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RISO: A CARNAVALIZAÇÃO DA SOCIEDADE Tania Nunes Davi 1 Resumo: Esse artigo aponta o riso como um ato subversivo que questiona as ações das autoridades constituídas e da tradição cultural da sociedade. O riso é um excelente objeto de pesquisa e uma metodologia importante para ser utilizada em sala de aula para repensar as representações sociais das categorias dominantes. Palavras-chave: Riso, Representações, Cultura. Abstract: This article highlights laughter as a subversive act that questions the actions of the constituted authorities as well as the cultural tradition of society. Laughter is an excellent research object and an important methodology to be used in the classroom in order to rethink the social representations of the dominant categories. Key words: Laughter, Representations, Culture. As diversas manifestações do riso são uma excelente metodologia de aprendizagem e discussão para todo e qualquer tipo de disciplina, curso ou pesquisa. No entanto, o riso, como qualquer objeto de estudo, deve ser contextualizado historicamente para podermos perceber como cada sociedade, em cada tempo apreendeu, utilizou e produziu as diversas formas do riso, do cômico, do irônico. Só a partir de dados teóricos sobre as manifestações do riso podemos utilizá-lo de maneira eficiente e produtiva em aulas, pesquisas ou apenas para nos divertir, pois sem um mínimo de conhecimento sobre como o processamos, como a sociedade o teme e o utiliza deixamos passar informações e contextos importantes e perdemos parte da capacidade criativa e crítica do riso, seja em sala de aula, seja nas nossas relações pessoais ou profissionais. Como aponta Joaquim Ritter, o pesquisador deve procurar perceber o riso no contexto que opõe ordem e desvio, como a “conseqüente valorização do não-oficial e do não-sério, que abarcariam uma realidade mais essencial do que a limitada pelo sério”, isso porque o cômico e o riso são indispensáveis para a apreensão da realidade e o

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RISO: A CARNAVALIZAÇÃO DA SOCIEDADE

Tania Nunes Davi1

Resumo: Esse artigo aponta o riso como um ato subversivo que questiona as ações das

autoridades constituídas e da tradição cultural da sociedade. O riso é um excelente

objeto de pesquisa e uma metodologia importante para ser utilizada em sala de aula para

repensar as representações sociais das categorias dominantes.

Palavras-chave: Riso, Representações, Cultura.

Abstract: This article highlights laughter as a subversive act that questions the actions

of the constituted authorities as well as the cultural tradition of society. Laughter is an

excellent research object and an important methodology to be used in the classroom in

order to rethink the social representations of the dominant categories.

Key words: Laughter, Representations, Culture.

As diversas manifestações do riso são uma excelente metodologia de

aprendizagem e discussão para todo e qualquer tipo de disciplina, curso ou pesquisa. No

entanto, o riso, como qualquer objeto de estudo, deve ser contextualizado

historicamente para podermos perceber como cada sociedade, em cada tempo

apreendeu, utilizou e produziu as diversas formas do riso, do cômico, do irônico. Só a

partir de dados teóricos sobre as manifestações do riso podemos utilizá-lo de maneira

eficiente e produtiva em aulas, pesquisas ou apenas para nos divertir, pois sem um

mínimo de conhecimento sobre como o processamos, como a sociedade o teme e o

utiliza deixamos passar informações e contextos importantes e perdemos parte da

capacidade criativa e crítica do riso, seja em sala de aula, seja nas nossas relações

pessoais ou profissionais.

Como aponta Joaquim Ritter, o pesquisador deve procurar perceber o riso no

contexto que opõe ordem e desvio, como a “conseqüente valorização do não-oficial e do

não-sério, que abarcariam uma realidade mais essencial do que a limitada pelo sério”,

isso porque o cômico e o riso são indispensáveis para a apreensão da realidade e o

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conhecimento do mundo, pois o “nada ao qual o riso nos dá acesso encerra uma verdade

infinita e profunda, em oposição ao mundo racional e finito da ordem estabelecida.”

(ALBERTS, 1999, p. 12).

Para tanto, o pesquisador também não pode ficar restrito apenas a sua área de

atuação, deve procurar utilizar o pensamento desenvolvido por outras disciplinas, a fim

de produzir um conhecimento mais abrangente sobre o tema do riso, ou sobre qualquer

tema. Logo, a interdisciplinaridade é fundamental para podermos captar os diversos

aspectos do riso, do pensamento sobre ele e da sua importância no tempo e no espaço,

pois cada sociedade percepciona o risível de uma maneira diferenciada que lhe é

própria. O que era cômico na Idade Média pode não ser mais hoje, já que nossos signos

culturais são diferentes, nossa realidade é outra.

O riso é um ato social, criado e consumido de acordo com os signos produzidos

e compreendidos por cada grupo. É um ato subversivo, levando ao questionamento das

ações das autoridades constituídas e da tradição cultural da sociedade. Ele subverte,

inverte e questiona valores cristalizados, quebrando sua pretensa “seriedade” por meio

da ironia, da paródia, da comicidade, promovendo a carnavalização social.

Nossa proposta nesse artigo é mostrar um pouco do que lemos, pesquisamos e

descobrimos sobre o riso, sua produção, significados e ação na sociedade. Apontando o

riso, a charge e a comédia como valiosos instrumentos nas mãos de professores e

pesquisadores sociais, podendo ser explorados em diversos projetos pedagógicos em

qualquer faixa etária com a qual o professor trabalhe ou em pesquisas “sérias” sobre

qualquer período da cultura brasileira. Para tanto o professor e o pesquisador devem

conhecer melhor as manifestações do riso, seus conceitos e os teóricos que já se

debruçaram sobre o tema a fim de poder contextualizá-lo, utilizando-o em sala de aula e

em suas pesquisas de uma maneira mais complexa, não apenas como ilustração de

rodapé.

O riso e a cultura

Todas as manifestações produzidas pelo ser humano, sejam elas materiais,

biológicas ou imaginárias, são passíveis de estudo e de utilização por profissionais que

queiram desenvolver bons trabalhos, pesquisas ou aulas. Elas são “textos culturais”,

1 Professora da FUCAMP. Mestrado em História pela UFU. Contato: [email protected]

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representativos do “real”, a partir dos signos produzidos que “dialogam com a própria

História” (BAITELLO JR., 1997, p. 42), pois todo signo tem sua temporalidade.

Os textos culturais não são apenas “aquelas construções da linguagem verbal,

mas também imagens, mitos, rituais, jogos, gestos, cantos, ritmos, performances,

danças” (BAITELLO JR., 1997, p. 28), ou o objeto desse artigo – o riso, o humor na

vida cotidiana. Ao pesquisador desses textos cabe perceber os “nexos”, os “sentidos”

atribuídos a eles. Nexos encadeados, complexos, associados a outros signos,

constituindo o universo de sentidos simbólicos da sociedade. (BAITELLO JR., 1997, p.

37).

Para conseguir captar, percepcionar e compreender esse universo simbólico, o

pesquisador deve se munir de uma “ciência romântica”, levando em conta os aspectos

macrotemporais, os sonhos, o lúdico, o ócio, o riso em um sistema de observação que

perceba o homem para além do racional, do material, captando-o também como mítico,

espiritual, quimérico. Devemos perceber o ser humano como um todo, com um ser

holístico; ser no qual essas e outras instâncias estão interagindo e dialogando.

Um desses ramos de uma “ciência romântica” é a semiótica da cultura. Essa, ao

contrário do estruturalismo, procura pesquisar o signo, o texto cultural, não apenas pelo

seu conteúdo, mas também pela sua historicid7ade, percebendo como esses textos

dialogam entre si, numa intertextualidade cultural e temporal. O texto é a unidade

mínima da cultura, mas ainda assim, ele “se constrói no diálogo, na operação interativa

entre seus componentes subtextuais, no diálogo entre os signos e dos signos com o seu

próprio percurso histórico.” (BAITELLO JR., 1997, p. 42).

Assim sendo, o estudo do riso insere-se no contexto de percebê-lo como

manifestação, representação, signo cultural, com mecanismos ativadores,

intertextualidade e historicidade, as quais procuramos traçar a partir de um diálogo

interdisciplinar com vários pesquisadores que elegeram o riso como seu objeto de

reflexão.

Um desses pesquisadores deste assunto foi Sigmund Freud que em seu estudo

sobre o chiste, via-o como um processo social. O chiste é um dito espirituoso, uma

pilhéria dirigida sobre ou para alguém ou algum acontecimento. Para ele o chiste só

podia ser executado com o grupo que compreendia os códigos usados na sua produção.

O motivo de se produzir um chiste está em “conseguir prazer” na sua elaboração, pois

quem o produz tem consciência da inversão de sentidos dada às palavras, os quais

perdem o seu sentido literal e ganham um contorno simbólico compreendido pelo grupo

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ouvinte. Logo, o chiste só funciona no contexto, na sociabilidade, na decodificação dos

códigos, mesmo circulando anonimante e não sendo objeto de riso para quem o

produziu.

O rir é uma característica humana, “é um fenômeno de descarga da excitação

mental e uma prova de que o emprego psíquico dessa excitação tropeça repentinamente

contra um obstáculo.” (FREUD, 1977, p. 170). Quem ouve um chiste e compreende seu

significado, ri, libera energia. Essa liberação não deve ser excessiva, nem demandar um

trabalho intelectual complexo, pois “as alusões feitas em um chiste devem ser óbvias e

as omissões facilmente preenchíveis.” (FREUD, 1977, p. 174).

Todorov, por sua vez, trabalha o chiste a partir dessas discussões elaboradas por

Freud, mesmo não concordando com algumas delas. Só que Todorov, fazendo pesquisas

na área de Linguagem e também da História, vê o chiste sob a dimensão da linguagem.

Segundo ele, o chiste possui dois elementos constitutivos que permitem ao pesquisador

estudá-los como um texto cultural: a figuração e a simbolização. A figuração no chiste é

quando ele expressa uma contradição, levando “o ouvinte a recusar o sentido superficial

e a procurar um segundo sentido” - o simbólico. Esses dois sentidos “nunca se situam

no mesmo plano, mas que um se apresenta como um sentido dado e evidente, ao passo

que o outro, o sentido novo, se lhe sobrepõe para dominá-lo, uma vez terminada a

interpretação.” (TODOROV, 1980, p. 283).

Estudar o riso, assim como outras manifestações culturais do ser humano, nos

possibilita a oportunidade de perceber que o conhecimento e a produção humana devem

ser encarados como um todo complexo e não a partir de instâncias fragmentárias, as

quais só nos proporcionam uma visão parcial e monocromática da cultura humana.

Outro pesquisador voltado para este tema foi Bakhtin, historiador e lingüista

russo, um dos precursores da semiótica da cultura. Bakhtin fez um estudo muito rico

sobre a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, a partir da obra “Gargântua

e Pantagruel”, de Rabelais.

O russo procurou mostrar a importância do escritor e como ele fora pouco

estudado e compreendido pela academia. Isso ocorreu, em parte, porque os

pesquisadores não procuraram conhecer o contexto histórico-cultural no qual a obra foi

produzida e, muito menos, a sua importância para se perceber a transição entre a Idade

Média e o Renascimento, assim como a dinâmica da circularidade entre cultura popular

e erudita no período. Para o pesquisador a circularidade cultural entre as várias formas

de cultura é uma realidade, cada uma influenciou a outra, recebendo e trocando signos

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culturais em uma dinâmica constante e circular, na qual o signo é apropriado,

(re)elaborado e retorna a sua origem modificado.

Outro conceito utilizado pelo pesquisador é o de carnavalização. A

carnavalização acaba com as hierarquias, com as diferenças de classe social, criando

uma nova vida, livre de regras e restrições convencionais. Logo, o riso festivo,

carnavalesco é a forma de expressar essa libertação das normas, da ordem imposta pelo

mundo erudito, pelas instituições sociais como a Igreja e o Estado.

Nesse sentido, Rabelais constrói um diálogo entre a cultura popular e a erudita

por meio do realismo grotesco presente em seus personagens, principalmente a partir de

Gargântua e de Pantagruel, dois gigantes que subvertem o “alto” e o “baixo”, vivendo

aventuras cômicas e grotescas ao longo do livro. Neste impera o “princípio da vida

material e corporal: imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de

necessidades naturais, e da vida sexual” (BAKHTIN, 1987, p. 16), ou seja, o “baixo”

(os órgãos genitais, o ventre, o traseiro, o coito, a gravidez, a absorção de alimentos) se

sobrepõe ao “alto” (a cabeça, o pensar, o analisar), no que ele caracteriza como o

realismo grotesco.

Para o pesquisador o realismo grotesco é diferente das demais formas de

representação literária e artística por permitir o “riso popular que organiza todas as

[suas] formas (...), [e que] foi sempre ligado ao baixo material e corporal. O riso

degrada e materializa” (BAKHTIN, 1987, p. 18), tornando-se o centro das imagens

literárias, em construções que não primam apenas pelo valor destrutivo (como o cômico

do modernismo), mas também pelo valor positivo e regenerador levando ao

renascimento e à concepção de novas idéias e atitudes.

Bakhtin deixa bem claro que a tarefa dos pesquisadores de história, arte ou

literatura

consiste em recompor este cânon, em restabelecer seu sentido autêntico. É

inadmissível interpretá-lo segundo o ponto de vista das regras modernas e

nele ver apenas os aspectos que delas se afastam. O cânon grotesco deve ser

julgado dentro do seu próprio sistema. (BAKHTIN, 1987, p. 26).

Ou seja, o historiador, o teórico de literatura ou qualquer outro profissional deve

procurar contextualizar a obra pesquisada, procurando perceber quais eram as normas

estéticas e a realidade histórica e cultural do momento de sua produção e não tentar

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encaixá-la na estética contemporânea. É perceber o texto, o contexto e o intertextual

dentro de uma obra pesquisada.

Essa proposta para um estudo histórico da cultura popular e, conseqüentemente,

do riso, são respaldadas por Eli Flores. Segundo Flores, a “História tem muito de

pantagruélico e não pouco da ironia arrasadora do método faustaliano.” (FLORES,

1997, p. 29), pois a vida de um ser humano nada mais é do que uma tragicomédia, uma

sucessão de fatos risíveis, irônicos e ao mesmo tempo trágicos. Sua proposta de

qualquer estudo também passa “carnavalização” da intriga histórica, procurando ver o

“mundo histórico”, tão bem organizado e cristalizado em compartimentos estanques, de

cabeça para baixo, elegendo fontes de pesquisa “desprezadas”, mas que podem

promover uma visão mais abrangente dos acontecimentos sejam eles políticos, culturais,

econômicos ou sociais.

Para tanto é preciso que o pesquisador não sofra tanto, não se porte como o dono

do saber, mas procure rir de si mesmo, das situações e dos acontecimentos e eleger

fontes que possam lhe propiciar outros ângulos de visão. Fontes como paródias, cartuns

de jornal, piadas, chistes, ditados populares, sátiras políticas, mitos, lendas, cordel,

música, cinema, literatura; pois qualquer manifestação cultural é fonte de informações

sobre os homens que a produziram.

Utilizando-se da carnavalização, o pesquisador deve reivindicar, como o escritor

ironista, o “pressuposto de questionar tudo, isto é, o real, a idéia e a representação de

ambos” (FLORES, 1997, p. 31), destruindo mitos consolidados, desconstruindo

imaginários, visões de mundo e projetos de dominantes e dominados, procurando

perceber que cultura erudita e popular, não são opostos, mas sim instâncias articuladas

em uma circularidade permanente e constante em várias formas de manifestação

cultural.

O riso no cinema

O riso está presente em todas as esferas em que o homem atua: em várias de suas

manifestações culturais podemos depreender o humor, o irônico, o risível. A literatura, a

música, o cinema utilizam-se do humor para levar ao público assuntos “sérios”, de uma

forma “leve”, mas que nem por isso deixa de ser questionadora do estabelecido,

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incomodando ao abordar acontecimentos e situações desconcertantes, sejam elas

tradicionais, culturais, políticas ou econômicas.

Segundo Moliére, o homem ri “na proporção da gravidade com que enfrenta a

coisa” (apud FLORES, 1997, p. 32), por isso o humor é tão importante em tempos de

repressão política ou de depressão econômica. Alguns analisam esse crescimento do riso

em tempos de crise como um escapismo, mas a relação é muito mais complexa, pois o

indivíduo que recebe essas mensagens não as capta exatamente como gostariam os seus

produtores. As representações são (re)elaboradas e podem ser utilizadas de forma

subversiva, carnavalesca, invertendo as proposições dos criadores, deixando a

“autoridade, política e intelectual (...) no limbo entre o ridículo e o cadafalso.”

(FLORES, 1997, p. 32).

Nesse sentido, o cinema é uma das fontes documentais da qual podemos

depreender diversas representações do riso. E, mesmo as situações de riso nos filmes de

comédia sendo domadas, programadas e até previsíveis, os seus produtores não exercem

total domínio sobre como o espectador vai utilizá-las ou interpretá-las.

Ao longo do desenvolvimento da linguagem e da estética cinematográfica

percebeu-se o poder do riso e da comédia. Nomes como Charles Chaplin, O Gordo e o

Magro, os Irmãos Marx, Jerry Lewis, Mazzaropi, os Trapalhões tornaram-se famosos

graças ao riso e às diversas formas que deram a ele nas telas de cinema, por meio da

comédia. A comédia é um gênero cinematográfico como a ficção ou o terror, que tem

sua estética voltada para o fazer rir, para a representação de situações engraçadas,

esdrúxulas e carnavalescas. Mas o riso não é exclusivo apenas da comédia: qualquer

filme tem um momento ou um personagem que catalisa a tensão e faz o público rir, pois

percebeu-se que é importante um momento de descontração mesmo dentro do mais

“sério” dos filmes para que a platéia possa respirar e se preparar para o susto, o drama, o

choro. O elemento cômico pode fazer de um filme um grande sucesso ou um grande

fracasso se não for explorado de maneira correta, na hora precisa e na medida certa a

fim de proporcionar a catálise da dor, do horror, da realidade.

Ao longo da história do cinema foram diversas as películas nas quais riso

aparece de maneira jocosa, irônica, cômica, mas também existem filmes que procuraram

mostrar como o riso foi visto ao longo dos diversos períodos históricos. Um desses

filmes é O Nome da Rosa, do diretor Jean-Jacques Annaud, lançado em 1986.

Esse filme foi roteirizado a partir do livro de Umberto Eco, um dos maiores

expoentes da semiologia italiana atual. Basicamente O Nome da Rosa remete-nos ao

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riso como elemento de resistência e mostrar-nos como esse foi e é temido pelos poderes

instituídos. O riso é um prazer a ser cerceado, vigiado, dirigido, a fim de que a

sociedade não perceba o seu poder e passe a utilizá-lo livremente. Ele é encarado como

um elemento subversivo, desconstrutor e perigoso a ser controlado a qualquer preço,

mesmo que isso signifique matar ou morrer.

A personagem do Venerável Jorge caminha entre esses dois extremos. Para ele

as vidas de alguns monges nada significam frente a um livro com idéias revolucionárias

sobre o riso, nem mesmo a sua vida e da sua adorada biblioteca tem precedência sobre a

disciplina, sobre o temor e o respeito a Deus e a Igreja, pois o que será do mundo se

todos passarem a rir de qualquer motivo e de Deus? Para ele “só os tolos riem à toa”, o

“riso mata o temor” e monge nenhum deve rir, pois para isso “existem os bobos”, logo,

a sabedoria só existe na “tristeza”, na obediência cega as regras estabelecidas.

Por sua vez, o veneno aplicado nas páginas do suposto livro de Aristóteles, cuja

temática é o riso, matando quem o tocar é uma representação da importância da leitura.

Cada livro lido, cada filme assistido, cada pintura admirada, enriquecem nosso

manancial de cultura e nos permite decifrar outros textos culturais, pois nós somos

“envenenados” por todas as informações absorvidas. São essas informações sócio-

culturais que nos permitem perceber a intertextualidade em qualquer texto, sem elas não

podemos captar as “mensagens” nas entrelinhas.

Em um filme recheado de significados como O Nome da Rosa, podemos

perceber várias representações. Desde as óbvias, como a diferença dos projetos, visões

de mundo e modo de viver dos beneditinos e franciscanos, passando pelas implicações

da chegada do Inquisidor, até a revolta popular contra o arbítrio que salva a “Rosa” de

ser queimada como bruxa. Existem outras representações mais sutis, a serem decifradas,

como nos sugere Ginzburg, outro semiologista italiano. Ele vê no pesquisador um

detetive que parte à busca das pequenas “pistas”, dos “indícios” deixados ao longo da

História. (GINZBURG, 1989, p. 143-180).

Uma dessas representações refere-se ao nome do monge franciscano William de

Baskerville, um homem dedicado à ciência e a verdade. Seu nome nos remete aos livros

de detetives ingleses, nos quais o personagem principal, com sua fleuma, inteligência e

astúcia sempre consegue resolver os mistérios mais complicados. Em especial é uma

referência ao personagem Sherllock Holmes e ao livro “O cão dos Baskerville” de

Arthur Conan Doyle.

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Como se percebe, o filme é uma fonte rica em significados intertextuais, basta

sabermos depreendê-los das teias de representação tecidas pelo escritor e pelo diretor.

Essa é a tarefa do pesquisador, buscar perceber os significados, procurar retirar de sua

fonte, seja ela qual for, as representações que seus produtores fizeram a partir do seu

arcabouço sócio-cultural e temporal.

O cinema brasileiro, por sua vez, é rico em representações ligadas ao riso. Das

chanchadas da Atlântida as comédias atuais, tivemos e temos nomes como Oscarito,

Grande Otelo, Mazzaropi, Os Trapalhões, Casseta e Planeta e tantos outros que nos

fizeram rir de nós mesmos e da sociedade que nos cerca. O riso, a ironia, a comédia são

traços marcantes da personalidade do brasileiro que mesmo nos momentos mais difíceis,

nas situações mais complicadas faz piada e libera o seu lado carnavalesco.

Essa riqueza de representações fílmicas deve e pode ser utilizada pelo professor

em sala de aula a fim de mostrar ao aluno as possibilidades de resistência, suscitando

discussões e oportunidades de aquisição de novos conhecimentos sobre períodos

históricos, comportamentos ou acontecimentos estudados. Para tanto o professor deve

escolher bem o filme, se municiar de informações e planejar atividades a serem

desenvolvidas após a exibição do mesmo, de modo que o aluno possa retirar da película

as várias representações internas e externas nela contidas e discutir em sala como as

várias faces do riso podem levar a questionamentos “sérios” sobre a sociedade e a

realidade cotidiana do brasileiro.

Um filme atual que pode nos mostrar uma das faces do riso é Sábado, de Ugo

Giorgette, lançado em 1994. O filme promove uma crítica irônica sobre a sociedade

paulistana por meio de seus personagens e dos acontecimentos vividos num prédio em

um sábado qualquer. O enredo gira em torno de uma equipe de publicitários que escolhe

um velho e decadente prédio no centro de São Paulo para rodar um comercial de

perfume. A chegada dos publicitários transtorna a vida de alguns moradores que se

vêem impossibilitados de acessar um dos elevadores utilizado para a filmagem enquanto

o outro entra em pane. Dentro do elevador estragado encontram-se presos um defunto

(posteriormente o público fica sabendo ser um nazista), dois funcionários do IML (um

gago e um “maluco”), um homem gordo que estava de passagem indo para um

churrasco e ajudou a colocar o morto no elevador, e uma das produtoras do comercial

(Magda).

Por meio da metáfora das pessoas presas no elevador, o cineasta constrói uma

representação da diversidade social da capital paulista, confinando num espaço

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minúsculo um grupo de excluídos e uma “patricinha” da sociedade. Esse pequeno

espaço nos mostra os membros das diversas categorias sociais, numa diversidade

imensa de visões de mundos, projetos, desejos e necessidades. Diversidade quase

irreconciliável, unida em uma situação única, trágica, caótica e extremamente cômica.

Um cômico que incomoda, pois não sabemos se devemos rir das situações

surrealistas apresentadas pelo cineasta, como a cena em que um membro da equipe de

filmagem joga alimento para os moradores do prédio, como se esses fossem apenas cães

implorando por comida, ou se devemos pensá-las apenas na dimensão trágica da

representação da realidade sócio-cultural excludente do Brasil.

Sábado é uma oportunidade de percebermos como o riso nos perturba,

incomodando nossas estruturas de pensar e ver o mundo, abrindo brechas para

percebermos que existe “vida” para além dos “mundinhos” fechados de nossas

preocupações, necessidades e interesses. O riso subverte e faz pensar, o que é

indispensável a um pesquisador se ele quiser começar a questionar a realidade

apresentada como pronta e acabada, seja nos seus documentos ou nas situações da vida

cotidiana.

Se Sábado incomoda, o filme O auto da compadecida, do diretor Guel Arraes,

lançado em 2000, nos diverte de uma outra forma. O filme foi produzido originalmente

para a televisão e, devido ao seu sucesso, lançado numa versão para o Cinema. Baseado

na obra de Ariano Suassuna, faz uma crítica contundente à sociedade brasileira, seus

costumes e instituições, a partir da história de dois amigos nordestinos pobres (Grilo e

Chico) que tentam sobreviver usando de muita malandragem e inteligência, sempre

encontrando um “jeitinho” de sair das situações mais difíceis.

A crítica feita à sociedade é expressa por meio de situações irônicas, nas quais

podemos perceber os interesses materiais que dirigem os atos dos eclesiásticos (um

padre e um bispo), concordando até em enterrar uma cachorra em latim em troca de uns

trocados, ou nas ações adúlteras da esposa do padeiro, enquanto esse se faz de machão,

ou na pretensa valentia do guarda e do “valentão da cidade”, que temem

exageradamente morrer num duelo arquitetado por João Grilo. Até mesmo a inteligência

do Coronel Antônio Morais não é páreo para as artimanhas de Grilo e Chicó, que

acabam enganando-o e promovendo o casamento de Rosinha com Chicó, mesmo esse

não tendo “onde cair morto” e sendo um covarde.

Os temas de crítica são tratados com muito humor, com falas que lembram a

literatura de cordel, levando o espectador a rasgos de riso frente as situações vividas

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pelos dois amigos. Um dos temas recorrentes do filme é a morte, mostrada de forma

jocosa como na doença e no “passamento” da cachorra da mulher do padeiro. À

cachorra era dado um tratamento muito melhor que a João Grilo e Chicó, e sua dona

queria vê-la enterrada em latim como uma cristã. Outra cena que remete ao tema da

morte, com muito humor, é quando João Grilo, após enrolar e levar à morte até um

cangaceiro temido, morre e vai parar em uma Igreja no céu, na qual os personagens

mortos (os padres, o padeiro e a esposa e o cangaceiro) encontram-se aguardando o seu

destino. O Diabo logo quer levá-los para o inferno, mas João Grilo pede um julgamento,

pois todo vivente tem esse direito. Nesse momento a crítica de Suassuna e Arraes se

torna mais vivida, quando surge um Cristo negro presidindo o julgamento. Quando tudo

parece perdido, João Grilo pede socorro a “Compadecida” - Nossa Senhora. Ela vai

mostrando como cada um dos mortos se redimiu de suas más ações terrenas antes de

morrer e, portanto, mereciam misericórdia por isso. No final, João Grilo é devolvido à

terra com uma segunda chance de vida e os outros mortos vão para o purgatório.

O auto da compadecida é mais um filme no qual podemos perceber o uso do

humor como forma eloqüente de promover uma crítica às instituições, preconceitos,

costumes e tradições de qualquer sociedade. A partir do humor, o autor e o diretor nos

levam a questionamentos que passam pelo comportamento dos eclesiásticos e dos casais

até normas de conduta tradicionais, como a valentia, a traição, o status social, o

preconceito racial e social. Questionamentos fundamentais para percebamos como se

estabelecem as relações sócio-culturais entre as diversas categorias sociais, sejam no

Nordeste ou no restante do país.

Como já apontamos anteriormente, qualquer forma de produção cultural humana

pode conter elementos de riso. Neste artigo utilizamos exemplos do cinema para

mostrar como podemos pesquisar o riso como representação da sociedade. Poderíamos

ter utilizado a literatura, as festas populares, os mitos, os contos, as telenovelas, os

programas de humor na televisão como forma de mostrar o riso como um instrumento

muito forte para se fazer pensar, para desconstruir determinados mecanismos, mitos e

situações aparentemente estáveis, mas que com uma piada, uma caricatura, uma risada

são destronados e ameaçados em seus princípios e paradigmas. Daí a importância de se

perceber como o riso se processa no contexto da sua historicidade, como decodificamos

seus signos, sejam eles simples ou complexamente construídos.

O homem ri e faz rir não só do outro mas também de si mesmo, das suas

deficiências, seus fracassos, suas tragédias. Independente de qual tipo de riso se

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pratique, o que importa é a atitude daquele que ri, em oposição aos acontecimentos

dolorosos que o levam ao riso. O brasileiro sabe, como em nenhuma outra cultura do

mundo, fazer uso do riso tragicômico como forma de representar uma realidade “mais

real” do que a própria realidade dos fatos apreendidos.

É corrente se ouvir dizer que o Brasil não é um país sério pois o brasileiro não

leva nenhum acontecimento a sério, fazemos piada de qualquer tragédia, por pior que

ela seja. Essa atitude do brasileiro não é um indicativo de despreocupação com a

realidade, nem de alienação é sim uma atitude frente a vida, uma forma de apreender e

representar a realidade. Se é uma atitude diferente, se é melhor ou pior do que a de

outros povos, não sabemos, mas é muito melhor saber rir de uma situação complicada

do que desesperar-se.

Essa forma de o brasileiro perceber o mundo deve e pode ser utilizada em sala

de aula para que o aluno perceba outros prismas das questões estudadas, captando o

humor como uma forma de resistência social que não parte da violência, mas da

subversão dos valores e da inversão da posição social do personagem caricaturizado nas

charges, nas piadas, nas tirinhas de jornal, nos chistes. Utilizar-se de uma metodologia

do riso nas salas de aula ou nas pesquisas pode nos levar a outras percepções do

universo e nos fazer repensar períodos históricos ou acontecimentos inscritos como

trágicos, repressivos ou ditatoriais.

Por essas e outras razões, devemos levar o estudo do riso “muito a sério”, mas

sem a sisudez do Venerável Jorge. Levar o riso a sério é percebê-lo como manifestação,

como texto cultural importante para se processar uma análise do “real”, dos indivíduos

que viveram qualquer acontecimento pesquisado ou utilizado em sala de aula. Para tanto

nada como usar de muita “malemolência”, de muita “ginga”, de muito “jeitinho”, como

é típico do brasileiro.

Referências bibliográficas:

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riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Zahar/FGV, 1999.

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1980. p. 277-287.

Filmes:

O AUTO DA COMPADECIDA. ARRAES. Guel. Rio de Janeiro: Columbia Tri-Star,

2000. (104min), color., 35mm.

O NOME DA ROSA. ANNAUD. Jean-Jacques. Alemanha: Warner Bros, 1986. (131

min), color., 35mm.

SÁBADO. GIORGETTI, Ugo. São Paulo: Iguana Filmes, 1994. (85min), color., 35mm.