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Dimitri Fazito de Almeida Rezende Transnacionalismo e Etnicidade A Construção Simbólica do Romanesthàn (Nação Cigana) Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Sociologia. Área de Concentração: Sociologia da Cultura Orientador: Prof. Leonardo H.G. Fígoli Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas UFMG 2000

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  • Dimitri Fazito de Almeida Rezende

    Transnacionalismo e Etnicidade A Construo Simblica do Romanesthn

    (Nao Cigana)

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Sociologia. rea de Concentrao: Sociologia da Cultura

    Orientador: Prof. Leonardo H.G. Fgoli Universidade Federal de Minas Gerais

    Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas UFMG

    2000

  • 1

    Para Dilermando, Simone e Adriana

  • 2

    AGRADECIMENTOS Quando celebramos o encerramento de um trabalho ou de uma etapa

    importante em nossa vida, tendemos a ignorar o rduo caminho percorrido ao reduzi-

    lo a memrias esparsas ou, muitas vezes, ao recri -lo de forma mais agradvel, mais

    cheio de glrias e certezas do que realmente foi.

    Porm, se estivermos mais atentos aos impactos que esse processo de

    descoberta, conhecimento e convivncia produz em nossas vidas, perceberemos toda a

    riqueza que nos traz a experincia vivida. Lembramo-nos e revivemos cada momento

    de dificuldade e superao, cada momento de desespero e revelao. Todos os

    infortnios e glrias se mostram como momentos encadeados em um processo

    existencial singular que nos atinge profundamente.

    Seguindo esta via de autocrtica e autoconhecimento descobrimos que nunca

    estamos ss, e que existem aqueles que nos acompanham em nossa jornada,

    carregando um fardo muitas vezes imperceptvel para ns mesmos ou para aqueles

    que nos observam distncia esses merecem um lugar de destaque em nossa

    memria e o reconhecimento de sua contribuio para o trmino de mais uma etapa.

    Deste modo, posso dizer com muito orgulho ter sido orientando do professor e

    antroplogo Leonardo Hiplito Genaro Fgoli, a quem devo meu maior agradecimento

    por ter-me guiado e proporcionado o melhor aprendizado nesta longa caminhada.

    Com pacincia, simplicidade e amizade, Leonardo soube dar-me motivao,

    segurana e liberdade naqueles momentos mais difceis, quando chegamos a nos

    desesperar e querer abandonar tudo e todos; com a mesma ateno, nos momentos de

    maior impetuosidade, tambm soube apontar-me as falhas e limitaes, alertando-me

    para as responsabilidades necessrias ao desenvolvimento equilibrado e ordenado de

    qualquer trabalho em nossas prprias vidas. Obrigado, Leonardo, por ter sido mais

    que um professor e por ter me ensinado mais que os direitos e deveres do aluno, pois

    suas lies, guardadas em minha memria, dizem respeito a valores e atitudes para

    toda uma existncia.

    Agradeo tambm ao antroplogo Frans Moonen, a quem devo muitas de

    minhas indagaes e inquietaes, tericas e prticas, no s com relao aos ciganos

  • 3

    mas tambm a toda a sociedade. Alm disto, devo a ele o suporte inestimvel do

    amigo que ouviu pacientemente meus lamentos e alegrias durante o complicado

    processo de realizao desta dissertao.

    A Rodrigo Corra Teixeira devo meus mais sinceros e acalorados

    agradecimentos. Companheiro de estrada h tanto tempo, de estrias e de rivalidades

    (futebolsticas), este bem-humorado e competente ciganlogo teve participao

    insubstituvel em minha vida acadmica, mais propriamente em meu processo de

    descoberta dos ciganos. De um amigo verdadeiro no se esquece o valor, Rodrigo.

    Devo tambm agradecer o apoio e considerao de todo o Departamento de

    Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, que transformei

    em meu lar durante longo tempo. Agradeo a todos os professores que, de forma

    direta ou indireta, tomaram parte e influram em meu aprendizado e na minha

    formao profissional e humana.

    Em especial, agradeo a Antnio Luiz Paixo (in memorian) e Vincius Jos

    Caldeira Brant (in memorian) por terem sempre me incentivado na busca do

    Conhecimento em si mesmo como o significado mais nobre e valoroso do profissional

    acadmico. E, como conseqncia moralmente necessria, a luta incessante pela

    aplicao universal deste Conhecimento nossa convivncia cotidiana, modificando e

    melhorando nossas condies de vida na sociedade.

    Agradeo tambm o apoio institucional da Universidade Federal de Minas

    Gerais que me acolheu por tanto tempo, assim como o apoio financeiro recebido ao

    longo de dois anos, enquanto bolsista de ps-graduao do Mestrado em Sociologia,

    conferido pela agncia nacional fomentadora de pesquisa e ensino acadmico, CNPq.

    Expresso aqui meu profundo e sincero agradecimento a toda a comunidade

    cigana de Belo Horizonte que me acolheu afetuosamente em todos os momentos da

    pesquisa. Este trabalho no poderia ter sido concludo sem sua colaborao e

    consentimento. Alm disto, sou grato pela possibilidade de ter conhecido os ciganos e

    ter aprendido com eles valores to nobres como a solidariedade, a humildade e o

    prazer de viver o dia-a-dia.

  • 4

    Agradeo tambm aos meus pais, Dilermando e Simone. No basta dizer que

    sem eles no estaria escrevendo estas linhas e que nenhum trabalho teria sido feito.

    Agradeo-lhes por terem me proporcionado a vida e, mais importante, valoriz-la

    verdadeiramente. Este trabalho simboliza o reconhecimento e respeito que sempre

    terei por tudo o que fizeram por mim. Tantas vezes o sacrifcio de cuidar e educar se

    mostrou incondicional, tantas vezes o amor dado se mostrou sem limites que o

    resultado deste trabalho torna-se pequeno mas no menos digno que tudo aquilo de

    que fui depositrio. Por tudo isto, mais uma vez, obrigado, pai e me.

    s minhas irms e a todos os parentes e amigos no citados mas no menos

    queridos (porque so muitos), que direta ou indiretamente conviveram comigo durante

    todo esse tempo, dando-me suporte emocional para superar os vrios momentos de

    dificuldade, quero deixar aqui meus agradecimentos.

    Finalmente, no poderia deixar de agradecer a pessoa que tem sido, sob todos

    os aspectos, o centro de minha vida e vocao. Agradeo profundamente a Adriana

    Seixas que participou e participa de cada momento de minha vida. A pessoa que me

    suporta sem condies ou ressalvas, que me espelha e me revela nos momentos mais

    difceis e nos mais felizes. Agradeo-lhe por caminhar ao meu lado, mesmo sabendo

    que poder colher tanto louros quanto encargos, tanto sucesso quanto infortnio e

    tanto alegria quanto tristeza. Se o faz por amor e carinho, o mesmo que sinto por ela.

  • 5

    SUMRIO RESUMO________________________________________________________________6 INTRODUO ___________________________________________________________7 CAPTULO 1. TEORIAS SOBRE ETNICIDADE E IDENTIDADE ______________ 18 1.1 O Fenmeno tnico ____________________________________________________ 19 1.2 Novos Mapas, Novas Rotas: etnicidade, ideologia e interesse ___________________ 23 1.3 Etnicidade Enquanto Focus de Solidariedade ________________________________ 33 1.4 Identidades, Comunidades e Smbolos: performance, afetividade e tradio ________ 41 1.4.1 Cadenza ____________________________________________________________ 47 CAPTULO 2. ETNICIDADE CIGANA E RESISTNCIA CULTURAL _________ 49 2.1 Ciganos no Brasil: um caleidoscpio tnico __________________________________ 50 2.2 Resistncia Cultural: o drama de uma minoria ________________________________ 55 2.3 Socialidade e Identidade Performativa: por que somos todos irmos?______________ 62 2.4 A Arte da Fragmentao: etnicidade e inveno ______________________________ 70 2.5 A Etnizao do Espao e a Ampliao do Local ______________________________ 76 2.5.1 Um esboo alternativo: parentesco, poltica e territorialidade ___________________ 76 2.5.2 Etnizando a comunidade: estilo cultural e interstcios espaciais__________________84 CAPTULO 3. BREVE HISTRIA DAS REPRESENTAES SOBRE OS CIGANOS________________________________________________________________88 3.1 Desconstruindo Representaes ___________________________________________ 88 3.2 Discursos Cientficos, Mitos e Perseguies __________________________________ 93 3.3 Traficando Mitos e Representaes ________________________________________ 108 3.3.1 Nomadismo enquanto mito_____________________________________________ 109 CAPTULO 4. ROMANESTHN A CONSTRUO SIMBLICA DA COMUNIDADE TRANSNACIONAL ______________________________________ 116 4.1 Para Uma Crtica Nao Moderna e ao Nacionalismo ________________________ 118 4.2 A Mitoprtica da Nao Cigana: um exerccio de imaginao etnogrfica________ 126 4.2.1 Movimentos nacionalistas ciganos _______________________________________ 133 4.2.2 Poltica da etnicidade: vozes ciganas____________________________________ 144 4.2.3 Vozes ciganas....vozes hbridas _________________________________________ 146 4.3 Palavras Finais ________________________________________________________ 161 5. CONCLUSO _________________________________________________________164 5.1 Transnacionalismo e Resistncia Cultural ___________________________________ 164 5.2 Tradio Cultural em Movimento: as disporas ______________________________ 169 5.3 Territrio Etnizado: parentesco e romanes __________________________________ 175 5.4 Romanesthn: a inveno do espao cigano _________________________________ 177 5.5 Unidade na Diversidade _________________________________________________ 183 6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS _____________________________________ 186 7. ANEXOS_____________________________________________________________ 191

  • 6

    RESUMO Este estudo tem como objetivo compreender os processos de construo do Romanesthn (Nao Cigana), atravs das representaes simblicas e prticas cotidianas daqueles diversos grupos rotulados por um mesmo termo ciganos.

    A partir desta discusso sobre a organizao social da comunidade cigana, abordada a questo da etnicidade, da formao de grupos tnicos e de suas fronteiras e identidades. Procurando uma alternativa terica (interpretativista e interacionista) que permitisse a compreenso do fenmeno tnico como experincia (performance) social, dinmica e pervasiva, inscrita no contexto das relaes intertnicas, desenvolvemos o conceito de etnizao denotando transitoriedade e relatividade das aes, identidades e atores, em um processo sociodramtico.

    Finalmente, aplicando anlise da Nao Cigana nossa compreenso sobre o fenmeno tnico como processo performativo, deparamo-nos com a questo recente da formao das comunidades transnacionais, a modificao das relaes entre estas comunidades, e a emergncia de novas identidades e grupos no contexto da globalizao. Portanto, a organizao social cigana (organizao social das categorias tnicas, identidades, fronteiras e ideologias) vista a partir deste duplo processo social, de etnizao e transnacionalismo, caractersticos do mundo contemporneo. Palavras-chave : Ciganos; Romanesthn; Etnicidade (Etnizao); Transnacionalismo; Experincia Social; Identidade; Comunidade Transnacional.

  • 7

    INTRODUO

    Todos ns, alguma vez em nossas vidas, j nos deparamos com os ciganos. As

    imagens de mulheres em seus vestidos coloridos nas esquinas de uma cidade

    movimentada lendo a sorte dos transeuntes pelas linhas das mos, ou ento as

    barracas de lona, empoeiradas pelas longas viagens, estacionadas ao longo de alguma

    estrada no interior do pas, muitas vezes so vistas com certo receio, outras vezes

    invejadas e idealizadas em nossos sonhos.

    No imaginrio gadjo, isto , no-cigano, os ciganos so representados de

    diversas maneiras, atravs de imagens paradoxais. A imagem do cigano pode

    representar liberdade, alegria e tradio, ou, por outro lado, indolncia, marginalidade

    e parasitismo.

    Na realidade, as representaes sobre os ciganos fundem esses diversos

    aspectos, tendo contribudo decisivamente para o destino de milhares de indivduos ao

    longo de sculos de existncia. Porm, o que mais nos impressiona ao conhecermos os

    ciganos encontrarmos uma tradio cultural to diversa e ao mesmo tempo to

    unificada, como um mosaico multicultural.

    O maior problema para se compreender o ser cigano desvendar o enigma

    deste mosaico multicultural, pois, muitas vezes, o termo cigano pode no passar de

    um rtulo, uma imagem construda pelo imaginrio gadjo. Descobre-se que aqueles a

    quem chamamos ciganos so indivduos com biografias, valores e sentimentos muito

    diferentes entre si, e que, no entanto, continuam a ser tratados como pessoas idnticas.

    Quando iniciei meu trabalho em 1993, integrando um grupo de estudos,

    pensava encontrar pessoas mais ou menos parecidas com a populao de Belo

    Horizonte, pois, quando no conhecemos os ciganos, com freqncia os imaginamos

    indivduos como outros quaisquer. A diferena para muitos de ns pode estar apenas

    no comportamento indivduos marginais, preguiosos e sujos que vivem de

    uma maneira extica por no aceitarem viver corretamente, segundo as regras de

    nossa sociedade.

    Com estes mesmos preconceitos em mente, ao conhecer os ciganos no

    imaginava encontrar uma tradio cultural organizada, completamente diferente da

    minha e localizada dentro da regio metropolitana de Belo Horizonte, como uma

    aldeia indgena isolada no meio de uma selva de pedra.

  • 8

    Quando se chega a uma comunidade cigana, muitas vezes no se encontra

    qualquer sinal fsico delimitando fronteiras e territrios. Entretanto, sentimos uma

    mudana no ambiente e nele percebemos um local onde o tempo parece fluir

    lentamente, mais calmo e parcimonioso; o espao se apresenta mais denso e

    concentrado e as cores adquirem tonalidades mais fortes e contrastantes. Sentimo-nos

    submergir em outra cultura, em outra realidade social, no apenas num mundo extico

    que apresenta aleatoriamente elementos estranhos, mas uma realidade onde o sentido

    e o significado das coisas parecem provocar sensaes e experincias diferentes.

    Com o passar do tempo, estas experincias de estranhamento tornam-se mais

    intensas e podemos ento compreender que, de fato, estamos em um lugar onde outra

    cultura domina o tempo e o espao ao nosso redor.

    Esta a primeira atitude que devemos tomar em relao aos ciganos: adotar

    uma perspectiva antropolgica que reconhea o cigano como Outro. Embora

    atualmente vivam no meio urbano entre nossas casas, constituem uma tradio

    cultural muito antiga e dispersa espacialmente.

    Os ciganos, ao contrrio do que a maioria das pessoas (no-ciganas) imagina,

    muitas vezes se mostram completamente diferentes dos esteretipos mais comuns

    (como ladres de criancinhas, preguiosos, selvagens, ignorantes, etc.).1

    A atribuio de comportamentos desviantes aos ciganos como tem sido

    apontado por alguns pesquisadores sobre a cultura cigana 2 , na realidade, uma

    estratgia que visa sua descaracterizao como indivduo portador de uma tradio

    cultural, original e autntica.

    Este fato, tambm abordado neste trabalho, a conseqncia de uma

    compreenso equivocada da tradio cultural cigana que, como poderemos ver, gerou

    e continua a gerar comportamentos e polticas discriminatrias em relao aos

    ciganos, alm de tornar ainda mais confusa a origem e essncia que definem essa

    tradio.

    A compreenso da cultura cigana como um mosaico foi mais uma

    conseqncia do meu trabalho do que um objetivo cuidadosamente calculado. Isto

    porque, ao iniciar a pesquisa junto aos ciganos no tinha em mente encontrar uma

    tradio cultural complexa e fragmentada, mas apenas uma cultura homognea e

    isolada em meio urbano.

    1 As anlises sobre estes e outros esteretipos sero aprofundadas no captulo 3. 2 Por exemplo, HANCOCK, 1987 e SIBLEY, 1981.

  • 9

    No entanto, ao final de uma pesquisa visando obrigaes formais de uma

    disciplina antropolgica, comecei a me perguntar, junto a outros colegas, como

    aqueles ciganos poderiam resistir s foras assimilacionistas da sociedade envolvente.

    Mais do que isto, eu me questionava sobre como esta tradio cultural conseguira se

    manter por tantos sculos de sofrimento e perseguies, conservando um ncleo

    cultural denso, onde lngua, vestimentas, organizao familiar e tantos outros valores

    se mantinham vivos, perpetuando-se mas transformando-se ao longo das geraes.

    Este questionamento inicial foi se modificando ao longo destes anos, no s

    devido ao maior contato com os ciganos mas tambm s minhas prprias definies

    tericas no campo da antropologia, que se modificaram de maneira intensa ao longo

    do curso de graduao e do mestrado.

    Ao iniciar a pesquisa com os ciganos acreditava poder encontrar na

    Antropologia (e mesmo nas outras Cincias Sociais) a possibilidade de explicar

    determinados fenmenos de ordem sociolgica, atravs de modelos formais mais ou

    menos sofisticados e precisos. Este fato importante porque determinou, inicialmente,

    minhas perspectivas tericas para tratar os ciganos e minha percepo (pessoal) sobre

    eles.

    Em primeiro lugar, o que realmente havia me interessado no estudo deste

    grupo era a possibilidade de esclarecer problemas tericos da Antropologia, mais

    especificamente, a Antropologia das Relaes Intertnicas.

    Assim, os ciganos signficavam para mim apenas um objeto para se

    pesquisar (ou, se se quiser, utilizando mais hermeticamente a expresso de unidades

    empricas de anlise) como se trabalha nas tradies de pesquisas sociolgicas

    convencionais e duras (funcionalismo, por exemplo).

    Afinal, partindo da idia de que a Antropologia , ou pelo menos deve lutar

    para ser, uma Cincia semelhante Fsica (Hardscience), ela deveria buscar aquilo

    que invarivel, formal e destitudo de subjetividade: tratar o objeto antropolgico

    como dado a priori.

    Portanto, nada mais evidente para ns, cientistas, do que o fato de ciganos,

    ndios, drogados e homossexuais serem concebidos em nossas pesquisas como

    unidades empricas de anlise. Em outras palavras, seguindo os passos de uma

    Antropologia mais dura e positiva, como a Antropologia Funcional-Estruturalista

    ou a Ecologia Cultural, por exemplo, minha tendncia inicial foi conceber os ciganos

    como um objeto de anlise dado a priori.

  • 10

    Alimentado pelo desejo de desvendar o fenmeno tnico, suas causas, relaes

    e lgica de contato, acreditei que os ciganos poderiam se constituir em interessante

    objeto para minhas anlises tericas, apontando para problemas empricos pouco

    compreendidos e, principalmente, conduzindo-me a solues tericas refinadas.

    E foi assim que, durante muito tempo me perdi em meio aos conceitos e

    teorias, aos quais valorizava excessivamente, perdendo de vista a compreenso e a

    convivncia com os ciganos.

    No entanto, entendia que a adoo dessas perspectivas tericas mais

    convencionais, como o funcionalismo, determinariam minha viso e percepo sobre

    o problema emprico, ou seja, sobre a vida dos ciganos propriamente ditos.

    Ao longo do curso de ps-graduao passei a acreditar que a Antropologia no

    deveria se preocupar com o fato de ser Cincia ou no, pois isto na realidade no to

    importante. Muitas vezes esta questo se torna um problema de terminologia mais que

    qualquer outra coisa. O que importa que ela produz um tipo de conhecimento rico e

    interessante, que nos possibilita uma melhor compreenso de outras culturas e

    pessoas, desenvolvendo o respeito mtuo, consolidando a legitimidade da convivncia

    multicultural, cada vez mais comum em nosso planeta.3

    Ao contrrio do que possa parecer, cheguei a estas transformaes devido

    muito mais aos ciganos do que aos questionamentos tericos. Posso afirmar que, pela

    pequena convivncia mas grande aprendizado com os ciganos, acabei me interessando

    por perspectivas antropolgicas mais recentes, diferentes daquelas que me

    condicionaram, no incio da pesquisa, a ter os ciganos apenas como unidades

    empricas de anlise.

    Passei a adotar perspectivas interpretativistas e interacionistas, buscando

    compreender a cultura e o fenmeno tnico a partir da observao e anlise dos

    smbolos e experincias vividas pelos atores sociais.

    Creio que a leitura desta dissertao mostrar os diferentes matizes deste

    conflito pessoal entre diversas perspectivas. Entretanto, a perspectiva dominante neste

    trabalho tem a compreenso da cultura como sistema simblico autnomo, sua

    principal caracterstica. Isto , a cultura aqui entendida no como um fato (ou coisa)

    dado a priori, mas antes, como o produto das aes reflexivas dos atores que atravs

    3 A este respeito conferir especialmente GEERTZ, 1995. Sem dvida, muitas das minhas questes tericas foram esclarecidas por Geertz e, embora seu nome no seja citado muitas vezes ao longo deste trabalho, minhas anlises receberam influncia decisiva de suas idias sobre o propsito do conhecimento antropolgico.

  • 11

    de smbolos, representaes e experincias cotidianas constroem, criam e recriam a

    todo o momento uma tradio e comunidade de valores.

    Minha compreenso da tradio cultural cigana, e, com ela, a compreenso do

    fenmeno tnico (tratado ao longo deste trabalho pelo termo etnicidade), parte da

    aceitao de que a Antropologia lida fundamentalmente com sistemas simblicos e,

    neste sentido, deve buscar compreender a cultura como texto (Clifford Geertz).4

    Junto idia de texto, introduzi os conceitos de performance ou experincia,

    um tanto borradas nos textos de Geertz,5 mas complementadas pelas anlises de

    Victor Turner6 sobre as relaes sociais compreensivas e sociodramticas que

    organizam cotidianamente as tradies culturais. Neste caso, as tradies culturais so

    concebidas tambm como processos dinmicos e interativos, encenados ou

    dramatizados socialmente, transformando a cultura em um fenmeno reflexivo e

    performativo.

    Pode-se constatar, ainda, outras presenas importantes neste trabalho, como o

    j citado Victor Turner, Fredrik Barth, Erving Goffman, Ulf Hannerz, Pierre Bourdieu

    e Marshall Sahlins.7 De fato, no me prendi a nenhuma destas influncias mas tentei

    desenvolver minhas prprias anlises fundindo algumas idias aqui e ali. Estas fuses

    e alteraes de perspectivas, s vezes bruscas, so conseqncias de uma busca

    pessoal em relao aos ciganos. Em outras palavras, minha tentativa de compreender

    a essncia do ser cigano fez com que alterasse muitas vezes minhas perspectivas

    tericas. Isto porque parecia-me impossvel compreender esta tradio cultural sem

    entend-la como um sistema simblico autnomo e, mais que isto, como uma tradio

    pervasiva, ou seja, em constante transformao, onde as experincias conectam de

    maneira densa o passado e o presente das pessoas em uma matriz de relaes

    sociais.

    Como poderemos ver ao longo deste trabalho, as anlises feitas sobre

    etnicidade e nacionalismo acabam se adaptando s anlises sobre a tradio cultural

    cigana. Deste modo, o que deveria ser apenas uma unidade emprica de anlise no

    4 GEERTZ, 1973:15. Geertz afirma que a cultura como uma teia de significados, sendo a interpretao dos sistemas simblicos como textos culturais a maneira mais apropriada para compreendermos os smbolos e experincias de outras pessoas e tradies culturais. 5 Principalmente em seu Thick Description de 1973. J em Blurred Genres (GEERTZ, 1983) os questionamentos sobre a ao social, prticas e exp erincias so colocadas com maior detalhe, sem no entanto apresentar alteraes significativas em relao ao texto de 1973. 6 Cf. Especialmente, The Anthropology of Performance, in TURNER, 1987. 7 TURNER, 1969 e 1987; BARTH, 1976 e 1992, principalmente; GOFFMAN, 1986; HANNERZ, 1996; BOURDIEU, 1980b; SAHLINS, 1990 e 1997.

  • 12

    incio deste projeto, constituiu-se no problema fundamental da pesquisa: como

    explicar a unidade na diversidade? Ou, por que e como grupos e categorias

    tnicas, por vezes to distintas, buscam um sentido de unidade entre si como

    meio de sobrevivncia e resistncia cotidianas?

    Devo dizer que meu contato com os ciganos se deu graas necessidade de

    uma pesquisa coletiva para a disciplina de Antropologia III do curso de graduao de

    Cincias Sociais.8 Iniciamos um trabalho junto a uma comunidade de ciganos Roma

    (kalderash) na regio metropolitana de Belo Horizonte, que durou todo o primeiro

    semestre de 1993.

    Intrigado com a realidade vivida pelos ciganos, e acreditando na possibilidade

    de desenvolver uma importante pesquisa sobre etnicidade a partir da anlise dessa

    tradio cultural, resolvi continuar estudando este grupo ao final do curso.

    Entretanto, devo dizer que minha pesquisa, cujo resultado final se encontra

    nesta dissertao, alm das inmeras transformaes sofridas nestes ltimos anos,

    tambm encontrou obstculos e criou outros tantos, condicionando perguntas e

    respostas, dados e conceitos. As dificuldades foram muitas, de ordem terica ou

    prtica, mas principalmente a dificuldade de estabelecer um trabalho de campo ideal.

    De fato, uma pesquisa antropolgica adequada deve partir de um trabalho de

    campo longo e intenso, que possibilite ao pesquisador compreender mais

    intensamente uma realidade cultural distinta da sua.

    No caso de minha pesquisa, este trabalho foi minimizado, limitando-se a

    algumas incurses a campo tambm chamadas de visitas. bem verdade que

    algumas se estenderam por perodos um pouco mais longos, mas foram contatos

    ocasionais e intermitentes.

    Assim, os momentos principais de contato se deram entre 25 de junho a 4 de

    julho de 1994; 9 a 21 de setembro de 1994; 5 a 10 de abril de 1995; 1 a 16 de

    dezembro de 1995; 10 a 15 de janeiro de 1996. Posteriormente, os encontros

    ocorreram de forma aleatria, em momentos e locais diferentes.

    Minha pesquisa foi ento condicionada a esta forma de trabalho de campo e,

    por isto, para complementar a ausncia relativa de dados de campo, procurei me

    apoiar em uma bibliografia mais abrangente sobre os ciganos. Mesmo sabendo que

    isto no substitue o conhecimento emprico realizado atravs do trabalho de campo,

    8 Esta disciplina foi ministrada pelo professor Pierre Sanchis. Sem definir exatamente o que fazer, fui convidado a participar de um grupo de pesquisa, por Artur Versiani Neto ento, meu colega de curso, a quem devo minha gratido pela introduo aos estudos ciganos.

  • 13

    creio que a bibliografia deve ser valorizada como uma fonte vlida de dados

    alternativos.

    Devido a este aspecto bibliogrfico, ser possvel notar a ausncia de

    concluses mais especficas em alguns momentos, principalmente em relao

    anlise de alguns smbolos ciganos ou fenmenos culturais mais densos que

    necessitam de uma melhor compreenso e vivncia da realidade cultural do Outro.

    O maior problema terico encontrado nesta pesquisa, devido ao restrito

    trabalho de campo, foi a anlise dos diversos nveis de etnicidade e suas relaes com

    as representaes simblicas sobre os grupos e subcategorias anlise da

    gramaticalidade e dos campos semnticos. Isto , saber quando se est falando de

    ciganos ou quando se fala de Roma, Calon, kalderash, lovara etc. Em primeiro lugar,

    os dados de campo se referem principalmente realidade kalderash, pois meu

    trabalho com Calons foi apenas introdutrio. Em segundo lugar, a generalizao sobre

    a tradio cultural cigana (e o que chamo aqui de mitoprtica da Nao Cigana)

    dependeu em larga medida dos dados fornecidos por outros pesquisadores (vide

    bibliografia) que partiam de dados e preocupaes tericas diferentes das minhas.

    Creio que a parte mais difcil desta pesquisa foi coordenar esses diversos

    dados com as perspectivas tericas. Tentei encontrar um meio termo que explicasse os

    ciganos por eles mesmos, apontando para as diferenas internas dos grupos e,

    principalmente, como esses grupos, apesar dessas diferenas, elaboram uma unidade,

    muitas vezes apenas simblica, resistindo s foras externas do mundo gadjo.

    Por encontrar uma diversidade to grande entre os ciganos e, ainda assim,

    reconhecer a semelhana de itinerrios, experincias e valores, minha perspectiva

    terica teve a todo momento que se adaptar s exigncias empricas.

    Logo no primeiro captulo, em que me refiro s teorias sobre etnicidade e

    identidade tnica, esta adaptao da teoria prtica pode ser facilmente percebida.

    Depois de analisar diversas tendncias e perspectivas tericas, conclu que nenhuma

    atende satisfatoriamente s condies da tradio cultural cigana. Isto , nenhuma

    teoria sobre a etnicidade parece capaz de explicar por completo o processo de

    organizao social das categorias e relaes tnicas dentro deste mosaico cultural

    cigano.

    Procurei ento uma alternativa terica, trabalhando sobre algumas idias e

    conceitos diferentes que muitas vezes no tinham relao com o problema tnico em

  • 14

    si. Assim, consegui formular um conceito um pouco diferente localizado pelos termos

    etnizar ou etnizao.9

    A caracterstica conceitual destes termos, como veremos no captulo 1, est na

    compreenso do fenmeno tnico como processo simblico. Isto , as relaes sociais

    ocorreriam em um campo simblico (no contexto das tradies culturais) e assim

    criariam fluxos dinmicos de interao que conectam experincias, sentimentos,

    valores e interpretaes diversas em uma rede (ou matriz) de relaes sociais de

    carcter tnico.

    A etnicidade, entendida como processo simblico, tem nas experincias

    (performance) dos atores e suas interpretaes o seu ponto nodal. Em outras palavras,

    dentro do contexto intertnico, as experincias dos atores e suas interpretaes

    classificam os grupos (organizando-os em categorias tnicas distintas) e suas relaes

    diferenciadas, estabelecendo uma nova lgica de contato.10

    No segundo captulo, apresento algumas descries generalizadas sobre os

    ciganos, coligindo os dados apresentados por uma bibliografia ampla, sua histria,

    organizao social e smbolos culturais essenciais como o chamado romanes. Alm

    disto, inicio a discusso sobre a importncia do Romanesthn, ou da mitoprtica da

    Nao Cigana, como problema central a ser trabalhado nesta pesquisa.

    Na realidade, a justificativa desta dissertao est nas anlises sobre o

    Romanesthn (literalmente, Lar do Ser Cigano) pois, como veremos, este parece ser

    um smbolo dominante para a compreenso da unidade cigana.11 Alm disto, sob a

    perspectiva de uma poltica da etnicidade, a partir do que poderia ser tratado como

    mitoprtica da Nao Cigana, poderemos compreender melhor os movimentos

    nacionalistas ciganos e tambm outras disputas polticas no nvel local.

    Ainda, ao final do captulo 2, apresento, de forma suscinta, a principal tese

    desta dissertao: para compreenso da tradio cultural cigana como um

    mosaico multicultural pretendo mostrar o fundamento das relaes intertnicas

    9 Devo dizer que a contribuio e suporte do Professor Leonardo Fgoli foi essencial neste momento, pois a adaptao e mesmo inovao terica sobre a etnicidade atravs da formulao deste novo conceito de etnizao foi-me sugerida por ele. Tambm fao, aqui, uma referncia ao trabalho pioneiro de Roberto Cardoso de Oliveira (1976), que j expe uma preocupao em revitalizar o conceito de etnia. 10 Ver principalmente BARTH, 1992 e BOURDIEU, 1980b; tambm TURNER, 1987. 11 Ao longo do segundo captulo procuro mostrar como o Romanesthn e o romanes atuam como smbolos dominantes e multirreferenciais. Segundo Victor Turner, os smbolos dominantes so aqueles que condensam em si diversos significados, aes e sentimentos. So, principalmente, aqueles smbolos que expressam valores axiomticos presentes em todo o sistema social. Cf. TURNER, 1969: 22.

  • 15

    entre os ciganos, atravs da articulao da percepo nativa sobre o espao social

    e a organizao social do grupo sobre uma estrutura de parentesco flexvel e

    dinmica.

    No terceiro captulo, procuro mostrar mais detalhadamente a histria das

    perseguies e discriminaes contra os ciganos. Porm, o ponto principal

    desenvolvido neste captulo diz respeito s representaes coletivas sobre o cigano e

    sua cultura. Parto de uma anlise do imaginrio gadjo em relao aos ciganos, na

    tentativa de explicar a construo de esteretipos, a caracterizao de atitudes

    preconceituosas, os comportamentos e polticas discriminatrias.

    Apio-me em algumas idias de Pierre Bourdieu (1980a e b) para mostrar

    como a mitoprtica da Nao Cigana funde elementos discursivos do imaginrio

    cientfico e mitolgico dos gadj com as representaes prprias do imaginrio

    cigano. Esta estranha fuso de representaes simblicas possibilitou a justificativa

    para perseguies e extermnio de milhares de ciganos ao longo destes sculos

    (especialmente o genocdio promovido durante a Segunda Grande Guerra, conhecido

    pelos ciganos como Porraimos), alm de outros equvocos representacionais sobre

    a tradio cultural cigana.

    Neste sentido, discuto, ao final do captulo 3, um tpico sobre o nomadismo

    cigano, no intuito de reforar a tese da etnicidade-parentesco-espao, introduzida no

    segundo captulo. Ali, tento mostrar que o nomadismo se constitui em uma

    representao simblica importante para a organizao social cigana ligada

    diretamente essncia tnica cigana, integrando espao e parentesco de maneira

    singular.

    No quarto e ltimo captulo, discuto mais detalhadamente o processo de

    construo simblica da comunidade cigana atravs da mitoprtica do Romanesthn.

    Lano ali a idia da comunidade cigana como comunidade imaginada e

    transnacional pois, como veremos, para compreenso da organizao social da vida

    em comunidade, a tradio cultural cigana apresenta peculiaridades que seriam

    melhor entendidas a partir de uma renovao conceitual.12 Discuto brevemente, no

    incio do captulo, algumas teorias antropolgicas sobre o nacionalismo e a formao

    das comunidades nacionais (tnicas) e transnacionais, situando em meio

    problematizao terica o caso dos ciganos. Para isto, apresento um relato sobre a

    histria dos movimentos nacionalistas ciganos e a atual poltica da etnicidade cigana

    12 Neste ponto foram imprescindveis os trabalhos de Benedict Anderson (1991) e Ulf Hannerz (1996).

  • 16

    integrada ao nacionalismo como a formao e o funcionamento das organizaes e

    associaes internacionais pr-ciganas.

    Alm disto, tento mostrar como as relaes comunitrias organizam o local e o

    transnacional. Isto , como a singularidade da organizao social cigana determina as

    relaes sociais em um nvel local e outro transnacional, condicionando tambm a

    imaginao de uma comunidade transnacional (Romanesthn).

    Finalmente, na concluso, aprofundo a tese de que os ciganos constituem

    comunidades transnacionais apesar da grande fragmentao interna entre diversas

    categorias tnicas e nveis de interao matrizes locais e transnacionais. Defendo a

    idia de que os ciganos embora exista uma grande diversidade e uma constante

    fuso de vrias representaes do imaginrio gadjo e cigano possuem um valor, ou

    melhor, um smbolo dominante comum, o romanes. Este smbolo parece ser capaz de

    integrar parentesco e espacialidade com o objetivo de unificar tradies diversas e

    permitir a resistncia cultural durante sculos de conflitos e disporas.

    Desta forma, procuro mostrar que a relao do parentesco cigano com a

    percepo nativa e experincia do espao social corresponde a uma espcie de

    amlgama tnico , ou seja, um smbolo de ciganidade o chamado romanes ,

    responsvel pela construo da comunidade transnacional cigana, ou o

    Romanesthn propriamente dito. Este smbolo , que pode ser entendido aqui como a

    condensao da essncia do ser cigano (a ciganidade), onipresente e fundamental

    para a sobrevivncia de qualquer comunidade cigana. Ao integrar parentesco e espao

    segundo as foras (regras, valores e sentimentos) simblicas contidas no romanes, a

    tradio cultural cigana inaugura a possibilidade de existncia de uma comunidade

    transnacional.

    Minha experincia pessoal com os ciganos parece ter funcionado como um

    aprendizado que, vagarosamente, foi provocando mudanas em minha maneira de

    pensar e de sentir as relaes humanas.

    Sem qualquer demagogia, gostaria de dizer que aprendi a gostar realmente

    deste povo to rico de sentimentos e experincias mas tambm sofrido e discriminado.

    Aprendi a gostar dos ciganos, a sentir orgulho e tentar viver a realidade to

    intensamente quanto eles; a valorizar as coisas simples da vida e, principalmente, a

    convivncia humana e a solidariedade, que parecem estar presentes em todas as

    comunidades ciganas, independente de sua raiz tnica.

  • 17

    Agradeo aos ciganos por muitas lies como estas, alm do fato de que

    minha prpria compreenso sobre a Antropologia e as Cincias Sociais tem se

    modificado radicalmente graas ao meu aprendizado e convivncia com esta tradio

    cultural.

    Espero que estas mudanas internas e experincias pessoais tenham sido

    transmitidas pelas linhas deste trabalho. E que, deste modo, outras pessoas possam

    compartilhar comigo e com os ciganos estas descobertas e transformaes.

  • 18

    CAPTULO 1.

    TEORIAS SOBRE ETNICIDADE E IDENTIDADE

    O mundo cotemporneo se defronta com a emergncia de variados grupos

    sociais, minoritrios e distintos, que colocam um problema para ser resolvido ou, pelo

    menos, para ser compreendido: a presena da diversidade ou pluralidade cultural. O

    Outro nos mostra cotidianamente e com uma proximidade perturbadora que

    as coisas podem ser diferentes do que concebemos como certezas.

    Desde homossexuais, camponeses, pentecostais ou viciados em fliperama, at

    as expresses mais contundentes de uma tradio cultural peculiar, como uma minoria

    indiana em West End, famlias de imigrantes latinos nas bordas de Miami, ou mesmo

    ciganos modernos na periferia de Belo Horizonte todos vem mostrar limites que

    nos criam um certo mal estar.

    Nestes ltimos 40 anos tem se tornado cada vez mais evidente a preocupao

    das cincias sociais com temas como multiculturalismo, relaes intertnicas, etno-

    nacionalismos, racismo etc, pois, enquanto se podia contemplar a diferena para alm-

    mar como nas polticas imperialistas dos estados europeus 13 a proteo contra o

    contato parecia estar garantida. No entanto, hoje o problema se resume a estarmos

    prximos demais e no termos como evit-lo, tendo em vista as transformaes

    culturais ocorridas no mundo contemporneo.

    No obstante, a convivncia dificilmente pacfica pois, com freqncia,

    surgem tentativas as mais variadas com o objetivo de conter o avano dessas novas

    formas de organizao social. Ainda que tenhamos conscincia dos direitos dos

    outros dificilmente conseguimos imagin-los a no ser como aberraes sociais

    (e/ou culturais) que, de alguma maneira, merecem um tratamento diferenciado.

    Isto freqentemente se evidencia ao analisarmos as polticas pblicas dos

    Estados e suas instituies. Excluso, segregao, racismo, xenofobia, preconceito,

    discriminao? Todos estes elementos so reaes que podem ser percebidas em

    relao emergncia dos novos grupos tnicos, minorias nacionais e raciais.

    13 Para uma anlise da relao entre o programa das cincias sociais sobre relaes intertnicas e raciais e a poltica imperialista europia e norte-americana do incio deste sculo cf. COHEN, 1978; HUGUES , 1973.

  • 19

    Este captulo procura apresentar as diversas perspectivas tericas sobre

    relaes tnicas e raciais e suas conseqncias nestes ltimos 40 anos nas cincias

    sociais. Pretendo, assim, resenhar os principais pontos ou temas discutidos ao longo

    destes anos, analisar o desenvolvimento de conceitos centrais como etnicidade, raa,

    grupos tnicos, nacionalismo, etc e apresentar, brevemente, uma anlise das novas

    tendncias nos diversos campos das cincias sociais, procurando explicitar minha

    compreenso sobre o tema.

    1.1 O Fenmeno tnico

    O termo etnia e seus derivados parece terem sido usados com freqncia como

    resposta politicamente correta s transformaes dos Estados Coloniais europeus e

    s correntes migratrias de populaes do terceiro mundo para a Europa e os Estados

    Unidos, em fins da dcada de 1940.14

    A questo era como tratar de forma democrtica negros, judeus, italianos,

    chineses, argelinos e tantos outros que se espremiam cada vez mais no espao

    pequeno e tenso das grandes metrpoles europias e americanas. A idia de raa, e a

    concepo biolgica carregada de etnocentrismo por este termo,15 criava grande

    constrangimento entre os cientistas sociais, e por isso mesmo deveria ser substituda

    por uma perspectiva mais pluralista e sociolgica.

    A definio de etnia e, conseqentemente, de etnicidade16 remete a um

    processo de interao social entre grupos culturalmente distintos (segundo a

    perspectiva prpria dos atores) onde, em geral, as relaes ocorrem de maneira

    desigual. Deste modo, a etnia no o mesmo que cultura, pois ela existe apenas na

    situao de contato intercultural, ou seja, existe apenas como processo de interao

    que tem como princpio elementar a oposio entre grupos organizacionalmente

    14 COHEN, 1978; GLAZER e MOYNIHAM, 1975; BANKS , 1996. 15 Importante mencionar a grande contribuio de Franz Boas no terreno da antropologia. E ainda, para mais detalhes sobre o tema do racismo e a etnicidade, ver BANTON, 1997. 16 Parece-me que a diferena entre etnia e etnicidade se resume apenas noo mais especfica de transitoriedade ou de dinmica do segundo termo. Assim sendo, utilizarei com mais freqencia o termo etnicidade que denota, portanto, uma perspectiva interacionista e relacional (cf. BARTH, 1992).

  • 20

    diferentes.17 Por exemplo, Roberto Cardoso de Oliveira decompe a etnia em duas

    dimenses: identidade e estrutura social. Identidade, de carter minoritrio, isto ,

    cujos portadores pertenceriam a grupos minoritrios atuais ou histricos, [] oposta

    a uma identidade majoritria que estaria associada a grupos dominantes geralmente

    instalados nos aparelhos de Estado [].18 J no nvel da estrutura social estes grupos

    diversos minoritrios ou no comporiam um sistema social de dominao

    caracterizado pelo conflito intertnico ou frico intertnica.19

    Por outro lado, a etnia entendida como produtora de relaes assimtricas

    entre dois ou mais grupos culturais, em um sistema social caracterizado pela

    dominao, pressupe a existncia de ideologias de carter etnocntrico capazes de

    representar as aes dos grupos em questo. Desta forma, Cardoso de Oliveira

    entende a identidade tnica como uma representao coletiva de um determinado

    grupo inserido numa situao de contato.20 Portanto, identidades e categorias tnicas

    so representaes coletivas produzidas em contextos sociais de contato intercultural.

    Analiticamente, seguindo os passos de Cardoso de Oliveira podemos

    visualizar, entre as vrias alternativas tericas sobre a etnicidade, uma nfase

    diferenciada, ora sobre os aspectos representacionais como as identidades, fronteiras

    ou ideologias tnicas,21 ora sobre aspectos mais instrumentais ou prticos como a

    organizao dos grupos tnicos propriamente ditos ou a organizao poltica dos

    mercados de trabalho e movimentos tnicos, por exemplo.22

    Porm, embora encontremos com freqncia a nfase em uma dimenso ou

    noutra, ou seja, na dimenso simblica ou prtica para definir o fenmeno tnico,

    melhor optarmos por compreender a etnicidade como um processo performativo,

    onde discursos e prticas sociais se encontram integrados, definindo o sentido

    (simblico) das fronteiras, identidades e aes individuais e coletivas.23

    Fredrik Barth, em sua Introduo coletnea Ethnic Groups and Boundaries

    (1969), parece ser o primeiro cientista social a afirmar o carter organizacional dos

    grupos tnicos, tendo como ponto de partida uma aproximao interacionista.

    17 BARTH, 1976. 18 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978: 248. (Grifo meu). 19 s relaes assimtricas e de dominao desenvolvidas na situao de contato, ou conflito intertnico propriamente dito, Cardoso de Oliveira (1976) d o nome de frico intertnica. 20 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976: 5-6; 1978: 249. 21 GEERTZ, 1973; ISAACS, 1975; PARSONS, 1975; ARONSON, 1976; CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976; CAIUBY NOVAES , 1993. 22 COHEN, 1974; MITCHELL, 1974; DESPRES , 1975; BARTH, 1976; HECHTER, 1986; WALLMAN, 1986. 23 BOURDIEU, 1980b: 64.

  • 21

    At ento, antroplogos e outros cientistas sociais tratavam como tribos o

    que viria a ser classificado como grupos tnicos. Elas eram caracterizadas como

    unidades culturais fixas e isoladas , sendo entendidas como dados priori. Barth,

    avanando na anlise sobre etnicidade, criticou as perspectivas que viam nessas

    tribos simples unidades portadoras de cultura. Assim, procurou sintetizar os

    principais aspectos que definiriam um grupo tnico e suas fronteiras: 1- so grupos

    que se auto-perpetuam biologicamente; 2- compartilham valores culturais bsicos que

    se manifestam em formas culturais definidas como o parentesco, lngua, religio, etc.;

    3- formam um grupo que se integra em uma rede de comunicao e interao; e 4- os

    membros do grupo se identificam e so identificados por outros como pertencentes

    a uma categoria especfica de interao.24

    Portanto, a superao do modelo que reduzia os grupos tnicos a unidades

    portadoras de cultura ou tribos como isolados culturais encontrar-se-ia no

    aspecto instrumental da etnicidade, implicando a transitoriedade e manipulao

    constante dos limites ou fronteiras tribais (tnicas neste caso) e dos traos culturais

    que so negociados pelos indivduos e grupos em interao.

    O aspecto fundamental para a formao e definio do grupo tnico no

    mais a tribo ou isolado cultural aquele salientado no quarto ponto, ou seja, a

    adscrio categorial que implica a auto-identificao dos grupos e a identificao

    feita pelos outros como pertencentes a uma categoria especfica de interao. Assim,

    se nos concentrarmos no que socialmente efetivo, os grupos tnicos so considerados como uma forma de organizao social. Uma adscrio25 categorial uma adscrio tnica quando classifica uma pessoa de acordo com sua identidade bsica mais geral, supostamente determinada por sua origem e sua formao. No momento em que os atores se utilizam das identidades tnicas para categorizarem-se a si mesmos e aos outros com fins de interao, ento formam grupos tnicos neste sentido de organizao.26

    Barth considera assim o processo de formao dos grupos tnicos como

    tipos de organizao como o ponto-chave para a compreenso da etnicidade e,

    conseqentemente, da identidade tnica. Esta deve ser entendida como uma categoria

    de adscrio que possibilita ao indivduo sentir-se membro de um grupo ou classe de

    24 BARTH, 1976: 11. 25 Muita ateno para este termo (traduzido do original em ingls adscriptive) que significa identificao ou atribuio no sentido de estar inscrito, inerente, em um grupo ou uma classe. 26BARTH, 1976: 15.

  • 22

    pessoas e que contribui para o fortalecimento de uma solidariedade interna do prprio

    grupo.

    Alm disto, a identidade tnica entendida como categoria de adscrio visa

    tambm a classificao de indivduos e grupos em um rtulo ou esteretipo

    determinado por outros. Neste sentido, a identidade tnica o resultado de um

    processo dicotmico desenvolvido na situao de contato intercultural, apresentando

    primeiro um aspecto subjetivo, ou de auto-identificao e construo interna da

    solidariedade do grupo e, depois, um aspecto objetivo expresso na adscrio

    categorial feita pelos outros, ou seja, a rotulao ou o processo bsico de classificao

    definido nos esteretipos.27

    Ao compreendermos os grupos tnicos como formas sociais de

    organizao adaptadas a uma dada situao de contato, passamos a perceber a

    pervasividade caracterstica da etnicidade.

    Como observou Barth, as fronteiras tnicas e os traos culturais so dinmicos

    e no se fixam em uma identidade tnica imutvel. Isto no quer dizer, entretanto, que

    a etnicidade do grupo no permanea, pois ela se concentra em seu sentido

    organizacional e no em seu contedo cultural, como eram caracterizadas as tribos

    at ento. Barth conclui assim que,

    como pertencer a uma categoria tnica implica ser certo tipo de pessoa, com determinada identidade bsica, isto tambm implica o direito de julgar e ser julgado de acordo com normas pertinentes para tal identidade. Mas nenhuma destas classes de contedos culturais se infere a partir de uma lista descritiva dos traos ou diferenas culturais (). Em outras palavras, as categorias tnicas oferecem recipientes organizacionais [organizational vessels] capazes de receber diversas propores e formas de contedo dos sistemas socioculturais.28

    Portanto, existe a possibilidade de grupos culturalmente distintos assumirem

    uma identidade tnica exclusiva a despeito da ausncia de traos ou valores morais

    (diacrticos) comuns aos grupos.29 Como afirmou Barth, o que importa o sentido

    peculiar de organizao das experincias cotidianas dos grupos, ou noutras palavras, o

    27 BARTH, 1976; EIDHEIN, 1976; JENKINS , 1986: CAIUBY NOVAES , 1993. 28 BARTH, 1976: 16. 29 Para exemplos deste tipo de situao de contato intertnico ver BARTH, 1976, sobre a organizao poltica dos Pathans, e MOERMAN, 1965, sobre a construo da identidade dos Lue. Ver trabalho de FIGOLI, 1983 e 1984, um estudo sobre os ndios do Alto Rio Negro, de onde tirei algumas idias para o caso dos ciganos. Ver tambm FAZITO, 1998 onde discuto fato semelhante entre ciganos Roma e Calon em Belo Horizonte.

  • 23

    mecanismo de manipulao dos traos e fronteiras tnicas presentes na situao de

    contato.

    Desta forma, ao contrrio das crticas de Ronald Cohen ao modelo

    desenvolvido por Barth, a etnicidade pode ser entendida como recurso social e

    poltico em uma relao entre grupos culturalmente distintos. Para Cohen, a falha no

    modelo de Barth estaria numa suposta reificao das fronteiras e identidades tnicas

    em formas especficas de organizao. Isto , a preocupao de Barth em salientar a

    caracterstica de permanncia ou resistncia dos grupos tnicos ao longo do tempo e

    do espao apontaria para uma reificao do contedo cultural de tais grupos, em

    formas organizacionais supostamente imutveis.30 Porm, Barth, ao deslocar o foco de

    anlise para a organizao social das experincias (culturais), nos permite

    compreender a etnicidade e os grupos tnicos como formas dinmicas de interao.31

    O que se apresenta peculiar ao fenmeno tnico o fato dos grupos

    manterem uma identidade flexvel e resistente, conferindo ao mesmo tempo

    estabilidade e a possibilidade da mudana. Deste modo, as fronteiras e

    identidades tnicas, antes de serem estticas ou reificadoras de um processo de

    interao, so manipuladas cotidianamente pelos indivduos e grupos de acordo

    com o tipo de organizao de suas experincias.

    1.2 Novos Mapas, Novas Rotas: etnicidade, ideologia e interesse

    Embora Barth concentre sua anlise no processo de formao dos grupos

    tnicos, seu trabalho abre novas possibilidades no campo da etnicidade. Outros

    autores desenvolveram suas pesquisas concentrando esforos sobre outros aspectos

    das relaes intertnicas como a identidade, a ideologia e as fronteiras tnicas. De um

    modo j presente nos trabalhos anteriores de Barth, a etnicidade passa a ser entendida

    como recurso social manipulado ou negociado nas interaes de grupos culturalmente

    distintos.

    Nas anlises sobre a etnicidade como recurso (poltico, principalmente),

    alguns autores tendem a se concentrar nos aspectos representacionais, buscando uma

    compreenso das identidades e ideologias tnicas desenvolvidas na situao de

    30 COHEN, 1978. 31 Cf. BARTH, 1992.

  • 24

    contato.32 A etnicidade, neste caso, percebida como manifestao de representaes

    coletivas produzidas socialmente em uma situao de contato, apresentando

    ideologias de carcter tnico, identidades e fronteiras.

    Para Cardoso de Oliveira, por exemplo, a identidade tnica o resultado de

    uma adscrio categorial (coletiva) que coloca em evidncia diferenas culturais. A

    identidade tnica uma categoria social produzida em situaes sociais onde impera

    essencialmente o conflito entre sociedades em competio.

    Portanto, a identidade contrastiva pois opera negando a existncia do

    Outro. Como afirma Cardoso de Oliveira:

    a identidade contrastiva parece se constituir na essncia da identidade tnica, isto , a base da qual esta se define. Implica a afirmao do ns diante dos outros. Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciao em relao a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. uma identidade que surge por oposio. Ela no se afirma isoladamente. No caso da identidade tnica ela se afirma negando a outra identidade, etnocentricamente por ela visualizada.33

    Segundo esse autor, esta identidade opera no contexto dos sistemas

    intertnicos que se constituem em totalidades sincrticas, isto , situaes de contato

    entre duas populaes dialeticamente unificadas atravs de interesses diametralmente

    opostos, ainda que interdependentes ().34 Esta situao sui generis, chamada de

    frico intertnica por Cardoso de Oliveira, caracteriza-se por seus aspectos

    competitivos e, no mais das vezes, conflituosos, assumindo este contato muitas vezes

    propores totais ().35

    A competio advinda das relaes assimtricas entre os grupos refora o

    etnocentrismo entendido como uma ideologia tnica. Assim, da situao de contato

    emergem representaes que fundamentam as relaes sociais no interior, e apenas no

    interior desta situao.36 Neste sentido, ideologias, identidades e fronteiras tnicas

    poderiam ser concebidas como recursos em uma situao especfica de contato

    32 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976; ARONSON, 1976. 33 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976: 5-6. 34 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972: 117. 35 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972: 118. 36 Mais adiante apresentarei uma alternativa conceitual, pretendendo compreender o fenmeno tnico como performance (experincia social), produto e produtora de smbolos. Assim, poderemos entender que a situao de contato tambm um estado em processo, ou seja, poderamos dizer que a situao de contato foi ou est etnizada. As ideologias, identidades e fronteiras tambm so dinmicas e pervasivas, e assim tenderamos a v-las como aspectos etnizados ou etnizveis que podem configurar a interao em um dado momento.

  • 25

    assimtrico (por exemplo, o tribalismo na frica). E a etnicidade, a partir da, seria

    tratada como um sistema de representaes que emerge atravs do contato e interao

    entre grupos diferentes.

    Dan Aronson afirma que a etnicidade um tipo especfico de ideologia que se

    baseia nas diferenas culturais. Assim, o sistema de smbolos tnicos ou a

    etnicidade propriamente dita cria conscincia coletiva, produz afirmaes sobre a

    condio e perspectiva da sociedade (vista como certos tipos de ns e eles), tornando

    possvel o compromisso e as aes construtivas. A etnicidade deve ser ento um tipo

    particular de ideologia.37

    Mais do que isto, dada a prpria situao do contato (assimetria cultural), este

    sistema de smbolos tnicos seria o produto do dissenso, ou seja, do conflito de

    vises de mundo, das diferenas de origem, laos e interesses.

    Para Aronson, a etnicidade constantemente instilada nestas situaes

    concretas de contato, tanto no plano discursivo, onde os valores morais dos grupos so

    diferentes e s vezes antagnicos, como no plano comportamental, onde podemos

    identificar uma espcie de desengajamento dos indivduos e grupos presentes na

    arena poltica. Isto , quando tais grupos ou indivduos no compartilham valores,

    experincias e sentimentos com outros grupos em interao, podemos nos deparar

    com processos de excluso social e, neste momento, observamos o que Aronson

    chama de desengajamento poltico. Portanto,

    uma ideologia tnica afirma que ns no concordamos com os valores essenciais (ou objetivos e fins) do sistema, e que ns queremos, conseqentemente, ficar ss (talvez com recursos suficientes) para podermos perseguir nossos prprios objetivos ().38

    Alm disto, podemos dizer que Aronson utiliza aqui a noo de ideologia

    como sistema cultural seguindo a definio de Clifford Geertz.39 Conseqentemente,

    a etnicidade deve ser entendida tambm como sistema cultural, ou seja, um sistema de

    smbolos tnicos responsvel pela produo de esquemas mentais, mapas, metforas e

    sentimentos dos indivduos e grupos estabelecidos numa situao de contato cultural.

    37 ARONSON, 1976: 13. 38 ARONSON, 1976: 15. 39 Para Geertz, a ideologia deve ser entendida como um sistema cultural que se configura em um modelo simblico ativo, isto , um modelo de esquemas, mapas, imagens e metforas que conferem

  • 26

    A identidade tnica vista como representao coletiva, responsvel pela

    atualizao cotidiana das ideologias e tradies dos grupos tnicos, apresentaria como

    principal funo mas no apenas esta a fixao de atributos (diacrticos),

    concretos ou simblicos, aos indivduos e grupos. O que importa que estes atributos

    esto arranjados coerentemente dentro de um sistema de representaes conferindo

    um significado social s aes sociais.

    A identidade, neste caso, funciona como recurso social que fundamenta a

    solidariedade do grupo a partir do momento em que atributos e valores sociais passam

    a ser reconhecidos e assimilados coletivamente.

    Para alguns autores,40 a fixao de atributos e valores pela identidade tnica s

    pode ser compreendida se analisarmos a interao entre os grupos atravs da relao

    estabelecida entre discursos e prticas sociais.

    Assim, Caiuby, por exemplo, sugere que () a identidade s pode ser

    evocada no plano do discurso e surge como recurso para a criao de um ns coletivo.

    Este ns se refere a uma identidade (igualdade) que efetivamente nunca se verifica,

    mas que um recurso indispensvel ao nosso sistema de representaes.41

    Deste modo, a identidade tnica pode atuar como um recurso utilizado pelos

    grupos tnicos na situao de contato, com o objetivo de articular e legitimar, em um

    plano discursivo, valores, interesses e sentimentos comuns. A comunidade tnica

    parece surgir a partir desta primeira tentativa de estabelecer uma categoria expressiva

    e exclusiva de distino a identidade tnica.

    A solidariedade fabricada pela comunidade tnica se apresenta como

    qualquer tipo de solidariedade social onde o elemento essencial o consenso coletivo.

    Mas, alm da construo da ordem coletiva, esta solidariedade tambm se encontra

    particularizada no interior de um processo intenso de negao. Esse tipo de

    solidariedade emerge de uma situao adversa e no apenas da harmonia da ordem

    moral, no sentido durkheimiano onde a diferena e, como mostrou Aronson, o

    dissenso cumprem um papel fundamental. A identidade tnica (identidade

    contrastiva), e sua ideologia so o produto de uma solidariedade fabricada tambm

    por experincias marcadas pelo contraste, pela excluso, pela diferena e pelo

    conflito.

    significados s aes humanas. A ideologia serve, portanto, como um guia cultural de respostas s dvidas apresentadas pela natureza humana. Cf.: GEERTZ, 1973: 215-220. 40 BOURDIEU, 1980a; CAIUBY NOVAES , 1993; CUNHA, 1978. 41 CAIUBY NOVAES , 1993: 24.

  • 27

    Podemos ento concluir, primeiro, que a etnicidade incorporada tanto nos

    discursos quanto nas prticas ou experincias cotidianas de indivduos e grupos;

    segundo, que as identidades, ideologias e fronteiras podem ser consideradas como

    produtoras (ou pelo menos facilitadoras) de um tipo de solidariedade social onde o

    consenso interno e, principalmente, o dissenso externo caracterizam a organizao

    social do grupo ou do que podemos chamar de comunidade tnica.

    Manuela Carneiro da Cunha, em interessante trabalho, salienta o aspecto

    organizacional da comunidade tnica sem no entanto abrir mo da dimenso

    discursiva como ponto de partida para a compreenso da formao dos grupos

    tnicos.42

    Assim como Max Weber, Cunha procura mostrar o sentido organizacional

    desses grupos definidos como comunidades polticas. Porm, enquanto em Weber43 as

    comunidades tnicas eram formas de organizao responsveis pela distribuio de

    poder entre grupos e indivduos, para Cunha, mais que isto, o estabelecimento das

    comunidades tnicas implica a conquista e produo de espaos sociais estratgicos.

    Cunha parece focalizar os aspectos substantivos incorporados pela etnicidade

    apresentando a linguagem como o fator essencial de expresso e organizao tnica.

    Os grupos se utilizariam da linguagem como um recurso manipulvel, de maneira

    estratgica, com o objetivo de demarcar, etnicamente, os espaos sociais em disputa.

    O carter manipulativo, estratgico e instrumental da etnicidade fica

    evidenciado no processo que transforma a linguagem, meio bsico de comunicao,

    em um veculo social de organizao poltica dos grupos em torno do poder e outros

    recursos sociais. Assim, a linguagem passa a ser entendida como retrica, produtora

    de percepes e sentimentos, identidades e fronteiras, significados e metforas.

    A noo de retrica, aqui, nos permite entender porque a etnicidade to

    pervasiva, to flexvel e ao mesmo tempo to resistente. A retrica, como o

    significado de um signo, s pode ser compreendida em um dado contexto, sendo que

    esta retrica tnica capaz de fabricar novas expresses e significados, reinventando

    at mesmo os valores culturais pertencentes tradio, aparentemente fixos e

    arraigados.

    42 CUNHA, 1978. 43 Para Weber, as comunidades tnicas fundamentam uma ao comunitria especfica, isto , poltica. Ao contrrio das classes que organizam a distribuio (econmica) do poder nas situaes de mercado, as comunidades tnicas se assemelham bastante aos estamentos, onde o poder distribudo de acordo com os laos primordiais da origem social e da honra estamental. (Cf.: WEBER,1982: 221-2).

  • 28

    O drama social que experimentam as culturas em contato possibilita a

    constante reinveno de suas tradies, com o objetivo de se adaptarem

    organizacionalmente e captarem recursos da melhor maneira possvel. Por isto, apenas

    a existncia de uma origem comum, a despeito da fora afetiva do lao de sangue, no

    garante uma mesma identificao tnica.

    Como afirma Manuela Carneiro da Cunha, o significado de um signo no

    intrnseco, mas funo do discurso em que se encontra inserido e de sua estrutura. A

    construo da identidade tnica extrai, assim, da chamada tradio elementos culturais

    que, sob a aparncia de serem idnticos a si mesmos, ocultam o fato essencial de que,

    fora do todo em que foram criados, seu sentido se alterou.44

    Mas a alterao do significado o resultado da manipulao atravs de

    discursos e prticas expressos por uma retrica particular, ou seja, a prpria

    etnicidade. Em um outro sentido, Cunha v esta forma de retrica como a objetivao

    das relaes de produo em um contexto cultural definido. Assim, a etnicidade,

    alm de ser uma forma particular de retrica, pode ser vista tambm como um

    tipo organizacional das relaes de produo.45

    Abner Cohen parte do princpio de que a etnicidade essencialmente uma

    forma de interao entre grupos culturais operando em um mesmo contexto.46 Desta

    forma, o carter tnico presente no sistema social s pode existir desde que haja um

    conjunto de smbolos, normas, valores e interesses diferenciados culturalmente.

    Segundo Cohen, a etnicidade depende da capacidade que o sistema simblico de um

    grupo tem para se impor, objetivamente, sobre outro. Assim, os smbolos (tnicos,

    neste caso) do territrio, parentesco, religio, linguagem etc. so responsveis pela

    criao de uma objetividade que se impe sobre a experincia cotidiana dos grupos e

    indivduos. Esta objetividade gerada pelos smbolos responsvel pela etnicidade que

    deve ser assimilada reflexivamente pelos indivduos em suas prticas cotidianas. Por

    isto, segundo Cohen, experincias de grupos e indivduos ao longo da situao de

    contato so, com freqncia, tensas e conflituosas, pois a oposio de um sistema de

    smbolos em relao a outro pode gerar desequilbrio e desigualdade. Em

    Interessante notar ainda, como ser analisado mais adiante, a influncia desta noo weberiana da etnicidade e nacionalismo sobre o pensamento de Clifford Geertz. 44 CUNHA, 1978: 2. 45 Diferentemente da sociedade capitalista ocidental, onde as relaes desiguais de produo se expressam e engendram, segundo Marx, as classes sociais, para Manuela Carneiro da Cunha, nas culturas do contato, estas relaes de produo seriam expressas pela etnicidade. 46 COHEN, 1974: xi.

  • 29

    conseqncia, a situao de contato intertnico pode fundamentar a competio pelo

    poder de deciso e de distribuio dos recursos sociais.

    Como vimos, para Cohen a etnicidade definida numa situao onde se

    confrontam diferentes sistemas simblicos (representacionais) que agem

    objetivamente sobre as experincias individuais (subjetivas). Assim,

    um grupo tnico no simplesmente a soma total de seus membros individuais, e sua cultura no a soma total das estratgias adotadas por indivduos isolados. Normas, crenas e valores so efetivos e tm seu prprio poder de constrangimento simplesmente pelo fato de serem representaes coletivas de um grupo e estarem moldados sobre este grupo.47

    Embora Cohen ressalte a importncia das prticas individuais, da manipulao

    das regras, smbolos e valores, esta capacidade instrumental dos indivduos para

    escolher estratgias de acordo com seu interesse , de fato, moldada pelo sistema de

    representaes coletivas. As estratgias so manipuladas de acordo com os interesses

    dos grupos representados coletivamente e tais interesses so, assim, expressos

    atravs de um sistema simblico organizado.

    O fenmeno do tribalismo surge em um momento em que a imigrao de

    grandes grupos e a desordem dos centros urbanos toma lugar no cenrio da maioria

    dos Novos Estados Africanos. As cidades africanas recebiam grande contingente

    populacional devido aos conflitos de independncia e s dissenses polticas entre

    vrios grupos tribais. Verificava-se ainda a modificao das regras no mercado de

    trabalho, provocando o deslocamento de grandes grupos de populao para as cidades

    em busca de trabalho.

    Deste fenmeno emergiram situaes de contato em que grupos variados

    passaram a interagir de maneira competitiva e conflituosa na disputa por recursos

    locais. A etnicidade passa a ter um lado importante na vida das pessoas, pois

    contribua para a organizao dos grupos e para a distribuio dos recursos sociais.

    Segundo Cohen (e outros antroplogos britnicos),48 a etnicidade parece

    emergir dessa situao de contato no meio urbano, onde os grupos tnicos podem se

    organizar em linhas informais de ao, a partir de interesses coletivos especficos ,

    47 COHEN, 1974: xiii. 48 Ver coletnea organizada por Abner Cohen (Urban Ethnicity, 1974), que expressa a mudana das perspectivas antropolgicas adotadas pela antropologia social britnica em relao ao fenmeno tnico e tribalismo.

  • 30

    e assim funcionam como mecanismo de proteo e organizao que possibilita a

    competio por recursos e poder.

    Para Cohen, devido dificuldade para se organizarem em linhas formais de

    ao poltica (Estado, sociedade civil ou mercado), os grupos tnicos acabam por se

    tornar grupos polticos informais de interesse esta seria a caracterstica essencial de

    um grupo tnico.49 Estes grupos articularo sua organizao em linhas informais,

    fazendo uso do parentesco, redes de amizade, rituais, cerimnias, e outras atividades

    simblicas que esto implcitas no que conhecido como estilo de vida.50

    Cohen aponta para um aspecto importante sobre a etnicidade e o

    desenvolvimento do nacionalismo contemporneo. Ao mesmo tempo em que os

    grupos tnicos desempenham um papel fundamental na proteo de interesses

    coletivos e na consecuo de objetivos para o grupo, constituem-se tambm em

    grupos informais de ao, permitindo a integrao de indivduos em situaes de

    contato instveis, em contextos sociais flexveis e processos de integrao

    pervasivos.

    Os grupos tnicos permitem a emergncia de uma organizao em que

    aparentemente apenas o Estado ou o mercado conseguem se manter como veculos

    institudos para ao.

    Talvez assim possamos compreender o porqu da emergncia de movimentos

    nacionalistas e tnicos no mundo contemporneo, em situaes aparentemente

    desprovidas de ordem social, ou onde impera o conflito. Antes do conflito ser o

    produto da interao entre minorias nacionais e tnicas, pode ser a causa do

    alinhamento de indivduos e grupos em formas flexveis de organizao da

    experincia cotidiana (a etnicidade).

    No entanto, um outro aspecto intrnseco formao do grupo tnico, a

    solidariedade, pouco discutida por Cohen, recebe em Ralph Grillo um enfoque mais

    destacado. Isto porque, para este autor, a etnicidade se constitui em uma forma de

    49 Isto , organizacionalmente, um grupo tnico agrega indivduos que possuem um interesse comum e no apenas normas ou valores culturais. A diferena que, segundo Cohen, estes interesses so expressos objetivamente por um sistema de smbolos que d forma e motivo formao do grupo. Estes grupos, no entanto, no tm competncia nem conscincia prtica para agirem politicamente segundo as formas institudas pelo Estado ou pelo mercado e isto discutvel, como veremos mais frente. Por isto, ainda segundo este autor, os grupos tnicos se alinhariam informalmente, com grande freqncia, em torno de interesses simbolizados em traos diacrticos concretos e evidentes, como o parentesco ou a lngua. 50 COHEN, 1974: xvii.

  • 31

    ideologia produtora de solidariedade desenvolvida em determinadas situaes

    sociais.51

    Assim, a etnicidade se apresentaria, no princpio, como ideologia ou sistema

    simblico classificador e ordenador da realidade. Depois, como um sistema coerente

    de representaes coletivas, esta ideologia especificaria e determinaria o teor das

    relaes entre indivduos e grupos, fundamentando a solidariedade caracterstica do

    grupo tnico.

    Seguindo uma definio mais geral de Grillo, a etnicidade percebida como a

    classificao ou ordenao do mundo humano em um conjunto compreensivo de categorias definidas segundo as idias de uma origem comum, ancestralidade e herana cultural. Esta classificao geralmente uma ideologia que especifica a relao entre aqueles com as mesmas ou diferentes identidades (). Esta ideologia pode ser considerada no tanto como prescritiva de solidariedade, mas antes, como provedora de um conjunto de idias e smbolos a partir dos quais a afirmao da solidariedade (ou oposio) pode ser feita nas relaes entre grupos e indivduos.52

    Vemos aqui que a etnicidade, como tipo especfico de ideologia, torna-se a

    fonte de solidariedade do grupo tnico. Tal solidariedade, em ltima instncia,

    preserva a coeso e a ordem interna do grupo, e ainda estabelece o teor das relaes

    entre grupos e indivduos.

    Grillo tambm se preocupa com os comportamentos tnicos pois estes, de

    algum modo, influem na ordem interna dos grupos e dependem, em alguma medida,

    do reconhecimento de normas e valores coletivos expressos pela ideologia tnica,

    neste caso.

    Um aspecto j salientado nos trabalhos de Abner Cohen e Clyde Mitchell53

    apontava para o descompasso existente entre o comportamento tnico e a cognio

    tnica, ou seja, o reconhecimento das normas e valores do grupo. Para estes autores,

    esse descompasso mostra, na realidade, muito mais uma falha dos modelos dos

    cientistas ao analisar os diversos focos da situao de contato do que um problema

    emprico real.

    51 Discutiremos mais adiante a importncia da solidariedade nos trabalhos sociolgicos americanos, como em Glazer e Moynihan, Talcott Parsons e Daniel Horowitz (Todos na mesma coletnea, GLAZER e MOYNIHAM, 1975). 52 GRILLO, 1974: 159. 53 COHEN, 1974; MITCHELL, 1974.

  • 32

    Para Grillo, no entanto, o descompasso entre comportamento e cognio um

    problema de classificao e ao. Os grupos estabelecem vnculos simblicos

    (parentesco, lngua, territrio etc.) que so organizados coletivamente em um sistema

    de representaes. Tal sistema constitui uma referncia para as aes e

    comportamentos individuais e coletivos que se inserem em um contexto definido

    ideologicamente pelos smbolos (diacrticos) e instrumentalmente evocao

    da solidariedade e dos interesses coletivos.

    A partir desta relao entre ideologia, solidariedade e interesse, os grupos se

    organizam em bases informais de ao. Os comportamentos gerados por esta

    interao de fatores poderiam produzir contradies, pois o sistema de smbolos

    tnicos e os interesses coletivos no so fixos ou constantes, mas antes, ambguos e

    descontnuos.

    Para Grillo, uma forma de se contornar a ambigidade e a descontinuidade dos

    smbolos e interesses e, conseqentemente, dos comportamentos est na anlise da

    construo das identidades e fronteiras tnicas definidoras da solidariedade interna do

    grupo. Embora essa solidariedade seja tambm o produto das contradies entre

    ideologias e comportamentos, seu aspecto moral parece ser mais estvel e perene.

    Portanto, atravs das identidades e fronteiras tnicas poderamos visualizar a

    formalizao de grupos tnicos que se alinham a partir de interesses comuns e

    sentimentos de solidariedade. Como salientou Fredrik Barth, estas fronteiras e

    identidades tendem a resistir mais aos constrangimentos e conflitos ao longo do tempo

    e do espao.54

    Grillo observa, sobre a identidade, um aspecto instrumental normalmente

    negligenciado, pois, com freqncia, a identidade tnica compreendida como

    categoria de um sistema de representaes. Percebemos a identidade apenas como

    produto construdo ou categoria fabricada, mas no como veculo ou alternativa para

    ao.

    Grillo chama a ateno para a utilizao das identidades tnicas como formas

    ou conjuntos que agregam papis e status, definindo as alternativas de ao ao longo

    das interaes. Deste modo,

    as identidades implicam ou podem ser usadas para implicar uma tradio comum, cultura e interesses. Elas podem tambm serem vistas pelas pessoas como uma necessidade de valores comuns e um tipo comum de

    54 BARTH, 1976: 20-22.

  • 33

    personalidade (). Ento, a identidade tnica, assim como a educao, pode ser usada para alocar um modo de comportamento apropriado para duas pessoas estabelecerem uma relao. A identidade tnica, conseqentemente, apresenta um conjunto de status e um conjunto de papis com os quais os indivduos operam nas esferas de relaes intertnicas e intra-tnicas.55

    At este momento apresentei diversas perspectivas tericas sobre a etnicidade.

    O que deve ser salientado, no entanto, o aspecto organizacional que caracteriza o

    grupo tnico e fundamenta um determinado sistema simblico.

    Como vimos, a etnicidade produzida de maneira peculiar a partir de

    contextos de contato intercultural (assimtricos ou no), onde as identidades,

    ideologias e fronteiras grupais se mostram ao mesmo tempo dinmicas, flexveis e

    resistentes. Veremos agora outras alternativas de anlise em que a etnicidade vista

    como a fuso entre interesses e laos primordiais.

    1.3 Etnicidade Como Focus de Solidariedade

    De maneira diferente das anlises anteriores desenvolvidas pelos antroplogos

    britnicos, a sociologia americana tendeu a tratar o fenmeno da etnicidade como um

    problema concernente s clivagens na estrutura social das sociedades ps-

    industriais.56

    Assim, a idia da etnicidade como produto de uma situao de contato

    intercultural deixada de lado em favor da anlise da estrutura social das sociedades

    contemporneas, onde a etnia se apresenta como uma varivel dentre outras (classe,

    gnero ou religio, por exemplo).

    Harold Isaacs procura salientar os traos primordiais dos grupos tnicos,

    entendendo que o aspecto mais importante da etnicidade reside nos laos sociais que

    identificam, afetivamente, os indivduos com seu grupo de origem podemos dizer

    portanto que os laos primordiais (primordial ties) expressam solidariedade.57

    Neste sentido, Isaacs aponta o nome, a histria de origem (mitos e lendas), a

    lngua, a religio, a territorialidade e especialmente o corpo como formas especficas

    55 GRILLO, 1974: 166. 56 O texto de Daniel Bell (1975) apresenta uma anlise das modificaes estruturais nas sociedades capitalistas ps-industriais. A etnicidade apresentada como um novo tipo de clivagem na estrutura social assim como classe, gnero, idade etc. 57 ISAACS, 1975.

  • 34

    de integrao e identificao dos indivduos com o grupo. So traos diacrticos

    ordenados com o objetivo de elaborar um significado especfico existncia do grupo

    tnico.

    No obstante a importncia de cada um desses aspectos, o corpo, no esquema

    de Isaacs, apresenta-se como a fonte principal da etnicidade, pois funciona como self

    identificando a prpria sociedade, fornecendo-lhe a fora vital de distino e de

    pertencimento. Isto , o corpo implica na relao fundamental de indissociabilidade

    entre indivduo e sociedade, e assim torna-se a primeira forma de identificao social

    dos indivduos e do prprio grupo. Nos termos de Isaacs a identidade bsica mais

    geral, aquela que sustenta todos os outros diacrticos (nomes, tradies, mitos,

    topofilias etc.) e fundamenta as relaes entre os indivduos e o grupo.58

    A etnicidade expressa, portanto, relaes sociais de um tipo especfico entre os

    indivduos e seu grupo, onde o corpo se apresenta como fonte de identificao e

    integrao entre seus indivduos e sua prpria sociedade.

    De outro modo, Glazer e Moynihan vem nos grupos tnicos uma nova forma

    de vida social capaz de se renovar e de se transformar constantemente. A etnicidade

    aqui tambm evocada como princpio organizacional pois, segundo Glazer e

    Moynihan, os indivduos passam a organizar seus interesses e a solidariedade a partir

    de novas categorias sociais, isto , categorias tnicas.

    Assim, nas sociedades contemporneas, a mobilizao poltica dos grupos

    passa a ser determinada por clivagens tnicas, substituindo muitas vezes a prpria

    classe social. Glazer e Moynihan seguem afirmando que

    um novo elemento na presente situao que o interesse efetivamente perseguido pelos grupos tnicos hoje, assim como os grupos de interesse: de fato, talvez esses interesses possam mesmo ser mais efetivamente perseguidos. Como formas de identificao social e conflito contra aquelas baseadas nas classes que obviamente continuam existindo ns temos sido surpreendidos pela persistncia e salincia de formas de identificao social e conflito baseadas na etnia. Uma das caractersticas marcantes da presente situao que, de fato, ns encontramos os grupos tnicos em grande medida definidos em termos de interesses, isto , como um grupo de interesses.59

    Portanto, a mobilizao coletiva em torno de interesses e solidariedade se

    58 ISAACS, 1975: 38. 59 GLAZER e MOYNIHAM, 1975: 7.

  • 35

    intensificaria hoje sobre bases tnicas, sobrepondo-se muitas vezes s classes. Neste

    sentido, podemos dizer que os grupos passam a se organizar ao longo de linhas de

    ao etnizadas como meio efetivo talvez o mais efetivo de aquisio de

    recursos.60

    Vimos que Abner Cohen j havia concludo que os grupos tnicos atuam como

    grupos de interesse. Mas, diferentemente de Glazer e Moynihan, para Cohen tais

    grupos so organizaes informais que emergem em situaes de contato cultural

    muito especficas como o tribalismo esfacelado das grandes cidades africanas.

    Encontramos aqui uma nova abordagem, em que os grupos tnicos surgiam como

    novas formas de organizao da vida social. Essas organizaes so efetivas, no

    sentido de formarem grupos formais reconhecidos social e politicamente como

    mobilizadores de interesses coletivos e de solidariedade. Para Glazer e Moynihan, os

    grupos tnicos rivalizam no apenas com as classes sociais mas tambm com o

    Estado, no sentido de que engendram e instituem uma nova ordem coletiva

    baseada nos fundamentos tnicos de um novo tipo de solidariedade, diversa daqueles.

    Com certeza, um dos aspectos que mais chama a ateno na formao dos

    grupos tnicos atualmente sua importncia estratgica para a mobilizao coletiva

    de interesses. Como Glazer e Moynihan apontaram, os grupos tnicos so hoje

    importantes agentes polticos que lutam em arenas muitas vezes no-

    institucionalizadas, geralmente contra grupos dominantes instalados nos aparelhos de

    Estado.

    Leo Desprs nos fornece um exemplo interessante sobre a estratificao social

    e a formao de grupos tnicos numa situao de conflito na Guiana.61 Neste caso, a

    etnicidade emerge como uma forma de organizao e identificao dos indivduos e

    grupos contra uma situao de desigualdade e excluso social. Poucos grupos tnicos

    estavam presentes no Estado, de tal modo que alguns grupos detinham o poder

    poltico em detrimento de outros. A desigualdade quanto representao poltica no

    Estado implicava a desigualdade no status tnico de cada indivduo na sociedade

    guianesa.

    Deste modo, para Desprs, a identidade tnica no operava apenas como

    categoria de adscrio, mas antes como recurso social utilizado em determinadas

    60 Roberto Cardoso de Oliveira (1976) tambm sugere, atravs da anlise sobre a frico intertnica e os sistemas de dominao assimtrica, como no caso dos ndios brasileiros rotulados como caboclos, a intensificao das relaes intertnicas em linhas polticas de ao. 61 DESPRS, 1975.

  • 36

    situaes, o que provocou, em vrias ocasies, a mobilizao de grupos tnicos em

    disputa por interesses comuns, objetivando proteo contra as desigualdades e a

    dominao de certos grupos instalados no aparelho de Estado.62

    A emergncia de grupos tnicos na arena poltica significa a afirmao das

    diferenas frente tentativa de homogeneizao imperativa do Estado sobre os

    diversos grupos e indivduos. Mais que mobilizar indivduos em grupos de interesses,

    a etnicidade fornece ao indivduo uma identidade distinta que diz respeito a diferenas

    normativas e valorativas.

    Se esta relao por um lado negativa,63 por outro ela tambm pode ser

    positiva, como afirmam Glazer e Moynihan, ao contribuir para o estabelecimento de

    uma pluralidade de valores e normas, buscando a igualdade de possibilidades e

    recursos dentro de uma sociedade plural.

    neste sentido que, como uma idia poltica, como um princpio de

    mobilizao, a etnicidade em nossos dias tem se espalhado em todo o mundo com a

    curiosa consequncia da semelhana e distino (...).64

    O reconhecimento da emergncia dessas novas formas de organizao social

    imediato ao constatarmos a presena cada vez mais incisiva das organizaes tnicas

    em seu sentido poltico em movimentos sociais, fundando novas associaes e

    freqentemente se institucionalizando na busca de um espao na arena poltica.

    Ao contrrio de Aronson, que percebeu na etnicidade o resultado do dissenso e

    do desengajamento, Glazer e Moynihan enfocam o aspecto positivo da etnicidade

    como propiciadora de mobilizao e participao poltica em um mundo globalizado.

    Este aspecto se destaca atravs da compreenso das fronteiras e identidades tnicas,

    62 Para Desprs, a etnicidade se apresenta concretamente na relao entre identidade tnica e categoria social entendida muito mais como um problema de definio estratgica do status (poderia dizer mesmo do rtulo) individual do que um problema de hierarquia social, ou seja, de hierarquizao das classes sociais (Desprs, 1975: 144). Portanto, a etnicidade implica na negociao por recursos, onde a prpria identidade um recurso social isto , status imperativo que confere presena de poder (se o grupo a que pertence dominante) ou a falta deste (se seu grupo minoritrio). Seguindo esta mesma linha de raciocnio, Ro