ou o mercado conseguem se manter como veculos
institudos para ao.
Talvez assim possamos compreender o porqu da emergncia de movimentos
nacionalistas e tnicos no mundo contemporneo, em situaes aparentemente
desprovidas de ordem social, ou onde impera o conflito. Antes do conflito ser o
produto da interao entre minorias nacionais e tnicas, pode ser a causa do
alinhamento de indivduos e grupos em formas flexveis de organizao da
experincia cotidiana (a etnicidade).
No entanto, um outro aspecto intrnseco formao do grupo tnico, a
solidariedade, pouco discutida por Cohen, recebe em Ralph Grillo um enfoque mais
destacado. Isto porque, para este autor, a etnicidade se constitui em uma forma de
49 Isto , organizacionalmente, um grupo tnico agrega indivduos que possuem um interesse comum e no apenas normas ou valores culturais. A diferena que, segundo Cohen, estes interesses so expressos objetivamente por um sistema de smbolos que d forma e motivo formao do grupo. Estes grupos, no entanto, no tm competncia nem conscincia prtica para agirem politicamente segundo as formas institudas pelo Estado ou pelo mercado e isto discutvel, como veremos mais frente. Por isto, ainda segundo este autor, os grupos tnicos se alinhariam informalmente, com grande freqncia, em torno de interesses simbolizados em traos diacrticos concretos e evidentes, como o parentesco ou a lngua. 50 COHEN, 1974: xvii.
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ideologia produtora de solidariedade desenvolvida em determinadas situaes
sociais.51
Assim, a etnicidade se apresentaria, no princpio, como ideologia ou sistema
simblico classificador e ordenador da realidade. Depois, como um sistema coerente
de representaes coletivas, esta ideologia especificaria e determinaria o teor das
relaes entre indivduos e grupos, fundamentando a solidariedade caracterstica do
grupo tnico.
Seguindo uma definio mais geral de Grillo, a etnicidade percebida como a
classificao ou ordenao do mundo humano em um conjunto compreensivo de categorias definidas segundo as idias de uma origem comum, ancestralidade e herana cultural. Esta classificao geralmente uma ideologia que especifica a relao entre aqueles com as mesmas ou diferentes identidades (). Esta ideologia pode ser considerada no tanto como prescritiva de solidariedade, mas antes, como provedora de um conjunto de idias e smbolos a partir dos quais a afirmao da solidariedade (ou oposio) pode ser feita nas relaes entre grupos e indivduos.52
Vemos aqui que a etnicidade, como tipo especfico de ideologia, torna-se a
fonte de solidariedade do grupo tnico. Tal solidariedade, em ltima instncia,
preserva a coeso e a ordem interna do grupo, e ainda estabelece o teor das relaes
entre grupos e indivduos.
Grillo tambm se preocupa com os comportamentos tnicos pois estes, de
algum modo, influem na ordem interna dos grupos e dependem, em alguma medida,
do reconhecimento de normas e valores coletivos expressos pela ideologia tnica,
neste caso.
Um aspecto j salientado nos trabalhos de Abner Cohen e Clyde Mitchell53
apontava para o descompasso existente entre o comportamento tnico e a cognio
tnica, ou seja, o reconhecimento das normas e valores do grupo. Para estes autores,
esse descompasso mostra, na realidade, muito mais uma falha dos modelos dos
cientistas ao analisar os diversos focos da situao de contato do que um problema
emprico real.
51 Discutiremos mais adiante a importncia da solidariedade nos trabalhos sociolgicos americanos, como em Glazer e Moynihan, Talcott Parsons e Daniel Horowitz (Todos na mesma coletnea, GLAZER e MOYNIHAM, 1975). 52 GRILLO, 1974: 159. 53 COHEN, 1974; MITCHELL, 1974.
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Para Grillo, no entanto, o descompasso entre comportamento e cognio um
problema de classificao e ao. Os grupos estabelecem vnculos simblicos
(parentesco, lngua, territrio etc.) que so organizados coletivamente em um sistema
de representaes. Tal sistema constitui uma referncia para as aes e
comportamentos individuais e coletivos que se inserem em um contexto definido
ideologicamente pelos smbolos (diacrticos) e instrumentalmente evocao
da solidariedade e dos interesses coletivos.
A partir desta relao entre ideologia, solidariedade e interesse, os grupos se
organizam em bases informais de ao. Os comportamentos gerados por esta
interao de fatores poderiam produzir contradies, pois o sistema de smbolos
tnicos e os interesses coletivos no so fixos ou constantes, mas antes, ambguos e
descontnuos.
Para Grillo, uma forma de se contornar a ambigidade e a descontinuidade dos
smbolos e interesses e, conseqentemente, dos comportamentos est na anlise da
construo das identidades e fronteiras tnicas definidoras da solidariedade interna do
grupo. Embora essa solidariedade seja tambm o produto das contradies entre
ideologias e comportamentos, seu aspecto moral parece ser mais estvel e perene.
Portanto, atravs das identidades e fronteiras tnicas poderamos visualizar a
formalizao de grupos tnicos que se alinham a partir de interesses comuns e
sentimentos de solidariedade. Como salientou Fredrik Barth, estas fronteiras e
identidades tendem a resistir mais aos constrangimentos e conflitos ao longo do tempo
e do espao.54
Grillo observa, sobre a identidade, um aspecto instrumental normalmente
negligenciado, pois, com freqncia, a identidade tnica compreendida como
categoria de um sistema de representaes. Percebemos a identidade apenas como
produto construdo ou categoria fabricada, mas no como veculo ou alternativa para
ao.
Grillo chama a ateno para a utilizao das identidades tnicas como formas
ou conjuntos que agregam papis e status, definindo as alternativas de ao ao longo
das interaes. Deste modo,
as identidades implicam ou podem ser usadas para implicar uma tradio comum, cultura e interesses. Elas podem tambm serem vistas pelas pessoas como uma necessidade de valores comuns e um tipo comum de
54 BARTH, 1976: 20-22.
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personalidade (). Ento, a identidade tnica, assim como a educao, pode ser usada para alocar um modo de comportamento apropriado para duas pessoas estabelecerem uma relao. A identidade tnica, conseqentemente, apresenta um conjunto de status e um conjunto de papis com os quais os indivduos operam nas esferas de relaes intertnicas e intra-tnicas.55
At este momento apresentei diversas perspectivas tericas sobre a etnicidade.
O que deve ser salientado, no entanto, o aspecto organizacional que caracteriza o
grupo tnico e fundamenta um determinado sistema simblico.
Como vimos, a etnicidade produzida de maneira peculiar a partir de
contextos de contato intercultural (assimtricos ou no), onde as identidades,
ideologias e fronteiras grupais se mostram ao mesmo tempo dinmicas, flexveis e
resistentes. Veremos agora outras alternativas de anlise em que a etnicidade vista
como a fuso entre interesses e laos primordiais.
1.3 Etnicidade Como Focus de Solidariedade
De maneira diferente das anlises anteriores desenvolvidas pelos antroplogos
britnicos, a sociologia americana tendeu a tratar o fenmeno da etnicidade como um
problema concernente s clivagens na estrutura social das sociedades ps-
industriais.56
Assim, a idia da etnicidade como produto de uma situao de contato
intercultural deixada de lado em favor da anlise da estrutura social das sociedades
contemporneas, onde a etnia se apresenta como uma varivel dentre outras (classe,
gnero ou religio, por exemplo).
Harold Isaacs procura salientar os traos primordiais dos grupos tnicos,
entendendo que o aspecto mais importante da etnicidade reside nos laos sociais que
identificam, afetivamente, os indivduos com seu grupo de origem podemos dizer
portanto que os laos primordiais (primordial ties) expressam solidariedade.57
Neste sentido, Isaacs aponta o nome, a histria de origem (mitos e lendas), a
lngua, a religio, a territorialidade e especialmente o corpo como formas especficas
55 GRILLO, 1974: 166. 56 O texto de Daniel Bell (1975) apresenta uma anlise das modificaes estruturais nas sociedades capitalistas ps-industriais. A etnicidade apresentada como um novo tipo de clivagem na estrutura social assim como classe, gnero, idade etc. 57 ISAACS, 1975.
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de integrao e identificao dos indivduos com o grupo. So traos diacrticos
ordenados com o objetivo de elaborar um significado especfico existncia do grupo
tnico.
No obstante a importncia de cada um desses aspectos, o corpo, no esquema
de Isaacs, apresenta-se como a fonte principal da etnicidade, pois funciona como self
identificando a prpria sociedade, fornecendo-lhe a fora vital de distino e de
pertencimento. Isto , o corpo implica na relao fundamental de indissociabilidade
entre indivduo e sociedade, e assim torna-se a primeira forma de identificao social
dos indivduos e do prprio grupo. Nos termos de Isaacs a identidade bsica mais
geral, aquela que sustenta todos os outros diacrticos (nomes, tradies, mitos,
topofilias etc.) e fundamenta as relaes entre os indivduos e o grupo.58
A etnicidade expressa, portanto, relaes sociais de um tipo especfico entre os
indivduos e seu grupo, onde o corpo se apresenta como fonte de identificao e
integrao entre seus indivduos e sua prpria sociedade.
De outro modo, Glazer e Moynihan vem nos grupos tnicos uma nova forma
de vida social capaz de se renovar e de se transformar constantemente. A etnicidade
aqui tambm evocada como princpio organizacional pois, segundo Glazer e
Moynihan, os indivduos passam a organizar seus interesses e a solidariedade a partir
de novas categorias sociais, isto , categorias tnicas.
Assim, nas sociedades contemporneas, a mobilizao poltica dos grupos
passa a ser determinada por clivagens tnicas, substituindo muitas vezes a prpria
classe social. Glazer e Moynihan seguem afirmando que
um novo elemento na presente situao que o interesse efetivamente perseguido pelos grupos tnicos hoje, assim como os grupos de interesse: de fato, talvez esses interesses possam mesmo ser mais efetivamente perseguidos. Como formas de identificao social e conflito contra aquelas baseadas nas classes que obviamente continuam existindo ns temos sido surpreendidos pela persistncia e salincia de formas de identificao social e conflito baseadas na etnia. Uma das caractersticas marcantes da presente situao que, de fato, ns encontramos os grupos tnicos em grande medida definidos em termos de interesses, isto , como um grupo de interesses.59
Portanto, a mobilizao coletiva em torno de interesses e solidariedade se
58 ISAACS, 1975: 38. 59 GLAZER e MOYNIHAM, 1975: 7.
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intensificaria hoje sobre bases tnicas, sobrepondo-se muitas vezes s classes. Neste
sentido, podemos dizer que os grupos passam a se organizar ao longo de linhas de
ao etnizadas como meio efetivo talvez o mais efetivo de aquisio de
recursos.60
Vimos que Abner Cohen j havia concludo que os grupos tnicos atuam como
grupos de interesse. Mas, diferentemente de Glazer e Moynihan, para Cohen tais
grupos so organizaes informais que emergem em situaes de contato cultural
muito especficas como o tribalismo esfacelado das grandes cidades africanas.
Encontramos aqui uma nova abordagem, em que os grupos tnicos surgiam como
novas formas de organizao da vida social. Essas organizaes so efetivas, no
sentido de formarem grupos formais reconhecidos social e politicamente como
mobilizadores de interesses coletivos e de solidariedade. Para Glazer e Moynihan, os
grupos tnicos rivalizam no apenas com as classes sociais mas tambm com o
Estado, no sentido de que engendram e instituem uma nova ordem coletiva
baseada nos fundamentos tnicos de um novo tipo de solidariedade, diversa daqueles.
Com certeza, um dos aspectos que mais chama a ateno na formao dos
grupos tnicos atualmente sua importncia estratgica para a mobilizao coletiva
de interesses. Como Glazer e Moynihan apontaram, os grupos tnicos so hoje
importantes agentes polticos que lutam em arenas muitas vezes no-
institucionalizadas, geralmente contra grupos dominantes instalados nos aparelhos de
Estado.
Leo Desprs nos fornece um exemplo interessante sobre a estratificao social
e a formao de grupos tnicos numa situao de conflito na Guiana.61 Neste caso, a
etnicidade emerge como uma forma de organizao e identificao dos indivduos e
grupos contra uma situao de desigualdade e excluso social. Poucos grupos tnicos
estavam presentes no Estado, de tal modo que alguns grupos detinham o poder
poltico em detrimento de outros. A desigualdade quanto representao poltica no
Estado implicava a desigualdade no status tnico de cada indivduo na sociedade
guianesa.
Deste modo, para Desprs, a identidade tnica no operava apenas como
categoria de adscrio, mas antes como recurso social utilizado em determinadas
60 Roberto Cardoso de Oliveira (1976) tambm sugere, atravs da anlise sobre a frico intertnica e os sistemas de dominao assimtrica, como no caso dos ndios brasileiros rotulados como caboclos, a intensificao das relaes intertnicas em linhas polticas de ao. 61 DESPRS, 1975.
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situaes, o que provocou, em vrias ocasies, a mobilizao de grupos tnicos em
disputa por interesses comuns, objetivando proteo contra as desigualdades e a
dominao de certos grupos instalados no aparelho de Estado.62
A emergncia de grupos tnicos na arena poltica significa a afirmao das
diferenas frente tentativa de homogeneizao imperativa do Estado sobre os
diversos grupos e indivduos. Mais que mobilizar indivduos em grupos de interesses,
a etnicidade fornece ao indivduo uma identidade distinta que diz respeito a diferenas
normativas e valorativas.
Se esta relao por um lado negativa,63 por outro ela tambm pode ser
positiva, como afirmam Glazer e Moynihan, ao contribuir para o estabelecimento de
uma pluralidade de valores e normas, buscando a igualdade de possibilidades e
recursos dentro de uma sociedade plural.
neste sentido que, como uma idia poltica, como um princpio de
mobilizao, a etnicidade em nossos dias tem se espalhado em todo o mundo com a
curiosa consequncia da semelhana e distino (...).64
O reconhecimento da emergncia dessas novas formas de organizao social
imediato ao constatarmos a presena cada vez mais incisiva das organizaes tnicas
em seu sentido poltico em movimentos sociais, fundando novas associaes e
freqentemente se institucionalizando na busca de um espao na arena poltica.
Ao contrrio de Aronson, que percebeu na etnicidade o resultado do dissenso e
do desengajamento, Glazer e Moynihan enfocam o aspecto positivo da etnicidade
como propiciadora de mobilizao e participao poltica em um mundo globalizado.
Este aspecto se destaca atravs da compreenso das fronteiras e identidades tnicas,
62 Para Desprs, a etnicidade se apresenta concretamente na relao entre identidade tnica e categoria social entendida muito mais como um problema de definio estratgica do status (poderia dizer mesmo do rtulo) individual do que um problema de hierarquia social, ou seja, de hierarquizao das classes sociais (Desprs, 1975: 144). Portanto, a etnicidade implica na negociao por recursos, onde a prpria identidade um recurso social isto , status imperativo que confere presena de poder (se o grupo a que pertence dominante) ou a falta deste (se seu grupo minoritrio). Seguindo esta mesma linha de raciocnio, Ro