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PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E NOVOS ALCANCES 30 anos da gravação de Madalena do Jucu: DÉBORAH NICCHIO SATHLER Déborah Nicchio Sathler é colatinense, jornalista, oralista, empresária artística, Mestra em Humanidades, Culturas e Artes (Unigranrio), atuou como repór- ter em Vitória (ES) em passagens pelas rádios Gazeta AM e Espírito Santo, e ainda na TV Educativa/ES. Escolheu o jornalismo social e em sua trajetória conquistou cinco prêmios, sendo três pela Associação Brasileira de Comuni- cação Empresarial (Aberje), com ma- térias que abordaram temáticas sociais como a prostituição de meninas no entorno dos portos, esquizofrênicos e adolescentes de classe média envolvidos com o crime. Atuou no Rio de Janeiro de 2011 até 2016 como consultora de Comunicação em projetos ligados ao terceiro setor e economia cultural criati- va. Ministrou media training e trabalhou como editora de conteúdo para mídias digitais em agências cariocas. Ativista em defesa das culturas tradicionais e engajada na causa da liberdade religio- sa, sua linha de pesquisa é identidade, gênero e etnia e sua dissertação de mestrado teve como tema “História oral de vida: identidade e gênero no segmento cigano”. Teve como orienta- dor o historiador Prof. Dr. José Carlos Sebe Bom Meihy, pioneiro nos estudos em História Oral no Brasil e coordena- dor do NEHO -Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (USP). Déborah define-se como uma estimuladora de voos próprios e alheios, como uma mulher que nasceu para os bastidores e para as escutas, na tentativa de compreender as margens que beiram o universo das oralidades. Sente-se realizada com a missão que escolheu de labutar para amplificar vozes, narrativas humanas, por meio do registro da memória e identidade social. 30 ANOS DA GRAVAÇÃO DE MADALENA DO JUCU: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E NOVOS ALCANCES | Déborah Nicchio Sathler

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PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E NOVOS ALCANCES

30 anos da gravação de Madalena do Jucu:

DÉBORAH NICCHIO SATHLER

Déborah Nicchio Sathler é colatinense, jornalista, oralista, empresária artística, Mestra em Humanidades, Culturas e Artes (Unigranrio), atuou como repór-ter em Vitória (ES) em passagens pelas rádios Gazeta AM e Espírito Santo, e ainda na TV Educativa/ES. Escolheu o jornalismo social e em sua trajetória conquistou cinco prêmios, sendo três pela Associação Brasileira de Comuni-cação Empresarial (Aberje), com ma-térias que abordaram temáticas sociais como a prostituição de meninas no entorno dos portos, esquizofrênicos e adolescentes de classe média envolvidos com o crime. Atuou no Rio de Janeiro de 2011 até 2016 como consultora de Comunicação em projetos ligados ao terceiro setor e economia cultural criati-va. Ministrou media training e trabalhou como editora de conteúdo para mídias digitais em agências cariocas. Ativista em defesa das culturas tradicionais e engajada na causa da liberdade religio-sa, sua linha de pesquisa é identidade, gênero e etnia e sua dissertação de mestrado teve como tema “História oral de vida: identidade e gênero no segmento cigano”. Teve como orienta-dor o historiador Prof. Dr. José Carlos Sebe Bom Meihy, pioneiro nos estudos em História Oral no Brasil e coordena-dor do NEHO -Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (USP). Déborah define-se como uma estimuladora de voos próprios e alheios, como uma mulher que nasceu para os bastidores e para as escutas, na tentativa de compreender as margens que beiram o universo das oralidades. Sente-se realizada com a missão que escolheu de labutar para amplificar vozes, narrativas humanas, por meio do registro da memória e identidade social.

30 ANOS DA GRAVAÇÃO DE MADALENA DO JUCU: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E NOVOS ALCANCES | Déborah Nicchio Sathler

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PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E NOVOS ALCANCES

30 anos da gravação de Madalena do Jucu:

DÉBORAH NICCHIO SATHLER

VITÓRIA, ES2019

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1ª EDIÇÃO

APOIO

Secretaria de Estado da Cultura

PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E NOVOS ALCANCES

30 anos da gravação de Madalena do Jucu:

DÉBORAH NICCHIO SATHLER

Realizado com recursos do:

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Copyright 2019 Déborah Sathler

EDITORA: Déborah SathlerFOTOS DE CAPA E CONTRACAPA: Zanete Dadalto

REVISÃO: Aída Bueno BastosCRÉDITOS FOTOGRÁFICOS: Acervo pessoal, Zanete Dadalto e Romildo Neves

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: BiosIMPRESSÃO: GSA

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)(Zapter; Organização Documental, ES, Brasil) www.zapter.com.br – [email protected]

S253 Sathler, Déborah Nicchio, 1982- 30 anos da gravação de Madalena do Jucu : perspectivas históricas e novos alcances / Déborah Nicchio Sathler. – Vitória : Ed. do autor, 2019. 100 p. : il. ; 28 cm.

ISBN 978-85-8173-174-2. Publicada com recursos do Funcultura (Secretaria da Cultura do Estado do Espírito Santo).

1. Congo capixaba. 2. Bandas de congo. 3. Cultura popular – Espírito Santo (ES). 4. Folclore – Espírito Santo (ES). 5. Música popular – Espírito Santo (ES). I. Título.

CDD: 398.098152 782.42164098152 CDU: 398(8152) 784.4(8152)

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DeDicatória

Este livro é dedicado às muitas Madalenas capixa-bas e brasileiras, meninas e mulheres culturais. E a minha Madalena do Espírito Santo Sathler Ferreira (in memoriam), minha menina do congo e do samba, que nasceu no dia do Advento e com quatorze dias de vida foi dançar no céu. Exatamente no dia seis de janeiro de 2019, Dia de Reis, das manifestações culturais do Congo no Espírito Santo, minha terra, e da Folia de Reis em Duas Barras, no Rio de Janeiro, terra da família Ferreira. Madalena teve o primeiro nome escolhido pelo pai, meu companheiro de vida e amor, Tunico da Vila e de Vitória. E o segundo nome escolhido pelo avô Martinho José Ferreira.

Para o meu filho cigano Higor e os filhos que a vida me deu. Para os meus amados pais Nice Nicchio e Lézio Sathler. E a meu dengo, minha vovó Bi. Bartalô!

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Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

CAPÍTULO 1

Contexto histórico e cultural: a chegada de Martinho da Vila na Barra do Jucu . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1.1 Breve voo no final dos anos de 1980 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

1.2 O filho do calango bibarrense se apaixonou pelo congo capixaba . . . . . . . 16

1.3 “O Canto das Lavadeiras” e o legado das culturas populares . . . . . . . . . . 23

CAPÍTULO 2

O olhar dos integrantes do congo e os reflexos culturais pós-gravação de “Madalena do Jucu” . . . . . . . . . . 33

2.1 Sonhos e desejos dos integrantes da cultura do congo capixaba . . . . . . . . . 35

2.2 Madalenas e Novas Madalenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

CAPÍTULO 3

As negociações identitárias e o hibridismo das culturas do congo capixaba e o samba carioca com a gravação de “Madalena do Jucu” . . . . . . . . . . . . . . . . 57

3.1 Congo e Samba – hibridismo cultural e memória afetiva banta . . . . . . . . 59

3.2 Novos Alcances . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

CAPÍTULO 4

Os desafios para a cultura do congo no Espírito Santo na contemporaneidade . . . . . . . . . . . . . . 83

4.1 Apontamentos finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

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Introdução Trabalhar com História Oral continua sendo um dos maiores desafios da

minha vida. Tecer parte da história de vida das pessoas e de marcos históricos per-mitem ampliar o meu olhar oblíquo, pois em cada detalhe das narrativas enxergo uma ponta de arte, um tom de narrativa e um tipo de narrador (a). Bauman (2005) diz que sem seleção não haveria história, e que “é missão das histórias selecionar, e é de sua natureza incluir excluindo e iluminar lançando sombras”. Em cada luz, sombra, voz e apagamento, pude estar diante de seres humanos essencialmente culturais, com frontes tingidas de arte. Que privilégio foi perceber que o mundo possui tantos sentidos e potências.

Decidi remexer em histórias de vida na busca de uma memória social e escrever sobre o que mais me instiga, a cultura, lidando de perto com o modo de ler a vida de membros de comunidades tradicionais. Foi com muito respeito a cada um dos co-labor-adores e dedicação ao projeto de registro da publicação impressa de atividades, história e memória da música capixaba, “30 anos da gravação de Madalena do Jucu: perspectivas históricas e novos alcances”, que por meio da História Oral adentrei ao campo de pesquisa narrativa, desta vez na minha terra, no meu chão ancestral. Já trabalhei com outros grupos de comunidades tradicionais e segmentos, dos ciganos e das operárias fabris. As comunidades da cultura do con-go com as quais trabalhei, e o segmento cultural artístico envolvido nesse projeto, me proporcionaram o que chamo de “encontros encantados”. Investiguei, realizei escutas humanizadas com a colaboração de diversos agentes culturais e de Mestres como Daniel dos Santos, da Banda de Congo Mestre Honório, e Valdemiro Sales, da Banda de Congo Panela de Barro, sábios anciões da cultura do congo na bucólica vila de pescadores da Barra do Jucu, em Vila Velha, e em Goiabeiras, em Vitória. E ainda das matriarcas do congo, guardiãs dos tambores, Ester Vieira, e Dorinha Vieira da Banda de Congo Tambor de Jacarenema, da Barra do Jucu, e o Mestre Ricardo Sales, da Banda de Congo Amores da Lua, jovem corajoso da cultura do congo de Santa Marta, em Vitória. Todos me permitiram imergir, adentrar em suas casas, conhecer suas famílias, memórias e universos. Ter contato com essa cultura me fez refletir como saberes podem promover altivez, estima coletiva e um fluir de energias em diferentes espaços e tempos.

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Iniciei essa viagem de mãos dadas com muitos, por acreditar que, como ora-lista, essa experiência minimiza traumas, transforma vidas, registra marcas psíquicas e afetivas do inconsciente cultural. Além de estar intrinsecamente ligado à minha ancestralidade feminina. Minha bisavó materna, Maria Fernandes Martinelli, nas-ceu na região de Goiabeiras, do congo e das paneleiras, reduto de tudo que é mais africano no capixabismo impresso em meu ser. No trabalho de registro, encontrei muitas mulheres no caminho e, é claro, como pesquisadora de gênero, esse meu olhar sempre será aguçado. As labutadoras da cultura do congo proporcionaram as narrativas num viés de empoderamento. Fiz essa travessia na companhia dos meus colaboradores, Zanete Dadalto e Romildo Neves nos registros imagéticos, e Tunico da Vila no registro musical, que atentamente ouviu as histórias e toadas recheadas de ancestralidade. Tunico, meu companheiro de vida, foi também colaborador com parte da pesquisa, dispondo de sua memória e conhecimentos adquiridos em seus vinte e cinco anos de carreira como músico internacional e sua vivência em países africanos. Por fim, as idas ao Rio de Janeiro, onde pude estar com o ele-gante conhecedor musical, Maestro Rildo Hora, e o mergulhador das profundas realidades brasileiras, o artista Martinho da Vila. Ambos me auxiliaram com seus vastos conhecimentos, adquiridos nos mais de cinquenta anos de carreira. Este livro pretendeu compreender, através de um recorte da história, um momento que fez e é parte da cultura capixaba. Nessa experiência, procurei dar ênfase às narrativas humanas, que tiveram como objetivo registrar, recontar e revisitar esse marco da memória musical do Brasil.

A escritora Virgínia Woolf dizia que a coisa mais gostosa do mundo é contar histórias e eu concordo. Sigo acreditando que outras narrativas importam. Lugar de fala dos conguistas importa. Homens e Mulheres de comunidades tradicionais importam. Por um mundo com menos invisibilidades e silenciamentos.

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Déborah Nicchio Sathler

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PrefácIo O DOCE PERFUME DE MADALENA

Há histórias que precisam ser contadas. Às vezes tinhosas, muitas delas es-peram a hora certa para aparecer. Nesse processo não se nota pressa ou atropelo, e na mansa gestação palavras viram frases, frases se fazem capítulos e os capítulos se vingam do silêncio fértil. Foi assim com este “30 anos da gravação de Madalena do Jucu: perspectivas históricas e novos alcances”. E a madrinha Déborah Sathler não fez por menos. Com delicadeza esparramada e certa ternura, fiou tradições, escolheu falas, costurou experiências e, juntando tudo, aprontou um texto leve e de leitura fácil; singular na junção do erudito com as coisas populares, mas plural no resultado exuberante e que cumpre a vocação de permanência. Original, inovador, necessário, são adjetivos convenientes e complementares.

A leitura que se abre com anúncio de nova era e exalta a Constituição de 1988. Neste encalço, aliás, a autora empata a sutileza vivenciada no final dos anos de 1980 com a sonoridade de um gênero sonoro localizado, as Madalenas ou congo capixaba. E não é sem intenção que a saudação constitucional serve de lastro, pois ao longo das páginas desfilam lutas por sobrevivência cultural e muito empenho de negros e mulheres, de laivos religiosos e de intenção geracional de práticas até então latentes. Tudo em busca de um espaço nacional que precisa se reconhecer a partir do isolado, das tradições que precisam ser emendadas. É assim que fulgura a Madalena, expressão musical que se desenhou na intimidade histórica do estado do Espírito Santo desde o amanhecer colonial.

A viagem proposta pela autora orienta a leitura por vias pouco prezadas, em particular pela captação de expressões orais da memória. É aí que reside o lustro maior dos argumentos. As vivacidades das vozes são traduzidas em memórias que perdem a solidão individual e ganham a largura do coletivo nacional. As suaves menções a teóricos da sociologia dão o tom exato de conveniência, sem ofuscar a “contação” evoluída de fatos curiosos, informativos, historiográficos. Tudo equili-brado na qualificação de uma experiência que precisava ganhar páginas escritas e a leitura de quantos têm fome de saber.

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A sequência dos argumentos enredados aponta para três momentos de in-flexão na história das Madalenas capixabas: a definição do gênero e sua assunção pelos músicos locais; a chegada de Tunico da Vila e o acatamento de seu pai como personagem musical internacional, e a figuração das mulheres como encarnação metafórica do sentido das Madalenas, que agora se reafirma como brasileira no quilate capixaba.

O título proposto para este prólogo re-mete à questão do perfume das Madalenas. E o melhor do perfume musical depreende de cada página deste texto preciso. Sintamos...

Prof. Dr. José Carlos Sebe Bom Meihy

Prof. Dr. José Carlos Sebe Bom Meihy leciona na Stanford University na Califórnia (EUA), é pioneiro nos estudos de História Oral no Brasil, fundador da Associação Brasileira de História Oral (ABHO) e coordenador no Núcleo de Estudos em História Oral da USP (NEHO-USP). Atuou no Programa de Mestrado Interdisciplinar da Unigranrio (RJ) e como professor titular aposentado do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP).

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Déborah Nicchio Sathler

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CAPÍTULO 1

Contexto histórico e cultural: a chegada de

Martinho da Vila na Barra do Jucu

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1.1 Breve voo no final dos anos de 1980

Em 1988, ano da gravação de “Madalena do Jucu”, toada de congo adaptada em samba por Martinho da Vila, o Brasil vivia um dos momentos mais importantes de sua história. Em setembro, a Assembleia Nacional Constituinte aprovava o texto definitivo da nova Constituição Brasileira, o fim da censura, da tortura, e passava a vigorar no país a liberdade de expressão intelectual e de imprensa. Em outubro foi promulgada a atual Constituição Brasileira, também chamada Constituição Cidadã. Era o ano do Centenário da Abolição da Escravidão no Brasil, o tema esteve em voga na mídia e em diversos eventos culturais e acadêmicos, nesse período de novo des-pertar para a questão racial no país. Dentre eles, o Kizomba – Encontro Internacional de Arte Negra, que aconteceu em diversas cidades nos anos seguintes, inclusive na Barra do Jucu. O Kizomba era organizado pelo cantor, compositor e ativista cultural Martinho da Vila. No mesmo ano, a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel tinha sido pela primeira vez campeã do carnaval carioca com o enredo “Kizomba, Festa da Raça”, de autoria de Martinho da Vila. Nelson Mandela continuava preso na África do Sul e só seria liberto dois anos mais tarde, em 1990. Martinho da Vila tornou-se um importante agente político e cultural no final dos anos de 1980, promovendo atos em favor da liberdade de Mandela e pelo fim da Guerra Civil Angolana, onde dois milhões de pessoas morreram. Compôs a música “Axé pra todo mundo” para o Centenário da Abolição da Escravatura e reuniu músicos, artistas e lideranças do movimento negro em horário nobre na Rede Globo de Televisão.

Em 1989 entrava em circulação a nova moeda do Brasil, o Cruzado Novo, foi sancionada a Lei do Divórcio e no dia 15 de novembro foram realizadas as primeiras eleições presidenciais diretas desde 1960. Fernando Collor de Mello foi eleito no segundo turno, derrotando Luiz Inácio Lula da Silva. O país perdia a arte de Luiz Gonzaga e Raul Seixas. Foi nesse contexto histórico e cultural que foi lançado o novo álbum de Martinho da Vila, “O Canto das Lavadeiras”, um disco poético que exaltava as culturas populares do Brasil. O pré-lançamento do disco aconteceu no mês de novembro, no Espírito Santo.

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1.2 O filho do calango bibarrense se apaixonou pelo congo capixaba

Martinho da Vila: o Soba do Samba, griô e cancioneiro popular

Oriundo da Região Serrana do Rio de Janeiro, a hospitaleira e musical Duas Barras, filho de calangueiro e de uma rezadeira de ladainha, Martinho José Ferreira nasceu em pleno carnaval de 1938, em 12 de fevereiro, às seis da manhã, ladeado pelo verde e os instrumentos musicais, como o acordeon do seu pai Josué Ferreira, que trabalhava como meeiro na lavoura de café da região. Em Duas Bar-ras, as rodas de calango, ritmo típico da zona rural do Norte Fluminense, mistura samba com versos e palmas e aconteciam em torno de uma fogueira devido ao clima frio do lugar. A canção angolana gravada anos depois por Martinho, “À volta da fogueira”, traduz a liberdade, sua infância e reafirma a sua dupla ligação Brasil-África. Apaixonado pelos sons de sua terra natal, o calango e a Folia de Reis, Martinho levou as culturas populares para suas músicas, “Calango Longo”, “Calango da Lua”, “Palhaço de Folia” e “Folia de Reis”. Martinho não seguiu a profissão do pai, saiu da pequena cidade para a labuta no Rio de Janeiro, tornou--se arrimo de família quando sua mãe Teresa de Jesus ficou viúva, já morando na Favela da Boca do Mato.

Foi sua mãe que impulsionou o único filho homem para a lida, para a vida. “Foi a mão de Deus que te lapidou. Para amar seu filho do jeito que for”, canetou ele e Beto Sem Braço. Tornou-se sargento do Exército Brasileiro, mas preferiu la-vrar música na boêmia Vila Isabel, bairro do tangará Noel. Fez do azul celeste da escola de samba sua bandeira. Que também é a cor da serenidade, do mar, filho de Omolu e Iemanjá, traço um contraditório com sua fama de devagar, pois sua produção cultural é pujante. Da sua trajetória de percorrer os trilhos do trem que o levaram para o Rio de Janeiro, às trilhas sonoras com seus cinquenta e três discos, três Grammys Latino e inúmeros prêmios. Seus oito filhos, músicas e livros, filhas e filhos também. Ao longo da vida escreveu dezesseis livros entre poesias, contos infanto-juvenis, com temáticas étnicas, políticas, histórias de família e crônicas. Como contador de histórias em suas músicas, estabelece um jogo com os ouvin-tes, em que sua presença é marcada por sua voz e também pela sua performance, que envolve ritmo, gestos e entonação. Martinho evoca o simbólico, o afetivo e sua ancestralidade. A canção “Semba dos Ancestrais” traduz os rituais, toques e as danças negras. Promoveu o evento “Canto Livre de Angola”, que revelou de forma pioneira a cultura africana para o Brasil, e o projeto Palanca Negra em Angola. Fez da música uma bandeira política e social. Ao compor ou cantar, preservou tradições e possibilitou reflexões sobre importantes questões acerca da memória e identida-de. Deu voz aos seus irmãos negros do Brasil e da África, para aqueles a quem foi negado o direito de reivindicar uma identidade diferente da imposta, que tiveram suas vozes caladas, excluídas e exiladas. Foi e continua agindo como mediador entre

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Déborah Nicchio Sathler

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a história do negro e a sociedade. Martinho da Vila alçou, é Embaixador Cultural Honorário de Angola no Brasil, Comendador da República no Grau de Oficial, e recebeu a insígnia Ordem do Mérito Cultural pela contribuição à cultura brasileira. É Embaixador da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLTA) e Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A arte de ser contador de história não é simplesmente recordar, mas tornar um fato passado um evento presente no qual todos participam, tanto o narrador, quanto os ouvintes e os leitores. Ele foi mais, deu vida a onze enre-dos, através das composições de seus sambas. Só disputando na Vila Isabel e na Aprendizes da Boca do Mato. Martinho seria um griô contemporâneo. Narra, conta, descreve, agita e transforma. Os primeiros griôs africanos preservavam suas tradições e costumes através da arte de narrar, cantar e recitar oralmente. Já o griô pós-moderno por excelência assume diversas faces. Deixou de ser ágrafo e apropriou-se das formas de expressão contemporâneas. Em 2013, ele pensou e escreveu o samba-enredo que deu o último campeonato da Vila. O samba ficou conhecido como “Festa no Arraiá”, ele e o filho Tunico da Vila compu-seram juntos. É esse homem, o intelectual e o popular Martinho, o seu legado vivo que completou cinquenta anos de carreira e oitenta de vida em 2018. De uma história de vida plena, produtiva e de entregas. Venerado, é considerado por muitos o Rei do Samba, chamado Negro Rei na sua Vila Isabel, por tantas missões realizadas com louvor.

Griô Martinho José Ferreira é reserva de memória viva da cultura de matriz africana do Brasil pelas vibrações transmitidas, pelos detalhes afetivos contornados, pelos sons registrados e os rituais preservados. Foi pela observância, pelo olhar, pela escuta, pelas experiências pessoais e coletivas. O narrar, o cantar, o contar histórias de povos e o sincretismo, que transformou Martinho da Vila no porta-voz dos si-lenciados afro-brasileiros.

Fazendas, Mares e Vilas

Martinho da Vila é um sujeito culturalmente híbrido, ao sair da Fazenda do Cedo Grande, onde nasceu ouvindo cantos das ladainhas católicas, para crescer, viver na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, e fazer samba na Zona Norte de Vila Isabel. Para depois, então, aportar na antiga fazenda às margens do Rio Jucu, na vila de pescadores banhada pelo mar de Vila Velha, e ouvir tambor de congo na Barra do Jucu. Pode-se, assim, pensar que o sujeito culturalmente híbrido se movimenta pelo mundo, metamorfoseia-se, é plural e, por isso, também cada vez mais único. Sua identidade reside no chamado entre-lugar, definido pelo filósofo Bhabha (2014), quando o indivíduo não possui uma unidade conceitual fixa, psíquica ou cultural, pois é múltiplo em si mesmo, vários em um, potência de ser e de não ser e que se realiza a partir das suas experiências. E foi isso que

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fez Martinho da Vila e sua obra, que se confundem nesse hibridismo, ao trazer o samba rural para a cidade e depois o samba da favela para a burguesia, ele modificou os sons, o samba e a si mesmo. Era quase previsível que o Espírito Santo, a terra do congo, da toada Madalena, fascinassem o bibarrense Martinho e toda sua memória afetiva.

Tudo começou por aqui

O Concerto Negro e o disco “O Canto das Lavadeiras” tiveram seus lança-mentos por aqui, no Espírito Santo. Em outubro de 1989, junto com a Orquestra Sinfônica do Espírito Santo, sob a regência do Maestro Leonardo Bruno, Martinho da Vila esteve em Vitória para a realização de um projeto inovador, que enfocou o negro na música erudita. Martinho foi o mestre de cerimônias e cantor do espetá-culo, que tinha peças sobre a cultura negra dos Estados Unidos e vários sucessos do artista fluminense, que já era referência para a negritude brasileira, como: “Casa de Bamba”, “Disritmia” e “Canção da Preta Velha”, esta uma modinha do tempo do Brasil Colônia, onde os anseios de uma vida digna já eram latentes no período da escravidão. O Maestro Leonardo Bruno recorda com carinho: “Na época escolhi morar em Domingos Martins, fui um dos primeiros regentes da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo, comecei a estruturar o quadro de músicos. Antes, ensaiávamos no Quartel de Maruípe e depois impus que passássemos a ensaiar no Teatro Car-los Gomes. Priorizei os concertos populares para oportunizar cultura para quem não tinha acesso a essa experiência, no conceito de humanização cultural. Foram cinco anos importantes na minha vida, investi meu tempo e conhecimento para profissionalizar a orquestra. Sou mineiro, cresci num lar musical, sou filho do instrumentista Abel Ferreira e por isso meu gosto por música instrumental. Antes da minha passagem pelo Espírito Santo fui maestro da Rede Globo, trabalhei na Orquestra Filarmônica do Rio de Janeiro, com Roberto Carlos e Gilberto Gil. Iniciei meu primeiro trabalho com Martinho da Vila em 1984, e depois no disco ‘O Canto das Lavadeiras’, onde fiz sua direção de voz e arranjos para algumas canções na gravação. Em 1989, no mês da Consciência Negra, realizamos o primeiro Concerto Negro no Teatro Carlos Gomes, em Vitória. Martinho atuou como mestre de ce-rimônias e apresentou o concerto com muita propriedade, pois é culto, sensível e conhece os autores dos musicais populares que adaptamos para o erudito. Depois fizemos o Concerto Negro em 1995, com a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, e em setembro de 2000 fizemos com a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Compus com o Martinho da Vila o musical ‘Zumbi dos Palmares, Zumbi’. No ano de 2018 fizemos o Concerto Negro em Brasília, e apresentamos a mesma peça que aconteceu no Teatro Carlos Gomes, num revival, na abertura do show ‘Bandeira da Fé’, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, para as crianças, jovens e professores da rede pública estadual. Sinto-me privilegiado, aos 74 anos, trabalhar com música e na minha atividade de Regente Sinfônico”. Leonardo Bruno foi regente da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo de 1988 a 1992.

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O disco “O Canto das Lavadeiras” teve um pré-lançamento no Espírito San-to em novembro de 1989, no Kizomba – Encontro de Arte Negra, que aconteceu simultaneamente no Campus da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em Vitória, e na Fazenda Camping da Barra do Jucu, em Vila Velha. O evento reuniu quatrocentos artistas e intelectuais brasileiros com o objetivo de discutir a questão do negro na cultura do país com debates, intercâmbios, exposições de artesanato, comidas típicas e palestras, e contou com nomes como Roberto Ribeiro, Luiz Melodia, o grupo Ilê Ayê, da Bahia, o grupo de congada de Minas Gerais, Folia de Reis de Muqui, grupos folclóricos de São Mateus e as bandas de congo do Espírito Santo. O Circo de Cultura do extinto Departamento Estadual de Cultura (DEC) contava com atrações locais, e a escolha do Estado para sediar o evento nacional refletia o olhar que o artista e pesquisador Martinho da Vila, presidente da instituição Kizomba, já tinha para a cultura capixaba. Em entrevista ao Caderno Dois do jornal A Gazeta, em 8 de outubro de 1989, Martinho da Vila falou que: “Kizomba em quimbundo, um dialeto da Angola, significa festa, confraternização. É um encontro, é isso que a gente vai fazer na Barra do Jucu. Tem gente que pensa que o Kizomba é uma coisa de negros pra negros, mas não é. É pra todo mundo, e a gente quer mesmo, a gente fica contente é quando vê, num acontecimento, gente de outras culturas, gente jovem. Isso que é interessante. O Brasil é um país que ainda está doente, está procurando a cura para o racismo”. Ele comentou ainda sobre o álbum “O Canto das Lavadeiras”, que iria lançar no evento: “Este é um disco pra dançar, pra dançar e cantar e a gente canta coisas do Brasil, de maneira brasileira, mistura sons. É uma loucura o que a gente fez com a voz da mulher do interior do Brasil, misturando esse som com o som de violinos. Este é um disco que tem muito de místico, de religioso, porque aí tem muita religião junto. Tudo isso misturado com o profano, com o sensual. Aqui no Espírito Santo, qualquer jovem, por mais roqueiro que seja, se vir uma banda de congo tocar, isso vai bater nele numa boa, porque o negócio é muito forte. O que falta é passar pra fora”. Ele presumiu que ia levar a canção do congo capixaba gravada em samba para o mundo afora e levou. Lembrando que nessa entrevista ainda não havia acontecido o lançamento nacional no Rio de Janeiro e “Madalena do Jucu” não tinha sido escolhida como música de trabalho. Na mesma reportagem, o jornalista Chico Neto exalta que o disco reúne joias da cultura popular, e a sintonia entre Martinho da Vila e a música popular capixaba.

A Banda de Congo da Barra do Jucu acompanhou Martinho da Vila no Rio de Janeiro nos anos de 1988 no Kizomba – Encontro Internacional de Arte Negra no Rio de Janeiro, e em 1989 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, quando ele recebeu o “Prêmio Governador do Estado”, pela contribuição dada à cultura negra brasileira. “Madalena do Jucu” foi resultante desse intercâmbio promovido pelos organizadores do Encontro Estadual das Bandas de Congo, entre a cultura popular do Espírito Santo e Martinho da Vila. A filósofa capixaba Viviane Mosé participou diretamente do movimento político-cultural que organizou esses encontros, quando cursava graduação em Psicologia na Ufes, no final de 1980, e foi quem apresentou o congo capixaba para Martinho da Vila. “O movimento cultural no Espírito Santo antes da gravação de Madalena do Jucu sempre foi muito forte, a cena era pujante

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com a família Pignaton, com os apoiadores e protetores culturais que militavam em diversos nichos e acabaram formando guetos folcloristas, porém não conseguíamos atingir o grande público. Tenho clareza que a popularização da cultura do congo veio no período pós-gravação de Madalena do Jucu, os conguistas, nós do movi-mento e o público, passamos a ter dimensão do que a nossa cultura podia alçar e alçou na história da música popular brasileira. O fato marcante é o Espírito Santo ter inserido na história da música a sua cultura popular. A Madalena capixaba foi eternizada no imaginário do povo brasileiro. O fato criou outro desdobramento que foi a inserção da juventude local no universo tradicionalista, antes só os estudantes universitários, pesquisadores que estudavam culturas, antropólogos, estavam ligados nesse universo. Os jovens artistas capixabas passaram a beber na fonte do congo, surgiram bandas como Casaca e Manimal, e foi um grande salto para a música po-pular capixaba. Barra do Jucu, em Vila Velha, que foi o ponto de referência, onde o Martinho conheceu o congo, foi popularizado com a gravação. Até hoje, quando me apresento e digo que sou do Espírito Santo, as pessoas remetem a essa música, e quando ficam sabendo que apresentei o universo do congo e a Barra para o Mar-tinho, as pessoas ficam surpresas como se fosse uma coisa de outro mundo. Mas eu estava ali, eu vivia, respirava isso. Eu saí do Espírito Santo com 27 anos, eu amadu-reci aqui, toda a minha base de formação intelectual e principalmente humana foi na Universidade Federal do Espírito Santo e nas vivências de grupo dessa época.”

Eduardo Pignaton, 62 anos, foi um agente cultural importante nos anos de 1980, promovendo os Encontro de Bandas de Congo da Grande Vitória na Fazenda Camping da Barra do Jucu, na propriedade de sua família. Militante dos movimentos estudantis, quando ainda cursava Medicina na Ufes, Eduardo fez parte de um grupo que reunia estudantes como Viviane Mosé, Elisa Lucinda, seu irmão Fernando Pignaton e professores da universidade. Em comum, o que agre-gava esse grupo, além dos ideais políticos, era a música da cultura popular e seus artistas, homens e mulheres simples das comunidades do entorno do Rio Jucu, que produziam muito mais que som e uma dança envolvente, mas uma filosofia de vida espiritual que fascinava os jovens que estavam em busca de uma identidade cultural, para eles e para o ambiente em que viviam. Estar no meio daquela gente, reconhecer, valorizar, ouvir, participar, pertencer àquela cultura era uma espécie de rito de passagem para o jovem desse grupo, que vivia um período efervescente numa atmosfera endurecida pelas lutas pelas Diretas Já, pela Constituição e contra o regime militar. Aquele espaço festivo era um acalanto para os ideais, um respiro com pausas animadas para um coletivo que queria estar com o povo da terra e aquilo que possuíam de mais genuíno, suas riquezas culturais: o canto, a música e a dança cercadas de saberes ancestrais. A Fazenda Camping virou um espaço cultural, político, social, com encontros marcantes. O local propiciava trocas de energias e conheci-mentos diversos. Em 1989 foi promovido o primeiro debate presidencial, com os candidatos, estudantes universitários e os conguistas. “As bandas de congo em seus primórdios eram animadoras das festas católicas do interior e depois vieram para o litoral capixaba. O congo canta notícias, as histórias são cantadas pelos conguistas num jogo de mensagens subliminares. Temas como aborto eram cantados como

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a morte de um animal, tudo era controlado, então tinham que usar a destreza. As aldeias de pescadores eram formadas por negros e índios que disputavam o terri-tório e as mulheres. A Festa de São Benedito é a Festa de Natal do povo negro, por isso a festa é no dia 25 ou 26 de dezembro. Quando, nos anos de 1970, começou a perseguição ao catolicismo pelo evangelismo americano, os santos negros foram retirados do altar e as bandas de congo retiradas das festas das igrejas. Sou de família católica, do bairro da Glória, em Vila Velha, me lembro bem da retirada dos santos negros do altar e do desapadrinhamento do congo pela Igreja. Em 1982 fui diretor de Turismo do município de Vila Velha e a Elisa Lucinda trabalhava lá. Ao mesmo tempo, fazíamos parte do movimento estudantil da União Nacional dos Estudantes (UNE) e do Diretório Central dos Estudantes da Ufes, e vimos a necessidade do movimento abraçar as bandas de congo que estavam sem apoio da Igreja Católica. Era do município e minha família tinha uma propriedade na Barra do Jucu, a Fa-zenda Camping. Meus irmãos Geraldo e Fernando participaram desse processo. Geraldo Pignaton foi quem adquiriu os tambores de congo que o Mestre Alcides tinha vendido para a Malharia Relu, e assim puderam retornar com o congo aqui na Fazenda, já que nas ruas da Barra do Jucu era cobrada uma taxa para tocar e cantar o congo. Os Mestres Alcides, que tinha o perfil mais devoto, e Honório, que tinha o perfil mais pedagógico, começaram a vir para cá e montaram uma banda única, a Banda de Congo da Barra do Jucu. Organizaram o congo nesse modelo de apresentação, já que nas vilas no entorno do Rio Jucu, em Tapuera e Jaguaruçu, eles tocavam andando na procissão, era um ato de sacrifício, os instrumentos do congo eram pesados e só a devoção explica. Depois, aqui na Fazenda Camping, começaram a tocar em círculo e sentados em bancos de madeiras. Os mestres guardavam os instrumentos aqui, mas seus tambores de devoção e uso pessoal eles levavam para suas casas. Nossa primeira tentativa de dar visibilidade ao congo foi levá-lo para o Rio de Janeiro e apresentar para a sambista Beth Carvalho, no Shopping Fashion Mall, com o pai da Elisa Lucinda. Em 1983 convidamos a Clementina de Jesus para conhecer o congo aqui no Fazenda Camping, ela adorou, ficou de voltar mas morreu anos depois. Então, em 1988, o Martinho da Vila, que estava gravando um disco sobre o folclore brasileiro, foi convidado. Fomos até a casa dele, no Grajaú, lembro do Tunico jovenzinho lá na casa, a Vila Isabel tinha acabado de ser campeã do carnaval. Levamos fitas de áudio, vídeo cassete do Encontro Estadual das Bandas de Congo, e pedimos que ele viesse ao estado e fizesse um show gratuito para nos ajudar a comprar o terreno para a sede da Banda de Congo da Barra do Jucu. Ele veio com o Maestro Rildo Hora e sua banda, fez o show, compramos somente as passagens e conseguimos adquirir o então terreno com o dinheiro dos ingressos. Calhou que foi no momento que ele estava pesquisando as culturas populares. Se fosse antes ou depois não sei se ele teria conhecido o congo, creio que foi coisa de São Benedito. Precisávamos dar visibilidade, precisávamos do reconhecimento para não deixar morrer a cultura. É assim com o meio ambiente, se eu não reconheço, não preservo. O pertencimento vem com a visibilidade. Tínhamos treze bandas no estado, depois da gravação de ‘Madalena do Jucu’, em 1991, já eram vinte e sete e hoje são mais de sessenta. A imprensa foi fundamental na construção dessa identidade capixaba. Antes era só o

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Convento da Penha e a Chocolates Garoto. Depois passaram a incluir o congo, que é a cultura negra. A cultura europeia sempre foi mais valorizada no Espírito Santo, houve uma luta muito grande para a inclusão do congo, pois o Espírito Santo é um estado muito racista. Antes da gravação de ‘Madalena do Jucu’, o congo era visto como uma cultura de preto, pobre, cachaceiro e macumbeiro, sem valor. Depois da gravação de ‘Madalena do Jucu’, o congo passou a fazer parte da identidade capixaba, foi um marco histórico e cultural para o Espírito Santo. O congo é místico, se você visse e ouvisse o Mestre Honório tocar e cantar, ele era militar de formação, o toque da caixa dele era da alma, um dom herdado do santo. O congo é um amor coletivo, uma paixão, no congo acontece uma espécie de transe em grupo pela música. Há uma relação de confiança, onde os participantes cantam olhando uns para os outros, velhos, novos, homens e mulheres numa roda de brincantes.”

A classe média aderiu aos Encontros Estaduais das Bandas de Congo na Fazenda Camping da Barra do Jucu, nos anos de 1990 surge a primeira banda parafolclórica do Estado, a Banda II, formada por universitários e liderada pelo Maestro Jaceguay Lins. O grupo ensaiava na Universidade Federal do Espírito Santo, e tinha como ideia central aproximar os jovens das culturas populares tradicionais. Os encontros do congo ditaram moda e as mulheres, jovens frequentadoras, passaram a usar saias rodadas, brincos, pulseiras e os cabelos longos soltos, e a dançarem descalço. A ponte utilizada pelos pescadores, construída em 1896, passou a se chamar “Ponte da Madalena”, em homenagem à Banda de Congo da Barra do Jucu, que ficou

Martinho da Vila na Fazenda Camping, 1989.

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conhecida nacionalmente com a gravação do congo em samba por Martinho da Vila. A ponte passou por um processo de restauração em 2015 e se tornou o portão de entrada da Reserva Ecológica de Jacarenema, que guarda uma rica diversidade de vegetação nativa do Espírito Santo. Em 2017 a ponte desabou e até julho de 2019 não tinha sido recuperada. O balneário sempre teve forte presença do setor de artes plásticas desde os anos 70. Chegou a ter a primeira galeria com mostra regular, fundada pelo radialista Darly Santos, e o artista Kleber Galvêas manteve exposições animadas pelo congo.

1.3 “O Canto das Lavadeiras” e o legado das culturas populares

No Livro “Martinho da Vila: reflexos no espelho”, a professora Helena Theodoro1 cita o disco “O Canto das Lavadeiras” (1989), que, “homenageia as congadas, que são manifestações dramático-religiosas que acontecem durante as festas dos padroeiros das irmandades negras. Nessas ocasiões, se mostra de forma pública e irrefutável a ocupação do espaço social pelos afrodescendentes em luta por afirmação sócio-existencial e pela manutenção de seu processo civi-lizatório africano no âmbito das irmandades católicas.” Martinho disse no livro que quando ouve seus discos vêm lembranças das etapas de produção e cita em especial “O Canto das Lavadeiras”, que fez na contramão do possível sucesso.

1 Helena Theodoro. Martinho da Vila: reflexos no espelho. Rio de Janeiro: Pallas, 2018, p. 108.

Entrevista com Eduardo Pignaton (D) e Lena Côgo (à esquerda, ao lado de Tunico da Vila) na Fazenda Camping, julho de 2019.

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O LP não era óbvio, comercial, abordava musicalmente as diversas culturas pre-sentes no país, deu o maior pé e foi sua realização como cantor popular. Martinho, que é cidadão Espírito-Santense, contou como suas vivências desde menino com as manifestações culturais foram determinantes para pensar o disco, que é uma declaração de amor ao folclore do Brasil. “Eu estava gravando o disco ‘O Canto das Lavadeiras’, o disco que tem Madalena do Jucu, não era um disco popular, era para quem gosta da cultura de raiz, do folclore brasileiro, fui no interior de Minas Gerais, Sergipe, Goiás, Santa Catarina, Maranhão e soube que tinha o congo aqui no Espírito Santo, eu nunca tinha ouvido falar de congo, a Viviane Mosé me fez o convite para me levar, conhecer o congo e eu aceitei. Depois voltei aqui no Encontro das Bandas de Congo, vim na Assembleia Legislativa e outras dezenas de vezes. No disco tem mais músicas do Espírito Santo do que de outros estados. Não podia gravar tudo, eram muitos congos, escolhi os que mais me emocionaram, ainda tinha outros lá que eu não gravei ‘eu vi o galo cantar...’ (sorri). A manifestação era muito reservada aos redutos quando conheci. Cada banda cantava a Madalena de várias formas, da Barra do Jucu, de Vitória, da Serra, uns cantavam tipo ladainha, outros cantavam tipo festivo, mais rápido, tipo samba de roda. Eu fiz os versos e fiz tipo samba interiorano. Eles tinham um ritual antes de começar o congo e eu observei isso tudo. O congo, o samba, as congadas, o samba de roda, o partido-alto, os tam-bores do Maranhão são todos parentes, a identidade é única, africana, quem fez essa cultura foram os negros que vieram de várias partes da África. O samba nasceu nos terreiros”. Martinho comentou os versos que criou na adaptação da toada de congo “Madalena do Jucu”: “O meu pai não quer que eu case, mas me quer namorador eu vou perguntar a ele, eu vou perguntar a ele porque ele se casou” e “eu fui lá pra Vila Velha, direto do Grajaú, só pra ver a Madalena e ouvir tambor de congo lá na Barra do Jucu”. “Tinham muitos versos sobre pai, mãe, namoro, no primeiro quis colocar um molho, não tem um planejamento quando estou escrevendo, eu quero contar uma história. Eu penso nos detalhes e no segundo verso citado eu conto o acontecido, falo do bairro do Grajaú onde eu morava e quando arrumei as malas pra vir aqui pra Vila Velha e é uma verdade.”

Relembro para Martinho da Vila que o cantor e compositor Renato Teixeira, quando esteve em Vitória em julho de 2018, comentou que Martinho fez um mo-vimento de transportar o som da roça para a cidade e que o jeito dele fazer samba não era o jeito que a favela e o subúrbio carioca faziam samba e ele completa: “É, eu não me criei lá. Cresci ouvindo pandeiros de calango, uma batida diferente. Esse tipo de som, o das lavadeiras, era o que ouvia na minha família, na minha casa, as rezadeiras de ladainha caseira cantavam diferente das ladainhas da igreja, isso tudo me influenciou muito. Essa forma de cantar agudo, fininho é interiorana, você tem aqui no Espírito Santo, no Nordeste, uns cantam em terça, outros em oitavada pra baixo, as mulheres cantam dessa forma, os homens também cantam com a voz fina como na Folia de Reis. Eu não fiz as coisas pensadas, eu fui vendo e fui fazendo. Eu não fico pensando muito no que eu represento, eu só vou fazendo. A minha vontade é fazer o registro, o que me impressiona sempre é a música e o ritual também. Por isso eu vou em Duas Barras o tempo inteiro, aquele lugar me

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ajudou muito a perceber os sons. O disco ‘O Canto das Lavadeiras’ eu guardo no meu coração, foi um disco que eu quis fazer, ninguém estava ligado em folclore. É como se a turma que estivesse fazendo sucesso hoje, o sertanejo, parasse e gravasse um disco de folclore de raiz. Os artistas sertanejos que estão na alta mídia precisam conhecer, buscar informação sobre a origem do que fizeram eles ricos hoje, porque aí eles vão valorizar, melhorar o seu trabalho também, quanto mais na raiz você vai, mais você melhora o seu trabalho artístico. Fiz isso a vida inteira. Eu defendi essa produção na gravadora, acho que foi o disco que ficou mais caro, mas eu estava com muita banca na gravadora e eles toparam. Nós fomos em muitos lugares do Brasil para fazer o disco direito. Não adiantava pesquisar em livros, fitas, não iria funcionar direito. Fomos in loco para preservar as levadas das batidas dos tambores e ficou outra coisa. A ideia de misturar elementos do erudito com o folclore foi do Rildo Hora e agradou muito. Eu pedi para colocar em alguns lugares, outros não, para manter a essência. Como era um disco do Brasil, tinha que colocar também o folclore do Rio de Janeiro, e aí escolhi um samba maxixado do Argemiro da Portela que falava ... ‘quem tem seu amor não dorme’, o ‘Dancei’, para homenagear o Rio de Janeiro. Esse samba foi até para novela (Tieta do Agreste, da Rede Globo, 1989), era um samba diferente e o marketing da gravadora já tinha preparado o material

Martinho em Vila Velha, 1994.

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para essa música ser o coringa. No dia do lançamento do disco, mudou tudo, Ma-dalena aconteceu e tiveram que correr para mudar todo o material de lançamento.”

Estive entrevistando Rildo Alexandre Barreto da Hora, Rildo Hora, 80 anos, maestro, arranjador, fundador da Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro e produtor musical do álbum “O Canto das Lavadeiras”, em junho de 2019, no Rio de Janeiro. Pude conhecer de perto o trabalho do maior produtor de samba do mundo, em janeiro do mesmo ano, onde estivemos juntos no Fibra Estúdio, na Barra da Tijuca, quando ele fez pela primeira vez a direção de voz de Tunico da Vila na gravação de “Quero, Quero”, uma releitura da canção de Martinho da Vila, gravada original-mente em 1977. Fiquei encantada com o trabalho do homem que saiu de Caruaru, em Pernambuco, e veio para o subúrbio carioca e alavancou a carreira de diversos artistas do samba, unindo saberes e fazeres populares com instrumentos e arranjos do erudito. No estúdio pudemos conversar, mas preferi observar sua desenvoltura ao lado de sua amiga costumeira, a gaita. Era tanta arte sonora fluindo naquele ambiente, a cada palavra, toque, dica, Rildo desfilava sua elegância pedagógica ao repassar seus conhecimentos. Estar perto, escutando ele afinar de ouvido, tabulan-do notas musicais em sua gaita, vendo os movimentos das mãos para compassar o artista, seus elogios motivacionais e acertos na gravação, me fizeram entrar numa atmosfera musical única, relaxante e agradável. A batida de horas no estúdio ficou sincopada, suave, até o ponto forte do fechamento da música com brindes e palavras de êxtase. Foram mágicos os dois encontros, experiências que levarei para o resto da minha vida no meu trabalho de gerenciamento de carreira artística. Uma riquíssima oportunidade com lições de generosidade humana e profissional.

Com Tunico da Vila (E) e Rildo Hora, no Estúdio Fibra 1, Rio de Janeiro, em janeiro de 2019.

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Uma viagem nas asas da poesia dos vários Brasis

Rildo Hora, produtor de Martinho da Vila na época da gravação de “Madalena do Jucu”, falou que todos os anos eram pensadas temáticas que tinham conexão com o universo íntimo do cantor para elaborarem juntos o álbum. A partir do mês de março, eles se reuniam para a escolha das músicas que seriam gravadas no segundo semestre em estúdio. “O Canto das Lavadeiras” foi um álbum atípico, pois foram planejadas viagens para verem e ouvirem de perto as canções do folclore brasileiro. O conceito do trabalho elaborado pela dupla Martinho e Rildo era exaltar as culturas populares e valorizar o canto feminino das lavadeiras, as trabalhadoras negras do Brasil africano. Eles sabiam que a tarefa seria árdua, tanto na seleção das músicas quanto no tempo da pesquisa de campo. As reuniões prévias, onde dialogavam antes e depois das viagens, aconteciam na casa do Grajaú, eram regadas a batidinhas de coco e muito bate-papo. O pernambucano Rildo e o bibarrense Martinho, dois filhos do interior do Brasil, viajaram juntos para conhecer as culturas populares que exal-tassem esse modo de cantar. As músicas eram gravadas por Rildo em um gravador portátil, enquanto Martinho privilegiava observar e conversar com os mestres de Folia de Reis, do Boi, do Bacamarte, do congo, as lavadeiras e pescadores. Em 1988, Rildo Hora participou com Martinho da Vila do Encontro das Bandas de Congo da Barra do Jucu. As canções foram apresentadas espontaneamente pelos conguistas, Rildo relembra que a filósofa capixaba Viviane Mosé estava presente no evento e que eles conversaram bastante sobre a cultura local. Assim que retornaram do Espírito Santo, como acontecia após todas as viagens, eles se reuniram para selecionar as músicas que seriam gravadas em samba. As outras canções da Congada de Minas Gerais, do Boi de Santa Catarina, do Bacamarte do Sergipe e do Forró de Goiás já haviam sido gravadas, o estado do Espírito Santo foi o último a ser visitado. “Quando ouvimos com calma cada canção do congo, foi uma grata surpresa pois falavam de mulher, cabelos, e me chamou muita atenção. Outro ponto que eu ficava atento é se caberia em samba, pois o compasso teria que ser o mesmo dois por quatro. O samba tem essa peculiaridade e o congo também, então vi que encaixaria, além das raízes africanas e o canto das lavadeiras, as vozes femininas presentes ali”, contou Rildo.

“A construção de uma memória segue muitas trilhas, algumas vezes obede-cendo as margens que o tempo lhe ofereceu, outras vezes rompendo os limites e ocupando vastos territórios”, avalia Antônio Torres Montenegro2. O disco “O Canto das Lavadeiras” foi gravado no estúdio da Som Livre, em Botafogo, no Rio de Janei-ro, nos meses de agosto a novembro de 1988, o vigésimo primeiro LP de Martinho da Vila e o décimo nos anos de 1980. Ele já tinha estourado vários LP, como “Festa da Raça” (1988), “Tendinha” (1978), “Canta, Canta Minha Gente” (1974), “Ter-reiro, Sala e Salão” (1979), “Memórias de um Sargento de Milícias” (1971), todos temáticos. Segundo Rildo, as músicas eram planejadas em cima de temas, não eram

2 Antônio Torres Montenegro. História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010, p. 101.

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amontoadas como uma colcha de retalhos e sim pensadas sistematicamente. Como Martinho era compositor de sambas de enredos, essa característica de pensar tema-ticamente estava intrínseca e ele levou para os seus álbuns. A mistura do popular com instrumentos do erudito já tinha sido testada no disco “Terreiro, Sala e Salão” (1979), com batuques-terreiro, piano-sala e músicas de carnaval-salão. Rildo Hora fala do tratamento orquestral que pensou para “Madalena do Jucu” em samba: “Pin-celei elementos do erudito, da Orquestra Sinfônica nos batuques. Usamos clarinete, trombone, violinos, mas você pode perceber que a prioridade são os batuques e as vozes do Martinho e do coro das lavadeiras. Usar elementos da música erudita no popular sem descaracterizar o samba é o que faço. Na hora da mixagem usamos a parcimônia, economizo no erudito e priorizo os batuques. Fazemos uma introdução com elementos de oito compassos num samba com trinta e seis a quarenta compassos. Dá certo, pois não descaracteriza o samba. Na música ‘Madalena do Jucu’ pensei numa introdução original, moderna, com guitarra elétrica, violinos, viola, que era o que estava usando no final dos anos de 1980. Foi fundamental ter ido a campo para orquestrar esse disco. Anotava cada levada dos grupos de cultura popular para que cada tema folclórico fosse respeitado na adaptação com instrumentos percussivos de samba, dois pandeiros, atabaques, tamborim e surdo.”

O show de lançamento do LP “O Canto das Lavadeiras” aconteceu na Casa Musical Asa Branca, na Lapa. Rildo Hora relembra que sempre acreditou na força do disco como um todo, desde a sua concepção, mas que foi no lançamento que todos os presentes e ele perceberam que a canção “Madalena do Jucu”, segunda faixa do lado A, seria o carro chefe do disco. “Sempre acreditei que era um disco forte, que ia estourar, o Martinho vinha de um excelente momento nos anos de 1980, os seus lançamentos anuais eram muito aguardados e já eram lançados com tiragem altíssima. Martinho cantou o disco todo no lançamento, mas quando cantou ‘Madalena do Jucu’ incendiou a casa, foi a música que mais se destacou. Individualmente ela não era a música de trabalho, que chamamos de coringa, mas foi naquele momento do lançamento que todos os presen-tes, eu e a gravadora percebemos isso. Só deu Madalena. Isso não é raro acontecer, já vi esse encanto outras vezes com outros artistas. Digo que existem músicas que nascem rainhas, possuem luz própria. Não foi premeditado, ‘Madalena do Jucu’ foi gravada para compor o disco e não para ser a música de trabalho. Isso se deve a impressionante força dessa música e os versos inseridos ali pelo artesão do samba que é o Martinho, que soube lapidar, captar o sentimento da música para interpretar o que as pessoas queriam ouvir, do tema amor, do homem e mulher que nunca cessa. Os versos escritos por ele transformaram-se num musical perfeito. A junção do folclore com o autoral. O artista precisa vir de um ciclo vitorioso para fazer acontecer uma canção folclórica, se ele for do interior como o Martinho e souber fazer essa liga. Aconteceu também com Luiz Gonzaga e o forró, que é o folclore popular comercial do Brasil. Todos nós temos pés no interior”. Martinho da Vila, que foi embalado pelo canto de uma lavadeira, sua mãe Teresa, junto com o amigo Rildo Hora transportou para “O Canto das Lavadeiras” as emoções do rico som dos interiores do Brasil, com o auxílio “das lavadeiras” de sua casa, suas irmãs, com o apoio das cordas, sopros, teclados e guitarras. Um samba orquestrado para homenagear o que ele ouviu, viu e sentiu no congo capixaba.

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Rildo Hora, que atualmente produz musicalmente o artista Zeca Pagodi-nho, orquestrou a música de abertura da novela “Bom Sucesso”, da Globo. Ele já produziu também Beth Carvalho (in memoriam), Fundo de Quintal, entre outros artistas, e disse que Martinho foi seu “mecenas” – quem apoia artistas. “Se não fosse o Martinho seria só músico e não maestro, sendo produtor do Número 1 da gravadora, eles flexibilizavam meus horários. De manhã eu estudava, e de 15 às 21 horas eu gravava, assim consegui me tornar maestro. Acho que foi muito importante gravar um disco de samba totalmente baseado no folclore brasileiro. É preciso muito amor pelo Brasil, pelos nossos sons e valores. Eu acredito que as novas gerações devam ter um olhar para as culturas populares e essas tradições. Cada artista registra, capta ao seu modo, mas deveria se ligar nisso. É uma forma de apresentar para os novos públicos que existem diversas culturas dentro do mesmo Brasil. O Tunico da Vila já tem isso formatado na cabeça dele, pois recebeu essa herança cultural, esses ensinamentos. O artista que tem a formação, a vivência como o Tunico da Vila, é inerente que ele vai mostrar ao Brasil os batuques no seu cantar. Cabem aos novos produtores, músicos, arranjadores, artistas, pesqui-sar, ir nas fontes culturais, conhecer as origens musicais brasileiras. O samba não desapareceu porque grandes artistas se dedicaram a cantar essa cultura. Digo que a interpretação transforma uma canção em ‘a canção’: ‘Eu vou falar pra todo mundo, vou falar pra todo mundo que eu só quero é você’, ‘Descobri que te amo demais’, ‘Faz de conta que eu sou o primeiro’. Quem não gostaria de escutar isso? De novo, é o tema homem e mulher, a interpretação fora da lógica, a raça na interpretação. A interpretação do artista que grava é fundamental. Eu sempre gravava por partes, emendava os pedaços. O Martinho gravou ‘Madalena do Jucu’ de primeira, não teve edição e naquela época não tinha tecnologia de afinação. Não teve repetição, soltei a fita e valeu. As doze faixas foram gravadas em três sessões com seis horas cada. É a maneira de cantar que as pessoas captam, não gosto de interromper o cantor quando ele está gravando, senão perde a unidade da interpretação que precisa ser preservada. Na gravação de ‘Madalena do Jucu’ Martinho estava incorporado, ele exportou todo o interior dele, o que ele ouviu e viu lá na Barra do Jucu, cantou ali. Na memória dele estava o cabelo jogado das dançarinas, o gingado do congo, a levada daquele tambor. Martinho nunca foi um cantor fabricado, desde que chegou na cena musical, em 1967, a interpretação dele tem vida própria, há canções que nos impressionam mais, e em ‘Madalena do Jucu’ tinha muito dele, das suas raízes africanas, por ser filho de uma lavadeira e de um repentista e principalmente por ser do interior. Hoje, quando gravo, faço três canais com o cantor e escolho as melhores partes. Naquela época não tinha isso, quem não sabia cantar não gravava. O tom acima no... ‘Meu bem querer’ passa para quem está escutando, a emoção que ele bota para fora. A canção ‘Madalena do Jucu’ foi gravada originalmente em sol maior, no tom do Martinho, e que ele canta até hoje ao vivo.” Em 1995, Martinho da Vila e Rildo Hora formaram uma dupla de composição no disco infantil “Você não me pega”.

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FICHA TÉCNICA DE MADALENA DO JUCU

Gravadora: CBS

Álbum: “O Canto Dos Lavadeiras” Código LP: 177.196/1-464120 - Edição: 1ª Edição, 1989.

Selo: DISCOS CBS

Rildo Hora (orquestração e regência)Cláudio Jorge (violão)Mané do Cavaco (cavaquinho)Jamil Joanes (baixo)Papão (bateria)Gordinho (surdo)Ovídio Brito (pandeiro)Buda (atabaque)

Beloba (tamborim)Paulo André (guitarra)Celso Woltzenlogel e Franklin (flautas)Paulo Sérgio (clarinete)

Coro: Coral das Lavadeiras – Nélia, Zezé, Elza, Patrícia Da Hora, Mart´nália, Analimar, Pinduca, Zélia, Dinorah, Zenilda, Fátima Regina, Fabíola, Cibele, Marli, Ciywa, Maestro Leonardo Bruno.

Capa: Elifas Andreato

Nota: Os direitos percentuais da faixa estão reservados respectivamente para a Associação das Bandas de Congo da Serra-ABC, Serra-ES.

O maestro e Tunico da Vila na gravação de “Quero, Quero”, no Rio de Janeiro, em março de 2019. Rildo Hora foi responsável pela direção de voz.

Capa do LP “O Canto das Lavadeiras”, criação do artista plástico Elifas Andreato.

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Elifas Andreato, 73 anos, nasceu em Rolândia, interior do Paraná, possui mais de quarenta anos de atividade como artista plástico e designer gráfico. Elifas foi o maior capista da geração do vinil, chegando a produzir a capa de trezentos e sessenta e dois discos de grandes nomes da Música Popular Brasileira, como Chico Buarque de Holanda, Elis Regina, Adoniran Barbosa, Paulinho da Viola, Toquinho e Vinícius de Moraes. O traço poético com profundo sentido social e bastante per-sonalidade definiu os trabalhos de Elifas Andreato como um ícone de uma geração que protestava por meio da arte. Foi ele o responsável pela capa do álbum “O Canto das Lavadeiras”, de Martinho da Vila, com o emblemático vestido floral pendurado no céu, num varal sem corda. “O meu trabalho começou escutando a voz guia do Martinho, escutei o álbum inteiro e fiz uma síntese do conteúdo musical que me inspirou o vestido da lavadeira na capa e o macacão masculino no verso. Na época, os recursos gráficos eram limitados, trabalhávamos com fotolito, positivo e negativo. Mixei as três fotos em camadas, o vestido, o céu e a estampa. Quis trazer o surrealismo da obra do pintor belga René Magritte na capa de um trabalho em homenagem às culturas populares brasileiras. Hoje, com os recursos do computador, faria em três dias, na época foram quinze dias para fazer essa mixagem. O vestido é interiorano, de mangas compridas, com flores, representando o vestido de domingo, o melhor vestido de uma lavadeira. Minha mãe Dona Alzira era uma, tive uma infância muito pobre, no roçado, na região Norte do Paraná. Vim para a cidade grande para tentar a vida e calcei os meus primeiros sapatos aos doze anos. Comecei a trabalhar com Martinho da Vila em 1972, quando fiz a capa de ‘Batuque na Cozinha’, depois fiz ‘Nervos de Aço’ em 1973 para Paulinho da Viola e não parei mais. A minha tarefa é provocar o interesse na obra musical, fazer com que as pessoas se interessem pelo conteúdo musical de uma obra maior que a minha. Com certeza meus melhores trabalhos como artista gráfico foram ‘O Canto das Lavadeiras’ e ‘Verso e Reverso’ com o Martinho. No lançamento do álbum, eu estava presente na festa de lança-mento na Lapa, a canção ‘Madalena do Jucu’ aconteceu no lançamento, ela não era a música escolhida pela gravadora, me lembro bem disso. Quando o Martinho cantou foi uma catarse no ambiente, as pessoas entraram em êxtase e ela aconteceu.”

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CAPÍTULO 2

O olhar dos integrantes do congo e os reflexos

culturais pós-gravação de “Madalena do Jucu”

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2.1 Sonhos e desejos dos integrantes da cultura do congo capixaba

Glória a quem trabalha o ano inteiro em mutirão São escultores, são pintores, bordadeiras São carpinteiros, vidraceiros, costureiras Figurinistas, desenhista e artesão Gente empenhada a construir a ilusão E que tem sonhos...

“Pra tudo se acabar na quarta-feira”(1984), Martinho da Vila.

O conguista é um artista. O termo congo e outras expressões como congada, baile de congo, quando utilizadas no âmbito musical, remetem ao antigo Reino do Congo, o maior império africano que se teve notícia até 1492. Nos grupos do Espí-rito Santo, o termo congo não só denomina as bandas, mas outros elementos que a compõem, como os tambores e os próprios participantes. A partir de um inventário feito pela Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, iniciado em 2012 e finalizado em 2014, contabilizaram-se no estado cerca de sessenta e sete grupos de congo em atividade espalhados pelas regiões metropolitana e no interior. As primei-ras notícias de devoção a São Benedito em Angola datam do final do século 17 e na Bahia em 1686. A entrevista com o Mestre Daniel, como é conhecido na Barra do Jucu o Senhor Daniel Vieira dos Santos, 78 anos, aconteceu numa tarde ensolarada na sede da Banda de Congo Mestre Honório, na Barra do Jucu, que também é a sua residência. Ele é o Mestre da banda e artesão dos instrumentos do congo. Sua filha Beatriz e seu genro Vitalino também participaram da roda de conversa, regada com muita música e um bate papo mais sereno na sala dos tambores e em sua oficina. Mestre Daniel cresceu na Barra do Jucu, quando seus pais Domingos e Darcy saíram de Cariacica para morar na vila, em 1936. Seu Domingos era construtor civil, foi trabalhar na construção da estrada da Barra do Jucu e era avesso ao congo. “Minha mãe Darcy amava o congo, mas só pôde dançar depois que ficou viúva, participou

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das inúmeras viagens para o Rio de Janeiro, que fizemos para se apresentar com Martinho da Vila e se tornou uma figura marcante da Barra”. Mestre Daniel conta que as crianças eram proibidas de tocar e que ele só pôde pegar no tambor aos doze anos com o Mestre Honório (in memoriam) que morava na região de Tapuera. “Eu ia até lá em Tapuera para brincar o congo. Depois casei com a Juraci, o pai dela tinha uma banda de congo em Cariacica, comecei a participar lá. Aí formamos um casal do congo, ela gostava e eu também. As mulheres da minha família, minha mãe Darcy, minha mulher Juraci, as filhas gêmeas Jussara e Jaciara, Beatriz, minhas netas, hoje todo mundo está no congo, meus genros, acabou isso que criança não pode estar no congo.” Mestre Daniel conta que em 1975 houve a primeira fincada do mastro na Igreja Nossa Senhora da Glória, na Barra do Jucu, mas a banda existe desde 1952. O mastro remete à história de um navio que, carregado de escravos, naufragou na costa do Espírito Santo. Durante o naufrágio, os escravos clamaram por providência divina e pediram ajuda a São Benedito, conseguindo sobreviver agarrando-se ao mastro do navio, razão pela qual, simbolicamente, se puxa o barco com o mastro num cortejo envolvendo toda a comunidade. Na Barra do Jucu, os festejos de São Benedito acontecem no mês de dezembro. “A fincada do mastro de São Benedito é em dezembro e a retirada em janeiro, ele é nosso padroeiro. A gente faz a abertura da Festa da Nossa Senhora da Penha no Sábado de Aleluia, e da Nossa Senhora da Glória, que é a padroeira aqui da Barra. Louvamos também São Jorge com uma feijoada. O conguista que toca o congo precisa ser devoto. Qualquer pessoa de qual-quer religião que quiser aprender a tocar, fazer os tambores, cuícas, atabaques, caixas, eu ensino. Aprendi sozinho, faço da minha criatividade, com o couro de boi e uso madeira pinho. Eu aprendi ouvindo o Mestre Honório cantar as músicas, a gente repassa as toadas cantando. As pessoas que não fazem parte do congo e não gostam do congo nos chamam de macumbeiro, pembeiro. Eu me sinto muito mal com isso, é uma forma de dizer que nós somos ruins. Ainda falta muito compreensão. Frequento o Convento da Penha, casei com a mesma mulher duas vezes na igreja, fiz Bodas de Ouro, não sou uma pessoa ruim porque sou do congo”, explica Mestre Daniel.

Com Mestre Daniel dos Santos (camisa listrada), na Barra do Jucu.

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Em 1989, Mestre Honório era o mestre da Banda de Congo da Barra do Jucu e Mestre Daniel era conguista da única banda: “O Mestre Honório avisou que ia acontecer um encontro especial com a presença do Martinho da Vila, nós sabíamos que ele vinha ouvir as canções. Nossas reuniões eram na Fazenda Cam-ping, organizadas pelo Pignaton, eu ia toda semana e o congo era tocado lá. Depois que o Martinho da Vila cantou a Madalena em samba, antes só tinha uma banda, agora tem três, na Serra, com a associação, tem mais de vinte. Eu acho que aumentou o número de bandas e o interesse das pessoas de fora, nos anos de 1990 passamos a receber mais pessoas aqui na vila, melhorou muito para nós, as pessoas vêm até aqui em casa, compram os instrumentos, se inte-ressam, as pessoas de fora da Barra até mais do que as daqui. Eu fui para o Rio de Janeiro me apresentar com a Banda de Congo no Kizomba – Encontro de Arte Negra, no Theatro Municipal, com o Martinho da Vila, a Benedita da Silva nos recebeu também. Na época, todo mundo queria ir no ônibus, até quem não era da banda. Me lembro com muita alegria, foi muito bom. Cada banda tem uma forma de cantar e tocar, a forma que eu aprendi a tocar e cantar com o Mestre Honório é a que eu repasso para os meus filhos e netos.” Mestre Daniel pega o tambor, chama sua filha Beatriz, que também toca caixa, e seu genro Vitalino na casaca, e levam o refrão de Madalena do Jucu: “Madalena, Madalena, você é meu bem querer, eu vou falar pra todo mundo, vou falar pra todo mundo que eu só quero é você”. Os versos são diferentes e improvisados a cada evento, com várias temáticas.

Nos anos de 1990, com a morte do Mestre Honório, muitos conguistas dissidentes do mestre se afastaram, outras duas bandas foram criadas, a Banda de Congo Mestre Alcides e a Banda de Congo Tambor de Jacarenema. Mestre Daniel assumiu a Banda de Congo Mestre Honório em 2000, para revitalizar as tradições deixadas por Mestre Honório: “Os instrumentos estavam todos danifi-cados com o tempo, eu e meu genro Vitalino começamos a produzir os tambores e casacas.” A família Santos vem se dedicando na preservação do patrimônio cultural e acervo em suas próprias residências, na casa do Mestre Daniel e na casa de Beatriz e Vitalino. As cores da Banda de Congo Mestre Honório são azul e branco desde o início, o símbolo da banda é a Igreja de Nossa Senhora

Mestre Honório e Martinho da Vila no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1989, durante a entrega do Prêmio Governador do Estado.

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da Glória da Barra do Jucu, com os conguistas tocando, as mulheres usando saia azul na altura do joelho, os homens calça azul e a blusa de meia branca. O chapéu que a banda usa é o mesmo modelo usado por Mestre Honório. A mascote da banda é a Júlia, 9 anos, neta do Mestre Daniel.

Vitalino José Rêgo, 56 anos, mestre na arte de confeccionar instrumentos, veio do interior de Colatina para a Barra do Jucu ainda criança. A família de Vitalino não era do congo, foi conhecendo as coisas da Barra do Jucu, o mar, a pesca artesanal, as brincadeiras, Mestre Honório e depois o sogro, Mestre Daniel, e o congo foi adentrando na sua vida. Hoje ele encara o congo como profissão ensinando sua arte de criar casacas estilizadas em oficinas que acontecem na sua casa. “Hoje faço parte da Banda de Congo Mestre Honório e é a minha identidade, o que aprendi com eles, Mestre Honório e Mestre Daniel, levo para minha vida. Comecei a acompanhar as levadas das bandas, na praça, nas casas das pessoas, na minha adolescência, durante três anos, para depois receber um convite e ser autorizado pelo Mestre Honório a sentar num tambor de congo para tocar pela primeira vez. Alguns colegas que já estavam tocando na época caçoaram de mim, lembro que o Mestre Honório, que regia a banda com sua caixa de centro, pegou a baqueta e bateu na cabeça desse colega e disse que ele tinha autorizado. Para mim, eu recebi uma responsabilidade. Hoje as pessoas tocam uma semana e já se dizem congueiros. Eu esperei o convite, a minha opor-tunidade. O tambor tem uma levada, uma pegada, não é qualquer um que toca. O tambor tem uma identificação, o tempo, o acompanhamento, o repique, os toques e ensinamentos que os mestres passam. As bandas tradicionais de congo

Banda de Congo Mestre Hónorio.

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não ensaiam, é algo espontâneo, não tem reuniões. Os toques que eu repasso para os outros eu aprendi com meus Mestres, os professores de congo e por aí vai. Mestre Honório sentava num tronco de jaqueira, num tambor de dois coros que ainda existe na casa do Mestre Daniel, e me ensinava a bater tambor, ele botava a mão no meu queixo e dizia ‘não se olha pro tambor tocando, olha pro meu rosto e toca com as mãos’. Eu canto, toco, danço, produzo instrumentos, improviso versos e escrevo toadas.”

“Há uma visão muito equivocada ainda do congo, que não era bem aceito na sociedade, no movimento comunitário, e quando querem nos agredir, ofender, usam logo o termo macumba. Eu vou dar oficina para produzir casaca para as crianças, muitos falam: lá vão os macumbinhas. Tiveram dois alunos que começaram a faltar as oficinas porque foram proibidos pelos pais e mencionaram para os filhos que era coisa de macumba aprender a fazer casaca. Este mês pintei dez casacas e coloquei no muro para secar, a vizinha falou que era para tirar as casacas, pois a casa dela era a casa do Senhor. Eu tirei tudo e achei um absurdo. É uma covardia com a nossa cultura do congo. Já tivemos muitos problemas com a Igreja Católica, hoje não temos mais. Nós mesmos da Banda de Congo Mestre Honório tivemos que fazer um trabalho explicativo com a comunidade, com as igrejas, com as escolas, associações, foram muitas conversas e palestras. Até o frei do Convento da Penha hoje aceita, abraça, dança o congo e canta com a gente. Mas foi uma longa luta.” Durante a entrevista eles levaram: “Ô tindô lelê, o tindô lalá, deixa a caixa bater, deixa o congo rolar, menina que vai na frente carrega sua bandeira, é a Santa milagrosa, é a nossa padroeira.” Vitalino acrescenta: “Às vezes começamos a tocar o congo, e de repente os versos,

Família dos Santos, Barra do Jucu.

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pra um, pra outro, as coisas vão acontecendo, a gente vai dançando, aquela energia. As pessoas do congo que já se foram estão ali conosco. Eu só tenho que agradecer esses ensinamentos dos que já se foram e eu tento perpetuar essa cultura. Mestre Honório, o sucessor dele Mestre Daniel, a gente incorpora essa energia, a gente sente, chora, isso tudo vem com a gente, o que soma é a energia positiva, lembrar dos conguistas que já se foram, do Mestre Reginaldo Sales, do Amores da Lua.” Ele para e canta a canção predileta do Mestre Reginaldo Sales: “Aonde está a baleia? A baleia no fundo do mar, a baleia deu o fora... e o mar estremeceu, valei-me Nossa Senhora. Aonde está a baleia.”

“Depois da gravação de Madalena do Jucu em samba, os congos daqui, da Serra foram mais valorizados, minha opinião é que se hoje o congo é mais aceito, podemos tocar em qualquer lugar, deve-se à gravação. A partir daí a cultura foi vista de outra maneira. Em 2012 toquei no show do Martinho da Vila na Praça da Barra do Jucu. Martinho é um camarada que eu só tenho gratidão. Nós somos artistas, eu, ele, Tunico, Mestre Daniel, cada um faz o seu papel na arte e na vida, dá a sua contribuição. Minhas casacas tocaram em Marte, chegaram nas mãos da Yoko Ono, Gilberto Gil, Carlinhos Brown. Tive o prazer de tocar com o Monobloco, fiz uma casaca para O Rappa, Skunk, Manimal. Dei uma pro Tunico da Vila no show que tocamos juntos, sei que ele leva para os shows dele. Eu fui pra França, em 2005, levar o som da casaca, fizemos um congo para São Benedito com tronco de eucalipto que buscamos no porto da cidade e um cortejo encenando o congo. O padre celebrou a missa e eu nunca vi tanto francês dançando congo. A Banda Zé Maria foi junto, a aceitação e o reconhecimento foram lindos. Fazer casaca é a minha profissão e eu devo tudo isso aos que contribuíram, todos a seu modo. Hoje dou aulas ensinando jovens e adultos a fabricar casacas no projeto ‘Casaca Capixaba’. Tem professores que vêm da Serra para aprender essa arte com toda dedicação. Tenho que repassar o que me foi ensinado, hoje estou aqui, amanhã não sei.”

A Barra do Jucu já contou com um espaço chamado “Casa da Cultura”, o Mestre Daniel desenvolvia oficinas de tambor e Vitalino ensinava a fazer casacas, hoje eles desenvolvem as atividades em suas residências e calçadas. As pessoas vêm de longe para aprender, o interesse, segundo eles, é maior entre as pessoas de fora da Barra do Jucu, que é um celeiro de artistas e poderia abrigar num espaço único

Vitalino nos shows na Barra do Jucu: em 2012 com Martinho da Vila, e em 2017 com Tunico da Vila.

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todas as artes do congo, dentre outras ideias que foram apontadas durante a roda de conversa. O Mestre artesão Vitalino falou dos seus desejos: “Meu sonho é ter um espaço aqui na Barra, uma escola de congo que unisse todos os saberes da cultura, com todas as artes num espaço só, a dança, o canto, as oficinas de instrumentos, a pintura, e poderia abrigar outras também, como as rendeiras, capoeira e outras artes negras. Nós confiamos em São Benedito e na gente mesmo. Outras culturas europeias têm as suas casas de cultura, exposições, nós não temos aqui. A gente man-tém a cultura nas nossas próprias residências, não temos um espaço adequado para desenvolver nossos trabalhos. Tenho esperança que refaçam a Ponte da Madalena, para nós pescadores, conguistas é muito importante e histórica essa ponte. E que poderia ser uma referência turística. O bairro podia ter um portal na entrada com as casacas. Não temos nenhum busto, monumento público, escultura pública, nada, nenhuma referência para o turista tirar fotos sobre a cultura do congo na região. A referência são somente as nossas casas. Aqui tinha uma árvore que nós fizemos uma casaca as pessoas tiravam fotos, os artistas fazem ações por conta própria.”

Seu Daniel completa que também é seu sonho um Museu do Congo e que não adianta construir e não ter manutenção: “Não adianta criar e não manter o espaço limpo, adequado para a exposição dos instrumentos, das vestimentas ex-postas. Com certeza seria um ponto turístico da região que receberia milhares de pessoas, nos calendários festivos e fora deles.” Eles finalizam cantando para Mestre Honório o refrão da canção de congo que ele mais gostava: “Rainha o seu brinco caiu, deixe que eu apanho pra você, é de ouro, é de prata, é de bronze, oh rainha deixe que eu apanho pra você.” E depois entoam a última toada de congo escrita e cantada por Mestre Honório: “Menina da saia branca debruçada na janela, eu gosto dela, eu namoro ela. Menina da saia branca debruçada na janela, eu gosto dela, eu namoro ela.”

Mestre Daniel e o tambor de tronco de jaqueira com dois couros do Mestre Honório.

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Mestre Ricardo Sales, 33 anos, é desde 2012 o mestre da Banda de Congo Amores da Lua de Santa Marta, em Vitória. Nascido e criado no antigo bairro de Mulembá, neto do Mestre Reginaldo Sales (in memoriam) e filho do conguista Rui Barbosa Sales, 64 anos, que também participou da entrevista, eles nos contaram sobre a herança cultural familiar hierárquica do congo. Estive com a família Sales durante os meses de maio e junho de 2019, na residência que também é a sede da Associação da Banda de Congo Amores da Lua. Mestre Ricardo e o Senhor Rui me receberam com café cheiroso e muito carinho, no local onde são guardadas as relíquias da cultura do congo. A Banda de Congo Amores da Lua foi fundada em 30 de março de 1945, pelo Mestre Alarico de Azevedo e sua esposa Dona Cecilia de Azevedo. Com a morte de Mestre Alarico, seu genro Mestre Reginaldo assumiu o comando da banda junto com a sua esposa Maria Sales.

Conguista desde os quatro anos de idade, quando sua mãe o vestia de ma-rinheiro ou capitão do barco do congo para pagar uma promessa pela sua saúde, o Mestre de congo mais jovem em atividade começou tocando instrumentos na banda junto com seu avô. A calça, a camisa e o cargo de coordenador da banda ele recebeu aos quinze anos. Seu pai, Rui levava os filhos para o congo, pois a mãe Celeuza era enfermeira e trabalhava à noite. “Gostava de criar indumentá-rias, estandartes, coisas novas para o congo, antes eram saias e calças de brim e eram muito quentes, nas cores azul céu e branco, o tradicional chapéu de palha e sapatos brancos. Fui criando as saias, blusas de rendas para as mulheres, para a minha avó que era dançarina e inserindo os santos nos estandartes”, conta o Mestre Ricardo Sales. Os encontros aconteciam aos domingos no quintal do avô Mestre Reginaldo Sales, lá os saberes da cultura foram repassados de pai para filho, de mãe para filha e sucessivamente para os netos e bisnetos da família Sales. A banda começou na garagem da família, lá ficavam o barco, os instrumentos, indumentárias e o oratório de São Benedito, como é até hoje. As indumentárias, vestimentas e adornos da banda são criadas até hoje pelo Mestre Ricardo Sales e as roupas são costuradas pela devota de São Benedito, Dona Hilda. Na sede da Banda de Congo Amores da Lua tem um mural de fotos com vários integrantes da banda, parentes e amigos que já faleceram, dentre eles Seu Alfredo, Seu Car-los, Etelvino, Dona Cecília, Dona Maria e os Mestres Alarico e Reginaldo. Mestre Ricardo conta como tudo aconteceu: “Meu avô Reginaldo morou em Goiabeiras, reduto de congo, depois ele veio para Santa Marta e trouxe muita coisa da tradição de lá, dos cantos de congo. A banda chamava Congo de Santa Marta, era tocada num terreirinho lá em cima em Santa Marta. Vendo a lua, escolheram o nome da banda. As cores azul celeste e branca também foram escolhidas por causa do céu e das nuvens. A história do naufrágio do navio negreiro em Nova Almeida, onde os negros se agarraram ao mastro e puderam chegar em terra firme, era contada pelo meu avô Reginaldo, foi um milagre em Putiri. Minha avó Dona Cecília era benzedeira, rezava com ervas, era parteira e rezadeira de ladainha. Sinto a energia deles que já se foram quando canto e toco congo, do meu avô Reginaldo, da mi-nha avó Cecília que era espiritualizada, compromissada com São Benedito e que rezou muito por mim. Nasci doente, com asma, e fui prometido à São Benedito

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por ela, o congo é a minha missão. O congo é uma forma de louvar os ancestrais, familiares e não familiares que já morreram e tocaram, cantaram e dançaram o congo. Tem momentos, lugares e apresentações que eu sinto uma forte vibração. A nossa tradição é da fé. Sem apoio e ajuda da energia dos ancestrais, os que já passaram pela banda, o congo não existiria. É de energia que a gente vive. Parece que tem vinte, trinta pessoas tocando junto comigo. Quando eu vejo as fotos e os vídeos eu não me reconheço, é um mistério, mas não acontece sempre. Não adianta esconder a religiosidade que existe no congo, ela existe e as pessoas precisam respeitar. São Benedito está ali representando eles, nossos ancestrais, a nossa história, a história dos negros capixabas.”

A Banda de Congo Amores da Lua possui quarenta e seis integrantes, en-tre jovens, idosos e crianças, a cortada de mastro acontece na mata dos Barreiros, na região de Santa Marta, a procissão acontece sempre no dia 24 de dezembro e a fincada de mastro no dia 25 de dezembro. O cortejo da banda com os devotos, o barco enfeitado e o mastro saem pelas ruas do bairro arrastando uma multidão rumo à Capela de São Benedito, que foi construída a pedido da família Sales. Hoje a capela está sob a direção da Mitra Arquidiocesana de Vitória e o Mestre Ricardo Sales não conseguiu dialogar com os responsáveis pela abertura da igreja no dia da fincada. “A capela de São Benedito, que meu avô lutou tanto para ter, era uma reivindicação antiga nossa, quem zelava era a Tia Morena, irmã dele, mas desde 2013 está com a Mitra, infelizmente no ano de 2018 não conseguimos fazer a pro-cissão. A coordenadora da igreja não aceitou nos receber. A gente gostaria que a procissão da Festa de São Benedito mantivesse a tradição de sair do bairro Santa Marta, e não de Mangue Seco, tentei procurar e não fui atendido. Fizemos a fincada na capela, fazendo a procissão saindo da minha casa. A gente resiste, mas nossa história ancestral não é respeitada. A Igreja Católica não respeitou nem as cores da capela, que eram azul e branca e agora é rosa e amarelo. Nosso sonho era que a capela voltasse para a Banda de Congo Amores da Lua, que a gente zelasse e não tivesse esses desencontros.” No período da Quaresma, o congo entra em recesso, o chamado jejum dos tambores.

Mestre Ricardo Sales (boné branco) e Rui Sales (D).

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Em 1989, ano do lançamento do álbum “O Canto das Lavadeiras”, com a canção de congo “Madalena do Jucu” gravada em samba, Mestre Ricardo tinha quatro anos. Seu pai Sr. Rui Sales, que tocava na Banda de Congo Amores da Lua e foi aos Encontros de Bandas de Congo que aconteciam na Fazenda Camping na Barra do Jucu, conta: “Antes do Martinho vir teve um encontro entre conguistas daqui com a sambista Clementina de Jesus, minha esposa Celeuza não foi, ela can-tou umas duas horas de manhã junto com a gente. Já haviam tentado unir o congo e o samba com ela. Depois convidaram o Martinho da Vila uns cinco anos depois, e ele veio ver o Encontro Estadual das Bandas de Congo. A rainha da banda era a Terezinha Tomé. A Amores da Lua foi quem fez a abertura do show do Martinho, que chamou os conguistas para ficar perto dele. Nenhuma banda tinha ainda o registro documental de associação naquela época. Em 2006, quando o Martinho veio receber o Título de Cidadão Espírito-Santense, fomos até a Assembleia Le-gislativa cantar com ele, Mestre Reginaldo entregou o disco da Banda Amores da Lua de presente. Nós cantamos o refrão da ‘Madalena do Jucu’ como aprendemos com meu pai Reginaldo, que aprendeu em Goiabeiras, e como foi repassado pra gente: ‘Madalena, Madalena você vai me prender, vou falar pra todo mundo, vou falar pra todo mundo que eu só quero você... Subi o Morro da Serra e cansado me sentei, chorando por pai e mãe, chorando por pai e mãe pelo leite que eu mamei’, a melodia também é diferente. Papai e vovó nos ensinaram que a música Mada-lena quem cantava eram as lavadeiras na beira dos rios e os conguistas ouviram e cantaram. Na imaginação das lavadeiras eram homens cantando para elas, assim eu aprendi. Temos uma relação de respeito com o Martinho e agora com o Tunico, tocamos com ele no aniversário de oitenta anos do Martinho da Vila ano passado, aqui em Vitória, e com o Tunico e a Sandra de Sá.”

Os principais santos católi-cos louvados pela Banda de Congo Amores da Lua são: São Benedito o padroeiro, Nossa Senhora da Penha, Nossa Senhora da Conceição, São Pedro, Santo Antônio e São Sebas-tião. Uma característica marcante da banda é que as mulheres dançam, cantam e não tocam. Os homens usam vestimentas de calças azuis e camisas brancas de meia e chapéu de palha. Usam tambores com couro de boi, caixas, bumbos e cuícas. O mestre usa triângulo, chocalho e apito. As dançarinas são de todas as idades, até crianças. A rainha da banda é Celeuza Sales, 62 anos, e a princesa Luciane Gonçalves, 44 anos.

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Celeuza Sales, rainha da Banda de Congo Amores da Lua.

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“Do jeito que eu aprendi, mantenho e preservo a forma de cantar, os mestres mais antigos observam a gente, da mesma forma que eu aprendi eu mantenho o canto e os toques. A banda não tem instrumentos de sopro. Meu avô tinha medo que a batida cadenciada, mais lenta, se perdesse. Não troquei nada, preservo a batida compassada, menos acelerada e a forma de cantar as letras das músicas e a melo-dia. Eu evito colocar versos novos nas músicas, pois os idosos possuem dificuldades em assimilar. Se eu acelerar, as dançarinas daqui não vão gostar. Mas, tem congos que são mais acelerados, cada um tem as suas características. A rainha e a princesa carregam os estandartes dos seus santos de devoção, elas dão a vida pelo congo, precisam ser pessoas espiritualizadas e de um legado de amor, respeito e devoção. No estatuto da Banda de Congo Amores da Lua tem lá: não se discrimina sexualidade. A diretoria abraçou as pessoas de diferentes opções sexuais, temos homossexuais que tocam, o que eu desempenho aqui é cumprir o estatuto, respeitamos todos os que querem participar. Existem trans que são dançarinas do congo, se respeitarem a tradição e cumprirem as regras do congo, não vejo problema. O que eu aprendi é que os tambores do congo são para o congo, músicas de umbanda e candomblé, ou outras religiões, são para outros momentos. Para um mestre não cabe beber bebida alcóolica, preciso estar de cara limpa, não proíbo os integrantes, mas para mim não dá.” Outra característica da banda são as crianças, cerca de seis meninos

Dançarina da Banda de Congo Amores da Lua.

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e meninas acompanham a banda junto de seus pais. “As avós, as mães trazem elas, muitas pedem pra vir para o congo, interagem com todos, tem umas que são geradas aqui desde a gestação e despertam para a dança e o canto. Teve um caso aqui que se tirasse o vestido do congo ela chorava. Elas amam e decoram as músicas. Temos amor pelas crianças aqui, tem gente que acha que elas são minhas filhas. Muitas são crianças sofridas, que não têm lazer, mas os pais precisam acompanhar para elas participarem”, fala Mestre Ricardo Sales.

Ele relembra que em 2010 a Banda de Congo Amores da Lua foi con-vidada para tocar e cantar com uma comitiva de músicos capixabas na França, onde realizaram várias apresentações no Batuke Musike, em Dunkerque e em Paris. Do projeto ColetivoVix participaram músicos, sambistas e conguistas: “A gente se apresentou primeiro em Jardim da Penha, em Vitória, com as dança-rinas do congo e conguistas, apresentando o congo tradicional para mais de seis mil pessoas. A comitiva da França, em parceria com a Prefeitura Municipal de Vitória, uniu congo com samba e outros ritmos e aprovamos a mistura. Ensaiamos todos os dias, nos apresentamos para dezessete mil pessoas na França. Foi emo-cionante”. As canções de congo mais cantadas foram as músicas “Congo Velho Aqui Chegou”, “Iá, Iá Você vai à Penha” e “Aonde Está a Baleia”. Em entrevista na época, Mestre Reginaldo Sales, então com 86 anos, falou sobre a mistura do congo com outros ritmos: “Sou a favor da criatividade, da cultura. Mas sei que o meu papel é preservar a tradição passada pelos mestres, o congo das toadas, as homenagens aos santos.”

Um ano antes da viagem à França, a Banda de Congo Amores da Lua quase terminou por um conflito gerado por um padre que chegou no bairro e quis inter-ferir na cultura do congo. Ricardo Sales conta: “Em 2009, um padre que chegou na congregação de Santa Marta se aproximou do meu avô, Mestre Reginaldo, com o intuito de disseminar discórdia entre os integrantes do congo, senti que ele queria destruir tudo o que a gente tinha, que era o congo, para então administrar a Capela de São Benedito e pôr fim à manifestação no bairro. Vi que ele tinha muito pre-conceito, muita gente saiu do congo, chegou a ficar só dez pessoas e o pior é que o padre recebeu apoio de familiares. Fiz então uma promessa para São Benedito, que se essa situação fosse resolvida iria para Aparecida pagar a promessa com a banda. Meu avô já estava velho e ele se aproveitou da fragilidade dele para enfraquecer o congo. Só consegui tomar as rédeas da situação em 2012, quando meu avô ainda lúcido passou o comando da Banda de Congo Amores da Lua, comecei a refazer todos os instrumentos, indumentárias e estandartes. Achei que o Amores da Lua ia acabar, foi um momento de superação para manter e preservar a tradição. Meu pai não podia assumir na linha sucessória, pois tem a saúde frágil, já sofreu dois infartos, minha mãe Celeuza, rainha do congo, é enfermeira e cuida dele. Minha referência viva é o meu pai, meu grande Mestre, tudo pergunto a ele. Em dezembro de 2013 foi minha estreia como Mestre da Banda de Congo Amores da Lua com uma grande procissão no bairro, mas foi uma luta muito árdua. Paguei a promessa que fiz em Aparecida, São Paulo, com a banda. Se tivesse desistido acho que a banda

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não existiria mais, por puro preconceito de um padre e os conflitos que ele gerou.” Em 2015, aos 92 anos, Mestre Reginaldo Sales morreu e na sua despedida foram entoados hinos de congo pelos familiares, amigos e integrantes da banda que ele comandou durante trinta anos. No livro de Helena Theodoro3, ela cita Manoel Querino4 que “na tradição africana que se iniciou na Bahia no Brasil, após a morte de um antigo capitão do canto ou mestre da banda, outro é eleito seguindo o pro-cesso de escolha africano, o mais velho aponta em vida. A confirmação do cargo se dá publicamente com os companheiros, num desfile de canto e ritmo.”

“A gravação da toada de congo em samba ‘Madalena do Jucu’, ajudou a divulgar o congo do Espírito Santo eu vejo dessa forma, as escolas, instituições con-vidam a banda de congo para nos apresentarmos, mostrarmos o congo, recebemos convites de pessoas, estudantes, pesquisadores, admiradores. Existem administrações municipais e estaduais que valorizam mais ou menos a cultura do congo, dependendo do olhar”, comemora Ricardo Sales. “Meu maior sonho era ter uma Casa Cultural aberta à visitação, preservando com apoio a tradição, onde pudéssemos dar aulas, costurar indumentárias, ter uma exposição fotográfica, turistas visitando, poderia ser uma sede compartilhada entre as bandas de Vitória. Os jovens possuem interesse em participar, recebo muitos jovens nas festas, eles reconhecem que é a cultura capixaba, por isso vamos as escolas. Tenho muita esperança que com esse livro e mais pesquisas o preconceito que ainda existe com o congo possa diminuir ainda mais.”

Sobre outros sonhos e desejos, Mestre Ricardo Sales conta: “Já fizemos show no Teatro Carlos Gomes com a Orquestra Sinfônica e foi ótimo, mas é preciso levar o congo em viagens nacionais, internacionais, para que a mídia nacional conheça a nossa história, é preciso parcerias com hotéis, cruzeiros nos portos e no aeroporto, os turistas vêm a Vitória mas não conhecem o congo capixaba, como é na Bahia com a cultura deles. Tenho o sonho de levar a Banda de Congo Amores da Lua para participar do Festival de Folclore de Olímpia, o mais tradicional do Brasil, de irmos para o exterior. Na África, nós nunca tivemos contato com a raiz de lá. Dos artistas nacionais virem na fonte conhecer, apresentar o congo. Precisamos aprender a mostrar mais o nosso congo com orgulho. Hoje, na minha clareza, se eu não tivesse seguido na fé que salvou a minha vida, a do meu pai duas vezes é o que me mantém de pé, o congo e a fé, são tudo que tenho. Para quem passou a infância internado e hoje está aqui e conseguiu manter e preservar o congo há seis anos. O congo está ligado a uma grande devoção e as pessoas sentem isso e falam com emoção comigo.”

Em julho de 2019, Ricardo Sales e sua família tiveram que se mudar por conta da perseguição de vizinhos e escreveu em suas redes sociais: “Hoje estaremos saindo do cativeiro, que foi a casa que a gente viveu por três anos sendo perseguido por alguns vizinhos por causa da nossa religião e por causa do congo, mas graças

3 Helena Theodoro. Martinho da Vila: reflexos no espelho. Rio de Janeiro: Pallas, 2018, p. 20.4 Manoel Querino. A raça africana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1955, p. 88.

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a Deus iremos voltar para a casa que nós vivemos há oito anos no mesmo bairro, em Santa Marta.” E finalizou: “Em geral o congo é muito discriminado, é visto por quem não conhece como macumba, olham as saias penduradas na janela e falam isso. Moro em frente a uma igreja evangélica e eles respeitam, pessoas mais estudadas não discriminam, os moradores do bairro têm respeito ao empenho da família para manter a tradição. Mas, passei por uma situação há um ano de ser agredido verbalmente e ofenderam tudo que eu preservo, os meus pais idosos foram humilhados. Eu sou um líder de uma cultura e não posso viver assim. Estou esperando a Justiça resolver. Resistir, às vezes, é dolorido, gera traumas, minha mãe adoeceu, meu pai se debilitou, gera consequências horríveis na saúde mental e física das pessoas. Meu avô passou por isso e quando eu estudava na escola me discriminavam porque eu saía no barco do congo. Daqui a 20 anos nem sei se essa perseguição vai mudar.”

Banda de Congo Amores da Lua no Festival da Baleia do projeto Tamar, em Vitória, setembro de 2018.

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2.2 Madalenas e Novas Madalenas

A mulher, o mistério e o poder do corpo que gera e gesta filhos e alimen-tos na cultura africana asseguram, além da continuidade das famílias e linhagens, a homenagem às venerandas mães Iabás. A mulher é o sopro da vida do divino africano. Cantar as mulheres e as ancestrais femininas nessa cultura é uma forma de dar sentido à ininterrupta fonte da vida. O movimento de girar das saias das baianas de escolas de samba e das conguistas fazem referência a esse círculo mágico.

Ester Vieira dos Santos, 87 anos, conhecida como Rainha do Congo, é a matriarca, a mulher mais velha do congo da Barra do Jucu e da Banda Tambor de Jacarenema. Nascida e criada na Barra, Ester é a sétima filha de uma família de oito irmãos, Dona Darcy, Aroldo, João, Onofre, Geovane, Elza e Nadir, criados pela mãe, a rendeira Bernardina Vieira da Conceição, e o pai, o pescador Inácio Vieira Machado. Numa tarde de muito vento, café quentinho e muita conversa com água benta e rezas, estive naquele quintal sagrado e afetuoso onde ficam guardados os tambores, um lugar mágico. Fui acompanhada da fotógrafa Zanete Dadalto, que foi minha professora na graduação de Jornalismo. Lá estavam as três gerações da família Vieira, Dona Ester, a sua sobrinha Dona Dorinha, guardiã dos tambores da

Congada na Festa da Penha, em 2018, e baiana da Escola de Samba Independentes de São Torquato.

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Banda de Congo Tambor de Jacarenema, e a filha de Dorinha, a professora Marina Sampaio. Dona Ester é benzedeira e reza as pessoas da comunidade com o seu São Benedito que resgatou do rio, e fala com emoção da cultura que representa. “Meu coração bate de felicidade quando estou no congo, adoro cantar de improviso, os versos, as respostas, tiro de cabeça. Ai de quem manga de São Benedito, ele de nós não precisa, mas nós precisamos dele. Ele é um santo muito poderoso. Tenho um filho, o Ulisses, ele não é católico, é evangélico, ai dele se não respeitar o congo.” E emenda: “Sabiá bebeu, bebeu, sabiá bebeu licor, sabiá cantou na mata, isso é pai-xão de amor”, e emocionada canta a toada que ela mais gosta, a da despedida do congo: “Adeus, adeus, adeus que eu vou embora, adeus, adeus, que eu vou embora. Vocês vão ficar com Deus, eu vou com Nossa Senhora, vocês vão ficar com Deus, eu vou com Nossa Senhora. Vou me despedir daqui que essa vida não é boa, vou me despedir daqui que essa vida não é boa.” Ela interrompe: “Como é Dorinha? Quando o mestre aponta a gente canta. Resgatei um São Benedito que jogaram no rio e hoje ele vive na minha casa, meu marido pegava camarão na rede, e o santo veio junto, um São Benedito enorme e tapado de lama. Eu ficaria feliz como Rai-nha do Congo se São Benedito tivesse uma igrejinha dele aqui na Barra do Jucu.”

Doracy Vieira Gervásio, 80 anos, a Dona Dorinha, é filha de Dona Darcy Vieira dos Santos (in memoriam). Irmã da Dona Ester, Dona Darcy foi a Rainha do Congo por muitos anos. “Me sinto tão feliz cantando, não sei fazer nenhuma tarefa sem cantar, não sei fazer comida ou qualquer outra coisa sem cantar as toadas do congo, ouço desde o útero, mamãe lavava roupa cantando e eu também lavo. Melhor cantar do que falar dos outros. O pessoal da igreja, de antigamente, não gostava de congo, só

Ester e Dorinha, da Banda Tambor de Jacarenema.

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em 1995 o padre Solon autorizou, hoje fazem festas e chamam o congo às vezes, tem coordenador da igreja que até hoje não gosta do congo, aqui mesmo na Barra. Quando não podia fazer o cortejo na igreja, fazíamos do mesmo jeito. Já fizemos fincada do mastro de São Benedito com a porta da igreja fechada. Quando estou na frente com o São Benedito parece que estou no céu, deixo eles criticarem. Hoje subimos até o Convento da Penha, tocamos tambor na missa. Antes a mulher não podia participar do congo, eu comecei depois que eu casei, com 20 anos. As rodas de congo da família eram feitas nas quitandas, nas portas de botecos de quitanda, só com os homens. Eles não gostavam que mulheres participassem, o vovô fazia fogueira, assava batatas, fazia moqueca de xaréu para comerem. Meu marido não é chegado no congo, mas não liga que eu participe, sou mãe de nove filhos e o congo é a minha paixão, tive quase todos em casa de parto normal, e as gêmeas Marina e Marisa também. Santa Luzia é a minha protetora, quando tive meus filhos fiz promessa para ela. Dona Darcy, minha mãe, com 96 anos nunca usou óculos, minha mãe dançava muito. Ela nos deu a vida, somos uma família de mulheres felizes e alegres. Até hoje, nas congadas de Goiás, fui pra lá se apresentar, as mulheres só cantam, elas nem dançam, é bem diferente daqui. Aqui na Barra do Jucu as mulheres tocam, cantam e dançam. No cortejo de São Benedito, no dia 26 de dezembro, na parte religiosa não bebemos, fica feio, falta de respeito, é uma coisa de Deus, depois tem festa e aí bebem e comem à vontade, na hora da procissão não. Se tiver bebida eu saio de fininho e escondo, não gosto. Eu ajoelhei e rezei muito para escolhermos o nome da banda, as cores verde e branco, o convento que é o símbolo da Banda Tambor de Jacarenema, fundada em 1999. Na Barra hoje são três bandas de congo, mas cada uma toca o congo do seu jeito. A gente encontra outras bandas de Vitória, mesmo nos encontros na Fazenda Camping antigamente, mas como cada banda toca diferente, então não tocamos juntos. Cada uma toca do seu modo, em separado. Umas tocam mais rápido, mais lento, muito ligeiro não dá pra gente cantar. Cada uma faz um verso, eu, tia Ester, Marina, Beto toca compassado, muito rápido perde a beleza. A Banda Tambor de Jacarenema é uma banda tradicional”, relata Dona Dorinha. Ela começa a cantar a canção que mais gosta: “Meu Santo Antônio eu vou fazer uma promessa, pra São João e pra São Pedro me ajudar, soltar balão, pular fogueira a noite inteira, ai meu amor até o dia clarear. Olha o terreiro como está iluminado, está todo enfeitado para a festa começar.” E explica: “Essa eu aprendi com os antigos desde pequena. Meu sonho era ter uma igrejinha de São Benedito aqui na Barra pra colocar os tambores, colocar tudo ali dentro, o santo, eles estão aqui, não me atrapalham, ficaria aqui e lá, mas se ele tivesse uma igrejinha específica era bem melhor. Se eu ganhasse na loteria com certeza eu faria a igrejinha do lado da minha casa, comprava o terreno e construía. São Benedito é sagrado, é tudo na minha vida, tudo que peço a ele, eu faço com muita fé, ele tem um lugar especial no meu coração, é minha guia e eu acredito que ele me ouve. Tem gente que coloca ele na cozinha porque ele era cozinheiro. Eu vi um filme dele, como ele foi sofrido, castigado”. Dona Ester completa: “Porque ele era preto”. Dona Dorinha continua: “São Benedito vivia na igreja, cozinhando, e lá fora tinha muita gente com fome, enrolava a comida no avental e saía para dar aos pobres, ele foi dedurado e os cozinheiros indagaram o santo e na hora ele disse:

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são flores. Apareceram flores no seu avental e ele continuou levando comida. Quem é devoto de São Benedito nunca falta comida em casa, a panela está sempre cheia. Aqui come muita gente e tem sempre mais.” E finalizou cantando verso da toada de congo Madalena: “O amor, enquanto é novo, é doce que nem mel, quando vai ficando velho, quando vai ficando velho, ele amarga que nem fel, quando vai ficando velho, quando vai ficando velho, ele amarga que nem fel, oh Madalena.” E depois sorrindo diz: “Mas o meu não amargou, continua doce nesses cinquenta e nove anos de casamento.” A Banda Tambor de Jacarenema não realiza ensaios, os encontros acontecem no quintal da Dona Dorinha, com comidas típicas do congo, comidas africanas em sua maioria, caldos, bobó de camarão, feijoada, caldo de peixe, moqueca de xaréu e pirão da cabeça do peixe.

Marina Vieira Sampaio, 51 anos, é filha de Dona Dorinha, professora da rede municipal de Vila Velha e dá aulas da cultura do congo na escola. “A gente sempre viu o congo como um momento de encontro, lazer, nasceu na minha casa, no início só os homens participavam, cada um com seus tambores, sempre à noite depois do trabalho, a maioria pescadores. Eles cantavam o que acontecia naquele dia, o que eles viam no trabalho, ali bebiam, cantavam e dançavam. As pessoas sabiam que a minha família era do congo, mas minha infância não foi no congo, a gente não participava, não tinha nem luz elétrica aqui na Barra do Jucu. Nessa época os religiosos começaram então a caracterizar as rodas de congo com bebida e macumba, pois a maioria dos pescadores frequentava o centro espírita, o tambor que ele tocava no congo ele usava no centro, era particular dele. Tambor, folia, festas não eram coisa de Deus. Nas quermesses, na festa da igreja, na praça, no espaço público, na frente e não dentro da igreja, o congo podia participar. Os conguistas, inclusive, faziam leilão de animais, galos, cabritos, para arrecadar dinheiro para a igreja. Dessas festas eu me lembro e participava. Logo que eu casei, em 1988, minha mãe já participava da Banda de Congo da Barra do Jucu, eu e meu marido Sebastião Xaxá percebemos um movimento maior e começamos a participar dos encontros no Fazenda Camping. Na época do Mestre Honório, os aspirantes ou iniciantes não participavam ou sentavam no tambor. A gente ia para aprender, tipo

Ester e Dorinha no quintal de Dona Dorinha, na Barra do Jucu. Com Marina Sampaio, na Barra.

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oficina, aprendi muito com ele, cada mestre tem seu conhecimento e suas regras. Como ele era muito ligado ao espiritismo, a igreja perseguia mais. Mas graças a eles, a resistência deles, que a gente conseguiu manter, se não fossem eles, não teríamos mais a manifestação do congo. Depois que Mestre Honório faleceu, eu e meu marido começamos a participar mais efetivamente. Na roda é um coro de mulheres, a preferência de versar é das mulheres mais velhas, minha tia e minha mãe. Mamãe sempre tocou, dançou e cantou, ela era porta-estandarte, agora está mais recolhida por conta de problemas no joelho. A hierarquia é um mandamento do congo, a gente respeita a idade.”

Beatriz dos Santos Rêgo, 52 anos, é auxiliar de secretaria escolar, filha do Mestre Daniel e hoje é a presidente da Banda de Congo Mestre Honório, toca caixa, canta e dança. Hoje a banda conta com vinte integrantes, sendo dez mulheres que possuem as mesmas funções que os homens na banda. “As mulheres só cantavam e dançavam, o Mestre Honório foi inovador, ele era um mago, muito sábio, ele via a coisa além e abriu espaço para as mulheres do congo da Barra do Jucu também tocarem. Em outros congos elas dançam, mas não tocam. A gente só não podia usar saias para sentar no tambor, pois o Mestre Honório não permitia, então eu e minhas irmãs começamos a usar calças e bermudas. Hoje a gente usa saia, senta no tambor, toca todos os instrumentos. E, se Deus quiser, vou realizar o sonho do Mestre Honório de montar a primeira banda de congo feminina. O sonho dele que se tornou meu.” Beatriz Rêgo entrou na Banda de Congo Mestre Honório em 1987, diz que quando mais nova teve resistência para entrar no congo: “Olho pra trás, vejo minhas filhas que começaram com três anos tocando congo, amigas, entendo hoje o papel das mulheres no congo, na história do bairro, na cultura, tudo o que papai viveu, eu peguei a bandeira e estou até hoje. Eu entrei no congo quando vi todos os antigos, os velhinhos morrendo, indo embora, inclusive temos um cantinho sagrado aqui com as fotos dos que já se foram, dos ancestrais do congo, e um oratório de São Benedito com uma cestinha de pedidos. É o canto mais rico da casa. Os mais velhos vivos são

Banda Tambor de Jacarenema.

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meu pai e minha mãe e a gente precisa dar continuidade. Eu não consigo separar a espiritualidade do congo. Antes de me envolver diretamente eu enxergava como uma roda de brincadeira de amigos, de diversão, pois eles não tinham lazer aqui, a festa sempre teve os santos. O primeiro estandarte de 1974 do São Benedito nós preservamos até hoje. É algo junto, misturado, religião e congo. O São Benedito por ser um santo negro, e a festa ter ligação com os escravos salvos no navio negreiro pelo mastro. É a nossa ligação com o mar, com os africanos. Os guardiões do mastro de São Benedito são pessoas escolhidas e fundamentais na festa, fazem a encenação de carregar o mastro que os negros foram salvos, vamos até a praia e depois voltamos para a igreja. Os guardiões são homens, gente que gosta do congo e que pagam promessas. É muita gente que quer participar. Num momento do cortejo são só as mulheres que carregam. Os festejos são sempre depois do Natal, aqui na Barra do Jucu a fincada na igreja é no último sábado de dezembro e a retirada no último domingo de janeiro. A maioria que frequenta os festejos são jovens e a nossa banda é formada por jovens em sua maioria.” Nas culturas popu-lares de base africana, como o

Imagem de São Benedito no “cantinho sagrado”, com o cesto de pedidos e as fotos dos ancestrais.

Bandeira de São Benedito com o mar da Barra do Jucu, pintado por Beatriz Rêgo.

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congo. Helena Theodoro5 avalia que “tais representações dramatizadas sintetizam dança, música percussiva e polirrítmica de conteúdos históricos ligados aos ancestrais africanos e brasileiros. Vestuário, bandeiras, emblemas, estandartes se combinam num espaço lúdico e sagrado, homenageando os ancestrais ilustres.”

“As pessoas precisam conhecer o congo para compreender, para não repeti-rem esses termos de macumba por desconhecimento”, ensina Beatriz Rêgo. “Depois que elas passam a conhecer que por trás tem uma história, que é uma cultura que a gente preserva, aí elas mudam de ideia. A cultura é discriminada por ser negra, mas principalmente por conta do aspecto religioso. Há uma confusão. Eu tenho religião, na banda tem espíritas, católicos, ateus, o importante é respeitar e louvar o São Benedito. Diminuiu o preconceito, mas a gente sofre muito ainda. Depois da gravação de ‘Madalena do Jucu’, o olhar para a gente dos turistas e demais pessoas mudou. As pessoas de fora que vêm nos visitar prestigiam demais o nosso trabalho, eles pesquisam, se interessam, compram instrumentos. A partir da gravação houve um despertar do público externo, uma outra visão, acho que foi importante o Martinho da Vila ter colocado o nome da Barra do Jucu no verso, ele poderia não ter colocado, para nós foi muito importante mencionar o local para as pessoas conhecerem. O que é isso? De onde vem Madalena? Tem gente que nem sabia que existia o congo. Ele divulgou, popularizou. Trouxe reconhecimento e visibilidade para as bandas, isso é notável. Eu acho importante outros artistas gravarem, conhecerem o congo capixaba, teríamos um alcance maior. Isso abre horizontes para nós. Minha mãe, meu pai tiveram oportunidade de tocar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Hoje sou a única mulher a comandar uma banda de congo no estado, missão que recebi, me sinto muito orgulhosa. Vou manter essa missão passando para minha filha Maria Juliana, que hoje toca caixa comigo nas apresentações.”

Com a gravação de “Madalena do Jucu”, a Madalena que permeava antes o imaginário dos e das conguistas passou a permear o imaginário dos e das sambistas e do grande público de massa. Fazendo uma analogia entre as mulheres do congo e do

5 Helena Theodoro. Martinho da Vila: reflexos no espelho. Rio de Janeiro: Pallas, 2018, p. 111.

Beatriz Rêgo na sede da banda e em apresentação na Enseada do Suá, junho de 2019.

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samba, são em sua maioria negras, do subúrbio, das vilas, das favelas, trabalhadoras, donas-de-casa, lavadeiras, empreendedoras, fizeram e fazem magia, transformando a arte em alento da existência. São descendentes dessas culturas, rainhas do congo, baianas, porta-bandeiras, cantoras, pastoras, dançarinas, mães, filhas, netas dessas tradições passadas de geração em geração. Carregam uma herança cultural de fa-mílias brasileiras que amam os tambores, as canções de amor, da África, dos mares do Espírito Santo, do Rio de Janeiro e do Brasil. Em tempos de empoderamento feminino e feminismo negro, Martinho da Vila acredita que as Madalenas de hoje, as novas Madalenas, seriam as jovens que cantam, dançam congo, as compo-sitoras, cantoras de samba, cantoras de rap, funk, pop, dançarinas, escritoras, intelectuais negras que vão contar essas histórias e repassar as heranças cultu-rais. No livro “Ópera Negra”, Martinho da Vila6 fala que “os negros têm muito de que se orgulhar e um dos motivos de orgulho é a ancestralidade musical. Toda música das Américas, dançante ou não, tem origem no continente africano. Os rituais afro-religiosos no Brasil nos legaram os jongos, os afoxés e caxambus, bem como os congos do Espírito Santo e tantas outras mani-festações regionais.”

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6 Martinho da Vila. Ópera Negra. São Paulo: Global, 2001, p. 31.

Baiana da Escola de Samba Imperatriz do Forte.

Dançarina da Banda Tambor de Jacarenema.

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CAPÍTULO 3

As negociações identitárias e o hibridismo das culturas do congo capixaba e o samba carioca com a gravação de

“Madalena do Jucu”

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3.1 Congo e Samba – hibridismo cultural e memória afetiva banta

...Congadas do Espírito Santo bateu na senzala Meu tambor bateu abençoado por Deus Só toco tambor de Angola pro povo do meu terreiro...

“Meu tambor” (2009) Tunico da Vila

O congo e o samba carregam saberes ancestrais impressos em suas práticas culturais musicais, que incluem som, ritmo, dança e fé, que possibilitaram o interlace musical histórico para a música brasileira que foi “Madalena do Jucu”. O congo e o samba são irmãos musicais, possuem a mesma identidade, a banta (Angola) e por isso a fusão ficou tão sonora, bem como o encaixe melódico. Tunico da Vila avalia que é impossível falar de qualquer cultura negra brasileira sem mencionar a influência direta que essa cultura possui com sua gênesis, a África que habita em nós. Os ante-passados africanos, vindos com a escravidão para o Espírito Santo, em sua maioria eram bantos, conjunto de povos que habitavam a África Central, nas regiões que hoje compreendem Angola, Congo, Gabão e Cabinda. Apesar das diferenças étnicas, esses povos compartilhavam o mesmo tronco linguístico, eram falantes das línguas bantas. Os povos bantos só entendiam a vida no sentido comunitário. Viver não era simplesmente existir, mas sim interagir com a comunidade, estar em movimento nessa grande cadeia de relações e conexões. Movimentando-se pela comunidade, com a comunidade e para a comunidade. Por meio dos rituais, que incluíam música e dança, os bantos transmitiam sua tradição oral e assim preservaram a sabedoria dos seus an-cestrais, que se prolongou nos descendentes. Os cânticos, as palmas, os tambores e as danças contribuíram para a manutenção e fortalecimento dessa cadeia de interações. Por meio desses elementos, os homens, mulheres e suas comunidades entravam em sintonia com os seres espirituais. O congo capixaba, com seus tambores feitos com

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couro de boi e casacas, é uma cultura que já nasceu híbrida devido à escravidão, que proporcionou uma mistura entre as tradições negras (africanas) e brasileiras (indígenas). O hibridismo cultural é um fenômeno histórico-social que existe desde os primeiros deslocamentos humanos, quando esses deslocamentos resultaram em contatos entre grupos distintos. Todo sujeito migrante é um sujeito híbrido, porque, quando deixa sua terra, torna-se diferente, pois os outros homens que encontra na terra estrangeira têm outros costumes e outras crenças, o migrante tem contato com outros tipos de instrumentos, música e dança. O ritmo que trouxe une ao que encontra e inicia o processo de hibridismo cultural. Assim como aconteceu com o congo capixaba.

A influência banta no Espírito Santo é inegável, foram esses povos com tronco linguístico único que labutaram e desenvolveram as terras capixabas, uma mão-de-obra forçada e torturada pelo colonialismo português. No livro “Os Últimos Zumbis”, de Maciel de Aguiar, há relatos sobre a líder ancestral banta de São Mateus, na região Norte do estado, Zacimba Gaba. Era uma princesa banta, da região de Ca-binda, Angola, que comandava rebeliões e libertava os escravos no porto local. Outra persona da cultura banta, e um dos mais importantes nomes da representatividade e história afro-capixaba, é Laura Felizardo, 91 anos, reconhecida como matriarca da cultura banta no Espírito Santo. Nascida no Morro do Feijão, em João Neiva, em maio de 1928, Dona Laura mora na região do centro de Vitória e é neta de um dos precursores do congo capixaba, Felizardo Claudino, que era mestre capitão, como era chamado o mestre da banda. Sua infância foi na roça, em um remanescente quilombo, no qual ajudava na lavoura em meio a plantios de café, mandioca, milho, feijão e banana. Narciso Felizardo, pai de Dona Laura, era para a comunidade ao redor uma figura de extrema força, um profundo conhecedor de ervas e plantas, que atuava como respeitado curandeiro quimbanda e tornou-se a referência religiosa do lugar. O folclorista Guilherme Santos Neves, no livro “Coletânea de estudos e registros do folclore capixaba”, relata como eram as comemorações nessa região, ao descrever a Festa do Mastro de São Benedito no distrito de Acióli, em João Neiva, no Dia de Reis, em 6 de janeiro de 1962. O relato cita a participação do avô de Dona Laura: “Desde cedo o povo afluía ao centro da cidade, onde, em elevação a que se chega por longa escadaria, se ergue a igreja, ampla e nova. A afluência cresceu quando, do Morro do Feijão – lugarejo vizinho – desceu o Congo da Alegria, sob a direção do mestre ou capitão Felizardo Claudino, com suas vinte figuras. Entrando na cidade, pipocaram foguetes, enquanto, ufana, a banda de congos entoava a sua marcha de chegada: o congo da alegria chegô, oi já chegô, já chegô.”

As toadas de congo possuem uma estrutura musical composta de um refrão e versos fixos ou improvisados pelos repentistas, homens e mulheres, pelo mestre da banda ou compositor da toada. A estrutura musical do congo é similar a do partido--alto, subgênero do samba que tem também a figura do repentista, do versador que improvisa versos do seu imaginário onírico e\ou que falam sobre seu cotidiano. Sem-pre em cima de um refrão que é a resposta. Foi o que Martinho da Vila fez quando escreveu os versos de “Madalena do Jucu” em cima de um refrão. Segundo Tunico da Vila, que já compôs diversas músicas como “Jureme Juremá, “O Velho de Oiá” e “Na

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Cadência do Partido-alto”, que tratam de temas do universo da cultura popular, essas músicas possuem o intuito de mexer com aspectos simbólicos, emocionais e afetivos. Os versos seriam uma forma de improvisar e de se comunicar entre os negros. O coro no congo é formado por homens e mulheres, tocadores e dançarinas. Segundo Tunico da Vila, essa é uma forma banta de cantar coletivamente, que ele observou em vários grupos musicais que pôde assistir em apresentações públicas nas cidades de Angola, como Luanda, Benguela, Lobito, Lubango, Sumbe e Dundo.

As mulheres do congo fazem o chamado “coro de lavadeiras”, com vozes mais agudas, finas e compactas. Esse é um modo afro-brasileiro de cantar, com notas aci-ma no mesmo tom. Na gravação de “Madalena do Jucu” em samba, suas tias Nélia, Zezé e Elza fizeram o “coro de lavadeiras”. “Minhas tias cantavam dessa forma para preservar a tradição negra da família e repassaram para as minhas irmãs Analimar, Mart´nália e Juliana. Não foi à toa que meu pai se encantou com o congo trinta anos atrás, ele é um homem interiorano, que ouvia essa forma e estrutura de cantar desde pequeno em Duas Barras. Eu coloco essa forma de cantar também no meu som.” Tunico fala da mistura cultural do congo e o samba: “A mistura mágica entre essas duas culturas negras brasileiras, de origem africana, foi combinada primeiramente no astral entre os nossos ancestrais em comum. Os sons dos tambores da senzala no Brasil são originários dos tambores africanos. O samba brasileiro é originário do massemba angolano e emerge da tragédia que foi a escravidão, o ‘holocausto negro’, do sequestro e da tortura colonial. Foi da liga com as tradições africanas, dos tambores, das rodas, dos terreiros, que surgiu o samba na casa da baiana Tia Ciata.” Tunico tinha dezesseis anos quando ouviu pela primeira vez “Madalena do Jucu”, cantada por um conguista em fita cassete. Nos anos de 1988 e 1989, Martinho da Vila estava percorrendo o Brasil para pesquisar canções folclóricas e ficava pouco tempo em casa.

Martinho com a mãe Teresa e suas irmãs Deusina, Nélia, Elza e Zezé, em Pilares, no Rio.

Martinho com as filhas Mart’nália e Analimar, na Barra do Jucu. (Arquivo pessoal)

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Tunico conta que quando Martinho da Vila voltou do Espírito Santo trouxe um gravador enorme que escutava em seu escritório, localizado na parte de trás da casa em que moravam, no Grajaú. “Ele foi e se apaixonou pelo som dessa cultura. Era impossível ele não ter detectado o som angolano no congo capixaba. Em 1989 eu era adolescente, já tínhamos ido a Angola muitas vezes. O som, o canto, a dança e o sincretismo das bandeiras de santos do congo enfeitiçaram o homem, que é de Vila Isabel, mas tem suas raízes lá nas ladainhas católicas que ouviu na infância em sua casa. Me lembro bem quando ele voltou ouvindo os congos capixabas. Me remeteu aos cânticos negros, o lamento ligado ao trauma da escravidão (pausa...) quem cantava na fita era um senhor com uma voz grave e a resposta era dada por vozes femininas e masculinas, como são os cantos nos terreiros. Esse é um ponto peculiar do cântico negro, não só do congo. Eu já sabia que era um cântico folclórico negro, porque eu já tocava no candomblé, na bateria da Unidos de Vila Isabel, e já tinha visto isso em Angola. O que me chamou muita atenção no congo capixaba foi a forma de tocar, os sons diferentes do tambor e da casaca. Já tinha escutado um som similar da casaca, com o instrumento chamado dikanza, um reco-reco gran-de, pelas mãos do ritmista Zé Fininho, em Angola. Os tambores tocados no chão dão um som grave abafado, diferente dos atabaques, que possuem médio, grave e agudo. No congo só tem grave e o agudo é a casaca. Me veio à mente a banda angolana ‘Kituxi e seus Acompanhantes’ que tocam tambores similares, Seu Kituxi é o mestre e os seus acompanhantes, a banda. O povo banto de Angola é festeiro, rico culturalmente e louva seus ancestrais batendo tambores, tem apito, mestre ou capitão da banda e dançarinas, como o congo capixaba. Assim como no congo, eu vi e ouvi lá a mesma música sendo cantada e tocada de formas diferentes, de acordo com a localidade de cada grupo. Por isso a ‘Madalena do Jucu’ é cantada de várias formas. As regras e as definições dos papéis das mulheres de só tocar ou dançar, também variam de acordo com o grupo, assim como acontece nas bandas de congo. Em Vitória, as mulheres dançam e cantam, na Barra do Jucu elas já tocam também. Tudo é muito similar. A dança e a vestimentas, aí sim foram modificadas por aqui, mas o bater dos pés e das saias é muito parecido. Na minha definição, Madalena é uma ancestral negra, uma pessoa da comunidade que já morreu. E cantar para um ancestral, para quem é negro, é sagrado, tem muita emoção envolvida. Como o gurufim7 de um sambista é festa para o parente, pois agora se torna ancestral. É lamento e festa. A visão do negro sobre a morte inclui a festa aqui e na África. Em Angola, quando um ancestral se vai louvamos ele ou ela.” Tunico canta o refrão: “Madalena, Madalena, você é meu bem-querer, eu vou falar pra todo mundo, vou falar pra todo mundo”, e emenda: “Ah e tem uma canção angolana: ‘Uê,lelelelelelelé adeus Cidrália, Cidrália tinha um romance’. A festa para os negros é uma estratégia de sobrevivência à dor, de amenizar a saudade da África que cada um de nós carre-ga. Cantar dá força para enfrentar a dor, a diáspora, a dispersão, o deslocamento é dolorido, cantar é uma forma de se aproximar da primeira terra, do elo de ligação, do nosso passado com o nosso presente.”

7 Morte, na língua Banto.

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Tunico da Vila relata que os toques do congo Espírito-Santense possuem similaridade rítmica com os toques do grupo étnico Bakongo, etnia banta com quem teve contato em Lubango e que toca com os tambores no chão: “Falei sobre isso em um evento na Assembleia Legislativa do Espírito Santo, em 2016, quando estive com o Manuel Benvindo, da comunidade de Angola no Espírito Santo e com o cônsul de Angola, Antônio Agostinho Francisco, presentes no evento. Ouvi os líderes quimbandas de Angola, sentei, comi e rezei com eles. Fiz som, música, e hoje Vitória é minha aldeia.”

As crenças e tradições da etnia Bakongo, falantes da língua kikongo, foram misturadas ao cristianismo na África, seus rituais de passagem, como nascimento e morte, incluem cantos, festas e danças. Acreditam em uma relação estreita entre os não-nascidos, os vivos e os mortos. Se eles são cristãos, batizam seus filhos e comemo-raram feriados seculares, o Natal e a Páscoa são os principais feriados. Nos tempos antigos, os bakongos usavam roupas feitas de casca amoleci-da batida, as sarongues ou saias envolventes, mas através de sua longa associação com o Ocidente, os bakongos adotaram roupas ocidentais.

Grupo Étnico Bakongo, Lainé, entre 1988 e 1991.

Mulheres da Etnia Bakongo no bairro Palanca, Proletário, 2018.

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Tunico recorda que quando seu pai decidiu gravar “Madalena do Jucu”, o disco “O Canto das Lavadeiras” estava quase fecha-do, quando “Madalena do Jucu” e “Congos do Espírito Santo”, incluindo “Moça bonita” e “Ca-belo Louro”, foram escolhidos para entrar em duas faixas. Tunico não participou da gravação no estúdio, pois na época ele ainda não era músico da banda de Mar-tinho da Vila, mas trabalhou no evento do qual a Banda de Congo da Barra do Jucu participou em 1988, no Rio de Janeiro, o Kizomba – Encontro Internacional de Arte Negra, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com outros grupos negros de vários países. “No show na UERJ trabalhei na produção e lembro bem deles interagindo com as outras comitivas de grupos de culturas populares negras do Brasil e do mundo, como grupos folclóricos de Angola e o Ebony Ecumenical Ensemble, dos Estados Unidos. No outro dia, eles fizeram uma apresentação memorável pelas ruas da Lapa arrastando uma multidão de estudantes e jovens. Foi quando conheci os conguistas pela primeira vez e a comitiva capixaba que os acompanhava, de es-tudantes, intelectuais e ativistas como Viviane Mosé e Lena Côgo. Foi sensacional a espontaneidade deles, a liberdade, a sensualidade dos tambores, entendi ali porque meu pai se apaixonou pelo congo.”

Martinho da Vila já tinha inovado gravando um calango, ritmo folclórico de sua terra natal, em samba, inserindo instrumentos de samba como cavaco e contrabaixo. A toada “Madalena, Madalena” foi adaptada para gravação em ritmo de samba, que tem uma forma de cantar e tocar diferente do congo. Instrumentos como pandeiro, bateria, surdo, atabaque, tamborim, flautas e clarinete foram inse-ridos, com arranjos do maestro Rildo Hora. Tunico, que já gravou com inúmeros artistas, dentre eles Emílio Santiago, Leila Pinheiro, Beth Carvalho, considera que houve uma liga entre o congo e o samba, um encaixe melódico e rítmico, principal-mente rítmico: “Eles possuem o mesmo compasso dois por quatro. A gravação de ‘Madalena do Jucu’ adaptada com instrumentos de samba propiciou uma mistura mágica. Não é qualquer ritmo que se encaixa no samba.” Ele fala que a gravação em samba tem elementos e instrumentos específicos: “Um sambista canta diferente de um conguista, assim como um ritmista de escola de samba toca diferente de um conguista, tudo é afro-brasileiro, mas exige adaptações, assim como na matriz, em Angola, cada etnia, cada grupo toca e canta diferente. O arranjo feliz, coerente deu o tom da magia na gravação, ali só tinha mágico, Rildo Hora, músicos como Ovídio Brito, Mané do Cavaco, Jamil Joanes, Cláudio Jorge, Gordinho, Beloba, era a sele-ção brasileira do samba à disposição daquela gravação. Sem falar da interpretação majestosa do pai, que captou todo sentimento do congo. Se fosse outro artista, que

Tunico e Martinho, Rio de Janeiro, março de 2019.

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não tivesse essa conexão ancestral com Angola e com outra história de vida sendo filho de quem ele é, de um repentista e uma rezadeira de ladainha, não seria o que foi, houve uma permissão ancestral, estava escrito, é isso o que eu acredito.”

A partir de 1993, Tunico da Vila começa a atuar como percussionista da banda de Martinho da Vila. “Madalena do Jucu” já tinha sido gravada e era um sucesso. Ele fala que era impossível o pai não cantar essa música nos shows no Brasil e no exterior e considera um dos três maiores sucessos cantados por Martinho da Vila junto com “Mulheres”, de Toninho Geraes, e “Casa de Bamba”, do cantor.

Religiosidades e Identidades

Segundo Altuna8, a religião dos bantos era estruturada a partir da crença em uma pirâmide vital, dividida entre o mundo invisível e o mundo visível. Em uma ordem hierárquica de importância, no primeiro grupo encontravam-se a divindade suprema, o criador (Zambi), os arquipatriarcas, os espíritos da natureza, os ancestrais e os antepassados (eborás). No segundo grupo estavam situados os reis, chefes de reino, tribo, clã ou família, os especialistas da magia, anciãos, a comunidade, o ser humano, os animais, os vegetais, os minerais, os fenômenos naturais e os astros. Em todas as práticas religiosas, as palavras cantadas possuem um sentido sagrado e sacralizador, por ser entendida como veículo de transmissão e expansão da força vital. Sobre elas, diz Tunico: “Cantei para minha filha no enterro dela, ela descansa só entre mulheres, com as minhas tias Nélia e Zezé, que cantavam com o meu pai e participaram da gravação de ‘Madalena do Jucu’. Não teve festa, pois ela é uma abiku, uma criança que vem para uma rápida passagem na terra, e a cerimônia é diferente aqui e na África. No momento de maior dor da minha vida cantei, é o meu cargo no candomblé, cantar e tocar nos ritos de nascimento e passagem. Quis Zambi assim, fiz uma música para ela, que é a minha ancestral, Madalena do Espírito Santo não passou por aqui, ela permanece em mim. Canto ela e por ela.”

Tunico da Vila ressalta que a cerimônia do congo é uma festa de louvação aos santos e ancestrais, assim como acontece no candomblé e na umbanda do Brasil. A manifestação do culto sincrético no Brasil, de santos católicos e deuses negros, é uma marca do nosso país. Ele acredita que o congo capixaba viu num santo negro católico, que é São Benedito, uma forma de louvar seus ancestrais por meio daquele santo, que dava representatividade àquela comunidade. Helena Theodoro9 explica: “As congadas representam, assim, a complexidade dos meios e modos estratégicos encontrados pelos africanos na luta contra os portugueses, tanto do ponto de vista das invasões territoriais, como de imposições religiosas.” Tunico da Vila ressalta:

8 Raul Ruiz de Asús Altuna. A cultura tradicional banto. Luanda: Secretariado Arquidiocesano de Pastoral, 1985, p. 58-61.

9 Helena Theodoro. Martinho da Vila: reflexos no espelho. Rio de Janeiro: Pallas, 2018, p. 18.

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“O congo capixaba, ao louvar Nossa Senhora da Penha nas bandeiras, nas cores, não está renegando a África dele, pois a africanidade precisou ser negociada, foi a forma que eles tiveram de combater o racismo, houve uma camuflagem, e no as-tral um acerto para isso, uma concordância. É uma cultura riquíssima e que alguns cristãos não reconhecem. A batida do congo e das religiões de matriz africana são os mesmos compassos, especialmente as de cultura banta como é o candomblé de Angola, onde temos o mastro e a bandeira da nação como no congo, louvamos também santos católicos, os índios e cantamos para eles. Minha avó era rezadeira de ladainha católica e era respeitada quando chegava numa roda de candomblé. Não vejo problema nisso, não estamos sendo menos africanos, respeito a minha ancestralidade que negociou esse aspecto para sobreviver. Os mestres de congo não tocam durante a Quaresma, respeitando a tradição europeia que foi sincretizada, conciliada com as tradições africanas e indígenas. Se o congo não tivesse aderido ao sincretismo ele nem existiria, teria sido perseguido e extinto. Ele sobreviveu por conta disso, foi uma expertise do escravo, porque a sociedade colonialista não su-portaria ouvir uma música e dança só com elementos negros, sem pensar que eles não tivessem sucumbido ao catequismo branco.”

O Monumento em Homena-gem ao Negro Capixaba – Guerreiro Zulu foi inaugurado em 2006, fica localizado em frente a Assembleia Legislativa do Espírito Santo, na En-seada do Suá. A escultura, do artista plástico Irineu Ribeiro, tem forma de casaca, instrumento do congo ca-pixaba, e em sete cenas esculpidas em alto-relevo é enfatizado o legado histórico do povo negro na formação socioeconômica, política e cultural do Estado. Segundo o edital do concurso para criação do monumento, a obra deveria ter como objetivo, reconhecer a luta do negro pela igualdade de direitos e oportunidades e contribuir para quebrar o silêncio histórico que oculta a presença marcante do negro na formação da sociedade capixaba, o que levou a comunidade negra à invisibilidade social. Tunico da Vila no monumento em homenagem ao

negro capixaba, na Enseada do Suá, Vitória, em 2016.

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3.2 Novos Alcances

A cultura negra e sua estreita relação entre Arte e Vida

Após 30 anos da gravação de “Madalena do Jucu”, cada um de nós tem a sua Madalena e ela permeia o imaginário social. Madalenas do Espírito Santo e do Brasil, mulheres que cantam para lavar a alma, além das roupas. No documentário “Procurando Madalena” (2010), do cineasta Ricardo Salles de Sá, do qual Martinho participou, foram mostradas várias versões da música junto aos conguistas, que narram que Madalena seria uma lavadeira da beira do rio, ou a amante amada pelo conguista da Barra do Jucu. Esse é o grande barato da história oral. No seu imaginário onírico quando ouve até hoje a canção, Martinho da Vila conta quem seria a Madalena do Martinho: “Madalena pra mim é uma mulher entidade. Uma ancestral que surge, que aparece naquele momento que canto, assim como a Nossa Senhora da Penha, Nossa Senhora da Glória, que viveu naquele tempo e depois reapareceu em vários lugares. Madalena pra mim é uma figura assim.” E deu uma ideia para os artistas plásticos, pintores, escultores capixabas, homens e mulheres: “Eles podiam desenhar, imaginar uma Madalena de cada um, aí acaba que se eter-niza uma imagem no subconsciente dessa história toda, o intuito que eles fizerem ao pintar, no esculpir, acaba tornando-se real no imaginário popular. Zumbi dos Palmares não tem foto ou imagem, mas temos uma figura do Zumbi que circula nesse imaginário, o busto, o rosto dele.”

A capixaba e Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Ja-neiro (UFRJ), Viviane Mosé, também sugeriu ações culturais, turísticas e artísticas envoltas ao tema. “A minha ideia era que depois de 30 anos da gravação, após esse movimento cultural, esse legado, isso tudo, tivesse uma pegada turística engajada. E que a cidade de Vila Velha criasse um atrativo em torno da Barra do Jucu e do congo, com a ponte, um monumento ali da Madalena, uma lojinha com produtos da Barra, do congo e uma agenda cultural das bandas disponível para os turistas e visitantes. E que esse ponto de informação turística fosse permanente, ou um centro, Museu da Madalena, que contasse com materiais audiovisuais. Seria espetacular para a localidade, para o congo e para a cultura capixaba de modo geral esse res-gate da memória nos tempos modernos, com um Festival onde cada artista plástico apresentasse a sua versão de Madalena para o monumento”, fazendo referência a fala anterior de Martinho da Vila.

Em agosto de 2019, a mesma banda de congo que fez a abertura do show de pré-lançamento do disco “O Canto das Lavadeiras” na Fazenda Camping, a Banda de Congo Amores da Lua, participou do show “Quero, Quero”, de Tunico da Vila, em celebração aos 30 anos da gravação de “Madalena do Jucu” em Vitória, com participação especial de Martinho da Vila e integrantes da Banda Mestre Honório da Barra do Jucu.

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Tunico da Vila na Ilha do Congo

“O Espírito Santo faz parte da minha memória afetiva. Vitória é minha aldeia, parece Luanda.”

Antônio João e Pedro Caniné Ferreira, o Tunico da Vila, cantor, compositor, percussionista, sócio benemérito da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, 46 anos, nasceu e cresceu na casa do Grajaú, aquela cantada nos versos do samba “Madalena do Jucu” pelo seu pai Martinho da Vila. Tunico foi músico profissio-nal por vinte e cinco anos e o primeiro show de sua carreira foi em Guriri, no Norte do Espírito Santo. Essa e outras coincidências trariam, anos mais tarde, Tunico para esse Estado. Hoje é artista da Sony Music Brasil, gravou três álbuns, diversos clipes, firma-se como grata revelação do samba contemporâneo, aliando sua vivência como músico a experiências ligadas ao seu pertencimento cultural.

Show de Tunico da Vila, com participação de Martinho da Vila e Banda Amores da Lua, agosto de 2019.Z

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Canta canções que contam histórias sobre a sua ancestralidade. Herdeiro do sam-ba isabelense, conversa musicalmente com seu público por meio de releituras e composições que reafirmam sua origem banta, seu som irreverente, com raízes fincadas no partido-alto, em temáticas íntimas sobre o cotidiano do povo negro, a liberdade e a sensualidade. O que evidencia a influência do sagrado no samba, na obra de Martinho da Vila e de seus descendentes. Apresenta sambas de roda, de terreiro, afro-sambas, além de ritmos angolanos como o semba. Como per-cussionista da banda de seu pai, Tunico da Vila rodou os interiores e capitais do Brasil, excursionou pela Europa e se apresentou com os mais renomados músicos do mundo, fez arranjos percussivos para o videoclipe do cineasta americano Spike Lee, carreira internacional, tocou na Dinamarca, Portugal, Cabo Verde, França, Inglaterra, Suíça, Alemanha, Uruguai, mas foi na África, mais precisamente em Angola, que Tunico literalmente aportou. Passou meses, entre os anos de 1986 e 1990, inclusive na época da guerra civil de Angola, visitou aldeias, conversou com africanos das terras sagradas, irmãos de alma e ancestralidade. A maioria dos negros africanos escravizados no Brasil vieram da região do atual território de Angola, que sempre foi alvo de grande interesse português, ocasionando diversos conflitos, desde o século 16 até o século 20, na busca de escravos, cobre e prata. Angola é um vasto mosaico formado por diversas etnias e modos de pensar, com culturas e passados distintos entre si, e que o processo de colonização portuguesa não compreendia ou não tinha interesse em compreender. Porém, para Tunico, que tinha 13 anos quando viajou pela primeira vez para Angola, esse país des-pertou um enorme interesse no jovem em reconhecer a cultura que fazia parte e habitava seu ser. Nessa época ele já era ritmista da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel e viajou com a comitiva do projeto Palanca Negra junto com artistas, grupos musicais brasileiros como Tincoãs e jogadores de futebol, posteriormente participou de shows nas cidades de Luanda, Benguela, Lobito, Lubango, Sumbe e Dundo. Cada região e suas etnias tinham suas próprias referências musicais, de danças e costumes. Um rico universo na compreensão de que a arte, objeto de sentimento para entendermos o mundo, deve ser também um meio de desmitificar estereótipos e preconceitos. O adolescente, que preferia não ficar no hotel, tinha liberdade para sair, conversar com as pessoas e pesquisar a música. Tunico tocava tamborim na bateria da Vila Isabel, nas apresentações do projeto Palanca Negra que aconteciam em estádios, nas ruas e em eventos pelas cidades angolanas. O projeto foi desenvolvido por Martinho da Vila, que hoje é Embaixador Cultural de Angola no Brasil. Tunico da Vila participou de outros dois projetos idealizados pelo pai, em 1983, fazendo canhão de luz no 1º Canto Livre de Angola no Brasil e em vários Encontros Internacionais de Arte Negra do Grupo Kizomba, inclu-sive o que aconteceu no Pavilhão de São Cristóvão, auxiliando na produção do evento com músicos renomados do mundo inteiro. Anos depois, em 1988, com o enredo “Kizomba, Festa da Raça”, a Unidos de Vila Isabel consagraria-se campeã do carnaval. Ele desfilou na bateria e relata que o intercâmbio em Angola antes do carnaval foi importante para que os ritmistas pudessem conhecer a matriz dos batuques e dos instrumentos que tocavam.

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Nos anos 1990 formou-se em percussão pela Ordem dos Músicos do Brasil e começou a compor em 1994 com Paulinho da Aba (in memoriam) no bar do Varandão, antigo reduto de sambistas de Vila Isabel. Junto com sua irmã Analimar, Agrião e Ana Costa fez parte do grupo “Coeur Sambar”. Gravou seu primeiro álbum intitu-lado “Tunico Ferreira” (2003), que fez sucesso com a música “Nota de Cem”. Em 2009 lançou seu segundo álbum, “Na Cadência do Partido Alto”, e em 2016 o EP “O Velho de Oiá”. Tunico da Vila compôs algumas canções gravadas por Martinho da Vila: “Um ai ai pro meu Amor” no álbum “Tá Delícia, tá Gostoso” (1995), “Pare de Brincar Comigo” e “Difícil ser Fiel” no álbum “O Pai da Alegria” (1999) e “Festa de Caboclo”, no CD “Da Roça e da Cidade” (2001). Das composições junto com o pai, destaque para a música “Cheguei no Samba”, gravada pelo grupo Swing e Simpatia (2000) e o samba-enredo campeão do carnaval carioca 2013 conhecido como “Festa no Arraiá” pela Unidos de Vila Isabel. Já se apresentou com sua banda nas principais casas de espetáculos e teatros do país e do exterior, em Cabo Verde, na África, em Almada e Crato, em Portugal.

Essa bagagem cultural proporcionada pelas vivências em países africanos, e a efervescência cultural de seu lar, constituem a memória musical de Tunico da Vila. Assim como o mar de Angola o levou para sua Vila Isabel do outro lado do mar, ele também o trouxe para sua Luanda brasileira, a ilha de Vitória. Ele reside desde 2016 no bairro Jardim da Penha, na “Ilha do Congo”, como ele chama carinhosamente a cidade que escolheu para viver. Quis o destino que Tunico

Tunico da Vila no monumento da cantora africana Cesária Évora e em show em Cabo Verde, África, janeiro de 2019. (Arquivo pessoal)

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Com Tunico em um de seus shows, e o nascimento de Madalena do Espírito Santo Sathler Ferreira (in memoriam).

aportasse no Espírito Santo, quando casou com uma capixaba. Nos conhecemos no Rio, onde eu cursava mestrado em Humanidades, Artes e Culturas. Tivemos uma filha em dezembro de 2018, Madalena do Espírito Santo Sathler Ferreira (in memoriam), que teve o primeiro nome escolhido pelo pai e o segundo pelo avô, que queria homenagear a terra da nora. Depois deciframos que ela havia escolhido seus pais e que seu espírito também era santo. A criança veio ao mundo no dia 23 de dezembro, dia do Advento, e partiu no dia 6 de janeiro, Dia de Reis, quando é tradicionalmente celebrado o congo no Espírito Santo. Ela nasceu com uma grave condição cardíaca congênita, a Síndrome da Hipoplasia do Coração Esquerdo.

Em agosto de 2019, o artista plástico Elifas Andreato e toda sua poiésis visual deu vida a capa do novo videoclipe de Tunico da Vila “Madalena do Espírito Santo (Coração de Deus)”. Ele pincelou uma Mama contemplativa com o menino Brasil no colo, a “Pietá Africana” que fala. O videoclipe contou com animações de Bento Andreato, inspiradas na iconografia das culturas populares do Brasil e da África, a du-pla nacionalidade cultural do sambista Tunico da Vila.

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Tunico, assim como mui-tos empreendedores capixabas, acredita que na contempora-neidade as plataformas digitais reconfiguraram o que chamáva-mos de corredor cultural. E que há cenas de música muito fortes em vários outros eixos, além de Rio e São Paulo. E que para desenvolver projetos criativos, seja qual for a sua área, você não precisa estar fisicamente nesse corredor para ser enxergado pelo seu público. Os casos de sucesso de várias marcas capi-xabas, paraenses e curitibanas reforçam o pensamento do ar-tista, que a partir do ano de 2017, por iniciativa própria, começou um projeto no Espírito Santo de gravações de videoclipes para plataformas digitais com canções autorais. Incluindo arranjadores como Glaydson Santos, compositores como Chi-co Lima e esta autora, músicos como Sergio Roatti, Daniel Barreto, Alexandre Barbatto, Marcus Gabriel, Eric Carvalho, Felipe Dias, Górgias Gomes, Marcos Oliveira, Marcos Firmino, Thiago Pedrolli, Tereza Cristina, Dorkas Nunes, Michele Montalvão, Peterson Oliveira, Pequê Santos, Amanda Menezes e Bruna Kethily, produtores e estúdios locais. Desde jovem, Tunico visitava as praias do Espírito Santo e conheceu a cultura negra capixaba, que agora fazem parte do seu entorno e de sua vivência, compondo a paisagem de suas músicas. Gravou a canção “É Dia de Rede no Mar”, sucesso na internet, cantando a memória e identidade do povo do mar capixaba. No videoclipe, gravado no Bar do Henrique, na Praia do Canto, Tunico cantou sua viagem onírica na Ilha do Mel e as riquezas culturais e históricas da cidade, as paneleiras, a escadaria Maria Ortiz e o reduto de samba da capital, a Piedade e o sambista Edson Papo Furado. “Hoje eu sou um bamba da Vila e de Vitória”, diz a letra. No estado, Tunico encontrou a tranquilidade que queria para se dedicar a sua carreira de cantor e compositor, que decidiu priorizar ao invés da consolidada trajetória como percussionista.

“Meu anel de bamba eu passo para o Tunico da Vila, que é bom compositor”, disse Martinho da Vila em entrevista à EBC, em 2015. Mais que celebração ou conforto, tal afirmação trouxe à Tunico um sentimento de responsabilidade. Sua formação como músico percussionista foi devocional aos batuques do samba de Vila Isabel que acompanha o DNA da família. Além do pai, cinco dos seus irmãos também estão no cenário musical em diversos gêneros, mas carregando sempre alguma influência do samba. “Sou o quinto de oito irmãos, dó-ré-mi-fá-sol-lá-si--dó. Eu sou o Sol. Sou de Omolu.” A segunda influência vem dos batuques de candomblé, sua religião, na qual é ogã, quem toca atabaques e canta nos terreiros.

Tunico e o sambista capixaba Édson Papo Furado.

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“A intolerância religiosa é um problema mundial. O etnocentrismo é o pai do ra-cismo, do machismo, da homofobia e da intolerância religiosa”, lamenta Tunico. Ele acrescenta: “Fiz a música pensando na rapaziada que está crescendo para falar sobre liberdade. Deus é um só, interpretado de maneiras diferentes. Se a pessoa pratica o bem, tem a essência de Deus.” Em janeiro de 2018, Tunico da Vila e o parceiro na música “Nos Caminhos de Um Só”, o sambista Xande de Pilares, se uniram aos conguistas, sambistas e integrantes dos povos de terreiros capixabas e lançaram um canto contra a intolerância religiosa. O encontro contou com am-pla divulgação local e nacional. As imagens foram feitas no Píer da Iemanjá, em Camburi, e no clube Álvares Cabral, em Bento Ferreira, Vitória, onde aconteceu uma grande roda de samba e de congo.

Tunico da Vila destaca a importância cultural do Espírito Santo em suas apresentações nacionais, utilizando a casaca que recebeu de presente do Mestre artesão Vitalino, durante um show na Barra do Jucu em 2017. Cantou em quim-bundo, uma das línguas bantas mais faladas em Angola, e foi homenageado pela comunidade angolana residente no Espírito Santo, no evento em comemoração

Xande de Pilares (de óculos escuro) e Tunico, na gravação do clipe de “Nos Caminhos de Um Só”, janeiro de 2018.

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aos 41 anos da independência de Angola, que aconteceu na Assembleia Legislativa do Espírito Santo, em novembro de 2016. As fotos do encarte do último álbum, o EP “O Velho de Oiá” (2016), foram feitos na Prainha de Santo Antônio, em Vitória. Todo o material com fotos de divulgação de seus shows para a imprensa nacional utiliza cenários como o manguezal e elementos da cultura capixaba como a panela de barro. Os fotógrafos locais recebem os devidos créditos nas divulgações. Em julho de 2017 compôs e concorreu junto com o sambista capi-xaba Emerson Xumbrega, da Independentes de Boa Vista, o samba-enredo em homenagem a Martinho da Vila na Unidos do Peruche, escola de samba de São Paulo. Em dezembro de 2017, Tunico da Vila recebeu o convite da Banda da Polícia Militar do Espírito Santo para participar do concerto “Eu Sou o Samba”, no Palácio da Cultura Sônia Cabral, que foi transmitido pela TV Educativa\ ES e pela TV Cultura. Interpretou “Madalena do Jucu”, unindo samba e o erudito. De janeiro a fevereiro de 2018, circulou com a Banda da Polícia Militar pelo litoral do estado realizando onze apresentações nas praias capixabas, junto com qua-renta policiais músicos e musicistas no projeto “Show de Verão”, que trabalhou aspectos da cidadania com os capixabas e turistas. Em novembro de 2017 iniciou no Espírito Santo as comemorações aos oitenta anos de idade e cinquenta anos de carreira de seu pai, Martinho da Vila, com o show “Tunico canta Martinho”, na Casa de Bamba, no centro de Vitória.

Durante todo o ano de 2018, Tunico da Vila realizou o projeto de economia cultural criativa “Spirito Samba”, que realizou intercâmbio entre os músicos locais e artistas nacionais, no bar Spirito Jazz, na Praia do Canto. Mensalmente, artistas da música popular brasileira, convidados por Tunico, a maioria amigos da época quando ele era percussionista, se apresentavam acompanhados da banda formada por músicos capixabas, oriundos da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames), das escolas de samba como Unidos da Piedade e Unidos de Jucutuquara, e da Ban-da da Polícia Militar do Espírito Santo. Passaram pelo projeto Monarco da Portela, Xande de Pilares, Renato Teixeira, Mart´nália, Martinho da Vila, Dudu Nobre, Fernanda Abreu, Toni Garrido, Sandra de Sá, Otto, Mariene de Castro e Criolo. A Banda de Congo Amores da Lua, de Vitória, participou de apresentações cantando,

Tunico no evento de Angola na Assembleia e no Palácio Sônia Cabral com a Banda da Polícia Militar do ES.

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dançando e tocando os instrumentos. Artistas como Sandra de Sá, Xande de Pilares e Criolo puderam conhecer o ritmo, a dança e as toadas capixabas. No show de Tunico com o cantor pernam-bucano Otto, a percussionista Valentina Pignaton, da Barra do Jucu, e sua mãe Flávia Vidigal tocaram os tambores de congo no palco. A banda formada por músicos capixabas acompanhou Tunico da Vila também em turnês em São Pau-lo, se apresentando em cidades como Ribeirão Preto, Birigui, São Carlos e Presidente Prudente, no Circuito SESC, nos anos de 2018 e 2019. Os músicos capixabas também tiveram oportunidade de trocar experiências com os músicos da banda de Martinho da Vila. Tunico acredita que os frutos desse intercâmbio são importantes para a difusão, troca de conhecimentos, experiências adquiridas e que serão refletidos nos projetos sociais e culturais dos quais os músicos fazem parte, como a Banda Junior da PM, oficinas da Fames e nas escolas de samba. O artista também acredita que sua contribuição cultural precisava chegar na periferia da capital, e participou de rodas de conversas com crianças e jovens nos projetos “Vizinho da Arte”, no morro de Caratoíra, e “Quilombinho”, do Instituto das Pretas, no Museu do Negro, em Vitória.

Tunico com crianças do Projeto Quilombinho.

Momentos do projeto Spirito Samba, realizado em 2018.

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A jornalista Laís Rocio escreveu para a coluna Negro Belchior do site Carta Capital, em setembro de 2018, com o título “Tunico da Vila e Criolo celebram sons de preto, origens da música brasileira”. Em um trecho ela comenta: “Para exaltar os ritmos de raízes negras, projeto no ES homenageia o Mestre Martinho da Vila. O en-contro idealizado por seu filho, Tunico, uniu Criolo e o Congo Capixaba. O próximo será com a baiana Mariene de Castro e povos de terreiros. A diversidade da música brasileira uniu um momento histórico, na última sexta-feira (14), em Vitória, Espírito Santo. As tradições do samba e as nossas raízes negras foram protagonistas da noite, que valorizou as importantes origens da nossa mistura cultural. E ninguém melhor que os representantes dessas histórias para dar voz a tudo isso. Assim foi o show dedi-cado a Martinho da Vila, mestre sambista. Para homenagear um dos maiores músicos do país, se ergueu um encontro de gigantes, com o músico Tunico da Vila, filho de Martinho; Criolo, rapper e cantor; o tradicional Congo Capixaba e instrumentistas locais. Essa foi mais uma edição do Projeto Spirito Samba, idealizado por Tunico em homenagem aos 80 anos de seu pai. É feito para acontecer principalmente fora do eixo Rio-São Paulo, no Espírito Santo, onde os costumes de origem afro despertaram uma conexão ancestral para pai e filho, sambistas e ativistas da questão racial.”

Pelos seus relevantes trabalhos de inovação na área da economia criativa cul-tural, que valorizam e divulgam as comunidades tradicionais do estado, em julho de 2018 Tunico da Vila recebeu das mãos da ex-deputada estadual Luzia Toledo, então presidente da Comissão de Turismo, o Título de Cidadão Espírito-Santense da As-sembleia Legislativa do Espírito Santo. Ele enfatiza que a cultura do estado faz parte de sua memória afetiva desde a infância, foi e é fonte de inspiração para os poetas de Vila Isabel, para seu pai, que se apaixonou pelo congo, para o próprio Tunico, que passou a compor temáticas da terra, incluindo agentes culturais, e para Noel Rosa, que compôs um samba quando esteve em Vitória em 1934, chamado “Mais um Samba Popular”. O suposto samba escrito por Noel para a misteriosa paixão capixaba consta no livro de Almirante10 e em documentos da música popular capixaba.

Em maio de 2019, mês dedicado à resistência da cultura de origem africa-na, Tunico da Vila apresentou três edições gratuitas do show autoral “Sagrada Paz: todos pela liberdade religiosa”, no Teatro da Universidade Federal do Espírito Santo, dentro da programação dos 65 anos da Ufes e do Dia Estadual das Reli-giões de Matriz Africana da Secretaria Estadual de Direitos Humanos. Os shows foram realizados com recursos do Funcultura, da Secretaria de Estado da Cultura do Estado do Espírito Santo, por meio do Edital Público 2018 Setorial de Música. O espetáculo contou com a participação de representantes dos povos de terreiro capixaba, que cantaram, dançaram e atuaram no palco. A gerente de Igualdade Racial da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, Neiriele Marques, falou em vídeo divulgado nas mídias sociais do projeto que “a iniciativa cultural do artista é inovadora, por tratar da temática do racismo religioso de forma lúdica por meio

10 ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Sonora, 2013.

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das canções do próprio Tunico. E que foi uma oportunidade única para o estado e uma forma inovadora de tratar o tema”. As religiões de matriz africana são as mais afetadas pela intolerância religiosa no país, cerca de 59% do total das denúncias em 2018, segundo o relatório do Disque 100 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O número é 47% maior do que o registrado em 2017. No Brasil, a Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões. Os materiais de propaganda dos shows divulgaram o mecanismo de denúncia em caso de intolerância religiosa, o Disque 100.

Em junho de 2019, mês de aniversário de Tunico da Vila, ele lançou mais um videoclipe, dessa vez com selo nacional, pela Sony Music Brasil, com imagens do Mercado da Vila Rubim e da Feira Livre de Jardim da Penha, em Vitória. Uma releitura da canção “Quero, Quero” (1977), de Martinho da Vila, com mensagens sobre a soberania dos direitos humanos. A ideia conceitual do projeto, dirigido por mim, era mostrar os mercados populares e feiras onde acontecem encontros de gente de perto e distante, do latim feria, o dia santo, da troca de saberes, fazeres e de mensagens nas ruas. Das cores, artes, aromas e sabores. Uma sinestesia artística num desabafo coletivo com um toque ancestral de filosofia africana, diversos e juntos, liberando energia para um mundo melhor. Participaram cantando o autor

Tunico na entrega do título de cidadão do ES e no show no Teatro da Ufes com os povos de terreiro.

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Martinho da Vila, os rappers paulistas Dexter, Rappin Hood, Kamau e Rashid, o rapper carioca BK e o coletivo feminino capixaba Melanina Mc´s. O samba fala do querer humano, do participar, unindo samba e rap, duas culturas negras mensagei-ras. A canção “Quero, Quero” foi gravada originalmente no LP “Presente” na época da ditadura, em plena repressão militar, em um de seus versos diz: “sou errado, sou perfeito, imperfeito, sou humano, sou um cidadão direito e meu direito é sobera-no”. Tunico, que serviu o Exército assim como seu pai, que chegou a sargento, disse que a música libertou seu ser. “Serviu como experiência do que eu não queria ser na vida (risos). Chegando em Vila Isabel do quartel, Mestre Trambique, que dava aulas de percussão para a criançada da escola de samba, me viu de farda e disse: ‘Ô Tunico se liga, sua farda é outra’. Eu senti o recado e fui tocar atabaques, depois ser percussionista, cantar samba que é a minha bandeira e carregar o meu pandei-ro, a minha arma.” A ideia de fazer uma releitura partiu do artista, que sentiu que era preciso aguçar os jovens a refletirem sobre o tempo presente: “Em tempos de resistir, de falta de afeto, de armamento, é preciso enviar mensagens para quem está vivendo, querendo, lutando, para continuar a sonhar, desejar e amar. Essa é a potência da arte, sem isso não há respiro para a alma.”

O ilustrador capixaba Rafael Santos fez uma homenagem trazendo Madalena do Espírito Santo (in memoriam) para a capa do single. Simbolicamente a menina aparece no meio dos seus ancestrais, de punhos cerrados e liberando energia para a luta. Melanina MC´s trouxeram em seus versos de rap: “sou capixaba da gema, kalumba sou Madalena, eu vim do congo e eu vou cantar.” Kalumba é a beleza da mulher negra em quimbundo, uma

Gravação do clipe de “Quero, Quero” na Feira de Jardim da Penha com equipe do Atitude Inicial, em 2019.

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das línguas de Angola. “Quero, Quero” foi um projeto feito por muitas mãos e cabeças cheias de afeto e que prezam pela cultura inclusiva. Tunico da Vila, durante entrevista, em junho de 2019, estava planejando novas ideias para o projeto de economia criativa cultural que iniciou em agosto do mesmo ano em Vitória: “Nesse novo projeto ‘Quero Quero’ pretendo trazer mais gente para conectar com a cultura local, incluir o congo, os músicos, nesse momento é crucial, é preciso unir forças, pensar a cultura de forma conectada, ainda mais no momento político e econômico que vive o Brasil.” Tunico da Vila foi indicado como finalista do Prêmio Profissionais da Música 2019.

O que fez Tunico da Vila refletir como “carioxaba” na contemporaneidade é que quem faz o congo não deve se restringir somente aos seus redutos. O fato de levar o congo para seus shows na Praia do Canto, em Vitória, para que as bandas apresentassem sua arte, sua forma de cantar, tocar e dançar, trata-se de um posi-cionamento e nasce de uma reflexão, de uma conversa no primeiro contato com o mestre Ricardo Sales, da Banda de Congo Amores da Lua, durante gravação do videoclipe sobre a liberdade religiosa. Ele conta que no papo que tiveram compre-endeu algumas questões que estavam postas ali, entre elas o velho preconceito. Estar fisicamente presente nas casas de espetáculos da Capital e nos redutos turísticos, além de minimizar o preconceito resistente com o símbolo máximo da cultura capixaba – o congo – é afirmativo e representativo. Ele registrou esse pensamento para que mais artistas e empreendedores culturais despertem para essa questão. Tunico afirma que as pessoas que fazem o patrimônio cultural capixaba, os mestres, tocadores, dançarinas de congo, são indispensáveis na transmissão dos saberes e na difusão desta cultura. Que o turista e o próprio capixaba precisam “ver e ouvir mais o congo” nas praias, teatros, espaços públicos com visibilidade, em espaços privilegiados, e comparou que é como ir a Buenos Aires e não assistir o tango, ir para Salvador e não ouvir o Olodum ou ir ao Uruguai e não assistir o candombe.

“Em qualquer lugar do mundo que visitamos, vamos até as casas de espe-táculos, bares, restaurantes, casas de todos os portes para assistirmos os represen-tantes da cultura local. Isso inclui música, dança e uma experiência para quem representa e assiste.” Ele acredita que a capital precisa ter mais espaços culturais de apresentação do congo para que os moradores da ilha, turistas, jovens possam assistir e ter a oportunidade de conhecer. Muitas vezes, diz Tunico, ele não consegue levar seus amigos da música que o visitam ou cantam com ele para os redutos de congo, seja na Barra do Jucu, em Santa Marta, na Serra ou no carnaval de congo de Cariacica, pois eles vêm muito rápido, como foi o caso do Renato Teixeira e Mariene de Castro, e que se pudesse, e a agenda coubesse, levaria todos. Segundo ele, em tempos de intolerância é preciso falar que existe preconceito com relação a música negra que é apresentada pelos conguistas: “Nada melhor que a escuta dos relatos deles, o congo é um movimento de resistência, de negociação cultu-ral como estratégia de sobrevivência. O Mestre Ricardo me provocou, falou da vontade dos conguistas de estarem nesses espaços e eu continuarei dando minha contribuição. Mas, precisa ser uma contribuição coletiva, um projeto de várias

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mãos. Convidei meus amigos, artistas e ativistas da música negra para estarmos juntos, para que eles possam conhecer a cultura das bandas de congo. E, quem sabe, não surjam novas parcerias, alianças e outras gravações em samba ou em outros ritmos em rap, soul, funk.”

Como percussionista, ele critica a padronização das baterias de escolas de samba, como acontece hoje em todo Brasil. “As baterias das escolas de samba não deveriam perder suas identidades. Agora está ficando tudo padronizado, tudo igual. Aqui, os mestres de bateria, espero que saibam valorizar as batidas do congo que é a verdadeira base musical e cultural do Espírito Santo. Os sambistas capixabas precisam tentar compreender, se aproximar do congo para entender essa irmandade negra com o samba, inserir nas suas músicas elementos referentes a cultura do congo. Essa é a cultura genuína e riquíssima desse estado. As ban-deiras dos santos femininos e masculinos do congo, símbolo da cultura ancestral, deveriam estar nas escolas de samba daqui, assim como os toques, as levadas e os instrumentos. Os músicos, que não foram os sambistas, e beberam dessa fonte com o rockcongo, congo beat, ganharam o mundo com essa mistura, chamaram a atenção das gravadoras, que enxergaram a originalidade artística ali, já conversei sobre isso com o diretor da Sony Music, Bruno Batista, e ele me pediu uma nova gravação de congo em samba.”

Tunico da Vila, que esteve na Barra do Jucu durante entrevista com Mestre Daniel, da Banda de Congo Mestre Honório, disse estar pesquisando musicalmente toadas de congo para a possibilidade de novas gravações: “Os mestres estão me passando toadas ricas melodicamente, dentre elas destaco ‘Tindolelê’ e ‘Rainha’, elas têm um encaixe perfeito em samba, ainda tenho que preparar os versos. Gravar é registrar musicalmente, quando você registra, a música se perpetua. Sou a favor do registro da cultura oral, há um embate nas culturas tradicionais sobre isso e eu sou favorável, pois sei o quanto já perdemos das tradições no candomblé de Angola por falta de registro. O congo é uma cultura que está bem preservada no Espírito Santo, em comparação a outras como caxambu e mineiro-pau. O desafio de preser-var culturas é gigante, como tudo que é histórico e negro no Brasil. Os integrantes do congo cumprem o papel deles repassando para as futuras gerações, realizam oficinas, abrem suas comunidades e casas para visitações, produzem instrumentos, vestimentas, como é o caso das bandas Mestre Honório e Amores da Lua. Conheci as Madalenas do congo capixaba, as representantes femininas da cultura, mulheres, jovens, que tocam, cantam e dançam nas bandas, as matriarcas Ester e Dorinha, Beatriz, Marina e Valentina, uma jovem que toca tambor, a Luciane, princesa da banda, e tantas outras. Eles e elas são artistas, a forma que dançam e cantam pre-cisa ser respeitada. Num determinado momento do show, saio do palco e o mestre canta e as mulheres dançam e tocam como protagonistas. Na modernidade, as mulheres vão ocupar cada vez mais espaço no congo e em todas as áreas, eu acho importante para a preservação da cultura, eu vi isso na África nas cerimônias de

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xinguilamento11. Cada um de nós pode ajudar na preservação, repassando essa consciência para nossos amigos e filhos, que vão crescer valorizando, querendo participar do congo. Eu tive muita sorte, pois dentro da minha casa meus pais me ensinaram a valorizar as culturas negras.”

Tunico ressalta que este projeto de publicação impressa estabeleceu novos vínculos e trocas de conhecimentos entre os envolvidos direta e indiretamente e diz que a cultura, quanto mais ouvida, mais é compreendida, assimilada, foi assim com as comunidades africanas e em diversos países que pesquisou musicalmente para poder tocar diversos ritmos como o semba, o funaná, a morna, o fado e a salsa. E que registrar é uma forma de preservar a memória: “Esse livro é um registro importante da oralidade e para minimizar preconceitos principalmente entre os mais jovens. Esse projeto me deu uma oportunidade única como artista e músico de ter mais contato com a cultura do congo, através das rodas de conversas. Cantamos, ouvi as histórias de vida, novas toadas que desconhecia. Esse projeto é muito importante para a cultura hoje, mas principalmente para a cultura amanhã, para as futuras gerações de capixabas, brasileiros, músicos, pesquisadores, para o pertencer, o reconhecer e o partilhar dessas tradições. Estarei sempre junto com o congo capixaba. É meu legado missionário, familiar e ancestral morando no Brasil, estando no Espírito Santo e sendo um Tata12 do candomblé de Angola. Toda cultura oriunda de matriz africana vai sofrer racismo simplesmente por ser negra. O preconceito religioso que sofre o congo é o mesmo que fere as religiões de matriz africana. Esse preconceito deve ser combatido artisticamente, saindo dos redutos, dos guetos, dos terreiros, mostrando a nossa cara, a nossa cultura, a nossa música e a nossa dança. Dando visibilidade e mostrando para o mundo as nossas potências. Estaremos sempre unidos e emanados. Axé! Atotô”, finaliza Tunico da Vila.

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11 Comunicação entre um membro da comunidade com os espíritos dos entes queridos já falecidos, para que o espírito possa se manifestar, ser atendido em seus anseios e depois voltar para o mundo espiritual.

12 Tata Kaiango de Iansã, o que canta a vida e a morte (em nascimentos e falecimentos) no terreiro de candomblé.

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CAPÍTULO 4

Os desafios para a cultura do congo no Espírito Santo na

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O congo capixaba foi reconhecido em 2014 como Patrimônio Imaterial do Espírito Santo, são sessenta e sete bandas de congo registradas, mas ainda não é reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patri-mônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como o jongo e o samba. O projeto de pesquisa para patrimonialização do congo do Espírito Santo junto as superin-tendências do Iphan, inicialmente de Minas Gerais e agora do Espírito Santo, é coordenado pelo professor da Universidade Federal do Espírito Santo, José Otávio Name, e a pesquisadora Elisa Ortigão. No dia 16 de agosto de 2019 foi apresentado o dossiê do “Congo do Espírito Santo: metodologia e trabalho de campo”, durante a Semana do Patrimônio Cultural na Universidade Federal do Espírito Santo. Se-gundo a pesquisadora Dra. Elisa Ortigão, o processo de patrimonialização está na metade do seu curso e o levantamento preliminar já foi entregue.

O modo de cantar, dançar e tocar os instrumentos do congo capixaba carrega uma bagagem cultural dos negros africanos, que foi fundamental para a constru-ção da nossa cultura. Essa bagagem se misturou com símbolos da religião católica europeia – o sincretismo – como acontece com o samba de roda no Recôncavo Baiano e a Folia de Reis em Duas Barras, terra de Martinho, que durante toda a sua carreira trabalhou a questão racial por meio de sua arte, desde os tempos do espetáculo “Nem Todo Crioulo é Doido”, em 1967, com poesia, arte e mensagens. Martinho acredita que as crianças e jovens precisam reconhecer sua ancestralida-de, de onde vieram, porque eles estão aqui e não há uma solução rápida para a intolerância, mas essa solução passa pelas crianças e jovens. “Percebo um orgulho do capixaba com o congo, uma autoestima na fala. No duro, o preconceito já foi pior. Quanto mais a imprensa, a mídia, os jornalistas, os professores mostrarem o congo, falarem do congo, derem visibilidade, esse pertencimento só aumenta. É de extrema importância essa busca dos agentes culturais, políticos e sociais locais por esse reconhecimento nacional oficial para o congo, junto ao Instituto do Pa-trimônio Histórico e Artístico Nacional. Tem que mostrar o congo, documentar, que foi o caminho que o jongo fez no Rio de Janeiro e o samba de roda na Bahia. Como Patrimônio Histórico Mundial nem o samba é, só o samba de roda”, diz Martinho da Vila.

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Lena Côgo, 52 anos, fez parte da organização e produção do II Encontro Estadual das Bandas de Congo do Espírito Santo e da Comissão do Kizomba – En-contro Nacional de Arte Negra, em 1989. É moradora da Barra do Jucu há mais de quarenta anos e coordena o Circuito Cultural de Vitória da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Vitória, com o projeto “Instrumentarte – Ensino de Congo nas Escolas”. Idealizado em 2004, o “Instrumentarte” valoriza a identidade folclórica capixaba ao possibilitar que mestres e integrantes de bandas de congo ensinem essa arte musical aos alunos da rede pública de ensino de Vitória. Trabalham no projeto os Mestres Valdemiro Sales, da Banda de Congo Panela de Barro, de Goiabeiras, e Ricardo Sales, da Banda de Congo Amores da Lua, de Santa Marta, e ainda o Mestre artesão Wander Silva de Oliveira, conhecido como Sagrilo. O trabalho aproxima os estudantes da educação infantil e do ensino fundamental do universo do congo. As aulas contem-plam os alunos do Centro Municipal de Educação Infantil (Cmei) Jacyntha Ferreira de Souza Simões, em Goiabeiras, e Dr. Thomaz Tommasi, em Joana D´arc, e ainda da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Adão Benezath, na região de Goiabeiras, e Orlandina Almeida Lucas, em São Cristóvão.

“Estamos dando continuidade à relação dessas crianças com a cultura popular e, assim, fortalecendo o congo mirim pelo viés das Bandas de Congo Panela de Barro e Amores da Lua. Precisamos resgatar a parte lúdica do congo ancestral, as rodas de brincadeiras, a contação da história do congo, a criação de novas toadas, que são a representação do cotidiano. As crianças no projeto produzem e compõem suas toadinhas com os mestres, e os instrumentos com o Sagrilo. O que nos move é não deixar morrer essa cultura que é nossa, do capixaba”, diz Lena Côgo. Essa prática é uma recomendação da Unesco, que consiste em levar para sala de aula Mestres que detém o notório saber para transmitir conhecimentos sobre a identidade da cultura local, valorizando assim os patrimônios imateriais. Os Mestres possuem o “Notó-rio Saber Cultural” uma honraria concedida a agentes culturais que têm relevante conjunto de saberes e fazeres artísticos e/ou culturais e que não possuam formação e/ou graduação formal na área de atuação. As aulas da oficina “Ícones da Cultura Capixaba”, ministradas pelo artista Sagrilo, acontecem no Museu Histórico da Ilha das Caieiras “Manoel dos Passos Lyrio”, no Museu do Pescador, no CEU – Centro de Artes e Esportes Unificados de São Pedro, e no Instituto Mão na Massa, em Jesus de Nazareth. As oficinas têm o objetivo de incentivar o processo de estudo, criação e produção de elementos que dialogam com a identidade cultural, além de formar núcleos produtivos com foco na sustentabilidade. As aulas propõem o ensino e a produção de produtos em formato de souvernirs utilitários e decorativos. Entre as peças de confecção artesanal estão o mastro, estandartes, barco, tambor e casaca. O projeto Circuito Cultural oferece aos munícipes a oportunidade de conhecer os fundamentos de manifestações artísticas e culturais, por meio de diferentes lingua-gens e expressões culturais: artesanato, audiovisual, artes plásticas, cultura popular, dança, história, literatura, música e teatro. “O meu grande sonho é a estadualização do projeto Instrumentarte em todo Espírito Santo. O congo é uma manifestação do Espírito Santo, não é só de Vitória. Vitória é vanguarda, atendendo quatro escolas e seguindo a recomendação da Unesco de incluir em salas de aulas os Mestres que

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detém o notório saber. O Instrumentarte é todo pensado e realizado para atender a educação infantil, com instrumentos com peso e medida adequados, com resgate das brincadeiras tradicionais, são cantadas toadas folclóricas que não remetem à religião em respeito a laicidade, trabalhamos a criatividade com a criação de novas toadas com histórias da realidade das crianças, e o projeto extracurricular atende à lei que inclui História e Cultura Afro-Brasileira no currículo do ensino fundamental e médio. O projeto é conscientizador, remete à identidade do indivíduo e forma uma geração menos preconceituosa em relação ao congo, isso é muito importan-te. Os reflexos são sentidos diretamente pelos integrantes do congo, que relatam o aumento do reconhecimento dos seus trabalhos, da tolerância e do respeito. Quando há cortejo pelos bairros atendidos pelo projeto, as crianças reconhecem os Mestres, falam deles para seus pais, quebra-se um ciclo de invisibilidade e into-lerância cultural nas comunidades através da criança, que é ensinada a valorizar. Outro grande sonho é que tivesse uma gestão das culturas populares tradicionais, incluindo o congo, os quilombolas, índios, ciganos, e que esta ficasse localizada na Secretaria Estadual de Cultura. Lá atrás a Comissão Espírito-Santense de Folclore foi muito importante, achávamos que as associações iam dar conta dessa gestão, que acabou ficando fragmentada. Nós, da geração Madalena, no final dos anos de 1980 produzimos os Encontros Estaduais junto com a Comissão Espírito-Santense de Folclore, depois vieram as associações. Com as novas políticas públicas dos editais, essas comunidades poderiam ter uma gestão centralizada, incluindo um Calendário

Visita ao projeto Instrumentarte, agosto de 2019.

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Estadual da Cultura do Congo no Espírito Santo, onde as datas da Colonização do Solo Espírito-Santense, Consciência Negra e o calendário do congo fossem unifica-dos e amplamente divulgados. Hoje a Colonização do Solo Espírito-Santense virou um desfile militar, e não cultural. O calendário do congo é local, cada banda faz o seu, falta o direcionamento dos turistas para esses eventos, com a elaboração de um material incluindo a imprensa. Os moradores das comunidades, os turistas, teriam acesso a um Calendário Anual de Festejos do Congo no Espírito Santo.”

Acompanhei as aulas do Instrumentarte no Cmei Jacyntha Ferreira de Souza Simões e na Emef Adão Benezath, na região de Goiabeiras, em agosto de 2019, e observei como os tambores do congo são terapêuticos. As crianças, de 4 a 12 anos, cantavam, participavam das oficinas lúdicas, exteriorizando suas essências artísticas na prática, brincando, expondo ideias, se apresentando, cuidando dos instrumen-tos, cantando, dançando e tocando. Era nítido o bem-estar e como a saúde mental delas estava sendo trabalhada. Senti como o congo pode remediar, minimizar dores, violências e traumas causados pelas diversas condições da vulnerabilidade social ou de convívio familiar conflituoso, e percebi ali que outros públicos poderiam ser beneficiados, como idosos, jovens infratores e mulheres violentadas, por exemplo. O projeto “Instrumentarte – Ensino de Congo nas Escolas” está para além da cultura, é também uma atividade de terapia ocupacional que faz o aluno voltar o olhar ao seu redor e para si, além do seu celular. Saíram das aulas calmos, felizes, extasiados, numa sensação de alívio da alma. A arte é poderosa demais, sem arte o ser humano fica vazio, pobre culturalmente, oco, triste e perdido, como dizia meu Mestre José Carlos Meihy.

Os alunos foram trabalhados em roda no formato lua cheia, eles escolheram os instrumentos que queriam tocar, entre casacas, tambores, caixas e chocalhos. As faixas que apoiam os tambores nos ombros, os talabartes (espécie de cinto de apoio), assim como o tamanho dos instrumentos, tudo é adaptado para os alunos de acordo com a sua idade. Os instrumentos ficam guardados nas escolas e são fabricados pelo Mestre artesão Sagrilo, que participou das aulas distribuindo os instrumentos e ensinando os batuques. O Mestre Valdemiro é quem puxa as toadas, as canções tradicionais de início, meio e despedida do congo. Os alunos apresenta-ram individualmente os instrumentos para o mestre no meio da roda. Os monitores tinham apitos como o mestre e davam o tom da apresentação. O Mestre da Banda de Congo Panela de Barro, Valdemiro Sales, 71 anos, possui quase trinta anos de-dicado ao congo, é o instrutor do projeto Instrumentarte e diz que a maioria tem a sua primeira experiência musical na escola cantando e tocando congo capixaba. “Sou filho de conguista, meu pai Argeo Sales era pescador da região, meu avô Le-opoldo era da Folia de Reis, sou primo do Mestre Reginaldo Sales, a nossa família sempre se dedicou ao congo, aqui e em Santa Marta, quando Mestre Reginaldo foi pra lá depois que se casou. Goiabeiras, essa área de manguezal, sempre foi reduto das paneleiras de barro, das benzedeiras, de diversos artistas. A Banda Panela de Barro existe desde 1938, o congo é a nossa base africana e o cortejo de São Bene-dito acontece aqui no dia 25 de dezembro. Grandes mestres passaram pela Banda

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Panela de Barro, como Mestre Romeu Nascimento, Mestre João Ribeiro, Mestre Alfredo Pernambuco. Quando Seu Arnaldo morreu, a banda parou por dez anos e em 2001 eu assumi. O mestre tem que preparar um sucessor para que o grupo não fique sem liderança, eu já estou preparando o meu, Vinícius, ele tem 20 anos, estou passando as toadas, a forma de tocar cadenciada da banda, devagar ele vai pegando o canto harmonioso. É muito importante que as crianças conheçam as músicas que fazem parte da nossa vida, cantamos canções que falam da moqueca, da panela, do barro do Mulembá13, das nossas origens. O congo é o primeiro contato musical que as crianças menores têm com a música na escola. Entre os maiores, muitos nem conheciam e passaram a gostar. As crianças fazem o trabalho de formiguinha, eles dão aula da cultura para os pais, e assim muitos adultos que torciam o nariz para o congo não torcem mais. Fico muito feliz, os alunos me reconhecem nas ruas do bairro, me saúdam, explicam para os pais o que cantamos e fazemos na sala de aula. Participam do cortejo tocando congo nas ruas, as famílias oferecem água, assistem e passaram a ter mais respeito. As escolas particulares nos convidam para desenvolver as aulas, a Universidade Federal do Espírito Santo também. Faz parte da nossa missão repassar o que sabemos para frente, gostamos quando as pessoas valorizam a nossa cultura. Gostaria de formar novas equipes, para outras escolas e mais crianças receberem os ensinamentos e expandir o projeto Instrumentarte com monitores, instrutores, principalmente nas regiões mais violentas de Vitória, acredito que ajudaria muito esse projeto. As escolas estaduais que trabalham com a juventude também poderiam aderir, os jovens precisam muito de cultura tradicional. Gostaria também que o congo capixaba virasse patrimônio do Brasil, há poucos anos ele foi reconhecido patrimônio estadual, estamos muito atrasados se comparados a outras manifestações populares. Gostaria de ser mais ouvido, de participar e dar ideias. Todos nos conhecem, mas poucos nos reconhecem.”

O Mestre artesão Wander Silva de Oliveira, o Sagrilo, que também é músico, falou também sobre o antigo sonho da sede para as bandas de Vitória, “A sede poderia ser descentralizada, sendo uma sede em cada região que possui banda de congo, Goiabeiras, Santa Marta e no centro da cidade, facilitando o trabalho dos colégios e entidades que nos requisitam, se tivesse esse espaço comum poderíamos atender muito mais pessoas e instituições. Os instrumentos ficariam centralizados num único lugar, poderíamos promover exposições das relíquias históricas do congo, realizar oficinas musicais, contação de histórias e oficinas de marcenaria de instrumentos.”

A Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Vila Velha realiza desde 2005 o projeto “Congo Mirim”, na Unidade Municipal de Ensino Fundamental (Umef) Dr. Tuffy Nader, na Barra do Jucu, aproximando as crianças e adolescentes da cultura do congo. São cerca de 42 alunos, entre 6 e 17 anos, que são regidos pela professora Marina Sampaio, que detalha: “As aulas acontecem no colégio, três vezes por semana, no contraturno escolar de 13h30 às 17 horas e são trabalhadas

13 Local na Região da Grande São Pedro de onde retiram a matéria-prima para confecção de panelas de barro.

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as questões históricas com o conteúdo de história brasileira pelo viés do congo. Os interessados entram na banda dos adultos por meio da Banda de Congo Mirim Tambor de Jacarenema. A Banda de Congo Tambores de Jacarenema abre espaço para os jovens que não são da família do congo e muita gente não aceita isso. Os maiores desafios que lido para manter os jovens na Banda Mirim são por conta de pais que seguem igrejas pentecostais. A gente consegue desenvolver projeto com adolescentes em risco social. O sonho antigo era termos um espaço do congo para a Banda de Congo Mirim Tambor de Jacarenema, nesse espaço integraría-mos a música e a dança do congo com oficinas profissionalizantes para os jovens atendidos, poderíamos atender muito mais pessoas e teríamos o jovem envolvido tanto com a cultura quanto com a geração de renda e o trabalho. Além dos alunos já atendidos, incluiríamos um espaço compartilhado para os pescadores e o ar-tesanato, e oficinas profissionalizantes ligando cultura e educação. Nós teríamos como transportar o trabalho das oficinas, que hoje acontece na escola, para um local com melhor estrutura para acomodar os instrumentos, e pessoas de outros municípios que gostariam de participar teriam acesso. Faço um horário estendido de 15 horas como professora da rede, mas os alunos têm dificuldade de mobilidade, de irem para casa após as aulas e depois voltarem para a oficina. Eles não recebem passagem extra ou nenhum auxílio. A maioria é da região de Terra Vermelha e, como a escola não é integral, eles não têm almoço, lanche e transporte para ir e voltar para a escola no contraturno.”

4.1 Apontamentos finais

O congo supre o sentimento de pertencimento dos envolvidos com a história do povo negro capixaba e seus saberes ancestrais, impressos numa cultura de afirmação existencial e de coesão social. É alarmante que, em pleno século 21, o preconceito persista imbuído numa casca de racismo religioso. A não compreensão da cultura geram experiências, muitas vezes traumáticas, para quem representa e integra essa cultura. Quem despreza e agride a cultura do congo, principalmente por seus aspectos ligados as tradições, tenta anular a importante contribuição da cultura negra, prove-niente de várias etnias, na construção da memória e identidade musical capixaba e brasileira. Nega os aspectos simbólicos e afetivos envolvidos nessa cultura, além de estar cometendo agressão verbal, utilizando termo pejorativo como “macumba”, que na contemporaneidade assumiu uma termologia depreciativa. Por que essas culturas que possuem ligação com religiosidades foram eleitas para serem agredidas? Vivemos num país que, desde a abolição da escravatura, em 1888, preferiu negar o racismo, o famoso mito da democracia racial, aquele velado à luz da hipocrisia. Onde as culturas afro-brasileiras são preteridas, inferiorizadas em detrimento de outras. Precisamos compreender certas questões na tentativa de que sejam formuladas contracorrentes, seja com políticas públicas ou em nossos próprios comportamentos no cotidiano.

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O maior símbolo cultural capixaba é o congo, indiscutivelmente, e este surge ligado à cultura e à história do povo negro. Assim como o samba, maior símbolo cultural brasileiro que surge dentro da casa de uma mulher, negra, da Tia Ciata, que é simbolicamente homenageada todos os anos nos desfiles das escolas de samba pelas baianas. É dessa amálgama, dessa liga com as tradições africanas que nasce o samba, segundo Nei Lopes. Não tem como dissolver. O preconceito contra o congo e o samba configuram um “analfabetismo da alma”, um total desconhecimento sobre a história e a cultura de milhares de brasileiros, como afirmou a jornalista Flávia Oliveira. Estamos falando de ritos ricos musicalmente, de suas vestimentas, de seus instrumentos, de seus símbolos, que merecem respeito. Estamos falando de cultura, do modo de comer, de vestir, de dançar, de cantar, de rezar dos bantos angolanos, que formaram os povos capixaba e carioca. Os brasileiros descendem de africanos, que trabalharam, desenvolveram e enriqueceram nossa nação, que ocupa o segundo lugar como país de maior população negra no mundo. A partir da última década do século 20, as lutas passaram a ser por identidades, a partir de visões sobre o mundo que cada cultura construiu.

Martinho da Vila, o alquimista da música, a psiquiatra da alma, compre-endendo que se faz importante esse diálogo com o tempo tecido na história em transformação, concluiu que: “Ao escrever um livro o escritor toma conhecimento de uma porção de coisas que ele não sabia e que não são definitivas. Esse livro vai levar as pessoas a mergulharem no universo da cultura brasileira com base africana, e é bom que seja assim. Os professores foram formados com conhecimento acadêmi-co, é preciso também formar e embasar esses professores para que eles repassem o conhecimento popular, mais próximo do nosso viver.” Meu orientador, José Carlos Meihy, sempre nos falava sobre o poder terapêutico das narrativas e não desprezava, de forma alguma, o teor terapêutico inerente ao ato narrativo continuado.

Este livro expôs ideias dos próprios conguistas e de agentes culturais im-portantes, pois creio que dessa forma alçamos, empoderamos quem representa a cultura. E por acreditar que são relevantes para a construção coletiva de novas possibilidades de parcerias, alianças, políticas públicas, e que possam ser dialoga-das, incluindo os representantes da cultura do congo. O que eles pensam acerca do momento cultural atual, ideias e apontamentos, estratégias na atração de turistas nos redutos e em outros espaços, dando mais visibilidade cultural, agregando, conectando novas redes. Diz Helena Theodoro14: “Ao mergulhar na cultura negra descortinamos todo um processo civilizatório que precisa ser conhecido, entendido e trabalhado, fazendo com que um novo olhar seja lançado sobre o cotidiano de todos nós, que sempre lidamos com a invisibilidade das características culturais de base africana em nosso país.” A mais importante abordagem deste “30 anos da gravação de Madalena do Jucu: perspectivas históricas e novos alcances” é a necessidade e o interesse que eles demostram em serem ouvidos por quem produz

14 Helena Theodoro. Martinho da Vila: reflexos no espelho. Rio de Janeiro: Pallas, 2018, p. 18.

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políticas públicas nos âmbitos municipal, estadual e federal e os seus “quereres”. Querer é o desejo, a potência, o que você quer da vida para você, para os outros, para o mundo, é uma espécie de autorretrato.

Vivemos no mundo dos saberes, não mais do só e isolado saber acadêmico. Os saberes e fazeres ancestrais, dos anciões, da natureza, da cura alternativa. A ciência e a Academia não desprezam mais os saberes não convencionais. A cultura, a educação não convencional, o turismo linkado a nossa história, precisa estar emanado numa nova lógica. Sabemos muito de tecnologia e pouco, muito pouco sobre simbiosofia, como disse Edgard Morin precisamos (re) aprender a arte de viver, de escutar e de conviver.

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Para saber mais sobre Martinho da Vila: www.martinhodavila.com.br

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ANEXOS

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Secretaria de Estado da Cultura

Realizado com recursos do:

APOIO:

agraDecimentos

“Louvo os colaboradores do livro ‘30 anos da gravação de Madalena do Jucu: perspectivas históricas e novos alcan-ces’, sem os quais não seria possível a realização desse sonho sonhado, como cantou Martinho para a Vila Isabel. O resgate do recorte dessa história musical, os apontamentos para o fu-turo e as possibilidades no presente foram destacados com louvor pelos participantes ativos e militantes desta obra. Este livro é nosso. A Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Espírito Santo possibilitou, por meio da ferramenta dos editais, que todo esse bojo narrativo dos agentes culturais fosse revelado. Agradeço à SECULT pela História Oral Brasileira, que nem sempre é vista com os olhos que mere-ce, pela sua relevância, e muitas vezes sendo este o método possível para trabalharmos comunidades tradicio-nais. Registrar a oralidade é tarefa de gente grande e corajosa nas quais me inspiro, como Mãe Stella de Oxóssi (in memoriam), primeira sacerdoti-sa do culto afro no Brasil a ocupar uma cadeira na Academia de Letras da Bahia. Minha mola propulsora é o meu amor pelas comunidades tradicio-nais, em especial a da minha terra, do congo capixaba. Foram vocês e os seus ancestrais que escreveram este livro, eu fui só instrumento proativo. Cada roda de conversa da qual participei está guardada em meu coração e no profundo da minha alma. Estou pronta para servir quando precisarem, sou uma labutadora de narrativas huma-nas em prol de um mundo mais justo, equilibrado e existencialista.”