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3º Seminário de Relações Internacionais da ABRI: Repensando Interesses e Desafios para a Inserção Internacional do Brasil no
Século XXI
UM PAPEL ATIVO DE ATORES NÃO-ESTATAIS NA GOVERNANÇA: EVIDÊNCIAS A PARTIR DA ATUAÇÃO DE UMA CORPORAÇÃO MULTINACIONAL MINEIRA
BRASILEIRA
Área Temática: Teoria das Relações Internacionais
Modalidade: Trabalho para Apresentação em Painel
Isabella Alves Lamas Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra – em
período sanduíche no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San
Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC/SP)
Florianópolis 29 e 30 de setembro de 2016
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Resumo
Principalmente a partir do final da guerra fria, mas com maior intensidade a partir dos anos
2000, surgiram uma série trabalhos que discutem o que Susan Strange chamou de “recuo do
estado” e o papel dos atores não-estatais no exercício de formas diversas de governança. Essa
bibliografia tem o mérito inegável de romper com o pensamento ortodoxo das Relações
Internacionais, ainda demasiadamente focado em relações de poder entre atores estatais do
sistema internacional. Correntes teóricas desenvolvidas nas Escolas de Negócio e na Ciência
Política em geral posicionam, na complexa arquitetura da governança global, o papel positivo
dos atores privados na governança transnacional. Para alguns autores, as CMNs têm
possibilidade de exercer uma boa governança e ir além das medidas de responsabilidade social
corporativa. Em geral, a visão é a de que em contextos onde o estado é incapaz de promover
arranjos institucionais básicos, as corporações possuem o expertise necessário não só para ter
uma boa conduta, como para influenciar positivamente a condução de aspectos cruciais de
governo. Evidências empíricas de estudos de caso da atuação de uma CMN mineira brasileira
em três contextos institucionais distintos – Brasil (mineração de ferro), Canadá (mineração de
níquel) e Moçambique (mineração de carvão) – refutam esta argumentação e sugerem que,
apesar de nuances em sua forma de manifestação, o papel da CMN na governança local esta
presente de forma conflituosa em todos os casos e independe do nível de institucionalidade do
país para ocorrer. A escolha por uma CMN mineira é neste caso ideal, uma vez que a economia
política da mineração é marcada por envolvimentos de longo prazo com os estados
hospedeiros (devido aos grandes investimentos para operacionalização dos projetos), além da
perpetuação de inúmeros impactos socioambientais que exigem atuação ativa por parte do
empreendedor na área de investimento social (compulsório ou voluntário).
Palavras-chave: Corporação Multinacional, Mineração, Governança; não-estatal
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1. Introdução
A realidade alarmante dos conflitos socioambientais formados em torno dos megaprojetos de
extração de minérios está intimamente relacionada ao governo das populações atingidas
exercido pelas corporações multinacionais (CMNs). Apesar do reconhecimento crescente do
posicionamento das CMNs como um ator não estatal ativo na governança global, a bibliografia
existente, principalmente nas áreas de Relações Internacionais e Ciência Política, acaba por
focar nos níveis de análise da macro política global e, assim, deixa de fora o envolvimento
cotidiano da corporação nos estados hospedeiros e na condução da conduta da vida das
pessoas. Ao mesmo tempo, as perspectivas das populações atingidas, apesar de terem um
papel central na modulação das interações que tomam forma nestes contextos, raramente são
incorporadas como variáveis centrais para a compreensão do processo de composição do olhar
da corporação multinacional.
Este trabalho sugere uma proposta conceitual de distanciamento daquilo que é o usual em
termos de análise do papel das CMNs em arranjos de governança. Para tal, a primeira seção é
uma revisão bibliográfica sobre o papel dos atores privados não-estatais e, particularmente das
CMNs, nas atividades de governança. A maior parte das investigações até então desenvolvidas,
principalmente nas Relações Internacionais e na Ciência Política, têm o foco em dimensões da
governança global no âmbito da macro-politica. A segunda seção apresenta o trabalho da
autora Jana Hönke como uma proposta de mudança de perspectiva importante para o
entendimento do olhar da CMN através da incorporação da dimensão local. No entanto,
algumas de suas limitações são continuar focado apenas em questões de segurança e ser
construído a partir do argumento de soberania limitada. Por fim, a terceira seção, traz
evidências empíricas da atuação de uma CMN mineira no Canadá, Brasil e Moçambique.
Algumas das formas possíveis de atuação ativa das CMNs na promoção de arranjos de
governança nos países hospedeiros incluem a negociação de acordos de compartilhamento de
impactos e benefícios da mineração, a elaboração e implementação de planos de
reassentamento involuntário e convênios com populações indígenas. Através destes exemplos,
o objetivo é romper com o pensamento de que em contextos onde o estado é incapaz de
promover arranjos institucionais básicos, as corporações possuem o expertise necessário não
só para ter uma boa conduta, como para influenciar positivamente a condução de aspectos
cruciais de governo e funções públicas.
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2. Um papel ativo dos atores privados não estatais na governança?
Principalmente a partir do final da guerra fria, mas com maior intensidade a partir dos anos
2000, surgiram uma série trabalhos que discutem o “recuo do estado” (STRANGE, 1996) e o
papel dos atores não estatais no exercício de formas diversas de governança. Um dos
principais argumentos avançados por esta bibliografia é o de que com a crescente
interconectividade do mundo (e, para alguns, com o advento do fenômeno da globalização),
atores como as organizações não governamentais (ONGs), as organizações internacionais
(OIs) e as corporações multinacionais (CMNs) não poderiam mais serem excluídos das análises
sobre governança. Afinal, estes atores são agentes ativos responsáveis por transformar a
conjuntura internacional de acordo com os seus interesses e necessidades (AVANT et al.,
2010). Alguns autores como Anne-Marie Slaughter em New World Order (2004) abordam a
possibilidade de esta multiplicidade de atores (organizados em rede) criarem círculos virtuosos
na governança global (SLAUGHTER, 2004). De fato, uma das áreas mais proeminentes na qual
esta forma de pensamento se apresentou foi em relação ao papel dos atores não estatais na
governança global (Vide. BÜTHE, 2004; EDWARDS; CLARKE, 2004; GRAZ; NÖLKE, 2008;
HALL; BIERSTEKER, 2004). Essa bibliografia tem o mérito inegável de romper com o
pensamento ortodoxo das Relações Internacionais demasiadamente focado em relações de
poder (no sentido mainstream-realista do termo) entre atores estatais que compõem o sistema
internacional. Em outras palavras, essa perspectiva da governança global tem a sua principal
contribuição na promoção da abertura do campo da Ciência Política em geral, mas
principalmente das Relações Internacionais, ao papel de atores não estatais na governança
global. Não obstante, a sua principal limitação teórica se encontra no foco exclusivo dado ao
nível de análise da macro política do nível internacional.
Há uma extensa bibliografia, proveniente principalmente das Escolas de Negócio e da Ciência
Política, que posiciona, na complexa arquitetura da governança global, o papel positivo dos
atores privados na governança transnacional (Vide. FLOHR et al., 2010). Alguns destes autores
têm um posicionamento crítico dentro desta corrente e são defensores do deslocamento do
envolvimento da CMN de ações focadas no nível de governança micro para o nível macro de
forma a lidar com aspectos mais amplos da governança social (FRYNAS, 2009: 138). Essa
corrente enfoca nas possibilidades que as CMNs têm de exercer uma boa governança e ir além
das medidas voluntárias de responsabilidade social corporativa (Vide. BLOWFIELD; FRYNAS,
2005; GULBRANDSEN; MOE, 2007). Em geral, a visão é a de que em contextos onde o estado
é incapaz de promover arranjos institucionais básicos, as corporações possuem a
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potencialidade e o expertise necessário não só para ter uma boa conduta, como para influenciar
positivamente a condução de aspectos cruciais de governo como, por exemplo, fomentar a
transparência na administração das receitas provenientes da indústria extrativa.
Frynas (2009) é um destes autores e defende o envolvimento das CMNs petrolíferas para além
das ações ligadas a responsabilidade social corporativa. Em suas palavras, uma vez que a
corporação já exerce uma clara influência política que afeta a governança nos contextos onde
opera, “a controvérsia não é apenas sobre a legitimidade de firmas que influenciam o governo,
mas sim sobre a maneira atual de usar a influencia política e sobre a transparência das firmas
no que diz respeito as suas atividades políticas” (FRYNAS, 2009: 160). Ou seja, o que o
preocupa é o descompasso entre o que acontece na prática – uma influência enorme da
corporação nas políticas do estado hospedeiro através de atividades como lobbying – e aquilo
que as corporações tornam público – em geral basicamente o discurso de que ela não tem
legitimidade, responsabilidade e nem pretensão de interferir nos assuntos de política nacional.
É importante notar que este descompasso é muitas vezes programado na medida em que a
corporação pode se beneficiar da ausência de arranjos efetivos de governo nos locais onde
opera (BÖRZEL; HÖNKE, 2011) através, por exemplo, de benefícios e/ou redução de
obrigações fiscais e o não questionamento dos termos de contratos altamente favoráveis para
os seus negócios. No entanto, para o autor, na medida em que o processo de interferência das
corporações ocorre com tamanha intensidade, a melhor opção disponível seria que este se
tornasse público e transparente. A solução está em deslocar a atenção dos debates sobre
responsabilidade social corporativa, projetos locais de desenvolvimento comunitários e de
iniciativas como a Extractive Industries Transparency Initiative, para debates sobre a
governança e soluções de nível macro para os problemas em torno da indústria extrativista
(FRYNAS, 2009: 164). Como transparece na solução proposta pelo autor, apesar de seu
posicionamento ser crítico ao que acontece na prática, ele defende que apenas um
deslocamento das ações da corporação multinacional em direção ao âmbito da macro-política
possibilitará mudanças politicas e econômicas positivas nos contextos onde estas atuam. Esta
visão é problemática na medida em que adota um viés exclusivamente positivo em relação as
possibilidades de atuação das CMN. Além disso ela é construída de cima para baixo e
praticamente elimina a importância das ações micro políticas para reparar os danos profundos
(e muitas vezes localizados) causados pelas CMNs nos contextos onde atuam.
Um dos principais expoentes da bibliografia sobre governança global é o livro Who Governs de
Globe? (AVANT et al., 2010) que questiona aqueles que falam em governança global na voz
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passiva, ou seja, como um fenômeno que acontece mas aparentemente não há atores ativos
(estatais, mas principalmente não-estatais e supra-estatais) responsáveis pelo seu exercício. O
livro concebe os governantes como “aqueles que exercem poder além das fronteiras com o
propósito de impactar a política” (AVANT et al., 2010: section 1) e se caracteriza enquanto um
esforço de analisar de maneira pormenorizada o papel de uma multiplicidade de atores ativos
na governança global como grupos de pressão, organizações internacionais e CMNs. No
entanto, apesar de advogar realizar uma análise de níveis transversais e ter a preocupação em
abordar a relação entre os atores que exercem governança e aos que a ela estão sujeitos, ou
seja, os governados, não chega a incorporar o nível de análise local e raras vezes incorpora o
nacional. Os esforços de abordar a dimensão dos governados enfocam o próprio processo de
constituição e fonte de proveniência de diferentes autoridades, bem como as questões de
legitimidade em torno de suas atuações. Segundo esta visão, as CMNs exercem autoridade na
medida em que englobam em seu bojo uma série de fontes de autoridade como a autoridade
expert ou a autoridade delegada. Na medida em que as corporações possuem capacidade de
ação efetiva elas se tornam fontes de autoridade legítimas. Esse é o caso exposto por Haufler
(2010) em relação a atuação de CMNs em zonas de conflitos. Nestes contextos onde os
estados têm uma significativa falta de capacidade de governo, as corporações são
percepcionadas enquanto capazes de monitorar fundos e implementar políticas consideradas
fundamentais para a construção da paz (HAUFLER, 2010).
O fato de as corporações estarem envolvidas e assumirem atuações que englobam a dimensão
da segurança, principalmente em zonas de conflito, gerou uma bibliografia extensa sobre
segurança privada. Uma parte destes trabalhos é dedicada ao papel positivo que as CMNs
podem ter na prevenção e/ou na resolução de conflitos (Vide. DEITELHOFF; WOLF, 2010;
WENGER; MÖCKLI, 2003). Já uma outra parte da bibliografia foi dedicada as complexas e
potencialmente negativas interações que as CMNs têm em zonas de conflito e/ou regiões de
soberania limitada. Não por coincidência, uma quantidade significativa dos estudos se
basearam em exemplos provenientes da indústria extrativista do petróleo e da mineração que,
por conta do funcionamento característico de sua economia política, protagonizaram casos de
envolvimento negativo das CMNs em contextos de conflitualidade como, por exemplo, a Shell
na Nigéria e a Talisman no Sudão (Vide. DROHAN, 2004). Organizações de monitoramento
internacional e ONGs como a Global Witness tiveram um papel central neste desenvolvimento
com a produção de inúmeros relatórios evidenciando a falta de transparência na administração
dos recursos naturais e a conexão entre os rendimentos dos recursos naturais e a emergência/
manutenção da conflitualidade em diversos contextos como Angola, Indonésia e outros (Vide.
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GLOBAL WITNESS, 1998; GLOBAL WITNESS, 2005). Como Haefler expõem, entre os anos
1998 e 2002 houve a evolução de grande intensidade deste debate sobre o setor privado e
principalmente sobre as CMNs como nova autoridade na arena sobre conflito e segurança
(HAUFLER, 2010). De fato, a agenda que relaciona os negócios com questões de segurança
(de várias ordens e a partir de diferentes concepções de segurança) é até o momento aquela
que tem tido mais proeminência nas análises que relacionam as CMNs com atividades de
governo.
Uma parte importante desta bibliografia foi dedicada a análise da emergência de empresas de
segurança privada e dos vínculos entre estas e algumas CMNs em operação em distintos
contextos e ramos de atividade como a indústria extrativista. Corporate Warriors – The Rise of
the Privatized Military Industry de Peter Singer foi publicado em 2003 e é considerado pioneiro
na sistematização do estudo da emergência das empresas privadas que oferecem serviços
militares, um assunto que se tornou pauta no mundo todo após o uso extenso, e os abusos
cometidos, por algumas destas empresas como a então Blackwater (atualmente Academi) no
Iraque. Para Singer, a emergência deste novo ator de segurança, as empresas militares de
segurança (uma forma única de negócio), desafia a premissa básica do estudo da segurança
internacional de que uma vez que estado possui o monopólio legítimo sobre o uso da força,
estes constituem a única unidade de análise relevante nas teorias sobre o sistema
internacional. Apesar de defender a necessidade de repensar o domínio da autoridade estatal
nestes estudos, para o autor a emergência das empresas de segurança privadas não quer dizer
que o estado está desaparecendo, pois o poder destas empresas é passível de ser usado tanto
a favor como contra o interesse dos estados. Assim, o que estaria acontecendo é antes que o
papel dos estados na esfera de segurança tornou-se desprivilegiado assim como aconteceu em
outras arenas internacionais como a do comércio e a das finanças (SINGER, 2003).
O livro Security Beyond the State – Private Security in the International Politics de Rita
Abrahamsen e Michael C. Williams (2011) é uma proposta de mudança de paradigma para
incorporar a análise de empresas de segurança privadas comerciais. Para os autores, estas
atuam legitimamente e muitas vezes de forma conjunta com o estado, podendo produzir um
fortalecimento deste em contextos que podem não estar associados exclusivamente ao militar.
Para eles a globalização da segurança é inseparável das transformações da governança
nacional e internacional que levaram a emergência de global security assemblages, i.e. novas
estruturas e praticas de segurança simultaneamente públicas e privadas, locais e globais. Os
autores argumentam que a privatização da segurança faz parte de um processo amplo que a
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autora Sackia Sassen caracterizou como parcial disassembly do estado e da concomitante
emergência de global assemblages que ligam as estruturas nacionais e globais e dão origem a
novas instituições e praticas de segurança que simultaneamente perpassam o nacional e o
global, o público e o privado. Portanto, um dos argumentos centrais do livro é que nestas
formações, as global security assemblages, o poder estatal é reconfigurado e não enfraquecido.
Assim, também são reconfiguradas as próprias distinções entre público e privado e local e
global. Estas reconfigurações dão origem a uma nova geografia de segurança que abriga
formas de manifestação de poder que não são passiveis de serem incluídas nas fronteiras de
um estado-nação. Em suma, a governança da segurança ocorre cada vez mais além do estado,
embebida em uma complexa arquitetura de segurança transnacional que é tanto um reflexo
quanto uma componente significativa das estruturas em deslocamento da governança global
(ABRAHAMSEN; WILLIAMS, 2011).
3. A governança das CMNs: para além da segurança e de regiões de soberania limitada
A autora Jana Hönke se baseia nas contribuições de como a interação entre as empresas de
segurança privada e os atores estatais nas global security assemblages afetam as relações
entre autoridade e poder para entender o que ela chama de regimes híbridos de práticas de
segurança. Não obstante, ela aponta para a limitação dos autores de não incluir em sua análise
a complexa rede de atores que estão envolvidos com o governo da segurança nos locais de
operação das CMNs como as ONGs e as agências doadoras (HÖNKE, 2013: Chapter 1,
Section 2). Pretendendo englobar estes atores em sua análise, e certamente indo além das
empresas de segurança privada, o livro de Hönke (2013) Transnational Companies and
Security Governance: Hybrid Practices in a Postcolonial World realiza uma análise sobre os
regimes híbridos de práticas de segurança que compõem a governança da segurança
transnacional no mundo pós-colonial. O estudo enfoca especificamente o continente africano e
regiões de soberania limitada (que não são exclusividade do sul global) onde, segundo a
autora, a visibilidade do fenômeno é maior, e baseia-se em uma análise de comparação
diacrônica entre companhias mineiras pós-1995 (na República Democrática do Congo e na
África do Sul) e entre 1890 e 1920 (nos então Congo Belga e União da África do Sul). O livro se
distancia de algumas abordagens, referenciadas anteriormente, que igualam governança com
boa governança e, com isso, incorpora questões de poder e exclusão no seu estudo sobre a
autoridade exercida pela corporação multinacional (HÖNKE, 2013: chapter 2, section 2).
De fato, Hönke propõem uma mudança de paradigma ao analisar a governança global a partir
de práticas locais, englobando tanto formas coercivas quanto formas mais brandas e indiretas
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de exercício do poder da corporação multinacional. Ambos os mecanismos são vistos como
métodos centrais para assegurar a governança da segurança liberal e compõem práticas
heterogêneas de segurança nos contextos de operações de CMNs que afetam de maneira
particular a segurança local e a ordem política. Neste sentido, em artigo de 2012, a autora
propõem entender as políticas comunitárias da corporação como um projeto de governo. Neste
projeto, há o emprego de padrões duplos e lógicas paralelas para assegurar a extração
comercial. O engajamento participativo da corporação não só coexiste, como opera em
concerto com técnicas poderosas de coerção e ordem indireta (HÖNKE, 2012: 58). Apesar de
ambos serem partes integrantes da lógica da governamentalidade liberal, a corporação hoje em
dia visa operar principalmente através de novas tecnologias de governo que visam diminuir o
uso da violência direta através da promoção do desenvolvimento e da participação (HÖNKE,
2012: 60). Além disso, a partir da opção metodológica de combinar abordagens de discurso e
prática, a autora reconhece o descompasso entre as políticas formais e aquilo que é
implementado no terreno onde há a circulação de uma variedade de racionalidades. Isso nos
leva a concluir que entre a racionalidade de governo da corporação multinacional e a sua
operacionalização no terreno há importantes diferenças geradas a partir do encontro e interação
entre uma série de racionalidades distintas: as corporativas, as do governo central, as do
governo local, as das populações atingida, etc.
Não obstante as contribuições valiosas de Hönke, principalmente através do reconhecimento de
que o papel das companhias na governança local é muito mais amplo do que é reconhecido
pela bibliografia acima apresentada, considera-se três limitações importantes que contribuem
para clarificar algumas das escolhas metodológicas e epistemológicas da presente pesquisa. A
primeira é a de que a análise da autora tem toda a sua argumentação enquadrada no âmbito de
regiões de soberania limitada ou estados em desenvolvimento que, devido principalmente a
qualidade questionável do seu desempenho institucional, abririam espaço para que as CMNs
exercessem ali uma atuação intensa no âmbito da governança da segurança. A segunda é a de
que, apesar dos esforços importantes de incorporar o nível de análise local e realizar uma
análise feita não só de cima para baixo (política e instituições formais), como também de baixo
para cima (a governança global nas práticas locais) através do estudo das práticas de
segurança cotidiana, a investigação deixa a desejar neste aspecto. As entrevistas da autora
não incluíram membros da população local/ atingidas pelas atividades da corporação (HÖNKE,
2013) e acredita-se que sem estas não é possível apresentar uma visão rigorosa sobre os
sistemas de significados em circulação no terreno de atividade da CMN. Por fim, a terceira diz
respeito a limitação que considerar apenas as práticas de segurança (mesmo vistas a partir de
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um largo escopo conceitual) acarreta. Hoje a atuação da CMN não está só constrangida pela
necessidade de gerar estabilidade para a execução da atividade produtiva da extração, mas
esta inexoravelmente envolvida em emaranhados complexos de questões sociais de amplo
espectro que não são passiveis de serem reduzidas apenas a questões de segurança.
4. Evidências empíricas da atuação de uma CMN mineira no Canadá, Brasil e
Moçambique
A escolha por trabalhar com evidencias da atuação de uma CMN mineira esta relacionada as
especificidades da economia política da mineração que é marcada por A. envolvimentos de
longo prazo com os estados hospedeiros devido aos grandes investimentos para
operacionalização dos projetos e B. uma atuação ativa por parte do empreendedor na área de
investimento social (compulsório ou voluntário) devido a perpetuação de inúmeros impactos
socioambientais relacionados a exploração. A entrada da CMN mineira é sempre fruto de
negociações extensas e/ou processos de licitação complexos nos quais o próprio ato de
participação implica em custos elevados para a companhia (INTERNATIONAL FINANCE
CORPORATION, 2013). Em geral, a qualidade dos relacionamentos desenvolvidos apresenta
uma variação importante - tanto entre os contextos quanto internamente a cada um deles - no
que toca ao relacionamento entre companhia, governo central e local e os diversos grupos de
populações atingidas.
Os dados empíricos apresentados são referentes ao envolvimento de uma mesma CMN em
arranjos de governança: a Vale S.A, uma mineradora brasileira que tem um reconhecimento
internacional, cada vez maior, como uma ‘multinacional dos conflitos’ (REVELLI, 2010). A Vale
atua nos cinco continentes e tem como sede o Brasil, um país de economia emergente, o que
caracteriza uma maneira de projeção internacional ainda relativamente muito recente no
sistema internacional (GOLDSTEIN, 2007). A perpetuação de múltiplas violências associadas
às suas atividades ao redor do mundo foi acentuada principalmente após a ocorrência de dois
processos marcantes: a privatização da empresa em 1997 durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso e a estratégia de internacionalização adotada pela Vale principalmente a
partir do início dos anos 2000 (COSTA, 2009; PILLONEL; SUTORIUS, 2005) da qual a entrada
em Moçambique foi um dos pilares centrais. Como parte fundamental deste último processo
está a compra de 75,66% do capital da Inco em 2006, uma empresa canadense que era na
altura a segunda maior produtora de níquel no mundo. Esta aquisição tornou a Vale a segunda
maior mineradora do mundo, atrás apenas da anglo-australiana BHP Billiton.
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Através do caso do Canadá, este trabalho incorpora o espaço que a CMN ocupa nos sistemas
de governança além das regiões de soberania limitada e dos estados em desenvolvimento. A
análise das atividades da Vale do Canadá pretende romper com a divisão presente na
bibliografia entre a atuação das CMNs em estados desenvolvidos, com plenas capacidades
institucionais, e estados em desenvolvimento e áreas de soberania limitada. Ainda, de maneira
mais indireta, ressalta-se as mudanças ocasionadas pela atuação cada vez mais presente de
CMNs provenientes de países emergentes (Vide. SAUVANT, 2015). As dinâmicas em voga no
mundo de hoje perpassam estas antigas barreiras e divisões através da atuação de CMNs de
países emergentes, como é o caso da Vale, exercendo governança em contextos de países
desenvolvidos, como é caso do Canadá. A segunda limitação ressaltada no trabalho de Hönke
aponta para a necessidade de conduzir uma investigação que incorpore verdadeiramente as
visões e racionalidades da população atingida. Para tal, são imprescindíveis a condução de
entrevistas com as populações. Apenas dessa forma é possível compreender a rede complexa
de governamentalidade existente em torno dos ambientes extrativistas e da CMN como
autoridade de governo. Dessa forma, a governança é aqui analisada a partir de práticas que
incorporam, mas transcendem, a dimensão da segurança abarcando intervenções em todo o
campo das práticas sociais e do governo da vida em sentido amplo. Por fim, é importante
lembrar que o reconhecimento da multiplicidade de agências e técnicas através das quais o
poder politico é hoje exercido aponta muitas vezes para um distanciamento analítico dos órgãos
formais do estado.
Canadá – Após a compra da Inco em 2006, a Vale realiza operações integradas de mineração,
moagem, fundição e refinaria para transformar o minério em níquel refinado na Província de
Ontário, na região da cidade de Sudbury. A região apresenta uma tradição muito bem
consolidada em relação às atividades de mineração que são ali realizadas desde 1885, mas
depois da entrada da Vale, a baixa no preço do níquel a nível mundial tem ocasionado uma
diminuição significativa das operações nas minas que têm sido sucessivamente colocadas em
estado de reparo e manutenção. Em 2011, os trabalhadores sindicalizados realizaram uma
greve de 11 meses na unidade de Sudbury contra as pressões da empresa para rebaixar
direitos de pensão e bônus conquistados ao longo dos anos (GARCIA, 2009).
Concomitantemente a este conflito com os trabalhadores mineiros, depois de anos do
desenvolvimento da mineração com muito pouco relacionamento formal entre companhia e
comunidades aborígenes, a tendência nos últimos anos tem sido a de fortalecimento destes
laços a partir da negociação de acordos nos moldes dos Impact and Benefit Agreements (IBAs).
Estes acordos são comuns na Austrália e no Canadá e geralmente incluem oportunidades de
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formação e trabalho nos negócios relacionados à mineração ao mesmo tempo que preveem a
participação das comunidades no gerenciamento e monitoramento ambiental da área
impactada (MILLS; SWEENEY, 2013; NRCAN, 2008). A comunidade aborígene Sagamok
Anishnawbek assinou no ano de 2012 o primeiro IBA negociado pelo time corporativo da Vale
no mundo. A mais recente mina da Vale na região, a Totten Mine, esta localizada dentro do
território tradicional do grupo, o que deu a eles este espaço de negociação com a companhia.
Ao contrario dos Relatórios de Impacto Ambiental que são idealizados como um tipo de
consulta pública dirigida pelo estado e pela legislação ambiental vigente, os IBAs fazem parte
do terreno da governança privada. Nas palavras de Philippe Le Billon e Guillaume Peterson St-
Laurent, “IBAs mostly constitute a private form of governance through which mining ventures are
supposedly secured through partnership between companies and communities” (ST-LAURENT;
BILLON, 2015: 6). Os autores entendem os IBAs como uma das tecnologias de governo a partir
da qual a governança privada é assegurada. A característica de negociação bilateral entre a
companhia e as comunidades é um passo essencial para o estabelecimento de uma relação
autônoma que, apesar de permeada por relações desiguais de poder, dão a ilusão de um
grande empoderamento dos aborígenes. Através destes acordos, a companhia tem um
caminho praticamente livre para a condução dos seus negócios através da garantia da tão
almejada licença social de operação (FIDLER; HITCH, 2007: 59). No caso do Canadá, a forte
institucionalização e regulação da atividade mineira e o grande espaço político de integração
significativa entre um movimento sindical robusto e a participação das comunidades
aborígenes, trazem novas variáveis para a análise dos arranjos de governança da CMN
associados à operação do complexo mineral. A existência de espaços de negociação como os
IBAs garantem um caminho direto de influencia da corporação na vida das comunidades e são
usados como um instrumento de contornos sofisticados de normalização da atividade mineira
na região. Este é um exemplo de um modo emergente de governança dos recursos naturais
baseado na promoção do deslocamento da concepção de comunidades atingidas para
comunidades parceiras que partilhariam integralmente dos benefícios das atividades de
mineração.
Moçambique – A região de Moatize, na Província de Tete, em Moçambique, atraiu
recentemente uma grande quantidade de investimento estrangeiro direto, devido as grandes
reservas de carvão mineral que abriga. No ano de 2004 a Vale foi a vencedora de uma licitação
internacional através da qual obteve concessão para o Projeto Carvão Moatize. A construção da
infraestrutura relacionada à exploração e à abertura das minas foi responsável por uma série
de deslocamentos populacionais a partir do ano de 2009. Dessa maneira, a Vale, devido à
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mineração em Moatize, reassentou as comunidades de Chipanga, Bagamoyo, Mithete e
Malabwe para as novas comunidades de Cateme e 25 de Setembro. O mecanismo de
governança central no caso dos reassentamentos foi a elaboração do Plano de Acção para o
Reassentamento (PAR) do Projeto Carvão Moatize (DIAGONAL URBANA, 2007). A
necessidade de elaboração do PAR faz parte do cumprimento da Diretriz do Banco Mundial
sobre reassentamentos involuntários OP.4.12 que é uma política de salvaguarda para
empreendimentos que resultem no deslocamento de mais de duzentas pessoas (Vide. WORLD
BANK, 2001). É consensual que na altura de elaboração do PAR havia uma ausência de
normas moçambicanas para a condução de reassentamentos no âmbito de megaprojetos.
Esse, evidentemente, foi um dos fatores que impactaram na qualidade desejável do PAR. No
entanto, o processo estava ao encargo de uma CMN que alega operar a partir de padrões
globais de conduta (o padrão de responsabilidade social da Vale) e das diretrizes do BM, o que
faz com que uma possível fraqueza institucional do estado hospedeiro não possa ser
justificativa para o encaminhamento problemático dos reassentamentos. Segundo um
entrevistado da indústria mineira de Moçambique, “a ausência de padrões locais não pode ser
justificativa para você não fazer bem, pois os padrões internacionais estão ai pra isso, não é?
Pra fechar as lacunas aonde os padrões locais não existem”1.
Apesar de as normas serem condicionantes de uma organização financeira internacional, a
elaboração e implementação do plano ficou ao encargo da Vale sempre condicionado a acordo
e negociação com o governo. Esse controle quase total por parte da Vale no âmbito da
execução de tarefas relacionadas ao PAR, foi o principal instrumento através do qual a CMN
passou a exercer governança nos arranjos da mineração e na vida das populações atingidas
em Moçambique. No âmbito do relacionamento com o estado hospedeiro, a Vale participou
ativamente na constituição do modelo de encaminhamento do PAR através de processos como
a composição de uma Comissão de Reassentamento e definição conjunta com o governo
moçambicano das diretrizes através das quais o plano deveria ser implementado (DIAGONAL
URBANA, 2007). Esta experiência serviu como um dos subsídios centrais para a elaboração da
legislação para reassentamentos atual de Moçambique que tem como principal instrumento
legislativo o decreto Regulamento sobre o Processo de Reassentamento Resultante de
atividades Económicas de 2012. Já no que toca a vida da população local, uma das dimensões
que dão maior margem ao governo da CMN no caso de reassentamentos é a responsabilidade
da empresa em restaurar o acesso aos serviços públicos nas zonas de reassentamento. A
1 Entrevista Pessoal, Anonimato Preservado: Membro da Indústria Mineira, Maputo, 28 de junho de 2016. 2Entrevista Pessoal, Anonimato Preservado: Reassentado de Cateme, Moatize, 6 de julho de 2016.
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recomposição da infra-estrutura básica (estradas, redes de água e energia), os equipamentos
sociais (educação e saúde) e o transporte na área anfitriã fizeram parte do plano de
atendimento social da companhia. Portanto, a construção de tais infraestruturas ficaria ao
encargo da CMN, enquanto a gestão das infraestruturas já instaladas, incluindo a sua
manutenção e provimento de recursos humanos, seria de responsabilidade do governo. Apesar
de os reassentamentos terem sido realizados entre 2009 e 2010, na prática o que se observa
até hoje é uma contínua dependência da Vale para assegurar o funcionamento de tais serviços
públicos.
A presença ativa da companhia no dia-a-dia das comunidades é sentida desde os poucos
projetos sociais desenvolvidos para mitigação de impactos como o projeto Fazenda Modelo -
que visa a capacitação dos trabalhadores rurais as novas condições de produção no
reassentamento - até em instituições como escolas, posto de saúde e a polícia. Sobre os
funcionários do posto policial de Cateme mantido até hoje pela Vale na comunidade, um dos
moradores alega: “olha a Vale trabalhou assim, sempre foi assim. Pagava polícias e formou
algumas pessoas que servem como agente de trabalho sendo segurança da Vale. Estão aqui, a
Vale montou estas pessoas. São paredes da Vale que controlam o reassentamento”2. Neste
contexto, apesar de as infra-estruturas construídas pela CMN serem de boa qualidade e
superiores às encontradas nas comunidades anteriores e, de forma geral, no meio rural
moçambicano, o contínuo envolvimento da companhia na dispendiosa manutenção dos
serviços caracteriza a manutenção de uma relação de subjugação das populações atingidas.
Em Moçambique, a componente internacional da exploração de recursos por uma empresa
multinacional estrangeira, somada à amplitude das repentinas mudanças na vida da população
de Tete, permitiu uma maior visibilidade do envolvimento da CMN nos arranjos de governança
local. Isso ocasionou a presença de uma contestação expressiva em relação a legitimidade da
companhia para a condução de tais tarefas a partir da exigência de mudanças na forma como a
conduta da CMN vem sido desenvolvida nesta região.
Brasil - A Vale atua em 13 estados do Brasil (Vale, 2013), e há inúmeros casos de conflitos
sociais relacionados com a empresa ao longo de todo o país (BOSSI et al., 2009). Na região de
Carajás, no Pará, a Vale tem uma já longa tradição de exploração de ferro e subjugação das
populações da região pela Vale principalmente ao longo do percurso da Estrada de Ferro de
Carajás. Atualmente, devido ao mais recente projeto da Vale de exploração mineral na região, o
Ferro Carajás SD11, está em curso a duplicação da Estrada de Ferro de Carajás que tem
gerado inúmeros problemas sociais que vão desde despejos, contaminação das águas, 2Entrevista Pessoal, Anonimato Preservado: Reassentado de Cateme, Moatize, 6 de julho de 2016.
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reassentamentos mal sucedidos, entre outros (FAUSTINO; FURTADO, 2013). Uma das
principais populações atingidas da região são os indígenas Gavião da TI Mãe Maria. De forma
geral, o dispositivo mais importante para compreender a forma de relacionamento entre a Vale
e o Povo Gavião ao longo destes anos é a existência de convênio firmados entre a mineradora
e os indígenas da região. Eles têm origem no inicio dos anos 80 e foram inicialmente uma
exigência do Banco Mundial para a concessão de empréstimos destinados a implementação do
Projeto Ferro Carajás. O estado de guerra em que estavam os Gaviões na década de 80 por
conta da sujeição e todas as pressões e influencias externas sobre eles exercida (FERRAZ,
1985), não é muito diferente do estado do grupo no início de 2015. Conflitos internos entre os
grupos indígenas decorrentes do controle sobre administração dos repasses financeiros
previstos nos convênios ocasionaram um processo de divisão intensa do grupo que agora se
encontra fragmentado em diversos aldeamentos. Além disso, conflitos com a companhia para a
negociação de renovação dos acordos também tem sido constantes, o que faz transparecer a
relação de governo da Vale sob aspectos fundamentais da vida indígena. Na opinião dos
índios, a dependência deles da assistência da Vale na área da saúde (mas não só) é total e a
companhia tem recorrentemente adotado ações no sentido de romper com a provisão destas
atividades de governo.
Pois é ai a saúde no começo como ela queria ser boazinha ela deu saúde boa. A Vale ela foi desmamando o índio, tirando de pouquinho. Hoje em dia a Vale ela não paga um canal, só arranca e faz chapa. Antigamente até implante ela fazia. Como ela viu que aumentou o número de doença ela foi tirando. É mesmo que tirar pito de uma boca de uma criança. (...) Falo do meu povo em geral, mas se dinheiro da Vale acabasse hoje tinha índio ai que ia pedir esmola, não sabe mais caçar, não sabe jogar um anzol na água, não tem coragem pra trabalhar. Mas quem acostumou? A Vale. A mamãe Vale. Ai a Vale fechou a torneira3.
O fato do/a indígena referir-se a Vale enquanto mamãe Vale é um forte simbolismo do
envolvimento totalitário da companhia em aspectos cruciais da vida dos índios e a total
dependência destes últimos das ações de cunho assistencialistas decorrentes do convênio.
Relata-se que quando o convênio foi suspenso temporariamente em 2015 (e posteriormente
retomado por decisão judicial), houveram índios que estavam passando fome nas aldeias,
comendo apenas farinha com água. Independente do desejo da Vale de se associar a estas
atividades de governo ou não, o fato é que em decorrência disso a companhia tem grande
controle sobre a vida dos índios, o que caracteriza processos de negociação com
desigualdades de tratamento e margens de manobra para a imposição de condicionantes que
3 Entrevista Pessoal, Anonimato Preservado: Indígena Gavião, TI Mãe Maria (Bom Jesus do Tocantins), 13 de janeiro de 2016.
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cerceiam a liberdade de livre expressão e manifestação dos indígenas. Portanto, não há dúvida
de que a Vale obtém benefícios com essa situação. O resultado é a criação de um governo
paralelo às regras constitucionais brasileiras nestas comunidades. E, nesse caso da TI Mãe
Maria, quem esta a frente desse governo é a Vale e não o estado brasileiro ou comunidades
indígenas autodeterminadas.
5. Conclusão
Com a retração do estado ocasionada pela politicas neoliberais de desregulamentação das
economias locais e a liberalização do comércio e do investimento, atores como as CMNs
passaram a ter um espaço cada vez maior não só para expandir suas operações a nível global -
a internacionalização da Vale é fruto deste processo - como também para assumir dimensões
de governo nos locais onde atuam (SAWYER; GOMEZ, 2012: 8). Este artigo procurou, a partir
de evidencias empíricas, refutar a visão de que em contextos onde o estado é incapaz de
promover arranjos institucionais básicos, as corporações possuem o expertise necessário não
só para ter uma boa conduta, como para influenciar positivamente a condução de aspectos
cruciais de governo. As evidências empíricas da atuação de uma CMN mineira brasileira em
três contextos institucionais distintos – Brasil (mineração de ferro), Canadá (mineração de
níquel) e Moçambique (mineração de carvão) – sugerem que, apesar de nuances em sua forma
de manifestação, o papel da CMN na governança local esta presente de forma intensa e, na
maior parte das vezes conflituosa, em todos os casos e independe do nível de institucionalidade
do país hospedeiro para emergir.
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