3131-11587-1-pb.pdf

16
Revista de Literatura, História e Memória VOL. 5 - Nº 6 - 2009 ISSN 1983-1498 (versão eletrônica) Inter-relações entre a literatura e a sociedade UNIOESTE NIOESTE NIOESTE NIOESTE NIOESTE / C / C / C / C / CASCAVEL ASCAVEL ASCAVEL ASCAVEL ASCAVEL P. 103-118 HISTÓRIA, MITO E FICÇÃO: LOPE DE AGUIRRE EM EL CAMINO DE EL DORADO, DE ARTURO USLAR PIETRI ESTEVES, Antonio R. (UNESP-Assis) LOPE DE AGUIRRE NA HISTÓRIA (A MODO DE INTRODUÇÃO) Por volta do meio-dia de 27 de outubro de 1561, segundo o antigo calendário juliano, então vigente, Lope de Aguirre, cristão velho, fidalgo basco, natural da vila de Oñate, nos reinos da Espanha, foi assassinado com dois tiros de arcabuz, na localidade de Barquisimeto, Capitania da Venezuela, nas Índias Ocidentais. Foi decapitado e esquartejado, sendo seu corpo distribuído por vários lugares daquela Capitania para servir de exemplo e impedir que fosse imitado. Diz-se que seu espírito vaga ainda por aquelas plagas em eterna peregrinação de homem descontente e amargurado. Tinha matado, pouco antes, com várias punhaladas, a filha adolescente, a quem muito amava, para que ela não caísse nas mãos dos inimigos ou se transformasse em chacota pública. Seria o último de uma série de crimes hediondos que seus biógra- fos lhe imputam, ocorridos ao longo de uma insólita jornada iniciada cerca de um ano RESUMO RESUMO RESUMO RESUMO RESUMO: O presente trabalho mostra um exemplo de como o personagem histórico Lope de Aguirre, conquistador espanhol do século XVI, abandona as páginas da história, aparecendo no discurso literário como protagonista de El camino de El Dorado (1947), segundo romance do escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri (1906-2001). PALA ALA ALA ALA ALAVRAS-CHA VRAS-CHA VRAS-CHA VRAS-CHA VRAS-CHAVE VE VE VE VE: Literatura e história; romance histórico hispano-americano; Arturo Uslar Pietri; El camino de El Dorado; Lope de Aguirre na literatura. ABSTRCT ABSTRCT ABSTRCT ABSTRCT ABSTRCT: This paper shows how Lope de Aguirre, the Spanish conqueror from the XVI Century, passes from the History to literary discourse and changes into character of El camino de El Dorado (1947), second novel written by the Venezuelan contemporary novelist Arturo Uslar Pietri (1906-2001). KEY WORDS KEY WORDS KEY WORDS KEY WORDS KEY WORDS: Literature and History; Latin American Historical Novel; Arturo Uslar Pietri; El camino de El Dorado; Lope de Aguirre in the literature. Recebido em: 28.07.2009 Aprovado em: 08.10.2009 Recebido em: 28.07.2009 Aprovado em: 08.10.2009 Recebido em: 28.07.2009 Aprovado em: 08.10.2009 Recebido em: 28.07.2009 Aprovado em: 08.10.2009 Recebido em: 28.07.2009 Aprovado em: 08.10.2009

Upload: gabrieldemouracavalcanti

Post on 25-Sep-2015

213 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • Revista de Literatura,

    Histria e Memria

    VOL. 5 - N 6 - 2009

    ISSN 1983-1498 (verso eletrnica)

    Inter-relaes entre

    a literatura e a sociedade

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE / C / C / C / C / CASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    P. 103-118

    HISTRIA, MITO E FICO:LOPE DE AGUIRRE EM

    EL CAMINO DE EL DORADO, DE ARTURO USLAR PIETRI

    ESTEVES, Antonio R. (UNESP-Assis)

    LOPE DE AGUIRRE NA HISTRIA (A MODO DE INTRODUO)

    Por volta do meio-dia de 27 de outubro de 1561, segundo o antigo calendriojuliano, ento vigente, Lope de Aguirre, cristo velho, fidalgo basco, natural da vila deOate, nos reinos da Espanha, foi assassinado com dois tiros de arcabuz, na localidadede Barquisimeto, Capitania da Venezuela, nas ndias Ocidentais. Foi decapitado eesquartejado, sendo seu corpo distribudo por vrios lugares daquela Capitania paraservir de exemplo e impedir que fosse imitado. Diz-se que seu esprito vaga ainda poraquelas plagas em eterna peregrinao de homem descontente e amargurado.

    Tinha matado, pouco antes, com vrias punhaladas, a filha adolescente, aquem muito amava, para que ela no casse nas mos dos inimigos ou se transformasseem chacota pblica. Seria o ltimo de uma srie de crimes hediondos que seus bigra-fos lhe imputam, ocorridos ao longo de uma inslita jornada iniciada cerca de um ano

    RESUMORESUMORESUMORESUMORESUMO: O presente trabalho mostra um exemplo de como o personagem histrico Lope deAguirre, conquistador espanhol do sculo XVI, abandona as pginas da histria, aparecendo nodiscurso literrio como protagonista de El camino de El Dorado (1947), segundo romance doescritor venezuelano Arturo Uslar Pietri (1906-2001).PPPPPALAALAALAALAALAVRAS-CHAVRAS-CHAVRAS-CHAVRAS-CHAVRAS-CHAVEVEVEVEVE: Literatura e histria; romance histrico hispano-americano; Arturo UslarPietri; El camino de El Dorado; Lope de Aguirre na literatura.

    ABSTRCTABSTRCTABSTRCTABSTRCTABSTRCT: This paper shows how Lope de Aguirre, the Spanish conqueror from the XVI Century, passesfrom the History to literary discourse and changes into character of El camino de El Dorado (1947), secondnovel written by the Venezuelan contemporary novelist Arturo Uslar Pietri (1906-2001).KEY WORDSKEY WORDSKEY WORDSKEY WORDSKEY WORDS: Literature and History; Latin American Historical Novel; Arturo Uslar Pietri; Elcamino de El Dorado; Lope de Aguirre in the literature.

    Recebido em: 28.07.2009 Aprovado em: 08.10.2009Recebido em: 28.07.2009 Aprovado em: 08.10.2009Recebido em: 28.07.2009 Aprovado em: 08.10.2009Recebido em: 28.07.2009 Aprovado em: 08.10.2009Recebido em: 28.07.2009 Aprovado em: 08.10.2009

  • 104 HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM . . .. . .. . .. . .. . .

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    antes, num ponto perdido s margens do rio Huallaga, porta de entrada da Amazniaperuana. Tinha partido a 26 de setembro de 1560, como soldado raso na expedio queo vice-rei do Peru, encarregara ao capito Pedro de Ursa, com o objetivo de conquis-tar os mticos reinos de El Dorado e dos Omgua, promessa de riqueza fcil.

    Mal organizada, a expedio contou desde o incio com a insatisfao dosparticipantes, muitos deles, como o prprio Aguirre, veteranos das vrias rebelies queabalaram o Peru por aqueles tempos. Ursa, como capito-geral, foi a primeira vtima,assassinado na madrugada do Ano Novo de 1561. Fernando de Guzmn, alado cate-goria de chefe, tampouco durou muito, no ambiente de terror que se implantou. Todostraam todos, Aguirre rapidamente controlou a situao e ocupou o mando.

    O objetivo de conquistar o reino de El Dorado foi, ento, deixado delado. A inteno de Aguirre era ocupar o Peru, para ele o verdadeiro El Dorado,tirar o poder das mos das autoridades reais, corruptas segundo ele, e reparar asinjustias das quais se acreditava vtima. Seu plano era chegar ao Atlntico, coste-ar o continente at o Panam e avanar sobre o Peru. Depois de dez meses denavegao chegaram ao mar, rumaram para o norte e ocuparam a ilha Margarita,onde se instalou um clima de terror. As autoridades reais foram alertadas e o planooriginal foi modificado: tentariam chegar ao Peru por via terrestre, atravs daVenezuela. Aps desembarcar no continente e ocupar trs povoados, Aguirre foiabandonado por seus companheiros e morto pelas tropas leais ao rei.

    Sua epopia foi contada por vrios de seus companheiros, soldados in-vestidos pelas circunstncias na funo de cronistas que, com seu relato, tratavamde negar a participao no movimento e reafirmar sua fidelidade coroa. Despeja-ram, ento, o mximo da culpa nos ombros do chefe, que foi transformado nummonstro feroz, assassino frio e calculista. Graas a esses relatos, porm, ele pdeingressar na lenda e sobreviver ao tempo.

    Transformado em personagem ficcional no sculo XX, tornou-se protagonistade uma srie de romances, contos, poemas, peas de teatro e filmes, escritos nos vriospases de lngua espanhola. Dentre essas obras, destaca-se El camino de El Dorado (1947),do venezuelano Arturo Uslar Pietri (1906-2001), importante romancista de seu pas.

    EL CAMINO DE EL DORADO

    El camino de El Dorado, publicado na Argentina em 1947, o segundoromance de Arturo Uslar Pietri. Curto e bem escrito, conta as aventuras de Lope deAguirre durante a malograda expedio. A ao abrange os preparativos para aviagem, a sucesso de rebelies e assassinatos, a pequena estadia na ilha Margaritae o fim do rebelde em Barquisimeto.

  • 105ESTEVES, Antonio R.

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    Alm de relatar a ltima viagem do desventurado conquistador, o roman-ce, dividio em trs partes, tambm trata da natureza hostil na qual se desenvolveaquela memorvel jornada: o rio, a ilha e a savana. A selva amaznica, em suamaior parte, o mar Caribe e as savanas do norte da Venezuela, so os cenrios daao histrica reconstruda pelo escritor venezuelano.

    A primeira parte, denominada El ro, a mais importante e ocupa pouco maisda metade do romance. Em quinze captulos, o narrador onisciente conta os acontecimen-tos da fase amaznica da jornada, desde os preparativos at chegada ao Oceano Atlntico.Nela aparecem os fatos mais importantes da narrativa: as dificuldades enfrentadas pelaexpedio e sua culminao nos atos violentos que imortalizaram a expedio.

    Lope de Aguirre, personagem secundrio, como tantos outros, apenaster total protagonismo a partir da morte de Fernando de Guzmn, quando assumede vez o comando da expedio, no captulo XIV. No poder, ele comea a colocarem prtica seus planos. Todos os possveis opositores so eliminados e qualquersuspeito sumariamente executado. Com Aguirre senhor da situao, a expedioentra no mar e termina a primeira parte.

    A segunda parte compe-se de oito captulos, com o ttulo de La isla.Refere-se ao perodo em que os rebeldes ocuparam a ilha Margarita, por pouco maisde um ms, entre agosto e setembro de 1561. Alm da violncia, j transformada emrotina, o fato mais importante a deciso da mudana de rota. Determinado a chegarao Peru e ocupar o poder para reparar as injustias das quais se sentia vtima, eletinha decidido navegar at Nombre de Dios, na costa do Panam, tomando ali o rumode seu objetivo. Durante a escala na ilha Maragarita, porm, um fato inesperado o fezmudar seus planos: o capito Mongua desertou, cruzou para o continente e deu oalarme. Sendo impossvel contar com o fator surpresa para ocupar Nombre de Dios,Aguirre decide chegar ao Peru por terra, cruzando a Venezuela e o Nuevo Reino deGranada. Uma difcil travessia atravs de speras serranias cobertas por uma inspi-ta vegetao e habitadas em sua maior parte por nativos desconhecidos.

    A parte final conta as ltimas semanas do aventureiro. So nove captu-los que traam o deambular de Aguirre pelos povoados vazios do norte da Venezueladesde o domingo, sete de setembro de 1561, quando desembarca em Borburata, ata segunda-feira, vinte e sete de outubro, quando morto. Para evitar um possvelregresso, ao desembarcar, Aguirre queima os barcos. Com o alarme da aproxima-o dos rebeldes, os moradores fogem levando todos os pertences. Inicia-se, en-to, uma dura marcha para o interior e comea o fim. Os povoados seguintes tam-bm esto abandonados. Aguirre se conscientiza de que a travessia que pretendefazer praticamente impossvel. Antev que seus desejos sero frustrados: os ho-

  • 106 HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM . . .. . .. . .. . .. . .

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    mens que comanda no tm foras suficientes para a marcha num territrio aban-donado e hostil. Comeam as deseres que tanto apavoravam o rebelde. EmBarquisimeto, sem travar nenhuma luta com as tropas fiis ao rei, depois de todosos soldados desertarem, Aguirre morto. Antes ele mata sua prpria filha, paraque no caia nas mos do inimigo. Esses acontecimentos do um dramatismo espe-cial ltima parte, titulada La sabana.

    Como se pode constatar, o romance de Uslar Pietri no traz novidades.Relata os acontecimentos da expedio de Ursa e Aguirre sem muitas fabulaes,praticamente repetindo as crnicas, em especial a de Vzquez (1987), a mais popu-lar delas, que o prprio Uslar (1969, p. 57) considera a mais notvel e verdica.Mantm, inclusive, a ordem cronolgica dos fatos, com poucas digresses queexplicam algum fato ou situao.

    Mais de uma centena de personagens aparece no romance, a maior partesada das pginas de Vzquez. Os acontecimentos so praticamente os mesmos emuitas vezes os dilogos so semelhantes aos da crnica. Em outras ocasies hpequenas alteraes. Alm de tais personagens, com nome e quase sempre com so-brenome, h ainda uma longa srie de personagens que, como figurantes, aparecemapenas uma vez. So os annimos soldados, ndios e negros que fazem parte danarrativa sem direito sequer a um nome. Sua presena ajuda a ilustrar a idia de UslarPietri de que a sociedade latino-americana mestia, resultado da mistura de trsgrandes grupos culturais: europeus, africanos e indgenas americanos.

    Nessa categoria entram, principalmente, os elementos menos valoriza-dos pela sociedade da poca, como os ndios, espanholizados ou no; os negros,escravos ou livres; os mestios, os mulatos e at mesmo as mulheres. Muitossoldados tambm aparecem sem nome. Raramente um capito.

    Por outro lado, curioso notar que alguns cavalos e ces merecem umnome, ao contrrio de muitos humanos. Os cavalos, muito importantes durante aconquista, merecem considerao do narrador: eles do o tom pico conquista. Soparte essencial daqueles homens. Dessa forma, causa um grande mal-estar na expe-dio saber que s vinte e sete cavalos, dos mais de trezentos que havia, poderiamembarcar. Apenas os chefes tiveram o privilgio de levar seus cavalos que seriamusados mais tarde como alimento nos momentos de fome, juntamente com os ces.

    No captulo VII pode-se ler que o soldado Diego Lucero tinha um co que,certa ocasio, trouxe um ndio da floresta e permitiu o contato com uma tribo que fornecealimentos expedio. O co tem nome: Alcalde. O ndio no. Sequer o cacique da tribo.Nem mesmo a tribo tem nome. Tampouco os vrios ndios brasis que guiam a expediotm nome. Aparecem referidos vrias vezes na primeira parte simplesmente como indiosbrasiles. Tampouco, a criadagem nativa que acompanha a expedio tem nome.

  • 107ESTEVES, Antonio R.

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    No captulo V, La punta del dardo, uma cena de quase uma pgina dedicada a dois annimos: um ndio e um soldado. Chegando a expedio a umaaldeia, aps o desembarque misturam-se ndios e espanhis. Um soldado curiosotoma das mos de um nativo uma zarabatana e pede com gestos explicaes sobreseu funcionamento. O ndio pega o canudo de volta, coloca uma seta e sopra emdireo do rio. O soldado, ento, quer uma seta. O ndio se nega a entreg-la, maso soldado consegue tom-la aps uma breve luta que no chama a ateno deningum. Curioso, com a seta na mo, ele fere a ponta do dedo para ver o efeito.Fica paralisado e cai. O narrador, num belo texto, relata a morte desse soldadoannimo que ningum nota. Apenas mais tarde, quando algum bbado, tambmannimo, tropea no cadver, que se toma conhecimento de sua morte.

    LOPE DE AGUIRRE: PROTAGONISTA NA MULTIDODE PERSONAGENS SECUNDRIOS DA CONQUISTA

    O protagonista do romance Lope de Aguirre. O narrador cria, no entan-to, certo suspense at introduzi-lo plenamente no relato, no final do terceiro cap-tulo. A descrio inicial apresenta elementos que se repetem ao longo do romance:homem mido, seco, de aparncia nervosa, olhos pequenos, sumidos e mveis,barba grisalha e descuidada. Mos inquietas. Coberto de armas, como sempre vaiaparecer at o final da histria, apresenta-se coxeando e rindo com uma risadaseca, parecida com tosse. O retrato construdo repete os cronistas e est baseadonuma srie de caractersticas que acabam por dar a Lope elementos que facilitamseu ingresso nos universos do mito e da fico. Sempre que ele aparece em cena, onarrador recorda alguns desses atributos fsicos. O retrato psicolgico vai serconstrudo, pouco a pouco, como um quebra-cabeas, a partir de seus atos.

    Apenas referido nos dois primeiros captulos, Aguirre entra na narrati-va, com ar de um gavio velho, cercado por um grupo inseparvel de amigos. Jprenuncia o papel que vai ocupar. Antes de embarcar, deixa bem claro que noacredita na existncia do reino de El Dorado. Para ele, o El Dorado est no Peru eno no interior da selva amaznica.

    Desta forma, o narrador vai tecendo cuidadosamente a trama, de modo queno haja surpresas. Afinal o leitor j sabe antecipadamente o que vai acontecer na-quela expedio. Vzquez j havia feito isso em sua crnica. No entanto, o narrador,ao montar sua teia, vai introduzindo gradativamente os fatos. Aguirre s se tornasenhor da situao e verdadeiro protagonista da histria a partir do captulo XI,mesmo que seus crimes futuros se anunciem vagamente desde o captulo VII.

  • 108 HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM . . .. . .. . .. . .. . .

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    A morte do governador Ursa preparada por uma conspirao de treze ho-mens, dentre os quais Lope se sobressai. Apesar de que nem Aguirre nem Guzmn atuemna execuo do governador, so eles que ocupam os cargos principais: Guzmn, general eAguirre, mestre de campo. Os demais participantes recebem postos subalternos.

    Aguirre continua agindo e quem governa de fato. Assina Lope deAguirre, traidor, na ata em que os insurrectos tentam justificar-se perante o rei daEspanha. Deixa bem claro que tal crime no tem perdo e que s lhes resta umasada, rebelar-se de vez contra o soberano, desligando-se de sua vassalagem eocupando o poder no Peru, para poder fazer justia quela imensa multido deconquistadores preteridos pelas autoridades espanholas. Aos que lhe faam oposi-o elimina-os. Convence a Guzmn a autonomear-se Prncipe de la Tierra Firmey Per y Gobernador de Chile, criando em plena selva amaznica, num ambientecarnavalizado, uma corte fictcia e sem poder real.

    O narrador trabalha sutilmente com os dois planos: realidade e fantasia.O limite entre o que acontece realmente, retirado das crnicas, e o que faz partedos espetculos montados por Aguirre, no romance, para impressionar seus solda-dos muito tnue. Desde o incio, a narrativa baralha com a lenda que se criousobre a figura do rebelde e torna-se difcil distinguir a lenda do que Aguirre vaiarmando cuidadosamente para ocupar o plano central.

    J na pgina 44, h um comentrio sobre a onipresena de Aguirre (USLARPIETRI, 1985, p. 44), bem antes de sua figura ocupar grande espao na narrativa. Onarrador trabalha com essa onipresena, deixando sempre muito claro que pare-cia que ele nunca dormia; que estava sempre em todas as partes, controlandotudo. O clima de certa magia que perpassa o relato serve para complementar essaidia. E assim, constri-se a aurola de Aguirre, que segue crescendo at tomarconta de tudo. Ento, todos comeam a v-lo como uma espcie de ser sobre-humano (USLAR PIETRI, 1985, p. 85). Ele prprio vale-se dessa ambigidade paraocupar o poder e dirigir o destino de todos, impondo ferrenhamente suas vontades.

    O narrador tambm usa a crena de que Lope teria algum pacto com odiabo, aventada por Toribio Ortiguera (1968) em sua crnica. No romance o perso-nagem se vale desse motivo como se todos o conhecessem. No captulo VI, enquan-to a expedio desce o rio, num ambiente de fantstica monotonia, Aguirre expe aseus companheiros a possibilidade de falar com o prprio diabo, da mesma formaque est falando com eles (USLAR PIETRI, 1985, p. 44). O narrador faz com queele, vrias vezes, parea um endemoninhado ou possudo por foras sobrenaturais,assustando terrivelmente os soldados. Esse terror amplia seu poder sobre os de-mais. Cria-se uma lenda trgica que circula e cresce, aumentando o sentimento defatalidade que os une (USLAR PIETRI, 1985, p. 88).

  • 109ESTEVES, Antonio R.

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    O narrador trabalha com sutileza estes aspectos, mantendo uma excitanteambigidade. A imagem de Aguirre construda a partir do ponto de vista dosdemais personagens. Assim, o leitor no chega a saber se ele realmente tem pactocom o sobrenatural ou se monta aquele espetculo para melhor poder controlar asituao. Dentro do ambiente de magia criado durante a viagem, provvel que elese valesse dessa aura como forma de exercer o poder. Ele gosta de montar espetcu-los para impressionar os soldados. Sempre que h algo novo a comunicar, ele osrene e faz imensas oratrias. Quando necessrio, suplica. Outras vezes ameaa.Um exemplo de tais espetculos ocorre logo aps a chegada no povoado de Burburata,na costa da Venezuela. Consciente de que a marcha que vai iniciar ser difcil,exigindo esforos sobre-humanos de seus homens, Lope tenta convenc-los de quea empresa ser difcil mas que os resultados sero maiores que aqueles obtidos porCorts ou por Pizarro (USLAR PIETRI, 1985, p. 148).

    Ele queima, ento, os barcos para evitar o regresso, rene os homens emonta um teatral e cmico espetculo. Imitando as Cruzadas contra os mouros naEspanha medieval, ele prega a guerra santa contra o rei de Castela. A cena pat-tica, mas no final, ao ressoar o tambor com um profundo trepidar, o narrador dizque os soldados saram profundamente impressionados. Parecia que algo sobrena-tural pairava sobre Aguirre. (USLAR PIETRI, 1985, p. 149-150)

    Aguirre se considera um salvador e dessa crena saem suas foras. Du-rante todo o trajeto da expedio ele cr firmemente que pode alcanar seus objeti-vos. Quer conquistar o Peru para poder reparar as injustias das quais cr ter sidovtima. Da mesma forma, os soldados que o acompanham tambm esperam umarecompensa por terem dedicado a maior parte de suas vidas causa da conquista.Esse sentimento comum de todos e a proximidade que ele mantm com seus homensfaz com que a maioria o siga. Tudo o que ele faz, todas as mortes, todos os horro-res, comete-os para conquistar seus objetivos. Simplesmente afasta de seu caminhoo que possa impedi-lo de chegar aonde quer. Segundo ele, algumas vezes, algumdeve morrer pra salvar outrem (USLAR PIETRI, 1985, p. 44).

    Desse modo, a narrativa realiza uma curva ascendente para produzir osuspense para depois entrar em descenso no desenlace. At a chegada ilhaMargarita, Aguirre est certo de que vai chegar ao Peru. Com a desero de Monguae outros acontecimentos da ilha, comea a ter dvidas. Inicia-se, ento, o seu sacri-fcio. Pode-se dizer que a cerimnia religiosa que ele prepara na ilha para apresen-tar as bandeiras, alm de ser um espetculo a mais para impressionar seus homens,marca o princpio de sua auto-imolao. Durante o espetculo, ele se prostra e fazum exame de conscincia que lembra Cristo no Horto das Oliveiras, pouco antes dapaixo (USLAR PIETRI, 1985, p. 127).

  • 110 HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM . . .. . .. . .. . .. . .

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    Assim, pode-se dizer que, ao sair da ilha Margarita, Aguirre encaminha-se para seu calvrio e o narrador antecipa vrios indcios de sua morte. Um deles o encontro com um prisioneiro muito parecido com seu pai, morto h muitosanos. Ele pergunta-se ento qual o significado do encontro. Duas pginas adiante,observando a praa vazia de Burburata, ele se coloca pela primeira vez a possibi-lidade da morte. Prev que morrer lutando e que ser esquartejado. S o preocupaElvira, sua filha. Nesse ponto fica muito clara sua posio de mrtir incompreendido(USLAR PIETRI, 1985, p. 154).

    No captulo seguinte, outro episdio antecipa sua morte. A expediohavia comeado a subir a montanha e, de cima, Aguirre tem a impresso de ver umbarco chegar ao porto. Inesperadamente, decide regressar com um grupo de solda-dos para o povoado abandonado, onde no encontram ningum. Algum sugere queeram fantasmas e o grupo pe-se a beber uma barrica de vinho que encontra. Aguirrebebe exageradamente e pela porta da casa onde est, observa a praa solitria.Apenas um urubu toma sol na cumeeira de uma casa. Ele dispara no urubu, maserra o tiro. Um soldado lhe diz que esses animais trazem dentro de si a alma dosmortos. Bbado como os outros, ele comea um estranho ritual. Olha no fundo dosolhos de seus soldados para tentar ver algo em seu interior. Nos olhos de CustdioHernndez, o cronista que decepar sua cabea depois de sua morte, no pode vernada. Apenas consegue vislumbrar muitos olhos, sem luz, opacos, que danamdiante dos seus, como olhos mortos (USLAR PIETRI, 1985, p. 158). Os olhos fun-cionam como espelho e atravs deles Aguirre ingressa no mundo dos mortos. Noespao do romance pode-se notar esse descenso.

    No dia seguinte, a marcha continua, mas Aguirre, extenuado pela subi-da, volta a ingressar no mundo das sombras, num delrio em que se v caminhandosozinho, dia e noite, para chegar a seu destino, o Peru. Os soldados o colocamnuma rede e, para dar sombra, fazem uma espcie de plio com uma de suas ban-deiras negras. A marcha continua e ele segue delirando, mergulhado em seu mun-do de trevas. O ltimo trecho, pouco antes de Valncia, o pior. Enlouquecido,levanta os braos e pede a seus soldados que o matem. E assim entra a estranhaprocisso no povoado. Procisso ou enterro? Ou seria a prpria procisso do en-terro de Cristo na figura de Aguirre?

    O captulo que segue tem o sugestivo ttulo de El peregrino, um doseptetos que Aguirre atribuiu a si mesmo. Ele se recupera lentamente, mas adquirea aparncia de um fantasma. Nesse momento escreve a Felipe II, explicitando suasmgoas e fazendo acusaes. A carta ditada a Pedrarias de Almesto que, ferido,tambm tem uma aparncia fantasmal. A voz de Aguirre quase imperceptvel,dando a impresso de que fala consigo mesmo. Trechos da carta, documento histri-

  • 111ESTEVES, Antonio R.

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    co retirado das crnicas, so intercalados com trechos das imagens que Aguirre vdesfilar diante dos olhos. As imagens de todos os mortos desfilam em sua imagina-o (USLAR PIETRI, 1985, p. 170). Pode-se dizer que, simbolicamente mergulhadono mundo dos mortos desde a jornada anterior, Lope havia regressado a este mundoapenas para terminar sua misso. Escreve ento a carta ao rei: algo que pudesseseguir falando por ele, mesmo depois de estar morto (USLAR PIETRI, 1985, p. 169).

    Mesmo antes de chegar a Barquisimeto, onde ocupa as casas mais altas dopovoado, Aguirre j pressentia que ia ficar s. Tenta, ainda, convencer os soldados asegui-lo, mas no consegue. A promessa de perdo real faz com que todos desertem.No dia de sua morte, depois que todos o abandonam, Aguirre dirige-se ao quartoonde est a filha com sua dama de companhia. O cenrio significativo. No mesmoaposento esto trs imagens que os soldados salvaram da igreja que fora incendiadacom o povoado. So duas virgens e o Nazareno com a cruz. Estas imagens podemperfeitamente simbolizar os trs seres humanos que tambm esto ali. Aguirre Cristo em seu calvrio; Elvira, a Mater Dolorosa com os punhais cravados no peito ea Torralba poderia ser a Virgem da Conceio. Ele aproxima-se de Elvira, livrando-sede Torralba que tenta impedi-lo, e mata a filha com trs punhaladas, justificando queassim o faz para que ela no seja violada pelos inimigos (USLAR PIETRI, 1985, p.191). O narrador usa as mesmas palavras da crnica de Vzquez.

    Nesse instante entram na habitao os soldados do rei e Aguirre mortopor seus prprios homens, que tm medo de que, vivo, ele possa denunci-los. Noentanto, ele morre altivo, de p, sendo sarcstico com seus algozes, ao comentar aboa pontaria do segundo disparo (USLAR PIETRI, 1985, p. 191). Pouco depois,Custodio Hernndez, cujos olhos ele via ocos dias antes, corta-lhe a cabea e aleva, pelos cabelos, quase arrastando no cho, como um farol apagado. O farol queele representou est apagado, mas vai em direo porta, por onde entra a forte luzdo dia. Aguirre ento penetra num mundo de luz, aquela intensa luz da savanaamarela que resplandecia sob o sol, onde mais de uma vez seu olhar se perdeu.

    Os demais personagens so tratados no romance como meros coadjuvan-tes de Lope. Pedro de Ursa, o governador da expedio e dos futuros reinos dosOmgua e El Dorado, um personagem importante. Ele protagoniza a cena antes daentrada de Aguirre, mas sua figura no positiva. Egosta e prepotente, ele usa suaautoridade para conseguir fundos para a expedio. O que seus amigos e inimigosno perdoam, porm, o fato de ter trazido expedio sua amante Doa Ins deAltienza. Seus amigos crem ser uma imprudncia levar to linda mulher entre tantossoldados brutos e rudes por caminhos perigosos e totalmente desconhecidos. Sobreela pesar o fardo de ter enfeitiado com sua beleza o general, que a coloca emprimeiro plano e deixa de lado os assuntos da expedio que cada dia vai pior.

  • 112 HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM . . .. . .. . .. . .. . .

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    Parece que a expedio est fadada ao fracasso e o narrador se encarrega deir espalhando ao longo dos captulos indcios que prenunciam as futuras desgraas.Seguindo Vzquez, o narrador deixa claro que o destino parece conspirar contra Ursa.Barcos afundam, eles no encontram aldeias com ndios amigos onde conseguir ali-mentos, a fome ataca. A viagem faz-se cada vez mais longa, sem vestgios dos reinosprocurados. A tudo isso Ursa, mantm-se indiferente, nos braos de sua amada.

    Apesar de consider-la a mulher mais bonita do Peru, Uslar Pietri, noentanto, d pouca importncia amante do governador. Sua beleza aturde a todosquando chega ao acampamento, cavalgando, com o rosto coberto por um vu, soba qual se pode imaginar sua formosura. Dialogando com versos do clssico deCastellanos (1944, p. 159-160), o narrador de El camino de El Dorado, conta comoum dos soldados pediu que ela tirasse o vu que lhe cobria o rosto. Ela atende aopedido, mostra o rosto (USLAR PIETRI, 1985, p. 24) e sua beleza faz com que doisperigosos homens se apaixonem por ela e passem a desej-la, conspirando pelamorte do governador: Lorenzo de Salduendo e La Bandera.

    Ins, no entanto, aparece poucas vezes mais no decorrer da narrativa.Tampouco h cenas erticas entre ela e o governador, como se poderia supor. Elasequer vive no mesmo barraco do amante, embora este a visite com freqncia, etenha para com ela cuidados especiais. Mesmo no episdio da morte de Ursa, onarrador lhe dedica apenas duas linhas. Depois disso, ela passa a ser cortejada porLa Bandera e Salduendo, situao da qual se vale Lope para colocar um contra ooutro e poder derrotar a ambos.

    Convencido de que Ins pretende vingar a morte do amante, usando paratal sua beleza e muitas tramas, Lope decide elimin-la. O espao que a ela tinhamerecido nos doze captulos anteriores ela consegue no instante de sua morte,quando o narrador lhe dedica uma das mais belas pginas do romance. A dramticacena se desenvolve numa choa onde Ins e sua dama de companhia so surpreen-didas rezando diante de uma estampa da Virgem e so barbaramente apunhaladas amando de Lope (USLAR PIETRI, 1985, p. 91).

    Tampouco Elvira, a filha de Lope, tem em, El Camino de El Dorado, aimportncia que outras obras costumam dar. Esta personagem, apenas citado nascrnicas, tem sido um dos prediletos para exercitar a imaginao dos literatos.Uslar Pietri, no entanto, prefere mant-lo a meio plano. Apesar de aparecer namaior parte do romance, sua presena quase que meramente figurativa. O narradorapresenta-a no captulo IV, acompanhada de la Torralba, sua dama de companhia,da qual tambm pouco se sabe. Sabe-se tambm que Pedrarias de Almesto a corte-java e Lope no via essa relao com maus olhos, j que se tratava de um letradoque no futuro poderia vir a desposar sua filha.

  • 113ESTEVES, Antonio R.

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    A voz de Elvira aparece poucas vezes durante o romance. Sequer se sabe oque pensava do pai: alguma vez o narrador deixa certos indcios de que ela noestivesse de acordo com as aes de Lope. Durante sua passagem pela ilha Margarita,as mulheres vm at ela em busca de proteo e piedade. Pode-se dizer que Elviravive num silncio total. Nas poucas vezes em que aparece no fala. Embora o narradora mostre apaixonada por Pedrarias, ela tem que calar seu amor por falta de interlocutor.

    Sabe-se, no entanto, que Elvira interfere junto ao pai e este perdoa a vidade Pedrarias as duas vezes em que ele foge e recapturado. Quanto a Pedrarias,parece que se mantinha prximo a ela como forma de evitar a perseguio de Aguirre. significativo que a primeira frase pronunciada por Elvira, j perto do final, nomomento da subida da serra em Valncia seja um lamento (USLAR PIETRI, 1985, p.160). Nesse momento tudo parece aproximar-se do fim. Ele responde com umamanifestao, pouco comum, de carinho. Desce do cavalo e monta Elvira com LaTorralba na garupa. Mais adiante, so elas que ficam a seu lado, pondo panosmolhados em sua cabea quando ele cai em seu delrio.

    A grande preocupao de Aguirre no consigo mesmo mas com a filha.Pouco lhe importa a prpria morte, mas no quer que Elvira v para as mos dosinimigos. Sabe que nestas condies impossvel cas-la. Chega a pensar que Pedrariaspoderia proteg-la. No entanto, Pedrarias tambm passa para o lado do rei. No lheresta outra sada a no ser mat-la. Elvira solua e reza. Suas ltimas palavras adquiremgrande dramaticidade j que ela morre sem entender por que, da mesma forma que tinhavivido sem saber muito bem o que acontecia a sua volta (USLAR PIETRI, 1985, p. 191).

    Dentre os personagens secundrios da saga de Aguirre costuma-se sedar especial destaque ao cronista Pedrarias de Almesto. O narrador de El caminode El Dorado destaca-o por dois motivos: pelo fato de ser um jovem discreto e comalguma instruo (USLAR PIETRI, 1985, p. 19) e por sua ligao com Elvira, vistacom bons olhos pelo pai que, no fundo, tinha a secreta esperana de que pudessecas-la com o cronista, dando-lhe a segurana que ele j no lhe poderia dar.

    Nada se sabe da possvel relao entre Almesto e Elvira, j que os cro-nistas, e ele prprio em seu relato certamente, preferem ocultar qualquer relaciona-mento mais achegado que pudessem ter tido com Aguirre e seus familiares. Oromance, no entanto, aponta essa proximidade com Elvira e com o prprio Aguirre,na clara inteno de salvar sua pele. Percebe-se, ao longo da narrativa, que Lopenutre certa simpatia para com Almesto, apesar de este ter sido uma espcie desecretrio de Ursa. Na noite do crime, o escrivo est conversando com o gover-nador quando os amotinados chegam. Apesar de lutar e pedir socorro, ele venci-do, mas tem a vida poupada. Pode-se dizer que Aguirre lhe demonstre algum cari-

  • 114 HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM . . .. . .. . .. . .. . .

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    nho. Sempre conversa com ele de igual para igual e recorre a ele para escrever suas cartas.Fica indignado quando recebe a notcia de que Pedrarias desertou, sentindo-se trado,mas o perdoa nas duas vezes em que recapturado. No final, ele s decide matar a filhaquando Pedrarias foge pela ltima vez, deixando-os sozinhos merc dos legalistas.

    Por sua parte, os sentimentos de Almesto para com Aguirre so contra-ditrios, uma mescla de repulso e atrao. Como homem de algumas letras, nopode deixar de sentir-se horrorizado com os mtodos usados pelo caudilho. Noentanto, no pode deixar de admirar a fora interior do velho soldado. Tanto assim que ele um dos homens que aparece ao lado de Garca de Paredes na horada captura e morte de Aguirre, interessado em saber como vai se portar o bravorebelde em seus ltimos momentos.

    Sua proximidade com Lope, no entanto, no permite dizer-lhe o que real-mente pensa dos acontecimentos. A cautela o faz calar. H um dilogo ilustrativoentre os dois no captulo VII da segunda parte, quando Aguirre o chama para escrevera carta ao frei Montesinos. Sem entender porque os homens esto desertando, Lopelhe pede sua opinio. Almesto comea a dizer que a expedio est se tornandolonga, os homens esto cansados e no h perspectivas de bom fim. Interrompe, noentanto, sua fala, no momento em que vai dizer que os homens tinham entrado naque-la aventura para ganhar terras e riquezas e no para afundar-se numa loucura desangue. Prefere calar-se e evitar qualquer possvel exploso de ira de Aguirre.

    ENTRE A HISTRIA E A FICO: DILOGOS INTERTEXTUAIS(A MODO DE CONCLUSO)

    Deve-se reiterar que a riqueza do romance no est na fbula, retiradaquase integralmente da crnica de Vzque, mas na forma como se tece a narrativa.Uslar Pietri, com grande maestria, mescla a informao das crnicas com descri-es do ambiente que ele recria. A narrativa em terceira pessoa no impede que onarrador onisciente abandone com freqncia a palavra, mudando o foco para ospersonagens em monlogos bem articulados. As duas ltimas partes do romance,por exemplo, so ricas em belos monlogos do protagonista.

    O dilogo entre o texto de Uslar Pietri e a crnica de Vzquez to bemurdido, que fica difcil estabelecer os limites entre ambos. O captulo V da terceira parte um exemplo disso: nele se configura uma situao dramtica de rara beleza. Aps osdelrios da subida da serra, Lope escreve a famosa carta a Felipe II. Trechos da missiva,na verso de Vzquez, alternam-se com o monlogo em que Aguirre rememora suasaventuras, ao mesmo tempo em que comenta a carta, criando num clima mgico.

  • 115ESTEVES, Antonio R.

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    Os captulos curtos, com uma mdia de seis pginas, fazem com que aao flua rpida. O narrador cria com habilidade um clima de suspense, fazendocom que os acontecimentos, j conhecidos pelas crnicas, soem como novidade.

    Uma das tcnicas utilizadas pelo narrador antecipar os fatos mais im-portantes atravs de vises ou premonies, o que ajuda a consolidar um clima demistrio. Vzquez, em sua crnica, ja tinha feito algumas interpretaes a posteriorido fatalismo da expedio, destina a malograr-se, e disso valeu-se Uslar Pietri, aomontar a estrutura narrativa de seu romance sobre tais elementos premonitrios. Anarrativa povoa-se, ento, de elementos que trazem essa fatalidade que arrastatodos, levando-os por caminhos obscuros e desconhecidos. H abundncia de si-tuaes sombrias, quase sempre envolvidas num clima de sonho, delrio e fantasia.Desde o incio, o ambiente est impregnado de mistrio. Os dois primeiros captu-los intitulam-se: La noche en Moyobamba e Lluvia y sangre. A maior parte dascenas neles descritas tem pouca luz, criando um ambiente mgico onde os perso-nagens se movem praticamente num mundo de sombras. Quando h luz, essa luz tanta que causa miragens, como nas cenas do rio.

    No segundo captulo, que antecipa o que vai ocorrer ao longo do roman-ce, acrescenta-se o elemento sangue. O acampamento, s margens do rio Motilones,de onde sair a expedio, apresentado ao leitor sob uma chuva montona einfinita, onde o sol raramente brilha. Como se no bastasse, os sinos dobram amortos (USLAR PIETRI, 1985, p. 17). Nesse ambiente so apresentados os perso-nagens principais, um dos quais profetiza que o que comea com sangue certamen-te termina com sangue (USLAR PIETRI, 1985, p. 19).

    Dessa forma, os elementos negativos vo se juntando e criando um climaobscuro que se abate sobre todos. Quando a expedio se pe em marcha, a situa-o no melhora. Falta comida, soldados deliram de fome e febre. A viagem, quan-do no perigosa, montona. Os acidentes inesperados apenas contribuem paraaumentar a tenso. A juno dos elementos rio e floresta mostrada como algomisterioso e tremendamente perigoso, de onde a qualquer momento pode surgir amorte. Fome e febre causam delrios e vises. A maioria perde a noo do tempo.Todos se vm envolvidos cada vez mais nessa massa negra e inconsciente ondetudo pode acontecer e nada novidade.

    A linguagem contribui para criar esse ambiente de delrio e insanidadepelo qual viajam os personagens. O narrador vale-se da descrio para criar grandeparte dessas situaes. Merecem destaque as descries da natureza, que ocupamboa parte do romance e que so sua grande riqueza. O personagem principal , semdvida, o velho capito espanhol, envolvido em seus sonhos de vingana contra orei Felipe II, mas a natureza americana certamente divide com ele o protagonismo.

  • 116 HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM . . .. . .. . .. . .. . .

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    Nesse sentido, vale a pena observar que, ao contrrio de outras obras quetratam de Lope, o romance de Uslar Pietri no traz o nome do rebelde em seu ttulo,parecendo privilegiar mais o cenrio que os prprios personagens. Os dois substanti-vos: camino e El Dorado denotam espacialidade. O primeiro refere-se rota, aomovimento, jornada, enfim. To importante quanto Lope o caminho que ele vaipercorrer. No se deve esquecer que no final de sua trajetria ele se auto-denomina ElPeregrino, imagem que no tem sentido se no se considera o caminho percorrido.

    El Dorado, por outro lado, lembra o mundo de fantasia onde ocorre acaminhada. O reino fantstico que mobilizou tantas expedies e que consumiu tan-tas vidas, nunca teve sua existncia real comprovada, mas sempre esteve presente noimaginrio de vastas zonas da Amrica. Concentrou ao longo da histria americana,a possibilidade da realizao plena dos desejos mais ntimos de todos que o busca-ram. Curiosamente, Lope um dos poucos que desde o incio no acredita na existn-cia desse reino, no sentido como os demais o viam. Para ele, o El Dorado era oprprio Peru. Pode haver, ainda, um objetivo maior: denunciar as injustias queocorriam na colnia. Ao percorrer seu caminho, ele alcana seu objetivo. Pode ser,tambm, a prpria morte, em direo da qual caminha, j que o mundo em que vive,ao no aceitar suas reivindicaes, no lhe deixa outra alternativa.

    Se j no ttulo, mesmo que simbolicamente, o ambiente assume oprotagonismo, o mesmo ocorre no decorrer da narrativa. As trs partes em que sedivide o romance, referem-se, cada uma delas, a trs universos naturais bem dife-rentes: o rio, a ilha e a savana. Dessa forma, a natureza americana, com toda a suafora e todo seu mistrio, emerge tambm como protagonista do romance. As des-cries so significativas. Na primeira parte, alm do rio, interessa a naturezaexuberante que o cerca: a floresta e as condies climticas em que esto inseridos:calor e chuva. As descries da floresta e do rio, com todo o mistrio que evocam,contribuem para a construo do realismo mgico que envolve o romance.

    O romance comea com uma descrio alucinante da geografia peruana,em que o foco narrativo centra-se no vento. O foco da narrativa, como uma cmerafotogrfica, coloca-se no alto. Segue o percurso do vento que vem do oceano, sobea cordilheira, cruza-a e desce do outro lado para chegar s nascentes dos riosamaznicos, no meio da selva, de onde partiram os aventureiros. O quadro que oleitor tem diante dos olhos impressionante. As frases so curtas e concatenadas,dando uma leveza de estilo que lembra o vento.

    Uslar Pietri mantm-se, como j se disse, bastante prximo das fonteshistricas que usa, apresentando, dessa forma, um retrato negativo de Lope deAguirre. Ressalta suas deformidades fsicas e apresenta-o padecendo de certa do-

  • 117ESTEVES, Antonio R.

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    ena mental que o faz ter crises de fria, durante as quais lana espuma pela boca.Alm disso, no clima de mistrio e fantasia que domina a narrativa, a imagem deum Lope demonaco entrevista por seus companheiros.

    No entanto, apesar disso, evidente que El camino de El Dorado seafasta da viso oficial da histria que pinta Lope como um ser primitivo e desalma-do que se guia apenas pela sede de sangue e pela desmedida ambio. O persona-gem que surge das pginas de Uslar Pietri, abrindo caminho para a mudana radi-cal de sua imagem literria, um homem atormentado, que sofre as angstias econtradies inerentes ao ser humano. Ele capaz de amar e sofrer, e sua solido,esse mal que irmana os homens, to profunda quanto sua experincia antecipadada morte, como se pode ver no romance.

    O Lope de Aguirre desenhado por Uslar Pietri fruto, sobretudo, daviolncia que caracteriza o momento histrico em que vive e da agressividade deum meio, ao qual tinha que se adaptar. To bem ele se adapta a esse meio queMarcus (1972, p. 591) v uma verdadeira simbiose entre o homem e a natureza quepraticamente protagoniza El camino de El Dorado, o que acaba por convert-lonum elemento constitutivo do mundo americano.

    Apontado como um marco na renovao do romance histrico hispano-americano (MRQUEZ RODRGUEZ, 1990, p. 41 ou FUGGLE, 1991, p. 12), Elcamino de El Dorado, foi publicado em 1947, ou seja, antes das obras de AlejoCarpentier, normalmente apontadas como renovadoras desse subgnero (MRQUEZRODRGUEZ, 1990; AINSA, 1991 ou MENTON, 1993). Tambm marca a superaodo romance regional modernista, que centralizava no ambiente sua fora de ao.Da mesma forma, pelo ambiente mgico que cria em sua narrao, de certo modotambm acaba antecipando o realismo mgico e/ou real maravilhoso que seriamincorporados ao romance hispano-americano nas dcadas seguintes. Isso tudo,apesar o realismo com que o personagem Aguirre encara o mito do El Dorado.

    Graas ao amplo dilogo intertextual com as crnicas, atravs da cita-o, o romance do escritor venezuelano reitera sua condio referencial. Assim, eapesar de todos os elementos mgicos presentes, seu processo de enunciao re-fora sua condio testemunhal, pretendendo reforar a credibilidade dos fatoshistricos que o romance textualiza. Isso leva Mara Antonia Zandanel a inclu-lona categoria de romance histrico mimtico (2004, p. 61), no qual a fico pro-cura fazer a transcrio fiel do discurso historiogrfico. A releitura do passadopela fico, neste caso, tem a funo de atualizar a memria histrica.

    Desse modo, pode-se dizer que Arturo Uslar Pietri, ao trazer Aguirrepara o centro de seu romance, pretende superar o processo de mutilao normal-

  • 118 HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM HISTRIA, MITO E FICO: LOPE DE AGUIRRE EM . . .. . .. . .. . .. . .

    ISSNISSNISSNISSNISSN 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 1983-1498 (verso eletrnica)VVVVVol. 5 n 6 2009 p. 103-118

    UUUUUNIOESTENIOESTENIOESTENIOESTENIOESTE CCCCCAMPUSAMPUSAMPUSAMPUSAMPUS DEDEDEDEDE CCCCCASCAVELASCAVELASCAVELASCAVELASCAVEL

    Revista de Literatura,

    Histria e MemriaInter-relaes entre a literatura

    e a sociedade

    mente sofrido pela histria hispano-americana ao longo de vrios sculos de re-escri-turas vinculadas a um poder estagnado. Apresenta, assim, atravs da rebeldia do con-quistador demonizado pelas crnicas ou idealizado pelos defensores da utopia ameri-cana, diferentes possibilidades de leitura do material histrico que a fico permite.

    REFERNCIAS

    AINSA, F. De la Edad de Oro a El Dorado: Gnesis del Discurso Utpico Americano. Mxico:Fondo de Cultura Econmica, l992.

    AINSA, F. La nueva novela histrica latinoamericana. Plural, Mxico, 240:82-85, 1991.

    CASTELLANOS, J. de. Elegas de varones ilustres de Indias. Madrid: Atlas, l944.

    ESTEVES, A. R. Lope de Aguirre: histria e literatura. Revista de Letras, So Paulo, 35:41-52, 1995.

    FUGGLE, S. R. La impugnacin de la Historia: dos obras de Abel Posse. Foro Hispnico, Amsterdam;Atlanta, 1:09-21, 1991.

    MAMPEL GONZLEZ, E. & ESCANDELL TUR, N. (Org.). Lope de Aguirre: Crnicas 1559 - 156l.Barcelona: Ed. 7 ; Ed. Universidad de Barcelona, l98l.

    MARCUS, R. El mito literario de Lope de Aguirre en Espaa e Hispanoamrica. Actas del TercerCongreso de la Asociacin Internacional de Hispanistas. Mxico: El Colegio de Mxico, l972.

    MRQUEZ RODRGUEZ, A. Historia y ficcin en la novela venezolana. Caracas: Monte vila, l990.

    MENTON, S. La nueva novela histrica de la Amrica Latina, 1979-1992. Mxico: FCE, 1993.

    ORTIGUERA, T. Jornada del ro Maran. Madrid: Atlas, l968.

    USLAR PIETRI, A. El Camino de El Dorado. Bogot: Oveja Negra, l985.

    USLAR PIETRI, A. El inalcanzable El Dorado. Caracas, El Nacional, 29//05/1988, p. A4.

    USLAR PIETRI, A. La novela en la historia. Caracas, EL Nacional, 23/12/1990, p. A4.

    USLAR PIETRI, A. El peregrino. In: Veinticinco Ensayos. Caracas: Monte vila, 1969.

    VZQUEZ, F. El Dorado: Crnica de la expedicin de Pedro de Ursa y Lope de Aguirre. Int. ynotas de Javier Ortiz de la Tabla. Madrid: Alianza, 1987.

    ZANDANEL, M. A. Los procesos de ficcionalizacin del discurso histrico en la leyenda de ElDorado: Lope de Aguirre y la aventura maraona. Mendoza: Universidad Nacional de Cuyo, 2004.

    Texto recebido em: 28.07.2009 Texto aprovado para publicao em 08.10.2009Texto recebido em: 28.07.2009 Texto aprovado para publicao em 08.10.2009Texto recebido em: 28.07.2009 Texto aprovado para publicao em 08.10.2009Texto recebido em: 28.07.2009 Texto aprovado para publicao em 08.10.2009Texto recebido em: 28.07.2009 Texto aprovado para publicao em 08.10.2009