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37º Encontro Anual da ANPOCS ST31 Migrações, Trabalho e Capitais Segurança, terra e trabalho no controle dos fluxos imigratórios internacionais no Brasil – origens, desenvolvimentos e perspectivas futuras Sérgio Gonçalves de Amorim

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37º Encontro Anual da ANPOCS

ST31 Migrações, Trabalho e Capitais

Segurança, terra e trabalho no controle dos fluxos imigratórios internacionais no

Brasil – origens, desenvolvimentos e perspectivas futuras

Sérgio Gonçalves de Amorim

1. Introdução

Este texto tem como objetivo uma compreensão das relações entre as dinâmicas

de poder estatal, acumulação de capital e imigrações internacionais no país.

Uma análise de determinados documentos legais demonstra que no Brasil os

paradigmas da “terra”, “trabalho” e “segurança” são vigentes desde o Império até os dias

atuais no tocante à imigração internacional.

Estas migrações atendem a demandas sociais, econômicas e políticas relacionadas

ao processo de acumulação capitalista, e de uma perspectiva do Estado implica em

questões de soberania nacional e segurança internacional.

O fenômeno migratório diz respeito, em parte, à organização da força de trabalho

pelo capital e pelo Estado em suas diversas formas.

As relações capital/trabalho são mediadas pelo Estado, pelo uso do monopólio

legítimo da violência com abrangência sobre todo o território do país, incluindo a

população, os meios de produção e o acesso aos recursos naturais, e o consumo.

Restrições e proibições estatais às migrações internacionais podem gerar

“irracionalidades de mercado” que afetariam a reprodução de capital e da força de

trabalho.

Neste sentido, a soberania nacional e as migrações internacionais se

apresentariam como condicionantes dicotômicos para o processo de acumulação de

capital.

2. Soberania do Estado e controle do território

Uma categoria que aponta para a abrangência do Estado sobre a vida da nação é

seu controle sobre o território.

“O uso da força física é a condição necessária para a definição do poder político, mas não a condição suficiente [...] Quem tem o direito exclusivo de usar a força sobre um determinado território é o soberano [...] no sentido de que não tem nenhum outro poder acima de si (Bobbio, 1987, p. 81).

O Estado tem possibilidade de controlar, em princípio, todos os elementos que o

compõem o território, quais sejam suas fronteiras, estruturas produtivas, urbanização,

consumo, reprodução social da população e os fluxos migratórios.

Se na análise do fenômeno migratório há certa centralidade da categoria trabalho,

com um papel fundamental do capital a induzir tais migrações, haveria, no entanto, a

prevalência do Estado ante a população e ao capital na regulação dos fluxos migratórios.

Vainer (2007) aponta para a centralidade da violência nos processos migratórios,

tanto por parte do Estado quanto do capital, sendo que a origem do fenômeno migratório

é historicamente determinada pela formação de um mercado de trabalho assalariado.

A análise das migrações internacionais deve levar em consideração não apenas os

fatores econômicos, mas também complexas “relações sociais, pautadas pelas

organizações de classe, gênero, raça/etnia” (Silva, 2007, p.57).

O capital se beneficia de tais diferenciações da classe trabalhadora para induzir

processos competitivos em seu interior, visando um maior controle sobre o mercado de

trabalho, desde que “os próprios trabalhadores lutam para definir meios de ação coletiva

que muitas vezes se defrontam com os limites das identidades étnicas, religiosas, raciais

ou de gênero” (Harvey, 2011, p. 58).

Mesmo o universo do capital é também fragmentado pela natureza intrínseca da

competição pelo lucro, como demonstram as teorias econômicas.

Harvey (idem, p. 59-60) lembra que diante da violência do capital há que

preponderar o monopólio legítimo da violência por parte do Estado, implicando inclusive

que este venha a limitar o poder econômico privado, sobretudo, em sua relação com a

exploração dos trabalhadores.

Ou seja, o Estado se torna figura importante para a população defender-se das

investidas irascíveis do capital em sua busca por lucro.

De certo modo, o “paradigma da segurança” se sobreporia aos “paradigmas do

trabalho e da terra” no controle dos fluxos migratórios em nível internacional, desde que

a “terra” não seria apenas fator de produção econômica e reprodução social da

população, mas transformado em um território nacional que permite ao Estado afirmar

seu poder hegemônico e monopolista sobre toda a sociedade.

3. Ambigüidades das políticas migratórias

Pode-se considerar que o papel do Estado no tocante aos fluxos migratórios se

consolida em suas políticas migratórias, que tomam

como objeto os deslocamentos migratórios, tanto no sentido do estímulo ou encorajamento, quanto, ao contrário, do desestímulo ou desencorajamento. Tal política pode ser exercida com relação a áreas de origem e destino de fluxos migratórios, mas também quanto a áreas de passagem de migrantes. A política migratória toma como objeto, portanto, processos sociais relacionados às migrações, baseando-se no pressuposto que eles podem e devem ser regulados. Quando se fala em questão migratória, trata-se de aceitar que o Estado tome a si a atribuição de ajudar a conduzir as migrações para o que se considera que seja uma situação mais propícia a um dado objetivo: o povoamento de um território, o controle político de uma fronteira, o estímulo às remessas de dinheiro, a defesa de direitos sociais, culturais de migrantes... Todos esses podem ser objetivos de política migratória, inclusive contraditórios entre si. Quais serão assumidos como prioridades, como serão implementados, são consequências do campo da política em geral. A política migratória não está, evidentemente, desvinculada dos rumos mais gerais das demais políticas de Estado (Póvoa, 2012, p. 290).

Vainer (idem) chama a atenção para a emergência dos “chamados trabalhadores

clandestinos ou trabalhadores não documentados” (ibidem, p. 13) (grifos do autor),

sobretudo, nas três últimas décadas, e que “resulta da instauração de novas leis e constitui

uma categoria específica que pode produzir, e já vem produzindo, uma série de novas

questões políticas e sociais, econômicas e culturais” (ibidem, p. 13).

Esta situação em si mesma é paradoxal para o mundo do trabalho, pois

“o mesmo indivíduo, em virtude de uma simples mudança da lei, passa da condição de migrante para condição de não documentado, clandestino, irregular. Por um lado nada mudou, pois aquele indivíduo continua sendo exatamente quem era, fazendo exatamente o que fazia; mas mudanças na instituição legal fazem com que ele deixe de ser o que era para passar a ser outra coisa , uma nova categoria social. Ele é o mesmo e, ao mesmo tempo, já não é mais o mesmo, porque uma nova instituição legal reconfigurou e redefiniu sua existência legal e, em consequência, também sua existência social (ibidem, p. 13). (grifos do autor)

Vainer (idem) destaca, no entanto, que tal situação foi sempre presente na

história do capitalismo, e que “a visibilização de dimensões ou práticas antigas resulta

(...), por exemplo, da reconfiguração dos quadros teóricos-conceituais que tornam

possível reconhecer/identificar e interpelar processos e práticas que já estavam ali,

invisíveis” (ibidem, p. 14-15).

Deve-se considerar a “emergência de movimentos políticos ou culturais que

sinalizam, anunciam, denunciam dimensões antes não perceptíveis e não percebidas”

(ibidem, p. 15), de modo que “é o deslocamento do olhar, e não do objeto, que propicia a

reconfiguração do que está sendo visto, do que é relevante ver” (ibidem, p. 15).

Há outra característica dos processos migratórios contemporâneos que é o fato de

configurarem uma

“estrutura de classes da imigração internacional, através da qual fica claro quão desigual é a distribuição do direito de circular [...] as legislações migratórias de praticamente todos os países, inclusive a brasileira, estabelecem discriminações de classe – através de critérios referidos seja ao nível de qualificação, seja ao montante de capital que se pretende investir (ibidem, p. 27).

Estes fatos sugerem se considerar a centralidade do poder estatal na regulação dos

processos migratórios, desde que

Definitivamente não estamos nem no espaço da racionalidade econômica e do mercado livre de localizações, nem do espaço das estruturas, mas no espaço de exercício da razão de Estado, no espaço da política e do poder (ibidem, p. 27).

Passadas cerca de duas décadas da pesquisa de Vainer (idem) esta realidade foi

pouco alterada, conforme atesta Moulin (2012a), que observa o aprofundamento de

“estruturas de poder que reproduzem a gramática ordenadora das dinâmicas de movimentos de pessoas no plano global e das estratégias de disciplina e controle dela derivadas [...], sobretudo, do direito internacional e do papel dos Estados nesses processos” (ibidem, p. 276).

Moulin (2011 e 2012b) destaca que a questão dos refugiados emergiu no cenário

político internacional após a Segunda Guerra Mundial, e se tornou potencialmente crítica

após o fim da Guerra Fria, desde que a plena garantia de direitos a pessoas em condição

de refúgio é dependente de um Estado nacional que não o de origem do migrante

forçado, e que por sua vez, setores deste mesmo aparato estatal podem

interpretar/proceder com restrições a essas mesmas populações e seus direitos.

Para Póvoa (idem) há “uma ambiguidade que atravessa o terreno onde se

confrontam direitos de migrantes e prerrogativas de Estados nacionais” (ibidem, p. 294),

qual seja que “ao “direito de emigração” não corresponde um equivalente “direito de

imigração”” (ibidem, p. 294).

Póvoa (idem) aponta que, desde as últimas quatro décadas, as políticas

migratórias das áreas mais importantes de recepção têm se tornado “enrijecidas” e

“parecem inaugurar uma nova era na criminalização das migrações e na violência,

material e simbólica, contra migrantes e refugiados” (ibidem, p. 295).

As restrições se dão no campo da economia, “que impõem crescente seletividade

à absorção de imigrantes”, e, também se relacionam ao combate à “imigração ilegal” em

nome de princípios humanitários, face “à proliferação de redes de contrabando e tráfico

de migrantes” (ibidem, p. 295-296).

Póvoa considera que os fatores econômicos quanto à imigração estariam sendo

absorvidos “por considerações de natureza política e securitária [...] Controles de

fronteira tornam-se mais rígidos, menos atentos aos direitos humanos” (idem, p. 297).

Fausto Brito (2013), neste contexto, aponta para uma politização das migrações

internacionais em torno do eixo paradoxal dos direitos humanos e da soberania nacional.

Hannah Arendt considera que a dissociação entre direitos humanos e soberania nacional serviu de antessala para a ruptura total dos direitos humanos nos regimes totalitários [...] As ideologias raciais têm ressurgido em muitos países desenvolvidos e servem de pano de fundo para a descriminação étnica intrínseca às políticas de restrições às imigrações internacionais (idem, p. 79).

Percebe-se, portanto, a complexidade temática das migrações internacionais, e sua

sensibilidade política, desde que não “há direitos humanos sem democracia e nem

tampouco democracia sem direitos humanos” (Piovesan, 2010, p. 283).

Preconceitos e ações autoritárias de agentes estatais podem se reeditar, mesmo em

contextos de relativa democracia.

A situação do não-nacional, em geral, é um condicionante à plena afirmação

democrática de um Estado e uma sociedade, e a recíproca é verdadeira.

4. Origens e desenvolvimentos das políticas migratórias brasileiras

A formação da sociedade brasileira foi marcada por estigmas por parte de suas

elites em relação aos não-nacionais.

Na correlação das forças sociais existentes, no período colonial e imperial, os oponentes ou os inimigos das lutas populares eram vistos como sendo aqueles que se opunham aos interesses da nação. E esses oponentes eram os estrangeiros, que constituíam parte das elites dominantes; os políticos ligados ou representantes da Corte (de Lisboa ou do Rio de Janeiro), e os comerciantes, especialmente os de origem estrangeira (Gohn, 2011, p. 154).

Pode-se afirmar que no Brasil o problema do controle dos fluxos migratórios por

parte do Estado se formalizou inicialmente através da Lei de Terras de 1850, que regulou

a passagem da terra de um direito de usufruto por posse ou concessão, ao valor de

mercadoria, e promoveu a colonização pela via imigratória internacional.

Cabe destacar que o meio rural continuaria a ser do grande latifúndio controlado

pelas mesmas elites políticas nacionais. No mesmo ano, a Lei Euzébio de Queiroz poria

fim ao tráfico escravo internacional para o Brasil.

A Lei de Terras de 1850 ao formalizar legalmente o processo de transição de um

mercado de trabalho escravo para assalariado regulou um processo migratório para o

país, sobretudo, europeu, ao mesmo tempo em que restringiu o acesso à propriedade da

terra aos não-nacionais, estando vigente no país, particularmente no que tange aos temas

relacionados à reforma agrária.

Estes documentos legais expressaram a visão das elites brasileiras à época, acerca

das imigrações internacionais no processo de ocupação do território nacional e de seu

desenvolvimento econômico, tendo o Estado à frente como uma entidade política

legitimadora desses projetos.

Uma nova categoria social entra no cenário dos conflitos do país. Trata-se dos imigrantes europeus, que vieram inicialmente para as fazendas de café e que, progressivamente, foram se integrando também nos núcleos urbanos, e na incipiente industrialização [...] Cumpre registrar ainda a série de movimentos de trabalhadores imigrantes, por melhores condições de trabalho e de moradia, no campo e na cidade [...] que vieram a gerar, nas duas últimas décadas do século passado e nas duas primeiras do século XX, o vigoroso movimento anarco-sindicalista brasileiro, de ideologia social-libertária (ibidem, p. 188-189).

Um exemplo da atuação dos paradigmas da terra, do trabalho e da segurança no

país, foi diante da imigração alemã entre 1824-1930 no sul do Brasil, que se intensificou

após a Lei de Terras de 1850.

Tal imigração foi alvo de posturas ideológicas por parte de brasileiros que teciam

“especulações sobre um suposto separatismo teuto-brasileiro – chamado “perigo alemão”

– cujos indícios eram buscados na sistemática de localização de imigrantes em colônias

“homogêneas” (Seyferth, 2007, p. 109).

Temia-se que tais imigrantes viessem a constituir um estado dentro do estado

brasileiro, atitude que aponta “para diferentes apropriações do princípio do nacionalismo

[...] na definição de quem é nacional (e, portanto, cidadão legítimo do Estado-nação)”

(ibidem, p. 113-114).

Este comportamento político se dava no contexto de um país ainda não integrado,

com risco de fragmentação em diversos Estados como ocorreu com as ex-colônias

espanholas na América.

O Estado brasileiro durante o Império, mais de vinte, punham em questão sua

soberania sobre todo o território nacional.

Esse conjunto de fatores elencados foi importante para que o Estado brasileiro à

época promovesse uma série de ações e alterações na legislação que permitiram ao

agente público um maior controle sobre as populações migrantes.

O preconceito sociocultural aliado à luta política pela manutenção do status quo

vigente no Brasil, tornaram ambíguas as políticas migratórias do país desde sua origem.

Os paradigmas da segurança, da terra e do trabalho se expressavam na forma de

controle do território nacional e da sociedade, sobretudo dos não-nacionais, ainda que

introduzindo restrições a setores do capital.

Os imigrantes não-nacionais, a partir de sua relação com o mundo do trabalho,

vieram a alavancar diversos movimentos sociais, sobretudo, durante a Era Vargas (1930-

45), deflagrando processos persecutórios por parte do Estado.

Além da migração alemã, os italianos, japoneses e judeus também foram alvo de

preconceitos, ver por exemplo, pesquisas que apontam para o monitoramento dos

“comunistas” (Tavares, 2001; Busantin, 2003), e não-nacionais, como judeus

(Wiazovski, 2001), espanhóis (Souza, 2001), italianos (Santos, 2001) e japoneses

(Dezem, 2000).

O controle social por meio de políticas e leis restritivas à entrada de trabalhadores imigrantes [...] constituem respostas por parte das elites dominantes à organização das camadas pobres e oprimidas, particularmente às ações dos imigrantes, por meio do anarco-sindicalismo (Gohn, idem, p. 62).

A participação dos imigrantes não-nacionais nos principais movimentos sociais

favoreceu o estabelecimento da chamada Lei de Cotas (1934), que se tornou um

mecanismo constitucional para o controle do fluxo migratório.

A partir do Estado Novo, o governo moveu campanhas destinadas a fiscalizar e “nacionalizar” os núcleos que possuíam escolas e imprensa em língua estrangeira. Com os acontecimentos internacionais que resultaram na Segunda Guerra Mundial, medidas repressivas se tornaram mais frequentes principalmente contra os estrangeiros de origem japonesa, alemã e italiana, além da elaboração de medidas de caráter sigiloso que visavam impedir a entrada de refugiados judeus. Antes disso, uma das decisões de maior relevância na política imigratória nacional ocorreu com a aprovação da emenda que ficou conhecida como “lei de cotas”. Na Constituição de julho de 1934, o parágrafo 6 do artigo 121 determinava que restrições deveriam ser impostas à entrada de imigrantes com o objetivo de garantir a

“integração étnica e capacidade física e civil do imigrante” (Geraldo, 2009, p. 176).

Esta lei marcou o término dessa primeira fase de estruturação de uma política

migratória no país, em que o não-nacional foi cerceado em seus direitos e reivindicações

políticas e sociais, porém visto como força de trabalho e, ambiguamente, como vetor de

colonização e integração nacional.

A partir daí, “as correntes de imigração estrangeiras foram definitivamente

substituídas pelas migrações nacionais” (Gohn, idem, p. 82), e a participação do

imigrante não-nacional, tanto na economia, quanto nos movimentos sociais decresceram

significativamente, sobretudo, com a emergência dos governos militares (1964-84).

Outros documentos legais vigentes no país fazem referências à Lei de Terras de

1850, e reforçam sua posição em relação aos não-nacionais, tais como: o Decreto-Lei nº

9.760/46, que dispõe sobre os bens imóveis da União; a Lei nº 4.504/64 e o Decreto nº

59.566/66, que dispõe e regulamenta o Estatuto da Terra; a Lei nº 5.709/71, que regula a

aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no país ou pessoa jurídica estrangeira

autorizada a operar no Brasil; e a Lei nº 6.815/80, conhecida como Estatuto do

Estrangeiro, também cria o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), órgão colegiado do

Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

As imbricações entre os paradigmas da segurança, da terra e do trabalho podem

ser identificadas a partir do Estatuto da Terra, no pensamento geopolítico militar

brasileiro, desde que

[...] o governo autorizou uma série de benefícios e incentivos, principalmente para estimular a colonização de áreas “novas” que teriam um papel pioneiro de povoamento e de extensão da segurança nacional, em grande medida inspirada nas concepções do general Golbery do Couto e Silva. Ao lado da colonização oficial, realizada por entidades governamentais, o governo estabelecia também o estímulo à colonização particular, realizada por empresas organizadas com essa finalidade, e que teriam largas extensões de terra, doadas ou financiadas a longo prazo, obras de infraestrutura (com muitas estradas sendo abertas pelo Exército), apoio de financiamentos para projetos e isenções tributárias e fiscais, por um certo período (Doula e Kikuchi, 2007, p. 336)

O Estatuto do Estrangeiro de 1980 revogou o Decreto-Lei nº 7.967/45, que tratava

de imigração e colonização, e que afirmava em seu cabeçalho que

“considerando que se faz necessário, cessada a guerra mundial, imprimir à política imigratória do Brasil uma orientação racional e definitiva, que atenda à dupla finalidade de proteger os interesses do

trabalhador nacional e de desenvolver a imigração que for fator de progresso para o país”.

O Estatuto do Estrangeiro criou o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que

em mais de três décadas de atuação teve seu fórum de debates democratizado, apesar de

ser uma estrutura estatal reminiscente dos governos militares.

Este fato tem permitido expressão política aos movimentos sociais no Conselho,

promovendo debates em torno da reforma desses referenciais legais, tidos por

anacrônicos e restritivos aos direitos de não-nacionais.

Tal posição é, sobretudo, de parte dos integrantes do Conselho ligados aos

sindicatos trabalhistas e de Organizações Não-Governamentais (ONGs), que se alinham

aos grupos de não-nacionais, aos discursos dos Direitos Humanos, do Direito do

Trabalho e do Direito Internacional.

Estas organizações têm como argumento de que a origem do Estatuto do

Estrangeiro é moldada conforme preceitos ideológicos de “segurança nacional” dos

governos militares, muito embora não critiquem as estruturas do CNIg.

5. Serviços secretos brasileiros no controle dos estrangeiros

Ao longo da República, o comportamento dos serviços secretos brasileiros no que

diz respeito ao controle dos fluxos migratórios internacionais foi caracterizado por

posturas etnocêntricas.

Por exemplo, o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo

(DEOPS/SP) criado em 1924 e regulamentado 1928, teve como objetivo “prevenir e

reprimir delitos considerados de ordem política e social contra a segurança do Estado”, e

atuou no controle e vigilância de judeus, espanhóis, italianos e japoneses no Brasil.

Este órgão estatal foi extinto em 1983, dando mostra da vigência e resistência do

paradigma da “segurança” do Estado brasileiro, no trato com os não-nacionais.

Durante muitos anos, parte das elites brasileiras olharia com desconfiança para os imigrantes, numa reação de ansiedade provocada tanto pela sensação de que estava sendo alterado o perfil populacional do país, principalmente nas cidades, quanto pelo medo de que os estrangeiros trariam a semente da revolução [...] Com esse gesto, que logo se desdobraria na criação de outros órgãos policiais semelhantes, o Estado republicano brasileiro consolidava sua marca autoritária, evidenciando a incapacidade de resolver conflitos e dissensões internas através de mecanismos democráticos (Motta, 2006, p. 55-56).

É importante assinalar que durante a Primeira República as Forças Armadas eram

pouco expressivas em face das polícias militares dos Estados, propiciando inclusive, pela

via das armas uma oposição paulista, em 1932, ao governo instituído em 1930 (Carvalho,

2005, p. 57-58).

Mesmo durante a Revolução Constitucionalista de 1932, buscou-se “reforçar a

identidade paulista, ameaçada pela grande presença de imigrantes europeus, em torno do

bandeirante mitificado” (Carvalho, 2001, p. 100-101) (grifo nosso), apontando para

processos de segregação do não-nacional.

Com certa prevalência da polícia militar dos Estados na securitização da questão

migratória, como apresentado com o DEOPS/SP, vê-se, portanto, que o aparato policial

do Estado brasileiro serviu às perseguições às populações estrangeiras no país.

O Exército, por sua vez, só viria a consolidar-se hegemonicamente durante o

Estado Novo, frente às polícias militares estaduais, as quais eram chamadas de

“pequenos exércitos estaduais” por parte de oficiais das Forças Armadas (Carvalho,

2005, p. 88), o que permitiu também um maior controle sobre a sociedade (ibidem, p.

92).

Durante o governo militar, as políticas militares foram postas sob o comando de oficiais do Exército e completou-se o processo de militarização de seu treinamento. Elas tinham seus órgãos de inteligência e repressão política que atuavam em conjunto com os seus correspondentes nas forças armadas (Carvalho, 2001, p. 212-213).

Carvalho assinala que o Exército Brasileiro, em sua formação histórica fechou-se

à sociedade, sobretudo, durante a Segunda Guerra, em que o acesso as suas escolas

militares se pautavam pela “situação familiar dos candidatos, a nacionalidade, a religião,

a orientação política e condições morais” (idem, p. 80).

Nas circunstâncias da época, tais dispositivos significavam excluir do Exército os não-católicos, sobretudo os judeus, os filhos de imigrantes, os negros, os filhos de pais não legalmente casados e os filhos de pais cujas ideias políticas não agradassem o regime. Quanto aos judeus [...] [se] julgava dispensável justificar a restrição, pois se tratava de raça sem noção de pátria [...] A execução das medidas ficava a cargo dos comandantes das escolas, que podiam criar comissões secretas para investigar a vida dos candidatos. A recusa de matrícula por qualquer das razões acima não precisava ser justificada pelo comandante, que simplesmente mandava arquivar o processo (ibidem, p. 80).

Para Carvalho (2005), o processo histórico que conduziria as Forças Armadas a

diversas intervenções políticas de 1930-1964, promoveu a uma considerável expansão

dos serviços de inteligência sob a égide militar, os quais foram instruídos e utilizados em

conformidade com as ideologias vigentes nas Forças Armadas.

A expressão “segurança nacional” tem lugar no arcabouço legal brasileiro com a

Lei nº 38/35, na denominada “Lei de Segurança Nacional”, pela Lei nº 136/35, depois

alterada pelo Decreto-lei nº 431/38, que detalhou a referida lei e a tornou mais severa em

suas punições.

Posteriormente viria a Lei nº 1.802/53, revogando a legislação anterior, e que se

encontra vigente até hoje, concomitantemente à Lei nº 7.170/83, também vigente no país,

e estabelece procedimentos processuais para crimes envolvendo a “segurança nacional”,

e, ainda, baliza as atuais políticas e ações do Estado brasileiro em contraterrorismo.

No período dos governos militares entre 1964-84, devem-se considerar as

condições de franca ameaça e, por vezes, supressão da cidadania à grande maioria da

população brasileira, composta por nacionais e não-nacionais.

A máquina da repressão cresceu rapidamente e tornou-se quase autônoma dentro do governo. Ao lado de órgãos de inteligência nacionais como a Polícia Federal e o Serviço Nacional de Informações (SNI), passaram a atuar livremente na repressão os serviços de inteligência do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e das polícias militares estaduais; e as delegacias de ordem social e política dos estados. Dentro de cada Ministério e de cada empresa estatal foram criados órgãos de segurança e informação, em geral dirigidos por militares da reserva. O Exército criou ainda agência especiais de repressão chamadas Destacamento de Operações de Informações e Dentro de Operações de Defesa Interna, que ficaram tristemente conhecidas pelas siglas DOI-CODI (Carvalho, 2001, p. 163)

Durante tal período houve um retrocesso da cidadania para toda população

brasileira, composta por nacionais e não-nacionais, pois “ampliaram os direitos sociais,

ao mesmo tempo em que restringiram os direitos políticos [...] Pode-se dizer que o

autoritarismo pós-30 sempre procurou compensar a falta de liberdade política com

paternalismo social” (ibidem, p. 190).

Outro exemplo de possíveis focos de intolerância estatal no caso brasileiro, se dá

com a presença de refugiados e migrantes de origem do Oriente Médio, que por vezes, é

associada às práticas terroristas (Ferreira, 2012), posturas adotadas em setores do Estado

brasileiro, sobretudo, aqueles ligados à segurança.

Ressalta-se que estes tipos de interpretações nascem de um contexto internacional

de guerra ao terror fomentado pelos Estados Unidos da América e aliados europeus

(ibidem).

A América Latina como um todo se encontra relativamente fora do “eixo do

terror” considerado nas políticas estadunidenses, mas que, por outro lado, estas mesmas

políticas têm a região como problemática, relativamente ao narcotráfico, o que pode

fomentar posturas estigmatizadas relativas ao fluxo de pessoas oriundas destes territórios

(Ayerbe, 2012).

Todos estes fatos condicionam a reprodução do capital e da força de trabalho no

Brasil a preceitos da soberania nacional, sobretudo, ao regularem sobre terras em faixas

de fronteira, aquisição de terra por não-nacionais ou empresas estrangeiras, e também a

imigração internacional.

Se há relativa carência de efetividade dos direitos políticos a toda sociedade

brasileira, esta é menos efetiva ainda para a população de não-nacionais no país.

E, esse fato não é exclusividade do Brasil, desde que é um paradoxo relativo às

condições de realização dos direitos humanos que só podem se efetivar no mundo

moderno sob a égide da soberania nacional, tendendo a impor restrições de direitos em

relação aos não-nacionais (Brito, idem).

6. Perspectivas futuras: a difícil superação das ambigüidades

Mais recentemente, reedeitaram-se os paradigmas da “segurança”, da

“terra/território” e do “trabalho” em função da “crise da imigração haitiana” para o

Brasil, em 2012.

Parte desse processo migratório foi tratada com maiores detalhes por Silva

(2012).

Seja como for, a presença dos haitianos no Amazonas evidencia as contradições de como a sociedade civil e o governo, seja ele municipal, estadual ou nacional, tem lidado com a questão migratória no país, revelando não somente o despreparo das instituições oficiais para enfrentar situações emergenciais como esta, mas também explicita as diferentes posições dentro do próprio governo diante da necessidade de se rever a legislação migratória vigente no Brasil, a qual se encontra inadequada para responder aos desafios do fenômeno migratório na atualidade (ibidem, p. 314).

Em função desse recente fluxo migratório haitiano para o Brasil, desde 2012, a

Agência Brasileira de Inteligência, que é parte do Gabinete de Segurança Institucional da

Presidência da República (ABIN/GSIPR), passou a tomar assento no Conselho Nacional

de Imigração (CNIg)1.

A temática das migrações internacionais e do controle de fronteiras é de interesse

do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSIPR), que tem

organizado alguns eventos acadêmico-institucionais tratando dessa temática2.

A participação da ABIN conta com apoio de parcela dos conselheiros do CNIg, e

centra-se no paradigma da “segurança” focado no controle do fluxo migratório e no

monitoramento de fronteiras, tendo como justificativa contribuir para a garantia dos

direitos fundamentais dos imigrantes ao coibir o tráfico humano, presumidamente

relacionada à imigração ilegal.

A ABIN tem como parte de sua tarefa-institucional a garantia da soberania

nacional, e, não de “guardião” dos direitos humanos, ao coibir o tráfico de pessoas, a

atuação de “coiotes” e outros ilícitos que “ponham em risco” a “segurança nacional”.

O paradoxo entre soberania nacional e direitos humanos, como apontado por

Brito (idem), é de difícil solução.

Este paradoxo também se apresenta no Ministério da Justiça (MJ) do Brasil, onde

existem posições divergentes no que diz respeito ao controle do fluxo imigratório

internacional no país.

Por exemplo, a atual Secretaria Nacional de Justiça (SNJ/MJ) e o Comitê

Nacional para os Refugiados (Conare), órgão colegiado vinculado ao Ministério da

Justiça, se alinham às propostas de reformas no Estatuto do Estrangeiro propugnadas por

parte dos movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos trabalhistas representados

no Conselho Nacional de Imigração (CNIg).

No entanto, tais órgãos encontram oposição por quase a totalidade de outras

estruturas do MJ, como o Departamento de Polícia Federal (DPF/MJ), que cuida de

1 Ver as Atas do CNIg de 2012 e 2013.2 O GSIPR através de sua Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais (SAEI), em 2010, realizou o “Seminário Perspectivas para a Faixa de Fronteira” e um ciclo de seminários para debater a questão da atuação em desastres, em que discorreram agências especializadas em emergências humanitárias, além do “Workshop - Prevenção e Combate ao Terrorismo Internacional”, este com o objetivo de promover a interação entre os vários órgãos governamentais com interesse no tema. Em 2009, a SAEI/GSIPR realizou o “Seminário Migrações na América do Sul”, debatendo temas da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden), como os principais fluxos migratórios entre os países da América do Sul, a atuação do Conselho Nacional de Imigração brasileiro e a presença de imigrantes dos países do Cone Sul no Brasil. A SAEI/GSIPR realizou, em 2008, o “Seminário Fronteiras e Segurança Nacional: América do Sul, México e Estados Unidos”, e, em 2006, o “Seminário Segurança Nacional: Migração” e palestra para debater a visão histórica sobre o tema Segurança Nacional no Brasil (conforme http://geopr1.planalto.gov.br/saei/sistemas/97-eventos-e-publicacoes/eventos, consultado em 12/08/2013).

fronteiras e imigrações internacionais, que ao contrário, requer para sua atuação

institucional mais instrumentos legais punitivos e restritivos aos direitos dos não-

nacionais no país.

Esta postura é também reproduzida em setores do Ministério Público Federal

(MPF), órgão que tem como missão institucional zelar pela efetividade dos direitos

fundamentais dos cidadãos, mas que neste caso, parece não reconhecer o não-nacional no

país, como um cidadão.

A imigração internacional no Brasil ainda possui um tratamento estatal ministrado

por suas forças policiais, o que, estruturalmente, traz alguns problemas, desde que, por

vezes tais setores do Estado brasileiro ainda vêm se demonstrado incapazes “de agir

dentro das normas de uma sociedade democrática” (Carvalho, 2005, p. 213).

Mesmo do ponto de vista do Poder Judiciário é pouco eficiente o tratamento

ministrado às populações não-nacionais no país, sobretudo se não participarem do

mercado formal de trabalho.

O único setor do Judiciário que funciona um pouco melhor é o da justiça do trabalho. No entanto, essa justiça só funciona para os trabalhadores do mercado formal, possuidores de carteira de trabalho. Os outros, que são cada vez mais numerosos, ficam excluídos [...] A parcela da população que pode contar com a proteção da lei é pequena, mesmo nos grandes centros (ibidem, p. 215).

Esta constatação aponta para a fragilidade do trabalho do não-nacional

indocumentado no país, que, contraditoriamente, é impedido legalmente de trabalhar em

“situação legal” e ter garantia de direitos.

Esta situação se agrava pela securitização da questão das imigrações

internacionais, podendo transformar a presença do não-nacional e seu trabalho em

ilegalidade.

Esta situação de “ilegalidade” abre precedentes para ações autoritárias, quando

não arbitrárias, por parte de agentes estatais, e por parte de setores empresariais,

possíveis abusos de uma situação de fragilidade de garantias de direitos aos não-

nacionais.

A transformação dessa realidade é algo de difícil realização, desde que são

“necessárias práticas democráticas, que esbarram nas dificuldades [...] da não cultura

política democrática e da força do autoritarismo e do paternalismo” (Gohn, idem, p. 213).

A essas dificuldades estruturais, somam-se outras, sobretudo, aquelas relativas ao

“desmonte de políticas sociais públicas de caráter universal [...] paulatinamente

substituídas por políticas neoliberais, focalizadas, em parcerias com ONGs e outras

entidades do terceiro setor” (ibidem, p. 218).

Gohn (idem) aponta que os movimentos sociais vieram perdendo sua qualificação

de social, que passaram a ser “mais fruto do ativismo de profissionais de camadas

médias, articulados a ONGs, centros universitários, etc., do que coordenado pela

militância popular ou por lideranças de bairros” (ibidem, p. 222).

As novas políticas sociais do Estado globalizado, neste novo século, tanto no governo FHC como no governo Lula, priorizaram processos de inclusão social de setores e camadas tidas como “vulneráveis ou excluídas” de condições socioeconômicas ou de direitos culturais [... ] Esse papel foi realizado de forma contraditória. Captura-se o sujeito político e cultural da sociedade civil, antes organizado em movimentos e ações coletivas de protestos e agora parcialmente mobilizado por políticas sociais institucionalizadas. Transformam-se as identidades políticas desses sujeitos – construídas em processos de lutas contra diferenciações e discriminações socioeconômicas – em Políticas de Identidades, pré-estruturadas segundo modelos articulados pelas políticas públicas, arquitetados e controlados por secretaria de Estado, em parcerias com organizações civis – como ONGs –, que desempenham o papel de mediadoras [...] A inversão da ordem dos termos “Identidade Política” para “Política de Identidade” muda radicalmente o sentido e o significado da ação social coletiva dos movimentos sociais [...] porque elas geram alterações nas formas de organização, na consciência social (ou não consciência) dos problemas, na cultura política construída e na natureza dos projetos sociopolíticos envolvidos (ibidem, p. 225-226).

Gohn (idem, p. 226-227) aponta que os grupos de imigrantes comporiam uma

categoria de “movimentos identitários que lutam por direitos sociais, econômicos,

políticos e, mais recentemente, culturais [...] Todavia, são também os que foram mais

capturados ou “formatados” pelas políticas sociais governamentais dos últimos anos”.

Portanto, tais movimentos identitários ao se organizarem na forma de ONGs ou

de redes acabam por possuírem “pouca capilaridade com grupos sociais organizados na

base” (ibidem, p. 227), sendo este um dos desafios para uma maior articulação política

dessas populações na promoção das transformações idealizadas pelas lideranças do

terceiro setor, descoladas dos setores que desejam ser representantes.

Desse modo, se há na atualidade alguma pressão advinda desses grupos, tal é em

grande parte fruto da atuação de ONGs e outras entidades do terceiro setor, como a Igreja

Católica, em torno de uma agenda comum, como por exemplo, a reforma do atual

Estatuto do Estrangeiro e a reestruturação da política migratória brasileira, dando mais

garantias ao não-nacional no país.

A transformação da realidade sociopolítica de amplos setores da sociedade

brasileira, e particularmente das populações não-nacionais que a compõe, demanda além

da formação política desses setores, também uma nova formação funcional do agente

estatal.

Primeiro, porque é uma nova cultura. Esse funcionário usualmente não está socializado nessa cultura da gestão compartilhada; o mais usual é a prática de decidir ou levar as decisões para reuniões para serem legitimadas. Então, trata-se de um novo processo de aprendizagem. Segundo, nesse novo processo de aprendizagem, não se pode culpabilizar o funcionário ou achar que ele não precisa de formação ou, ainda, que ele não sabe nada. Em geral, ele já está no cargo e detém conhecimento advindo da experiência, que agora precisa ser requalificada. É uma cultura de compartilhamento a ser construída. Portanto, a formação tem de ser dos dois lados: do representante da sociedade e também dos que estão envolvidos no poder público. Tudo isso pensado em um processo de formação que vai se construindo, com novas metodologias (ibidem, p. 235-237).

Em síntese, para que a construção democrática da cidadania seja efetiva para as

populações não-nacionais no país, seria necessário, primeiro, uma maior articulação entre

lideranças e liderados, com atuação mais participativa das comunidades representadas;

segundo, uma reforma da legislação migratória; e, terceiro, uma nova formação dos

agentes estatais, reorientada a partir de uma nova legislação e políticas migratórias.

7. Conclusão

Os discursos formulados em torno do controle do fluxo migratório internacional

no Brasil tendem a enfatizar um ou outro lado da problemática, ou seja, as necessidades

de segurança, soberania e propriedade de um lado, e de outro, de mobilidade humana,

trabalho, e direitos fundamentais.

Embora haja a emergência de organizações ligadas aos direitos dos não-nacionais

no país, é pouco efetiva a participação dessas populações de um modo articulado

endogenamente a essas comunidades.

Também é baixo o percentual demográfico dos não-nacionais na população total

do país, além da fragmentação sociocultural desses grupos.

A legislação migratória vigente no Brasil indica a politização e securitização dos

fluxos migratórios internacionais no país, e o desejo de sua transformação aponta a

emergência de novas formas de conceber os papéis da imigração internacional para o

Brasil, mas que estão ainda distantes de se realizar, sobretudo, em termos de garantias de

direitos para os não-nacionais.

Este debate político parece indicar um longo e lento processo de reforma do

Estado brasileiro, em que alguns setores do aparelho estatal são mais resistentes à

transição democrática, sobretudo, os grupos ligados à segurança e defesa, nos quais

persistem posturas etnocêntricas em relação ao não-nacional.

O paradoxo está em que estes organismos são parte do aparato estatal que, no uso

do monopólio legítimo da violência devem garantir os direitos humanos requeridos numa

sociedade democrática, mas tais forças por sua natureza política no conjunto do Estado,

por vezes são refratárias a esta missão.

Este paradoxo é uma característica do atual Estado Democrático de Direito no

Brasil, por questões de princípios e fatos, em que se considerem os discursos refratários

aos direitos humanos presentes no MTE/CNIg, MJ/DPF, MPF e GSI/ABIN, que colocam

em questão se tais órgãos estatais de segurança seriam efetivamente adequados

“guardiões” da democracia e dos direitos fundamentais.

Como parte de um processo de democratização da sociedade, a reforma legal e do

aparato de segurança estatal é importante para a emergência de um contexto político cada

vez mais voltado aos valores republicanos.

A manutenção de um ambiente republicano e democrático poderá garantir a

internacionalização do mercado de trabalho brasileiro, estimulando fluxos migratórios

internacionais, e talvez colaborando para erradicação da pobreza e da miséria no país e

no mundo, como parte de uma nova inserção internacional do Brasil.

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