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    SUMRIO 1 - Travesseiro e a Chave 2 - Quando um Fio de Cabelo Fica Dourado 3 - O Caminho de Cinzas, Descida e Dor 4 - A Fome de um Rei num Tempo sem Pai 5 - O Encontro com a Mulher-Deus no Jardim 6 - Trazer os Guerreiros Interiores de Volta Vida 7 - Montar os Cavalos Vermelho, Branco e Preto 8 - A Ferida Feita pelos Homens do Rei Eplogo O Homem Natural na Religio Antiga, na Literatura e na Vida Popular A Histria de Joo de Ferro Apndice

    PREFCIO Vivemos hoje um momento importante e frutfero, pois evidente que as imagens da masculinidade adulta, proporcionadas pela cultura po-pular, esto desgastadas, e no podemos mais confiar nelas. O ho-mem, ao chegar aos 35 anos, sabe que as imagens de adequao, dureza e veracidade masculinas, recebidas na escola secundria, j no funcionam na vida. Ele est aberto s novas vises do que o ho-mem , ou podia ser. Os contos de fadas passaram, como a gua sob quinze metros de cho, atravs de geraes de homens e mulheres, e podemos confiar mais em suas imagens do que nas inventadas, digamos, por Hans Christian Andersen. As imagens das velhas histrias o roubo da chave sob o travesseiro da me, o recolhimento de uma pena doura-da cada do peito chamejante do Pssaro de Fogo, o encontro do Homem Natural sob a gua do lago, o acompanhamento das marcas deixadas pelo ferimento na floresta e a descoberta de que elas se as-semelham s pegadas de um deus destinam-se a ser assimiladas lentamente pelo corpo. Continuam a desdobrar-se, depois de assimi-ladas. nos velhos mitos que tomamos conhecimento, por exemplo, da e-nergia de Zeus, dessa energia de liderana positiva que a cultura po-pular declara, constantemente, que no existe; com o rei Artur apren-demos o valor do mentor masculino para a vida dos jovens. Ouvimos,

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    na histria de Joo de Ferro, a importncia da passagem do reino da me para o reino do pai; e por todas as histrias de iniciao ficamos sabendo como essencial abandonar todas as expectativas de nos-sos pais, e encontrar um segundo pai, ou "segundo Rei". H uma iniciao masculina, uma iniciao feminina e uma iniciao humana. Falamos, neste livro, apenas da iniciao masculina. Que-remos deixar claro que o livro no busca colocar os homens contra as mulheres, nem fazer com que voltem ao estado de esprito dominador que durante sculos levou represso delas e dos seus valores. A idia deste livro no constitui um desafio aos movimentos feministas. Os dois movimentos relacionam-se mutuamente, mas cada um deles se move numa cronologia diferente. O sofrimento do homem vem aumentando constantemente desde o comeo da Revoluo Industri-al e atingiu agora uma profundidade que no pode ser ignorada. O lado sombrio do homem evidente. A explorao descontrolada dos recursos da terra, a desvalorizao e humilhao da mulher, e a obsesso com a guerra tribal, so inegveis. A herana gentica con-tribui para essas obsesses, mas tambm a cultura e o ambiente. Temos mitologias deficientes que ignoram a profundidade do senti-mento masculino, atribuem ao homem um lugar no cu e no na ter-ra, ensinam a obedincia s foras estranhas, se empenham em fa-zer com que os homens continuem meninos, e os envolvem, bem como s mulheres, em sistemas de dominao industrial que excluem tanto o matriarcado quanto o patriarcado. Este livro fala principalmente aos homens heterossexuais, mas no exclui os homossexuais. A palavra homossexual s comeou a ser usada a partir do sculo XVIII; antes disso, os homens gay eram con-siderados simplesmente como uma parte da grande comunidade masculina. A mitologia, tal como a vejo, no estabelece grande distin-o entre homens homossexuais e heterossexuais. Falo do Homem Natural neste livro, e em todo ele a distino entre o selvagem e o Homem Natural crucial. O estado selvagem provoca grande dano alma, terra e humanidade; podemos dizer que, embora ferido, o selvagem prefere no examinar o ferimento. O Ho-mem Natural, que examinou sua ferida, assemelha-se mais a um sa-cerdote Zen, ou xam, ou um silvcola, do que a um selvagem. Saber como fazer um ninho numa rvore sem folhas, como voar para um lugar onde passar o inverno, como realizar a dana do acasala-mento todas essas informaes esto armazenadas em reservat-rios do crebro instintivo do pssaro. Os seres humanos, porm, sen-

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    tindo toda a flexibilidade de que poderiam precisar para enfrentar si-tuaes novas, resolveram armazenar esse conhecimento fora do sis-tema dos instintos: guardaram-no nas histrias. As histrias, portanto contos de fadas, lendas, mitos, folclore equivalem a um reserva-trio onde guardamos as novas maneiras de reagir, que podemos adotar quando as maneiras convencionais e habituais se desgastam. Alguns dos grandes estudiosos desse reservatrio nos ltimos scu-los foram George Groddeck, Gurdjieff, Carl Jung, Heinrich Zimmer, Joseph Campbell e Georges Dumzil. Meu primeiro mestre no conhe-cimento do conto de fadas foi Marie-Louise von Franz, e procurei ser to fiel s histrias masculinas quanto ela o foi para as femininas, em seus muitos livros. Este livro recorre a toda uma comunidade de homens, muitos dos quais trabalhavam nesse campo bem antes que eu nele entrasse. En-tre eles destacam-se Alexander Mitscherlich, o analista alemo morto em 1981, e tambm muitos bons pensadores em ingls. Tenho pro-funda dvida para com os homens com os quais prazerosamente le-cionei nos ltimos oito anos Michael Meade, James Hillman, Terry Dobson, Robert Moore e John Stokes, entre muitos outros. Agradeo a Keith Thompson por seu interesse pelo material masculino; o pri-meiro captulo reescreve uma entrevista que tive com ele. E agradeo ao meu editor, William Patrick, por seu entusiasmo e percepo. Agradeo tambm aos muitos homens que confiaram em mim o bas-tante para me ouvir, e me honraram com as suas prprias histrias, ou simplesmente cantaram, danaram ou choraram para mim. Embo-ra neste livro eu delineie uma trilha iniciatria em oito estgios, outros homens podem ver uma ordem diferente nesses estgios ou estgios totalmente diferentes. A trilha faz-se caminhando. Antnio Machado disse: Caminhante, no h estradas, apenas trilhas do vento sobre o mar.

    Robert Bly

    Captulo 1 O TRAVESSEIRO E A CHAVE

    Fala-se muito do "Homem americano", como se houvesse uma quali-dade constante que permanecesse estvel no decorrer das dcadas, ou mesmo de uma dcada.

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    Os homens que vivem hoje distanciaram-se do agricultor saturnino, com mentalidade de velho, orgulhoso de sua introverso, que chegou Nova Inglaterra em 1630, disposto a assistir a trs servios conse-cutivos numa igreja sem aquecimento. No sul, desenvolveu-se um cavaleiro expansivo, ligado me, e nenhum desses dois "homens americanos" assemelhava-se ao ambicioso empreiteiro ferrovirio que surgiu mais tarde no nordeste, nem aos temerrios colonizadores do oeste, dispostos a prescindir de uma cultura. Mesmo em nossa era, o modelo aceito modificou-se dramaticamente. Na dcada de 1950, por exemplo, surgiu um carter americano dota-do de certa consistncia, que se tornou um modelo de masculinidade aceito por muitos homens: o macho dos anos 50. Ele comeava a trabalhar cedo, revelava-se responsvel, sustentava mulher e filhos e admirava a disciplina. Reagan uma espcie de verso mumificada desse tipo persistente. Era um homem que no via com bons olhos a alma da mulheres, mas apreciava os seus cor-pos; e sua opinio sobre a cultura, e o papel da Amrica nessa cultu-ra, era juvenil e otimista. Muitas de suas qualidades eram firmes e positivas, mas sob o encanto e o blefe havia, e continua havendo, muito isolamento, privao e passividade. E ele s tem certeza de que est vivo se tiver um inimigo. Na dcada de 1950 supunha-se que o homem devia gostar de fute-bol, ser agressivo, defender os Estados Unidos, no chorar nunca e sempre sustentar a famlia. Faltava, porm, o espao receptivo, ou espao ntimo, a essa imagem de homem. Faltava sua personalida-de certo sentido de fluxo. psique faltava compaixo, de uma manei-ra que estimulava a continuao desequilibrada da guerra do Vietn, tal como, mais tarde, a falta do que poderamos chamar de um "jar-dim" na cabea de Reagan levou sua indiferena e brutalidade para com os indefesos de El Salvador, para com os velhos dos Estados Unidos, os desempregados, os colegiais e os pobres em geral. O homem da dcada de 1950 tinha uma viso clara do que devia ser e das responsabilidades masculinas, mas o isolamento e a unilatera-lidade dessa viso eram perigosos. Durante a dcada de 1960 surgiu um outro tipo de homem. O des-perdcio e a violncia da guerra do Vietn fizeram os homens questi-onar se realmente sabiam o que era um adulto. Se masculinidade significava o Vietn, queriam eles participar dela? Enquanto isso, o movimento feminista estimulava a que olhassem realmente para as mulheres, forando-os a se conscientizarem das preocupaes e so-

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    frimentos que o homem da dcada de 1950 procurou evitar. Quando os homens se puseram a examinar a histria e a sensibilidade das mulheres, alguns deles comearam a perceber o que foi chamado de seu lado feminino, e a atentar para ele. Esse processo continua at hoje, e eu diria que, de certa forma, a maior parte dos homens con-temporneos participam dele. H algo de maravilhoso nessa evoluo ou seja, na prtica de ho-mens vendo com simpatia a sua prpria conscincia "feminina" e ali-mentando-a isso importante e, no obstante, tenho a sensa-o de que h alguma coisa de errado nisso. O homem, nos ltimos 20 anos, tornou-se mais ponderado, mais suave. Esse processo, po-rm, no o tornou mais livre. Ele um bom menino, que agrada no s a sua me, mas tambm a jovem com quem vive. Na dcada de 1970 comecei a ver, por todo o pas, um fenmeno que poderamos chamar do "macho frouxo". Mesmo hoje, quando por ve-zes olho para um auditrio, talvez metade dos homens jovens sejam o que eu chamaria de frouxos. So adorveis, tm valor gosto de-les no pensam em causar danos terra ou em iniciar novas guer-ras. H em todo o seu modo de ser e estilo de viver uma atitude sua-ve para com a vida. Muitos desses homens, porm, no se sentem felizes. Percebe-se imediatamente a falta de energia neles. Preservam a vida, mas no so exatamente criadores de vida. Ironicamente, so vistos, com fre-qncia com mulheres fortes, que positivamente irradiam energia. Temos a um jovem bem preparado, ecologicamente superior ao seu pai, que v com simpatia toda a harmonia do universo, mas que tem, ele prprio, pouca vitalidade a oferecer. As mulheres fortes, ou criadoras de vida, que se formaram na dcada de 1960, por assim dizer, ou que herdaram um esprito mais velho, desempenharam um papel importante na produo desse homem que preserva a vida, mas no a cria. Lembro-me de uma frase de pra-choque, vista na dcada de 1960: "AS MULHERES DIZEM SIM AOS HOMENS QUE DIZEM NO". Re-conhecemos que foi necessria muita coragem para resistir ao recru-tamento e ir para a cadeia, ou mudar para o Canad, tal como foi ne-cessria coragem para aceitar o recrutamento e ir para o Vietn. Mas as mulheres de h vinte anos estavam dizendo claramente que prefe-riam o mais suave homem receptivo.

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    A evoluo dos homens foi um pouco afetada por essa preferncia. A masculinidade no-receptiva era equiparada violncia, sendo re-compensada a masculinidade receptiva. Algumas mulheres enrgicas, naquela poca e hoje, na dcada de 1990, escolheram e ainda escolhem homens suaves como amantes, e de certa maneira, talvez, como filhos. A nova distribuio de energia "yang" entre os casais aconteceu por acaso. Por vrias razes, os homens jovens queriam as suas mulheres mais duras, e as mulheres comeam a desejar homens mais brandos. Durante algum tempo es-sa combinao pareceu funcionar bem, mas agora j foi experimen-tada por tempo suficiente para se ver que no d certo. Tomei conhecimento da angstia dos homens "afveis" quando con-taram suas histrias nas primeiras reunies masculinas. Em 1980 a Comunidade Lama, no Novo Mxico, convidou-me a proferir um curso de conferncias exclusivamente para homens, o primeiro que realiza-vam, com cerca de 40 participantes. Concentravamo-nos, a cada dia, num deus grego e numa histria antiga, e depois, tarde, nos reun-amos para conversar. Quando os homens mais jovens falavam, no era raro comearem a chorar em cinco minutos. O volume de sofri-mento e angstia nesses jovens pareceu-me espantoso. Parte do seu sofrimento vinha da distncia em relao aos pais, que sentiam agudamente; mas em parte, tambm, o sofrimento vinha dos problemas em seus casamentos, ou relacionamentos. Tinham apren-dido a ser receptivos, mas a receptividade no era bastante para sus-tentar seus casamentos durante fases de perturbaes. Em todo rela-cionamento necessria, de vez em quando, alguma impiedade: tan-to o homem como a mulher precisam disso. Mas no momento em que era necessria, com freqncia o jovem fi-cava aqum da necessidade. Ele era cuidadoso, mas alguma coisa mais se fazia importante para seu relacionamento e para sua vida. O homem "mole" era capaz de dizer: "Posso sentir a sua dor, e con-sidero sua vida to importante quanto a minha, e tomarei conta de voc, e a consolarei." Mas no podia dizer o que queria, e insistir nis-so. Essa forma de resoluo era uma outra coisa. Na Odissia, Hermes diz a Ulisses que, quando se aproximar de Cir-ce, que representa certo tipo de energia matriarcal, deve erguer ou mostrar a espada. Nessas primeiras reunies, era difcil, para muitos dos mais jovens, distinguir entre mostrar a espada e ferir algum. Um certo homem, que era uma espcie de encarnao de certas atitudes espirituais da dcada de 1960, um homem que tinha na realidade vi-

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    vido numa rvore durante um ano, nas proximidades de Santa Cruz, era incapaz de levantar o brao quando segurava uma espada. Tinha aprendido to bem a no ferir os outros que no podia levantar a ar-ma, nem mesmo para que refletisse a luz do sol. Mas mostrar uma espada no significa, necessariamente, lutar. Pode tambm sugerir um alegre esprito de deciso. A viagem que muitos americanos tm de fazer para a brandura, ou receptividade, ou "desenvolvimento do lado feminino", foi imen-samente valiosa, mas no terminou. Nenhum estgio o ponto final. O ENCONTRO DE JOO DE FERRO Um dos contos de fadas que falam de uma terceira possibilidade para os homens, um terceiro modo, uma histria chamada "Joo de Fer-ro". Embora tivesse sido recolhido pelos irmos Grimm por volta de 1820, esse conto pode ter 10 ou 20 mil anos. Quando a histria comea, ficamos sabendo que alguma coisa estra-nha vem acontecendo numa rea distante da floresta, prximo ao castelo do rei. Se os caadores entram nessa rea, desaparecem e nunca mais voltam. Vinte outros vo atrs do primeiro grupo e no voltam. Com o tempo, as pessoas comeam a ter a sensao de que h alguma coisa estranha naquela parte da floresta, e "no vo mais ali". Um dia, um caador desconhecido apresenta-se no castelo e diz: "O que posso fazer? H alguma coisa perigosa por aqui?" O rei responde: "Bem, eu poderia indicar a floresta, mas h um pro-blema. As pessoas que vo at l no voltam. A taxa do retorno no boa." " o que eu gosto", diz o jovem. Entra na floresta e, o que Interes-sante, entra sozinho, levando apenas seu cachorro. O jovem e o ca-chorro andam pela floresta e passam por um poo. De repente, uma mo ergue-se da gua, agarra o cachorro e o arrasta para baixo. O jovem no fica histrico. Diz simplesmente: "Deve ser aqui." Embora goste do cachorro e relute em abandon-lo, o jovem regressa ao castelo, rene mais trs homens com baldes, e volta ao poo para esgot-lo da gua. Quem j tiver tentado fazer isso, sabe logo que esse trabalho muito lento.

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    No devido momento, o que encontram no fundo do poo um homem grande, coberto de plos da cabea aos ps. O cabelo avermelha-do parece como ferro enferrujado. Levam-no para o castelo e o prendem. O rei o coloca numa jaula de ferro no ptio, chama-o de "Joo de Ferro", e confia a guarda da chave rainha. Vamos parar a histria nesse ponto, por um momento. Quando o homem contemporneo examina a sua psique, pode, se as condies forem propcias, encontrar sob a gua da sua alma, jazen-do numa rea que ningum visitou por longo tempo, um antigo ho-mem peludo. Os sistemas mitolgicos associam o cabelo ao instintivo, ao sexual e ao primitivo. Estou sugerindo, portanto, que todo homem moderno tem, no fundo de sua psique, um grande ser primitivo, coberto de p-los da cabea aos ps. Fazer contato com esse Homem Natural o que ainda resta ao homem da dcada de 1980 ou 1990. Em nossa cultura contempornea, esse processo de esvaziamento do poo ain-da est por comear. Como a histria sugere de forma muito delicada, em relao a esse homem peludo h alguma coisa mais do que um certo medo, como acontece em relao a todas as mudanas. Quando o homem come-a a desenvolver o seu lado receptivo e supera sua volubilidade, ele em geral considera a experincia maravilhosa. Comea a escrever poesia, sair ao ar livre e sentar-se beira do mar, ele j no precisa ser sempre o mximo em sexo, torna-se emptico um mundo novo, cantante, surpreendente. Mas descer pela gua para entrar em contato com o Homem Natural, l no fundo, uma outra coisa. O homem que ali se ergue assusta-dor, e parece ainda mais assustador agora, quando as grandes em-presas tanto se empenham em produzir o homem sanitizado, depila-do, raso. Quando um homem aceita bem a sua sensibilidade, ou o que j foi, por vezes, chamado de a mulher que tem dentro de si, ele com freqncia se sente mais entusiasmado, mais companheiro, mais vivo. Mas quando se aproxima do que chamarei de "homem profun-do", sente o risco. Receber bem o Homem Cabeludo assustador e arriscado, e exige um tipo diferente de coragem. O contato com Joo de Ferro exige a disposio de descer at a psique masculina e acei-tar o que de sombrio existe nela, inclusive as trevas nutritivas. H geraes que a comunidade industrial vem advertindo os homens de negcios jovens para que se mantenham longe de Joo de Ferro,

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    e a Igreja Catlica tambm no gosta muito dele. Freud, Jung e Wilhelm Reich so trs investigadores que tiveram a coragem de descer ao poo e aceitar o que encontraram ali. O traba-lho do homem contemporneo segui-los nessa descida. Alguns homens j fizeram esse trabalho, e o Homem Cabeludo foi, em suas psiques, retirado do fundo do poo, vivendo agora no ptio. "No ptio" sugere que o indivduo ou a cultura o trouxeram para um lugar ensolarado onde todos o podem ver. Isso constitui um progres-so em relao a se manter o Homem Cabeludo no poro, onde mui-tos elementos em toda cultura o querem colocar. Mas claro que em ambos os lugares ele continua numa jaula. A PERDA DA BOLA DOURADA Voltemos agora histria. Certo dia, o filho do rei, de oito anos, est brincando no ptio com a bola dourada de que muito gosta, e que cai na jaula do Homem Natu-ral. Se o menino a quiser de volta, ter de aproximar-se do Homem Cabeludo e pedi-la. Mas isso vai ser um problema. A bola dourada lembra-nos a unidade da personalidade que tivemos quando criana uma espcie de radiao, de totalidade, antes de nos dividirmos em macho e fmea, rico e pobre, mau e bom. A bola dourada, como o sol, e redonda. Como o sol, ela emana uma energia radiante do seu interior. Observamos que o menino tem oito anos. Todos ns, meninos ou meninas, perdemos alguma coisa l pelos oito anos. Se ainda temos a bola dourada no jardim de infncia, iremos perd-la na escola pri-mria. E o que restar ainda, ser perdido no curso secundrio. Em "O Prncipe Sapo", a bola da princesa cai num poo. Homem ou mulher, quando a bola dourada se vai, passamos o resto da vida tentando re-cuper-la. A primeira etapa na recuperao da bola , creio eu, aceitar firme, definitivamente que ela foi perdida. Freud disse: "H um contraste desalentador entre a inteligncia radiante da criana e a frgil menta-lidade do adulto mdio." Onde est, ento, a bola dourada? Metaforicamente falando, poder-amos dizer que a cultura da dcada de 1960 disse aos homens que encontrariam sua bola dourada na sensitividade, receptividade, coo-

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    perao e no-agressividade. Mas muitos homens abriram mo de toda agressividade e nem assim a encontraram. A histria do Joo de Ferro diz que o homem no vai encontrar a bola dourada no reino feminino, porque no ali que est. Um noivo pede secretamente mulher que lhe devolva a bola dourada. Acho que ela a devolveria, se pudesse, porque a maioria das mulheres, segundo minha experincia, no tenta impedir o crescimento dos homens. Mas ela no a pode devolver porque no a tem. E o que mais, ela pr-pria perdeu a sua bola dourada e tambm no consegue encontr-la. Simplificando, poderamos dizer que o homem da dcada de 1950 quer sempre que a mulher lhe devolva a bola. O homem das dcadas de 1960 e 1970, com a mesma falta de xito, pede essa devoluo ao seu feminino interior. A histria de Joo de Ferro sugere estar a bola dourada dentro do campo magntico do Homem Natural, um conceito muito difcil de a-preender. Temos de aceitar a possibilidade de que a verdadeira e-nergia radiante do homem no se esconde, no reside, nem espera por ns na esfera feminina, nem na esfera do macho /John Wayne, e sim no campo magntico do masculino profundo. protegida pelo ser instintivo que est sob a gua, e que ali est h no sabemos quanto tempo. Em "O Prncipe Sapo" o sapo, que no bonito, que repulsivo, que traz a bola dourada de volta. E na verso dos irmos Grimm, o prprio sapo s se transforma no prncipe quando lanado contra a parede. A maioria dos homens quer que alguma pessoa boa traga a bola de volta, mas nossa histria sugere que no a encontraremos n campo de fora de um guru asitico, e nem mesmo no campo de fora do meigo Jesus. Nossa histria no anticrist, e sim pr-crist em cer-ca de mil anos, e sua mensagem ainda verdadeira a recuperao da bola dourada incompatvel com certos tipos de mansido e bon-dade convencionais. O tipo de violncia, ou no-bondade, implcito na imagem do Homem Natural, no o mesmo da energia macho, sobre a qual os homens j sabem o bastante. A energia do Homem Natural, em contraste, le-va ao vigorosa, empreendida no com crueldade, mas com deci-so. O Homem Natural no se ope civilizao, mas tambm no to-

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    talmente contido por ela. A superestrutura tica do cristianismo popu-lar no apia o Homem Natural, embora existam sugestes de que o prprio Cristo o apoiava. No incio de seu ministrio ele foi, afinal de contas, batizado por um cabeludo Joo. Quando chega o momento em que o homem jovem tem de falar com o Homem Natural, ele ver que a conversa muito diferente da que poderia ter com um ministro, um rabino ou um guru. Conversar com o Homem Natural no falar sobre a bem-aventurana, a mente, ou o esprito, ou uma "conscincia superior", mas sobre alguma coisa mi-da, escura e baixa o que James Hillman chamaria de "alma". O primeiro passo equivale a uma aproximao da jaula e ao pedido de devoluo da bola dourada. Alguns homens esto prontos a dar esse passo, enquanto outros ainda nem mesmo retiraram a gua do poo ainda no deixaram a identidade masculina coletiva e entra-ram sozinhos na rea desconhecida, ou levando apenas o seu ca-chorro. A histria diz que depois de o cachorro ter sido "arrastado para bai-xo", necessrio comear o trabalho com os baldes. Nenhum gigante vir chupar toda a gua para ns: a mgica no vai ajudar. E um fim de semana em Esalen no serve. cido ou cocana no resolvem. O homem tem de fazer o trabalho balde por balde. Isso se parece com a lenta disciplina da arte: o trabalho que Rembrandt fez, que Picasso, Yeats, Rilke e Bach fizeram. O trabalho do balde exige muito mais disciplina do que pensa a maioria dos homens. O Homem Natural, como me disse o escritor Keith Thompson, no vai simplesmente entregar a bola dourada tambm. Que histria tera-mos, se ele dissesse: "Est bem, eis a sua bola"? Jung observou que todas as exigncias bem-sucedidas da psique en-volvem negociaes. A psique gosta de negociar. Se, por exemplo, parte de voc imensamente preguiosa e no quer trabalhar, uma resoluo de Ano-Novo no vai adiantar nada. Tudo ir melhor se vo-c disser parte preguiosa: "Deixe-me trabalhar durante uma hora e eu deixarei que voc seja um relaxado durante uma hora de acor-do?" Assim, em "Joo de Ferro" feito um acordo: o Homem Natural concorda em dar a bola dourada de volta se o menino abrir a jaula. O menino, evidentemente assustado, foge. Nem sequer responde. No isso o que acontece? Ouvimos dizer tantas vezes, pelos pais, padres, professores primrios e secundrios, que no devemos ter nada com o Homem Natural, que quando este diz: "Devolvo a bola se

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    me soltar da jaula", nem sequer devemos responder. Talvez agora transcorram dez anos. No "segundo dia" o homem po-deria ter 25 anos. Ele volta para o Homem Natural e diz: "Pode me devolver a bola?", e o Homem Natural responde: "Sim, se me .soltar da jaula." Na verdade, o fato de voltar ao Homem Natural uma segunda vez maravilhoso alguns homens no voltam nunca. O homem de 25 anos ouve a sentena, sim, mas agora ele tem dois Toyotas e uma casa hipotecada, talvez uma mulher e um filho. Como poderia soltar da jaula o Homem Natural? O homem geralmente afasta-se uma se-gunda vez, tambm sem dizer palavra. Passam-se mais dez anos. Vamos dizer que o homem tem agora 35 anos... Voc j viu o olhar de desalento no rosto de um homem de 35 anos? Sentindo-se esmagado pelo trabalho, alienado, vazio, ele per-gunta ao Homem Natural, desta vez com todo empenho: "Pode de-volver minha bola dourada?" "Sim", diz o Homem Natural. "Se voc me soltar da jaula." Alguma coisa maravilhosa acontece ento na histria. O menino fala com o Homem Natural, e continua a conversa. Diz ele: "Mesmo que eu quisesse te soltar, no poderia, porque no sei onde est a cha-ve." Isso muito bom. Aos 35 anos, no sabemos onde est a chave. No exatamente que tenhamos esquecido nunca soubemos onde ela estava. A histria diz que quando o rei prendeu o Homem Natural "confiou a guarda da chave rainha", mas tnhamos ento apenas sete anos, e de qualquer modo nosso pai nunca nos disse o que tinha feito com ela. Portanto, onde est a chave? Ouvi vrias tentativas de resposta: "Est pendurada no pescoo do menino." No. "Est escondida na jaula do Joo de Ferro." No.

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    "Est dentro da bola dourada." No. "Est dentro do castelo... num gancho dentro da Sala do Tesouro." No. "Est na Torre. Est num gancho bem alto na parede!" No. O Homem Natural responde: "A chave est debaixo do travesseiro da tua me." A chave no est dentro da bola, nem na arca do tesouro, nem no co-fre... a chave est debaixo do travesseiro da sua me exatamente onde Freud disse que estaria. Tirar a chave de sob o travesseiro da me uma tarefa problemtica. Freud, aceitando o conselho de uma pea grega, diz que o homem no deve ignorar a atrao mtua entre ele e sua me, se quiser viver muito. O travesseiro da me, afinal de contas, est na cama perto do lugar em que ela faz amor com o pai. Alm disso, h outra implicao ligada ao travesseiro. Michael Meade, o contador de mitos, observou certa vez que o tra-vesseiro tambm o lugar onde a me guarda todas as expectativas em relao a ns. Ela sonha: "Meu filho, o doutor." "Meu filho, o ana-lista junguiano." "Meu filho, o gnio de Wall Street." Mas muito poucas mes sonham: "Meu filho, o Homem Natural." Quanto ao filho, ele no tem certeza de que quer apanhar a chave. Transferir simplesmente a chave do travesseiro da me para o do gu-ru, de nada adiantar. Esquecer que a me tem a chave um erro grave. Afinal de contas, a tarefa da me civilizar o menino, sendo portanto natural que fique com a chave. Todas as famlias se compor-tam assim: neste planeta, "o rei confia a guarda da chave rainha". Atacar a me, enfrent-la, gritar com ela, o que alguns freudianos se inclinam a nos aconselhar, provavelmente no resolve muita coisa ela pode apenas sorrir e conversar conosco, mantendo o cotovelo sobre o travesseiro. As conversas de dipo com Jocasta nunca de-ram muito resultado, nem o esbravejar de Hamlet.

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    Um amigo disse que prudente roubar a chave num dia em que pai e me estiverem ausentes. "Meu pai e minha me saram hoje", signifi-ca um dia em que a cabea est livre das inibies dos pais. esse o dia para roubar a chave. Gioia Timpanelli, escritora e contadora de histrias, observou que, mitologicamente, o roubo da chave pertence ao mundo de Hermes. E a chave tem de ser roubada. Lembro-me de ter falado certa vez so-bre esse problema a um pblico formado de homens e mulheres. Um jovem, evidentemente bem treinado nos modos de operao da New Age, disse: "Robert, perturba-me essa idia de roubar a chave. Rou-bar no direito. No poderamos ir em grupo at a me e dizer: Se-nhora, pode me dar a chave de volta?" Seu modelo era provavelmente o consenso, a maneira pela qual o pessoal da loja de macrobitica resolve as coisas. Senti as almas de todas as mulheres presentes se erguerem para mat-lo. Homens as-sim so to perigosos para as mulheres quanto para outros homens. De qualquer modo, nenhuma me digna desse nome daria a chave. Se o filho no pode roub-la, no a merece. "Eu quero soltar o Homem Natural!" "Vem dar um beijinho na Mame." As mes sabem intuitivamente o que aconteceria se ele conseguisse a chave: perderiam os seus meninos. A possessividade que as mes exercem tipicamente sobre os filhos para no falarmos da posses-sividade que os pais exercem tipicamente sobre as filhas jamais pode ser subestimada. Os meios de conseguir a chave de volta variam para cada homem, mas basta dizer que as abordagens democrtica ou no-linear no so as melhores. Um jovem bastante formal danou certa noite durante seis horas, a-nimadamente, e pela manh observou: "Consegui parte da chave de volta, na noite passada." Outro homem retomou a chave quando se comportou como um au-tntico trapaceiro pela primeira vez em sua vida, permanecendo per-feitamente consciente do seu embuste. Um outro roubou a chave quando enfrentou a famlia e recusou-se a continuar carregando a

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    vergonha pela famlia toda. Poderamos passar dias inteiros falando da maneira prtica de roubar a chave. A prpria histria deixa tudo em aberto, dizendo simples-mente: "Certo dia ele roubou a chave, levou-a at a jaula do Homem Natural, e abriu-a. Ao faz-lo, machucou um dedo." (O detalhe ser importante na continuao da histria.) O Homem Natural est final-mente livre, e claro que voltar para sua floresta, longe do "castelo". O QUE FAZ O MENINO? A essa altura, vrias coisas poderiam acontecer. Se o Homem Natural voltar sua floresta e o menino ficar no castelo, a diviso histrica fundamental na psique, entre os homens primitivo e civilizado, seria restabelecida no menino. Este, por sua vez, poderia lamentar a perda do Homem Natural para sempre. Ou poderia recolocar a chave debai-xo do travesseiro antes da volta dos pais, e dizer que nada sabia so-bre a fuga do Homem Natural. Depois desse subterfgio, poderia tor-nar-se um executivo de empresas, um ministro fundamentalista, um professor vitalcio, algum que seria o orgulho de seus pais, que "nunca tinha visto o Homem Natural". Todos ns recolocamos muitas vezes a chave, e mentimos a respeito disso. E ento o caador solitrio dentro de ns tem de entrar mais uma vez na floresta com seu cachorro, e o cachorro novamente a-garrado. Perdemos muitos "cachorros" dessa maneira. Tambm poderamos imaginar um roteiro diferente. O menino con-vence, ou julga convencer, o Homem Natural a ficar no ptio. Se isso acontecesse, ele e o Homem Natural poderiam manter conversas civi-lizadas no jardim do ch, e essa conversa duraria anos. Mas a hist-ria diz que Joo de Ferro e o menino no se podem unir isto , no podem ter sua unio inicial no ptio do castelo. Provavelmente o lugar est demasiado perto do travesseiro da me e do cdigo de re-gras do pai. Lembramos que o menino de nossa histria, ao falar com o Homem Natural, disse no saber onde estava a chave. Isso um gesto de co-ragem. Alguns homens nunca dizem uma frase ao Homem Natural. Quando o menino abriu a porta da jaula, o Homem Natural comeou a caminhar de volta para a sua floresta. O menino da histria, ou o ho-mem de 35 anos em quem pensamos qualquer que seja o ngulo de viso que adotarmos faz ento uma coisa maravilhosa. Fala mais uma vez com o Homem Natural e diz: "Espere um minuto! Se

  • 17

    meus pais voltarem e voc tiver desaparecido, eles vo bater em mim." Essa frase di no corao, particularmente se conhecemos al-guma coisa das prticas de criao que vigoraram por longo tempo na Europa do norte. Como nos lembra Alice Miller em seu livro For Your Own Good [Para seu prprio bem], (1) os psiclogos infantis na Alemanha do sculo XIX advertiam os pais contra a exuberncia, em particular. A exube-rncia numa criana era um mal e, ao primeiro sinal dela, os pais de-viam ser rigorosos. A exuberncia significa que o menino rebelde j no controlado. Os pais puritanos na Nova Inglaterra, com freqn-cia, castigavam os filhos severamente se ficassem inquietos durante os longos servios religiosos na igreja. "Se voltarem e voc tiver desaparecido eles vo bater em mim." O Homem Natural diz, com efeito: " um bom raciocnio. melhor que venha comigo." Assim, o Homem Natural coloca o menino nos ombros e juntos eles entram na floresta. um gesto decisivo. Todos devamos ter essa sorte. Quando o menino parte para a floresta, tem de superar, pelo medos no momento, seu medo da mata, do irracional, das coisas peludas, da intuio, da emoo, do corpo e da natureza. Joo de Ferro no to primitivo quanto o menino imagina, mas este ou a mente ainda no sabe disso. Mesmo assim, o rompimento claro com a me e o pai, pedido pelos iniciadores antigos, ocorreu. Joo de Ferro diz ao menino: "Voc nun-ca mais ver sua me e seu pai. Mas eu tenho tesouros, mais do que voc pode precisar." isso a. PARTIDO NOS OMBROS DO HOMEM NATURAL O momento em que o menino parte com Joo de Ferro o momento, na vida dos gregos antigos, em que o sacerdote de Dioniso aceitava um jovem como discpulo; ou o momento, na vida do esquim de ho-je, em que o xam, por vezes totalmente coberto com a pele de ani-mais selvagens, e usando garras de lobo e vrtebras de cobra em volta do pescoo, e um gorro de cabea de urso, aparece na aldeia e leva um menino para instruo espiritual. Esse momento no existe em nossa cultura. Nela, os meninos tm

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    uma necessidade constante de iniciao no esprito masculino, mas os velhos em geral no a oferecem. O padre tenta, por vezes, mas hoje em dia est demasiadamente inserido na aldeia corporativa. Entre os Hopis e outros americanos nativos do sudoeste, os velhos levam o menino aos 12 anos para uma rea exclusivamente masculi-na do kiva. Ele fica ali durante seis semanas, e no v a me por mais um ano e meio. O problema da famlia nuclear, hoje, no tanto o fato de ser louca e estar cheia de exigncias emocionais contraditrias (isso acontece tambm em comunas e escritrios de empresas na verdade, em qualquer grupo). O problema que os velhos fora da famlia nuclear j no oferecem uma maneira eficiente para que o filho rompa seus elos com os pais, sem causar danos a si mesmo. As sociedades antigas acreditavam que o menino s se torna homem atravs do ritual e do esforo s atravs da "interveno ativa de homens mais velhos". Est se tornando claro para ns que a idade adulta no atingida por si mesma; ela no acontece porque comemos isto ou aquilo. A inter-veno ativa de homens mais velhos significa que estes recebem o homem mais novo no mundo masculino instintivo, mitologizado, anti-go. Uma das melhores histrias que ouvi sobre esse tipo de recepo a que ocorre anualmente entre os Kikuyu, na frica. Quando o rapaz tem idade suficiente para a iniciao, afastado da me e levado pa-ra um lugar especial, organizado pelos homens a certa distncia da aldeia. Ali jejua por trs dias. Na terceira noite ele se senta num crcu-lo em volta da fogueira, com os homens mais velhos. Est com fome, com sede, alerta e aterrorizado. Um dos velhos pega uma faca, abre uma veia em seu prprio brao e deixa um pouco do sangue escorrer para uma gamela. Todos os homens mais velhos do crculo abrem seu brao com a mesma faca, e a gamela circula, enquanto vo dei-xando cair nela o seu sangue. Quando a vez do jovem, ele convi-dado a alimentar-se com aquilo. Nesse ritual, o rapaz aprende vrias coisas. Aprende que o alimento no vem apenas da me, mas tambm dos homens. E aprende que a faca pode ser usada para muitas finalidades alm da de ferir os ou-tros. Poder ter agora qualquer dvida de que bem recebido entre os outros homens?

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    Uma vez realizada a recepo, os homens mais velhos lhe ensinam os mitos, histrias e canes que encerram valores caracteristica-mente masculinos: e no me refiro aos valores competitivos apenas, mas tambm aos espirituais. Uma vez aprendidos esses mitos "esti-mulantes", os prprios mitos levam o jovem muito alm de seu pai in-dividual, at seus pais coletivos que se estendem pelos sculos afora. Na ausncia do trabalho feito conscienciosamente pelos velhos, o que acontece? A iniciao do homem ocidental continua por algum tempo, numa forma modificada, mesmo depois que os fanticos des-truram as escolas gregas de iniciao. Durante o sculo XIX, avs e tios viviam na casa, e os homens mais velhos participavam muito. Nas caadas, no trabalho feito em conjunto nas fazendas e cabanas, e nos esportes locais, os homens mais velhos passavam muito tempo com os jovens e lhes ensinavam a conhecer o esprito masculino. No comeo de "A Excurso", Wordsworth descreve o velho que se sentava, dia aps dia, sob uma rvore e o saudava, quando ele era menino:

    Ele me amava; entre um enxame de meninos Escolheu-me, como diria brincando, Pela aparncia grave, sria demais para a idade. Quando cresci, meu maior prazer era Ter sido escolhido seu camarada. Muitas vezes Caminhamos, nas frias, pela floresta...

    Grande parte dessas associaes ao acaso, ou incidentais, acabou. Os clubes e sociedades masculinos foram desaparecendo. Os avs vivem em Phoenix ou em asilos de velhos, e muitos rapazes tm a-penas a companhia de outros rapazes da sua idade, que do ponto de vista dos velhos iniciadores, no sabiam nada. Na dcada de 1960 alguns jovens tiravam sua fora de mulheres que, por sua vez, a tinham recebido, em parte, do movimento feminino. Poderamos dizer que muitos jovens na dcada de 1960 tentaram a-ceitar a iniciao pelas mulheres. Mas s homens podem iniciar ho-mens, como s mulheres podem iniciar mulheres. As mulheres po-dem transformar um embrio num menino, mas s os homens podem fazer dele um homem. O iniciadores dizem que os meninos precisam de um segundo nascimento, desta vez um nascimento a partir do ho-mem. Num dos seus ensaios, Keith Thompson descreveu-se como sendo, aos 20 anos, um rapaz tpico, "iniciado" por mulheres. Seus pais se divorciaram quando ele tinha cerca de 12 anos, e ento foi viver com

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    a me, enquanto o pai se mudava para um apartamento nas imedia-es. Durante toda a escola secundria, Keith esteve mais prximo das mu-lheres do que dos outros homens, e essa situao continuou durante o perodo da universidade, quando seus principais amigos foram as feministas, a quem ele descreve como maravilhosas, compreensivas e generosas, e com as quais aprendeu muito. Aceitou ento um em-prego na poltica estadual de Ohio, trabalhando com mulheres e aten-to s preocupaes femininas. Mais ou menos nessa poca, teve um sonho. Ele e um cl de lobas estavam correndo na floresta. As lobas sugeriam-lhe principalmente independncia e vigor. O cl delas andava com muita rapidez na flo-resta, em formao, e acabaram chegando todas a um rio. Cada loba olhou para a gua e viu sua prpria cara refletida. Mas quando Keith olhou, no viu nada. Os sonhos so sutis e complicados, e qualquer concluso breve so-bre eles precipitada. A ltima imagem, porm, sugere uma idia perturbadora. Quando mulheres, mesmo com a melhor das intenes, criam sozinhas um menino, ele pode de certa maneira no ter um ros-to masculino, ou pode mesmo no ter nenhum rosto. Os velhos inici-adores, em contraste, transmitiam aos meninos uma certeza invisvel e no-verbal: ajudavam-nos a ver o seu rosto, ou o seu ser, autntico. O que fazer, ento? Milhares e milhares de mulheres, sendo mes solteiras, esto criando meninos sem nenhum homem adulto na casa. As dificuldades inerentes a essa situao surgiram certo dia em E-vanston, quando eu estava fazendo uma palestra sobre a iniciao de homens para um grupo formado principalmente de mulheres. Mulheres que criavam filhos sozinhas estavam muito alerta para os perigos do modelo sem homem. Uma delas declarou ter com-preendido, quando o filho chegou idade da escola secundria, que o rapaz precisava de mais dureza do que ela podia lhe dar natural-mente. Mas, disse ela, se se tornasse mais dura para atender a tal necessidade, perderia contato com sua prpria feminilidade. Men-cionei a soluo clssica de muitas culturas tradicionais, que man-dar o menino para o pai quando chegar aos 12 anos. Vrias mulheres disseram claramente: "No, os homens no so educadores; eles no tomariam conta do menino." Muitos homens, porm e sou um de-les , encontraram em si a capacidade de educar, de formar, que s apareceu quando foi necessrio. Mesmo quando o pai vive em casa, pode haver ainda uma forte liga-

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    o oculta entre me e filho para afast-lo, o que equivale a uma conspirao, e as conspiraes so difceis de descobrir. Uma mulher com dois filhos gostava de ir anualmente a uma conveno em San Francisco com o marido, ficando os meninos em casa. Mas certa pri-mavera, tendo voltado recentemente de um retiro feminista, achou que gostaria de ter certa privacidade e disse ao marido: "Por que no leva os meninos, este ano?" Foi o que ele fez. Os meninos, de 10 e 12 anos, nunca tinham ficado sozinhos com o pai, sem a presena da me. Depois dessa experincia, passaram a pedir que o pai lhes dedicasse mais tempo. No ano seguinte, quando se aproximou a data da conveno, a me escolheu novamente a privacidade e os meninos viajaram com o pai. No momento em que voltaram para casa, a me estava na cozinha, de costas para a porta, e o mais velho dos dois rapazes entrou e a-braou-a por trs. Sem querer, o corpo da mulher reagiu explosiva-mente e o menino foi lanado contra a parede, do outro lado da cozi-nha. Quando se ergueu, a relao entre eles se tinha alterado. Algu-ma coisa irrevogvel acontecera. Ela ficou satisfeita com a mudana e o menino ficou surpreso e um tanto aliviado pelo fato de que, evi-dentemente, a me j no precisava dele como antes. Essa histria sugere que o trabalho de separao pode ser feito, mesmo que os velhos iniciadores no criem o rompimento. A prpria me pode provoc-lo. Vemos que isso exige muita intensidade, e no-tamos que foi de alguma maneira o corpo da mulher, e no a sua mente, que realizou a tarefa. Outra mulher contou uma histria na qual a conspirao me-filho foi rompida pelo menino. Ela era me sem marido de um filho e duas fi-lhas; as meninas iam bem, mas os rapaz, no. Aos 14 anos, ele foi viver com o pai; ficou apenas um ms, aproximadamente, e voltou. Quando isso aconteceu, a me compreendeu que trs mulheres na casa representavam um desequilbrio de energia feminina para o fi-lho, mas o que podia fazer? Passaram-se uma ou duas semanas. Certa noite ela disse ao filho: "John, hora de jantar." Tocou-o no brao, ele explodiu, e ela foi jogada contra a parede a mesma ex-ploso da histria anterior. No houve nenhuma inteno de violncia nos dois casos, e nenhum indcio de que o incidente se repetiu. Em cada caso, a psique ou o corpo sabiam o que a mente no sabia. Quando a me se levantou do cho, disse: " hora de voc voltar pa-ra o seu pai", e o rapaz respondeu: "Tem razo." O rompimento iniciatrio tradicional claramente prefervel violn-

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    cia, e a contorna. Mas em todo o pas vemos hoje filhos desajeitados na cozinha, falando com rudeza com suas mes, e creio que isso uma tentativa de parecerem pouco atraentes. Se os velhos no reali-zaram o seu trabalho de interromper a unidade de me-filho, que ou-tra coisa poderiam fazer os meninos para se separarem, seno falar com maus modos? uma atitude totalmente inconsciente e sem ne-nhuma elegncia. Um rompimento limpo com a me tem importncia crucial, mas isso simplesmente no est acontecendo, o que no significa que as mu-lheres estejam fazendo alguma coisa errada. Acho que o problema est mais no fato de no estarem os homens mais velhos fazendo o seu trabalho. A maneira tradicional de criar os filhos, que durou milhares e milhares de anos, equivalia a uma convivncia estreita entre pais e filhos uma proximidade que podia ser assassina enquanto o pai ensina-va ao filho um ofcio: talvez a agricultura ou carpintaria, ou o trabalho de ferreiro ou alfaiate. Como eu disse em outro lugar, a unidade amo-rosa mais prejudicada pela Revoluo Industrial foi a ligao pai-filho. No h sentido em idealizarmos a cultura pr-industrial, e no obstan-te sabemos que hoje muitos pais trabalham a 50 ou 70 quilmetros de distncia da casa, e quando voltam noite os filhos esto quase sempre dormindo, e eles prprios esto muito cansados para exercer a funo paterna. A Revoluo Industrial, com sua necessidade de trabalhadores para os escritrios e as fbricas, afastou os pais de seus filhos, e, o que mais importante, colocou os filhos em escolas compulsrias, onde os professores so principalmente mulheres. D. H. Lawrence descreveu isso no seu ensaio "Men Must Work and Women as Well" [Os homens devem trabalhar e as mulheres tambm]. (2) Sua gerao, nas reas de minerao carvoeira da Gr-Bretanha, sentiu todo o peso dessa mudana, e a nova atitude organizou-se em torno de uma idia: o trabalho fsico um mal. Lawrence lembra-se de que seu pai, que nunca ouvira essa teoria, trabalhava diariamente nas minas, desfrutava da camaradagem dos outros homens, chegava em casa alegre, e tomava banho na cozi-nha. Mas chegaram ento as novas professoras de Londres para en-sinar a Lawrence e seus colegas que o trabalho fsico vil e indigno, e que homens e mulheres devem lutar para ascender em um nvel mais "espiritual" a um trabalho superior, mental. Os meninos da sua gerao deduziram que seus pais vinham fazendo alguma coisa errada, que o trabalho fsico do homem errado, e que as mes sen-

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    sveis que preferem cortinas brancas e uma vida elevada tm razo, e sempre tiveram. Na sua adolescncia, descrita em Sons and Lovers [Filhos e aman-tes], (3) Lawrence evidentemente acreditou nas novas professoras. Quis a vida "superior" e ficou ao lado da me. S dois anos antes de morrer, j doente de tuberculose na Itlia, que comeou a notar a vi-talidade dos trabalhadores italianos e a sentir uma profunda saudade do prprio pai. Compreendeu ento que o ascencionismo de sua me era errado para ele, e o tinha estimulado a separar-se do pai e do prprio corpo, de uma maneira pouco frutfera. Uma nica idia, clara, bem alimentada, propaga-se como uma doen-a contagiosa: "O trabalho fsico errado." Muitas pessoas, alm de Lawrence, aceitaram essa idia, e na gerao seguinte a separao entre pais e filhos aprofundou-se. O homem vai trabalhar num escrit-rio, torna-se tambm ele pai, mas no tem uma atividade para com-partilhar com seu filho e no pode explicar-lhe o que faz. O pai de Lawrence podia levar o filho s minas, tal como o meu pai, que era agricultor, podia levar-me no trator e mostrar-me as coisas. Eu sabia o que ele fazia durante todo o dia e em qualquer estao do ano. Quando o trabalho burocrtico e a "revoluo da informtica" come-am a dominar, o lao entre pai e filho desintegra-se. Se o pai s est em casa uma ou duas horas noite, ento s os valores femininos, embora maravilhosos, existiro para o menino. Poderamos dizer que o pai perde hoje o filho cinco minutos depois que ele nasce. Quando entramos numa casa contempornea, com freqncia a me que nos recebe, confiante. O pai fica atrs, pois fala mal. Eis um poema meu, chamado "Encontro com o pai":

    Meu amigo, este corpo se oferece para nos levar de graa como o mar carrega os troncos. Em certos dias o corpo geme com a sua grande energia; derruba as represas, jogando para cima pequenos caranguejos, que voam para os lados. Algum bate porta. No temos tempo de vestir. Ele quer que o acompanhemos pelas ruas cheias de vento e chuva, at a casa escura. Iremos, diz o corpo, e ali encontraremos o pai que nunca vi-mos, que saiu numa tempestade de neve na noite em que nas-cemos, que perdeu a memria e desde ento viveu ansiando pelo filho, a quem viu apenas uma vez... enquanto trabalhava como sapateiro, como vaqueiro na Austrlia, como cozinheiro

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    de restaurante que pintava noite. Quando acender a lmpada, voc o ver. Est sentado ali, a-trs da porta ... as sobrancelhas to grossas, a testa to clara ... sozinho em todo o seu corpo, esperando por voc. (4)

    O PAI DISTANTE O psiclogo alemo Alexander Mitscherlich escreve sobre essa crise pai-filho em seu livro Society Without the Father [A sociedade sem o pai]. (5) A essncia da sua idia que se o filho no v o que o pai faz durante o dia e em qualquer estao do ano, surgir um buraco em sua psique, e esse buraco se encher de demnios que lhe dizem que o trabalho do pai um mal, que o pai est ligado ao mal. O medo que o filho sente, de que o pai ausente seja ligado ao mal, contribui para as ocupaes estudantis de lugares pblicos na dca-da de 1960. Estudantes rebeldes na Universidade de Colmbia ocu-param o gabinete do presidente, procurando provas de envolvimento da Universidade com a CIA. O medo dos alunos, de que seus pais fossem maus, foi transferido para todas as figuras masculinas que ti-nham autoridade. Uma universidade, como um pai, parece direita e decente de fora, mas por baixo, em algum lugar, tem-se a impresso de que a universidade e o pai esto fazendo alguma coisa demona-ca. Esse sentimento acaba sendo intolervel, porque as intuies in-teriores do filho tornam-se incongruentes com as aparncias exterio-res. As intuies inconscientes surgem no porque o pai mau, mas porque est distante. Os jovens do-se ao trabalho de invadir o gabinete do presidente pa-ra superar essa incongruncia. Sendo o pas o que , ocasionalmente encontram cartas da CIA, mas isso no satisfaz o desejo mais pro-fundo a necessidade que o corpo do filho tem de estar mais perto do corpo do pai. "Onde est meu pai... por que no me ama? O que est acontecendo?" O filme The Marathon Man concentra-se na desconfiana que o jo-vem americano tem dos homens mais velhos. O principal per-sonagem, representado por Dustin Hoffman, perde o pai, um esquer-dista levado ao suicdio na era McCarthy. A histria coloca o jovem em perigoso contato com um antigo mdico de um campo de concen-trao, que Hoffman tem de enfrentar e derrotar antes que possa al-canar a paz com o pai morto. Quando os demnios so to desconfiados, como pode o filho esta-

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    belecer, mais tarde, uma boa ligao com a energia masculina adulta, especialmente a energia de um homem adulto em posio de autori-dade ou liderana? Como msico, ele quebrar violes feitos mo por velhos, ou como professor desconfiado dos autores mais antigos ele os "desconstruir". Como cidado, participar antes da terapia do que da poltica. Sentir-se- mais puro se no participar da autoridade. Ir para o norte da Califrnia plantar maconha, ou andar em veculos de trs rodas no Maine. Existe hoje a suposio geral de que todo homem em posio de po-der , ou logo ficar, corrupto e opressor. Mas os gregos compreen-deram e louvaram uma energia masculina positiva que aceitava a au-toridade. Chamavam-na de energia de Zeus, que abrange a intelign-cia, a sade robusta, a deciso compassiva, a boa vontade, a lide-rana generosa. A energia de Zeus a autoridade masculina aceita para o bem da comunidade. O nativo americano acredita nesse poder masculino saudvel. Entre os Snecas, o chefe um homem, mas escolhido pelas mulheres aceita o poder em nome da comunidade. Ele prprio no tem prati-camente nada. Todas as grandes culturas, com exceo da america-na, preservam e viveram com imagens dessa energia masculina posi-tiva. A energia de Zeus se vem desintegrando constantemente, dcada aps dcada, nos Estados Unidos. A cultura popular est disposta a acabar com o respeito por ela, a comear com os quadrinhos "Maggie e Jiggs" e "Belina e Adalberto" das dcadas de 1920 e 1930, nos quais o homem sempre fraco e bobo. A partir da, a imagem do ho-mem adulto fraco entrou para o desenho animado. O pai, nos anncios contemporneos da TV, nunca sabe o que tomar para resfriado. E nas comdias os homens so falsos, desastrados ou facilmente enganados. So as mulheres que os enganam, que lhes ensinam uma lio, ou dominam sozinhas toda a cidade. Isso no exatamente "o que o povo quer". Muitos jovens roteiristas de Holly-wood, em lugar de enfrentar seus pais em Kansas, vingam-se do pai distante fazendo com que todos os homens adultos paream tolos. Eles atacam o respeito da integridade masculina que todo pai deseja, no ntimo, transmitir aos seus netos e bisnetos. Em contraste, nas cul-turas tradicionais, os homens e mulheres mais velhos so, com fre-qncia, os primeiros a falar em reunies pblicas; os jovens podem no dizer nada, mas ainda desejam manter contato com os homens mais velhos. Hoje, temos moos de 27 anos empenhados em obter o

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    controle de uma casa editora e, hostilmente, desmanchar em seis meses o que um homem mais velho levou 30 anos para criar. Dei mi-nha contribuio para o enfraquecimento da energia de Zeus durante meus 20 e 30 anos. Ataquei todos os homens mais velhos na comu-nidade literria que estavam ao alcance de minhas flechas, e gostei de ver seus corpos atravessados por elas, pelas flechas lanadas por tensa energia engarrafada na minha psique. Eu via muitas partes da vida cotidiana de meu pai, seus hbitos de trabalho, sua atitude gene-rosa para com os trabalhadores; mas ele era inacessvel sob outros aspectos, e o buraco em mim foi preenchido por demnios, como Mitscherlich previa. Homens mais velhos, a quem eu mal conhecia, receberam a raiva. Quando um filho age com esse medo do demonismo, torna-se super-ficial, inspido, isolado e seco. No sabe como recuperar a sua poro mida e barrenta. H alguns anos, comecei a sentir minha diminui-o, no tanto de meu lado "feminino" como do masculino. Faltavam-me contatos com homens ou deveria dizer, com meu pai? Comecei a v-lo no como algum que me tivesse privado de amor, ateno ou companheirismo, mas como algum que fora privado, pe-lo prprio pai e me, e pela cultura. Essa reformulao continua ain-da. Todas as vezes que vejo meu pai, experimento novos e complicados sentimentos sobre o quanto da privao que senti com ele vinha es-pontaneamente e o quanto vinha contra a sua vontade o quanto ele tinha conscincia e o quanto no tinha. Jung externou uma idia perturbadora sobre essa complicao. Disse que quando o filho apresentado ao sentimento principalmente pela me, aprende a atitude feminina em relao virilidade e adota uma viso feminina do prprio pai e da prpria masculinidade. Ver o pai com os olhos da me. Como pai e me competem pela afeio do fi-lho, no se pode ter uma imagem fiel do pai atravs da me, nem uma imagem fiel da me atravs do pai. Algumas mes procuram mostrar que a civilizao, a cultura, o sentimento e os relacionamen-tos so coisas que a me e a filha, ou a me e o filho sensvel, tm em comum, ao passo que o pai representa e materializa o que rgi-do, talvez brutal a ausncia de sentimento, a obsesso, o raciona-lismo: o que voltado para o dinheiro, que no tem compaixo. "Seu pai no pode deixar de ser assim." Portanto, em geral, o filho cresce com uma imagem contundida do pai no necessariamente provada pelos atos ou palavras dele, mas baseada na observao que a me faz dessas palavras ou atos.

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    Sei que, no meu caso, estabeleci minha primeira conexo com o sen-timento atravs de minha me. Ela me proporcionou a primeira sen-sao de discriminao de sentimentos. "Voc est triste?" Mas essa conexo encerrava a adoo de uma imagem negativa de meu pai, que no falava muito sobre sentimentos. necessrio algum tempo para que um filho supere essas primeiras vises negativas do pai. A psique se apega tenazmente a essas per-cepes iniciais. A idealizao da me ou a obsesso ligada a ela, o amor ou o dio por ela, podem durar at que o filho tenha 30, ou 35, ou 40 anos. A pelos 40 ou 45 anos ocorre naturalmente um movi-mento em direo ao pai um desejo de v-lo mais claramente e de aproximar-se dele. Isso acontece de maneira inexplicvel, quase co-mo que obedecendo a um calendrio biolgico. Um amigo me contou como esse movimento aconteceu na sua vida. Mais ou menos aos 35 anos ele comeou a pensar em como era re-almente o seu pai. No o tinha visto durante dez anos. Voou para Se-attle, onde ele vivia, bateu sua porta e quando o pai abriu, disse: "Venho dizer-lhe que no aceito mais a idia que minha me fazia de voc." "E o que aconteceu?", perguntei. "Meu pai se desfez em lgrimas, e disse: Agora posso morrer." Os pais esperam. O que mais podem fazer? No estou afirmando que todos os pais so bons; as mes podem ter razo quanto ao lado negativo do pai, mas a mulher tambm pode cri-ticar traos masculinos que so apenas diferentes ou inesperados. Se o filho aprende a sentir principalmente com a me, ento prov-vel que tambm veja sua prpria masculinidade do ponto de vista fe-minino. Pode ficar fascinado por isso, mas ter medo. Pode ter pena e querer mudar isso, ou pode desconfiar da situao e desejar pr-lhe um fim. Pode inclusive admir-la, mas nunca se sentir vontade com ela. O homem acaba tendo necessidade de jogar fora toda a doutrinao e comear a descobrir por si mesmo o que o pai , e o que a virili-dade. Para essa tarefa, as histrias antigas constituem uma boa aju-da, porque esto livres dos modernos preconceitos psicolgicos, por-que suportaram o exame de geraes de mulheres e homens, e por-que apresentam tanto o lado claro como o lado escuro da masculini-

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    dade, tanto o admirvel como o perigoso. Seu modelo no um ho-mem perfeito, nem um homem francamente espiritual. Nos mitos gregos, Apoio visto como um homem dourado em meio a uma enorme acumulao de energia obscura, ativa, perigosa, cha-mada Dioniso. O Homem Natural da nossa histria inclui um pouco de ambos os tipos de energia, tanto Apoio como Dioniso. Os butaneses fazem mscaras de um homem com cabea de pssa-ro e dentes de cachorro. Isso sugere uma boa energia dupla. Todos conhecemos os guardies de templos orientais. O guardio um ho-mem de sobrancelhas enormes e vontade feroz; mantm um p ele-vado como se fosse danar, ergue uma clava feita de uma flor. Os hindus oferecem uma imagem de masculinidade, Xiva, que ao mesmo tempo um asceta e um grande amante, um louco e um espo-so. Ele pode ter presas em sua forma chamada Bairava, e com esse aspecto est longe da beleza sugerida pelo Jesus convencional. H um pouco dessa energia Bairava quando Cristo se enfurece no templo e se pe a chicotear os mercadores. A tradio celta oferece como imagem masculina Cuchulain que, quando se enfurece, os msculos da sua canela passam para a frente e solta fumaa pelo al-to da cabea. Essas poderosas energias dentro dos homens jazem, como Joo de Ferro, em poos pelos quais ainda no passamos. bom que o divi-no esteja associado Virgem Maria e a um Jesus bondoso, mas po-demos sentir como seria diferente para os moos se vivssemos nu-ma cultura onde o divino tambm est associado a danarinos loucos, a homens de presas ferozes, e a um ser totalmente submerso, cober-to de plos. Todos ns, homens e mulheres, sentimos certo medo ao nos aproxi-marmos dessas imagens. H vrias dcadas vimos tentando, com ra-zo, compreender as desvantagens da destrutiva personalidade tipo macho, e quanto a isso creio ser til lembrarmos as distines entre o Homem Natural e o homem selvagem. Quando algum entra em contato com o Homem Natural, pode sentir um verdadeiro vigor. Pode gritar e dizer o que quer de uma maneira que o homem das dcadas de 1960-1970 no capaz. A abordagem, ou a materializao, do espao receptivo realizada pelo homem das dcadas de 1960-1970, infinitamente valiosa, e no deve ser aban-donada. Mas como escrevi num poema chamado "Meditao sobre a Filosofia",

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    Quando gritamos para eles, no respondem. Voltam o rosto para a parede do bero, e morrem?* A capacidade do homem de gritar e enfurecer-se no significa domi-nao, nem o tratamento das pessoas como se fossem objetos, exi-gncia de terra ou imprio, defesa da Guerra Fria todo o modelo do machismo. As mulheres precisavam, na dcada de 1970, desenvolver o que conhecido na tradio indiana como energia Kali a capacidade de dizer realmente o que querem, danar com caveiras em volta do pes-coo, cortar relacionamentos quando necessitam faz-lo. Os homens precisam estabelecer uma conexo paralela com a dura energia Dioniso que os hindus chamam de Kala. Nossa histria diz que o primeiro passo encontrar o Homem Natural que jaz no fundo do poo. Alguns homens, atravs do sofrimento acumulado, so ca-pazes de descer at aquele lugar. Contudo, a ligao com essa ener-gia Kala ter tambm o efeito de encontrar a mesma energia nas mu-lheres. Se os homens no fizerem isso, no sobrevivero. Os homens esto sofrendo, neste momento principalmente os jo-vens. Agora, que tantos homens esto em contato com o seu sofri-mento, seu anseio pelas ligaes com o pai e o mentor, estamos mais preparados para comear a ver o Homem Natural e a examinar no-vamente a iniciao. Sinto-me, porm, muito esperanoso. A esta altura, muitas coisas podem acontecer. NOTAS 1. Alice Miller, For Your Own Good (New York, Farrar, Straus & Gi-

    roux, 1983). 2. D. H. Lawrence, The Portable D.H. Lawrence, org. Diana Trilling

    (New York, Viking Press, 1955), p.623. 3. D. H. Lawrence, Sons and Lovers (New York, Viking Penguin,

    1958). 4. "Finding the Father", de Robert Bly, Selected Poems New York,

    Harper & Row, 1986), p. 132. 5. Alexander Mitscherlich, Society Without the Father (Londres, Ta-

    vis-tock, 1969). 6. "A Meditation of Philosophy", de Bly, Selected Poems, p. 162.

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    Captulo 2 QUANDO UM FIO DE CABELO FICA DOURADO

    Poderamos perguntar: "Por que no parar aqui?" Temos um menino que roubou a chave que estava debaixo do travesseiro de sua me. Fugiu dela e do pai, est em contato com o Homem Natural e, atravs dele, com a selva. Como Huck Finn, ele comeou a "descer o Missis-sippi" numa jangada, com um companheiro de um mundo diferente. Mas se a nossa histria descreve a iniciao, sabemos que teremos dentro em pouco algum ferimento, um osso quebrado, um corte na pele, marcas de machucados pelo corpo. Tudo isso parte da inicia-o. Mircea Eliade, em seus relatos sobre experincias de iniciao em dezenas de culturas por todo o mundo, (1) diz que ela comea com dois fatos: o primeiro um rompimento claro com os pais, depois do que o novio vai para a floresta, o deserto ou a selva. O segundo o ferimento que o homem mais velho faz no rapaz, podendo ser uma marca na pele, um corte com faca, uma esfregadela com urtiga, um dente arrancado. No devemos, porm, concluir apressadamente que os machucados so feitos por sadismo. Os iniciadores de jovens, na maioria das culturas, certificam-se de que os ferimentos que infligem no provocam dor sem sentido, mas reverberam desde um centro rico em significados. Uma prtica de iniciao entre os aborgenes da Austrlia um bom exemplo. Os homens mais velhos, tendo levado o rapaz para longe da comunidade, contam-lhe a histria do primeiro homem, Darvala. Os meninos ouvem atentamente essa histria do homem original, o Ado deles. Acontece que Darvala est sentado numa rvore ali perto. Enquanto os rapazes tentam v-lo na rvore, um velho percorre a fileira de novios arrancando um dente de cada um deles. Os velhos lembram ento aos rapazes que uma coisa pa-recida aconteceu com Darvala. Ele perdeu um dente. Suas lnguas associam, pelo resto da vida, o dente quebrado com uma ligao viva com Darvala. Muitos, entre ns, daramos um dente para ter uma li-gao viva com Ado. O princpio da adolescncia o momento tradicionalmente escolhido para o comeo da iniciao, e todos lembramos quantas feridas so-fremos naquela idade. A adolescncia uma fase de risco para os meninos, e esse risco tambm um desejo de iniciao. O nmero de ferimentos suportados pelo homem tpico espantoso. Isso me ficou bastante claro certo dia, em San Francisco, quando v-rias centenas de homens se reuniram numa grande sala. Um dos pro-

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    fessores, Doug van Koss, distribuiu duas ou trs mil tiras de pano vermelho e pediu que os presentes as amarrassem em qualquer parte de seu corpo que tivesse sido maltratada de alguma forma um cor-te, uma fratura, um ferimento a faca, uma cicatriz. Muitos homens precisaram de dez faixas, ou mais. Para alguns, todo o lado direito do corpo, do calcanhar cabea, era um vermelho brilhante; em outros, o vermelho quase cobria a cabea; em outros ainda, eram os braos e as pernas. Quando o exerccio terminou, a sala parecia um mar vermelho. Alguma coisa no homem adolescente deseja o risco, corteja o perigo, estende-se at a beira at mesmo a beira da morte. Em nossa histria, portanto, o dedo do menino sugere os ferimentos que cada um de ns j recebeu em nossas tentativas de soltar da jau-la o Homem Natural. A ferida no nos causada pelos velhos. Ns mesmos a fazemos. Quer os velhos do passado nos marquem com uma concha marinha, ou uma tatuagem dolorosa, ou quer ns mes-mos o faamos, a cicatriz representa um ferimento que j est ali, um dente quebrado que sentimos com a lngua. Em nossa histria, o de-do pisado representa um ferimento recebido pela maioria dos jovens em nossa cultura. Voltemos histria: A HISTRIA: PRIMEIRO DIA NA FONTE

    Quando o Homem Natural chegou novamente floresta escu-ra, tirou o menino dos ombros, colocou-o no cho e disse: "Nunca mais vers tua me nem teu pai, mas eu ficarei contigo, pois me libertaste, e tenho pena de ti. Se fizeres tudo o que eu mandar, as coisas correro bem. Tenho muito ouro e tesouros, mais do que qualquer outra pessoa no mundo." O Homem Natural preparou uma cama de folhas para o menino dormir e pela manh levou-o a uma fonte. "Ests vendo esta fonte dourada? clara como cristal, e cheia de luz. Quero que fiques sentado junto dela e vigies para que nada caia dentro dela, pois se isso acontecer, a fonte ser prejudicada. Voltarei todas as tardes para ver se me obedeceste." O menino ficou sentado beira da fonte. Vez por outra, via um peixe ou uma cobra dourados, e vigiava para que nada casse l dentro. Mas seu dedo comeou a doer muito e, sem pensar, ele o mergulhou na gua. Retirou-o imediatamente, mas viu que o dedo ficara dourado e, por mais que o lavasse, o doura-do no saa.

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    Joo de Ferro voltou naquela tarde e perguntou: "Aconteceu hoje alguma coisa com a fonte?" O menino escondeu o dedo s costas para que Joo de Ferro no o visse, e disse: "No aconteceu nada." "Ah, mergulhaste o dedo na fonte!", observou o Homem Natu-ral. "Deixaremos passar desta vez, mas no o faas de novo."

    Falaremos do ouro agarrado no dedo adiante, por ora ficaremos mais um pouco com o ferimento. Este doa tanto que o menino o mergu-lhou involuntariamente na fonte. isso, basicamente, o que a histria diz. Para vivermos esta histria, em lugar de simplesmente observ-la, devemos perguntar: "Que ferimento temos doendo tanto que preci-samos mergulh-lo na gua?" A iniciao dos jovens resume-se, por-tanto, em ajud-lo a lembrar da ferida, e nos referimos s feridas da alma, ou danos ao corpo emocional. s vezes as cicatrizes exteriores nos lembram as cicatrizes interiores. Vamos relacionar algumas leses interiores, tal como relacionamos antes algumas das exteriores. No receber a bno do pai uma le-so. Robert Moore disse: "Se voc jovem, e no tem a admirao de um homem mais velho, est sendo ferido." (2) Quantos homens me disseram: "Esperei dois dias junto de meu pai, quando estava morrendo, para ouvi-lo dizer que me amava." O que aconteceu? "Ele nunca disse." No ver o pai quando se pequeno, no estar nunca com ele, ter um pai distante, um pai ausente, ou pai viciado em trabalho, uma inj-ria. Ter um pai crtico, julgador, equivale a ser um filho de Cronos, por ele devorado. Alguma leso geralmente provocada pelo pai, de uma maneira ou de outra. Michael Meade descobriu uma histria africana na qual, certo dia, o caador leva o filho caa com ele. Tendo abatido um pequeno rato, pede ao menino que o guarde. "Achando que no valia nada, o garoto jogou-o no mato", diz a histria. No apareceu mais nenhuma caa naquele dia, e ao anoitecer o pai pediu ao menino o rato, para que o pudessem cozinhar e ter alguma coisa para comer. O menino disse: "Joguei-o no mato." E ento, de acordo com a histria: "O pai pegou o machado e golpeou o filho, dei-

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    xando-o cado onde estava." Os homens que ouvem essa histria sabem, com detalhes espanto-sos, exatamente onde foi dado o golpe do machado. Um deles diz que atingiu o lado esquerdo da cabea. Outro, que foi na rea do pei-to. Um terceiro disse: "No meu ombro." Um outro: "Atrs da cabea." Um quinto: "Bem no centro do crnio." Um sexto: "Na barriga." Outro, finalmente: "Na virilha", e assim por diante. Quase todo homem se lembra do momento do golpe. Assim, esse acontecimento parece ser parte do material pai-filho: o pai d o golpe, filho o recebe. E o menino se lembra desse ferimento durante anos. E os golpes desfechados pela me? "Voc muito fraco, no deve brincar com aqueles meni-nos." "Como voc pde matar um passarinho to bonito?" "Se no parar com isso, mando-o para o internato! Veremos se voc vai gos-tar!" "Voc muito grande para fazer isso." "Voc est agindo exata-mente como seu pai." O pai desfecha contra o filho um golpe vivo e inesquecvel com um machado, o que encerra uma sugesto de as-sassinato; muitas mes fazem com que o filho receba o batismo da vergonha. E continuam jogando a gua da vergonha sobre sua cabe-a, para no falhar. Um homem disse: "Minha me tinha uma raiva trpode: a necessidade irresistvel de chutar tudo o que tivesse trs pernas." Por vezes, esse processo de envergonhamento produz uma ferida duradoura, que no se fecha. Os gregos que iam para a Guerra de Tria deixaram Filotectes para trs, numa ilha, porque sua ferida chei-rava muito mal. Mais tarde tiveram de ir busc-lo, porque o orculo disse que era a nica maneira de ganhar a guerra. O homem ferido sabe alguma coisa, ou alguma coisa. Surras, tapas na cara, ataques verbais, so ferimentos. Golpes que atingem o amor-prprio, perfuram nosso senso de grandeza, poluem nosso entusiasmo, envenenam e destroem a confiana, provocam equimoses na alma, minando e degradando a imagem do corpo... e tudo isso um aviltamento. Faz mal, causa dano. Ouvir uma mentira de um homem mais velho equivale a uma perna quebrada. Quando os jovens chegaram ao Vietn e descobriram que lhes haviam mentido, sofreram ferimentos muito profundos. No ser bem recebido pelos homens mais velhos, no mundo masculi-no, um ferimento no peito. O chefe de polcia de Detroit comentou que os jovens que prende no s no tm em sua casa um homem mais velho que seja responsvel, como tambm nunca encontraram

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    um homem assim. Quando vemos uma quadrilha de jovens, estamos vendo, como observou Michael Meade, rapazes que no convivem com homens mais velhos.Os membros dessas quadrilhas tentam de-sesperadamente aprender a coragem, a fidelidade familiar, a discipli-na, uns dos outros. Isso funciona para alguns, mas no para a maio-ria. A julgar pela vida dos homens na Nova Guin, Qunia, frica do Nor-te, territrios dos pigmeus, terras zulus, e na cultura rabe e persa in-fluenciada pelas comunidades sufistas, os homens viveram juntos, em unies de corao e ligaes de alma, durante centenas de milha-res de anos. A vida econmica contempornea s permite relaes competitivas, nas quais as principais emoes so ansiedade, tenso, solido, riva-lidade e medo. Depois do trabalho, o que fazem os homens? Re-nem-se num bar para conversas ligeiras frente a uma cerveja, apro-ximaes que so desfeitas sempre que surge uma mulher. A falta de comunho com outros homens pode ser a mais perniciosa das feri-das. Essas feridas penetram em ns quer honremos ou no os nossos pais, quer sejamos bons ou maus. Em sua maioria podem ser descri-tas como feridas que atingem nossa grandeza. Quando somos pe-quenos, temos a sensao de sermos Deus. Nossa vida de rei no ventre sugeria uma possibilidade assim, e se algum tenta, quando estamos fora do ventre, dizer-nos que no somos Deus, no o ouvi-mos. A esse sentimento precoce de nossa divindade poderamos chamar de Grandiosidade Infantil.e precisamos distinguir entre ele e a grandeza, ou Grandiosidade Verdadeira, que tambm parte de ns. De qualquer modo, como adolescentes, ainda temos bastante grandi-osidade infantil, e por isso imaginamos que podemos decidir se o rato ou no grande e se vale a pena guard-lo. E ento, quando o pai nos golpeia com o machado e nos deixa estendidos no cho, senti-mos que nossa situao feridos, cados no cho difcil de ser conciliada com nossa fantasia de prncipes. Todas as feridas ameaam a nossa condio de prncipes. Os golpes de vergonha: "Quem voc est pensando que ? No passa de um menino ranhento como qualquer outro", so como golpes na barriga do prncipe. E h sempre alguma coisa errada conosco. Um menino se sente magro demais, ou baixo demais, ou musculoso demais; ou-tro gagueja, ou manca. Um excessivamente tmido, outro "no a-tleta" ou no sabe danar, ou tem uma pele ruim. Ou orelhas gran-des, ou marcas de nascimento, ou "burro", ou no bom de espor-

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    tes, e assim por diante. Em geral, resolvemos o problema inchando-nos de orgulho. Uma pequena ascenso nos coloca acima de tudo is-so. Talvez alguma grandeza, ou semelhana com Deus, seja til para nos protegermos quando somos muito jovens. Alice Miller observa (3) que quando comeam as agresses, quando os pais praticam crueldades que a criana no pode imaginar que pratiquem, ela toma o caminho da grandiosidade ou da depresso. Se tomar o primeiro, passa por cima da chaga e da vergonha. Talvez obtenha boas notas, acabe sendo aquele na famlia a quem cabe ser alegre, torna-se uma esp-cie de mdico do prprio sofrimento, toma conta dos outros. Alguma coisa prodigiosa a empolga. Pode ser alegre, mas no muito humana. Se seguimos pela estrada da depresso, vivemos dentro da mazela e da vergonha. Estamos na realidade mais prximos da ferida do que os seguidores do caminho da grandeza, mas no somos necessaria-mente mais humanos. A vtima tambm imponente. A vtima aceita a coroa da sua condio, torna-se um prncipe ou princesa de outro modo. Por vezes, homens sem pai seguem esse caminho. Todos ns seguimos por esses dois caminhos, embora usemos um deles aos domingos e feriados, e outro nos dias teis. Algumas pes-soas escolhem um terceiro caminho: o da paralisia, do compor-tamento de rob, do entorpecimento levado a srio um vazio cen-tral, nenhuma afeio, nenhuma emoo no sentido ascendente ou descendente, uma vida de autmato. A velha prtica da iniciao afetaria todas essas reaes, ou causaria uma ferida calculada, bastante dolorosa embora menor para que o jovem se lembrasse de suas chagas interiores. A iniciao mostra ento ao jovem o que deve fazer com as feridas, novas e anti-gas. Os velhos contam histrias aos meninos to logo estes entram no mundo dos homens. Se no tivermos histrias, no podemos contro-lar a ferida. Ou ficamos acima dela, to alto que no podemos abaixar para toc-la, ou nos transformamos nela, somos pisados por alguma coisa to grande que s vemos o cho abaixo de ns. Aceitando, portanto, que o dedo machucado do menino representa vrias afrontas da infncia, voltemos histria para imaginar como aconteceu essa ferida. Tentamos soltar da jaula o "Homem Natural", que aqui representa nosso prprio brilhantismo, fortuna, vigor, gran-deza e espontaneidade, e nesse momento nos ferimos.

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    Em nossas famlias, podemos elevar-nos acima da vergonha causada por um pai alcolatra aumentando secretamente o combustvel de nosso foguete de grandeza, afastando-nos da famlia, elevando-nos com esse combustvel. Ou podemos mergulhar na criana envergo-nhada, passar a ser essa criana e mais ningum, viver em nossa in-dignidade secreta, perder nosso rei e nos tornarmos um escravo. H prazer em tornar-se escravo. Podemos ento ser um viciado, no ser nunca responsvel pela nossa vida, nem nos envergonharmos ainda mais. O estado de viciado o que mais cresce nos Estados Unidos, supe-rando o crescimento dos estados da Califrnia e Hava. Nessa manei-ra de enfrentar a ferida do machado, dizemos "Eu sou aquela crian-a". Como sabemos pelo Centures of Childhood [Sculos de infncia] de Philippe Arie, (4) antes do sculo XIX, mais ou menos, no havia roupas desenhadas especialmente para crianas. Durante e depois da Idade Mdia, a criana dizia "Sou um adulto pequeno", e usava roupas iguais s dos adultos. Essa prtica tem certos inconvenientes, mas sua mudana foi catastrfica. Quando as pessoas se identificam com a sua criana ferida, ou permanecem crianas, toda a cultura desmorona. A gravidez adolescente mostrou-nos que as crianas no podem ser mes, ou pais, de seus prprios filhos. As pessoas vivem uma vida que irradia destruio para a famlia mais imediata, bem como para os vizinhos. Todos esto numa ala de emergncia. O restabelecimento de alguma forma de iniciao essencial para a cultura. Os Estados Unidos sofreram um inequvoco declnio desde 1950, e creio que se no encontrarmos um terceiro caminho alm dos dois mencionados, esse declnio continuar. Temos o caminho gran-dioso seguido pelos corretores de aes lucrativas mas pouco segu-ras, os grandes especuladores e os proprietrios de jatos particulares; e temos o caminho da depresso, trilhado pelos alcolatras, pelas mes solteiras e pauprrimas, pelos viciados em drogas e pelos ho-mens sem pai. Ascender excitao e ao xtase tambm no nos leva chave. Es-ta permanece escondida. O xtase demasiado cedo ou a excitao generalizada pode ser, como observou James Hilman, (5) apenas uma outra maneira que a Grande Me tem para evitar que o homem desenvolva qual-quer disciplina. Quando a chave fica debaixo do travesseiro da me, acaba-se, mais cedo ou mais tarde, num centro de tratamento. Os conselheiros e terapeutas faro o possvel para nos libertar, mas em

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    geral ns enfiamos a chave debaixo do travesseiro deles, quando no esto olhando. Suponhamos que conseguimos roubar a chave que estava debaixo do travesseiro materno, e aliviamos a ferida do dedo e depois? Partiramos com o Homem Natural, a essa altura? Provavelmente no. Poderamos passar dez anos sentido o dedo ferido, culpando por isso nossos pais e o patriarcado. Provavelmente processaramos o Homem Natural por ter uma aparncia de ferrugem, e processara-mos nossa me por no guardar melhor a chave. A histria do Ho-mem Natural termina abruptamente se acharmos que somos o Ho-mem Natural (caminho grandioso), ou se admitirmos que somos a cri-ana indefesa vitimizada (caminho da depresso). As pessoas que se dedicam sinceramente grandiosidade infantil o homem de Wall Street, o harpista da New Age por que iriam com o Homem Natural? Elas j se imaginam sendo o Homem Natural consideram-se o que h de mais moderno em liberdade, podem pas-sar toda a noite brincando com seus computadores, ou ter pensamen-tos no-poluentes durante quatro dias consecutivos. Poucos americanos, nas ltimas dcadas, passaram do detalhe da chave. Quando o homem se considera o Homem Natural ou a criana vtima, a adoo de um mentor est fora de cogitao. Podemos perguntar-nos: h algum que conheamos, ou de quem tenhamos ouvido falar, dotado de verdadeira grandeza? Se h, devemos partir com ele ou ela. Precisamos entender que o Homem Natural no est "dentro" de ns. A histria sugere que o Homem Natural na realidade um ser que pode existir e florescer durante sculos fora da psique humana. Ele pode ser comparado, no plano humano, a um mentor, que continuar vivendo e crescendo, quer nos tenha como discpulo ou no. Portanto, o antigo costume da iniciao ainda muito vivo em nossa estrutura gentica oferece um terceiro caminho, entre os dois ca-minhos "naturais" da excitao entusiasta e da excitao vitimaria. Um mentor, ou "me masculina", entra em cena. Atrs dele est um ser de intensidade impessoal, que em nossa histria o Homem Na-tural, ou Joo de Ferro. O jovem investiga ou sente sua ferida feri-da do pai, ferida da me, ou ferida da vergonha na presena desse ser mitolgico, intemporal, independente e iniciatrio.

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    Se o menino rouba a chave e monta nos ombros desse ser, trs coi-sas mudaro: a ferida, em lugar de ser considerada m sorte, passar a ser vista como um dom. Segunda, a gua sagrada ou secreta no importa o que seja isso ir aparecer. Finalmente, a energia do sol ser colocada, de alguma maneira, no corpo do homem. Repeti-remos essa parte da histria.

    Quando o Homem Natural chegou novamente floresta escu-ra, tirou o menino dos ombros, colocou-o no cho e disse: "Nunca mais vers tua me nem teu pai, mas eu ficarei contigo, pois me libertaste, e tenho pena de ti. Se fizeres tudo o que eu mandar, as coisas correro bem. Tenho muito ouro e tesouros, mais do que qualquer outra pessoa no mundo." O Homem Natural preparou uma cama de folhas para o menino dormir, e pela manh levou-o a uma fonte. "Ests vendo esta fonte dourada? clara como cristal e cheia de luz. Quero que fiques sentado junto dela e vigies para que nada caia dentro dela, pois se isso acontecer, a fonte ser prejudicada. Voltarei todas as tardes para ver se me obedeceste." O menino ficou sentado beira da fonte. Vez por outra, via um peixe ou uma cobra dourados, e vigiava para que nada casse l dentro. Mas seu dedo comeou a doer muito e, sem pensar, ele o mergulhou na gua. Retirou-o imediatamente, mas viu que o dedo ficara dourado e, por mais que o lavasse, o doura-do no saa. Joo de Ferro voltou naquela tarde e perguntou: "Aconteceu hoje alguma coisa com a fonte?" O menino escondeu o dedo s costas para que Joo de Ferro no o visse, e disse: "No aconteceu nada." "Ah, mergulhaste o dedo na fonte!", observou o Homem Natu-ral. "Deixaremos passar desta vez, mas no o faas de novo."

    O Homem Natural leva o menino para uma Fonte Sagrada, para a gua. Notamos que peixes e cobras dourados nadam nessa gua. Mitologicamente, ela a velha fonte sagrada guardada pelo Homem Natural e por vezes tambm pela Mulher Natural. Se a fonte for polu-da, dizem os velhos sbios celtas, tudo na terra morrer. Portanto, a gua um lugar importante. o lugar tradicional a que o Homem Na-tural se recolhe para as suas meditaes, e sabemos pela Vita Merlin (6) que Merlin ali ficou, refletindo, durante sua loucura. Eram tambm

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    lugares onde as pessoas comuns procuravam inspirao, alimento espiritual e sabedoria. Os viajantes receberam, durante sculos, ali-mento no poo sagrado de Logres. No lago de Connla, o grande sal-mo sagrado nadava, espera de que, uma vez por ano, as rvores pendentes sobre o lago deixassem cair as avels da loucura inspira-da. (7) Psicologicamente, trata-se da gua da vida espiritual mas apenas pa-ra os que esto preparados para nela entrar. Mircea Eliade diz, sobre a iniciao masculina: "A iniciao da puberdade representa acima de tudo a revelao do sagrado... antes da iniciao [os meninos] ainda no compartilham plenamente da condio humana, precisamente porque no tm acesso vida religiosa." (8) Religio, aqui, no significa doutrina, ou piedade, ou pureza, ou "f", ou "crena", ou minha vida entregue a Deus. Significa a disposio de ser um peixe na gua sagrada, ser pescado por Dioniso ou outros pescadores, baixar a cabea e aceitar as sugestes dos prprios so-nhos, ter uma vida secreta, rezar s escondidas, ser baixo, engolir a dor como o peixe engole gua e vive. Significa ser ao mesmo tempo pescador e peixe, no ser a ferida mas dominar a ferida. Ser um pei-xe ser ativo; no com carros ou futebol, mas com a alma. Os que trabalharam com famlias alcolatras nos ltimos dez anos deram grande destaque palavra negao, e uma palavra adequa-da. Negao representa amnsia, esquecimento, olvido. Um mar de olvido varre uma criana quando ela envergonhada. Uma mulher sofre abuso sexual aos quatro anos e esquece totalmente o fato at os 38 anos e no se pode culp-la pelo esquecimento. A negao significa que entramos num transe; vivemos durante anos num transe. Em "O Corvo" (irmos Grimm) uma menina se transforma num corvo quando a me censura seu comportamento, e permanece encantada durante anos; em "Os Seis Cisnes", seis meninos se transformam em cisnes quando o pai, por covardia, abre a casa para o mal, e perma-necem encantados durante anos. Escrevi um poema chamado "Cinqenta Homens Juntos", a respeito de um jovem que est na iminncia de um transe:

    A mulher fica na cozinha e no quer gastar combustvel com o lampio enquanto espera que o marido bbado volte para casa. Ento ela lhe serve

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    comida em silncio. O que faz o filho? Ele se afasta, perde a coragem, vai para fora comer com coisas selvagens, vive entre covis e choas, come distncia e silncio; crescem-lhe longas asas, entra em espiral, ascende. (9)

    Ser levado gua por um mentor significa o fim do encantamento. A gua do Homem Natural no cura a ferida que levou fuga ou as-censo; mas d fora quela parte de ns que quer continuar o esfor-o de ganhar coragem e ser humana. Quando Joo de Ferro leva o menino para a gua, a energia do sol se transfere de alguma forma, para o seu corpo. A histria diz o se-guinte:

    Sem pensar, ele o mergulhou na gua. Retirou-o imediata-mente, mas viu que o dedo ficara dourado.

    O dourado simboliza, em todo o mundo, a glria solar, o poder real, a radiao autogeradora, a no-decadncia, a imortalidade, a luminosi-dade espiritual, e esse o dourado que surge no dedo do menino. Promovendo a surpresa da ponta do dedo dourada, o Homem Natu-ral, agindo como guia espiritual, faz a promessa. Essa promessa uma redescoberta, poderamos dizer uma redesco-berta do ouro que sempre esteve ali. No acumulamos laboriosamen-te, pelo trabalho rduo da escola primria, um estoque de energia so-lar no armazm do esprito. O ouro existia em ns enquanto estva-mos no ventre. A criana nasce, como disse Wordsworth, "arrastando nuvens de gl-ria". A criana a herdeira de milnios de trabalho espiritual e imagi-nativo. Diz Kabir:

    Sentimos haver um esprito que ama pssaros e animais e formigas Talvez o mesmo que te deu radiao, no ventre de tua me. Seria lgico que andasses agora totalmente rfo? A verdade que te afastaste E resolveste entrar sozinho na escurido (10)

    Sabemos, por um papiro famoso que descreve a mumificao, que os

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    sacerdotes egpcios aplicavam ouro s unhas do morto, ou da morta. Ao fazerem isso, diziam as palavras "Agora o ouro que pertence a Horus vai para as tuas unhas e te faz imortal." A imagem dourada da ponta do dedo em nossa histria , portanto, muito antiga, e pode vir do segundo ou terceiro milnio a.C. Mas em lugar dos templos egpcios, com suas esttuas de ouro macio repre-sentando os deuses, temos os dourados peixes e cobras nadando na fonte. Podemos encontrar na vida greco-romana mais um detalhe que nos ajuda a compreender o significado do ouro que no desaparece. Os romanos acreditavam que todo ser humano tem, dentro de si, um anjo ou "daimon", que acompanha toda a linhagem familiar e a semente da boa sorte individual dessa pessoa. Chamavam de "gnio" a essa semente, ou centelha, ou estrela da sorte quando a observavam num homem, e de "juno", quando numa mulher. Os romanos imaginavam o "daimon" como um guia, entre divino e humano, um mensageiro do mundo sagrado, uma espcie de anjo da guarda, ou o que o poeta noruegus Rolf Jacobsen chama de "a sombra branca". Observamos que o dourado aparece no mesmo de-do que ousou abrir a jaula do Homem Natural, portanto a sorte do menino est intimamente ligada ao uso que fez da chave. Isso quanto maneira mitolgica de ver as coisas. Psicologicamente, o que o ouro no dedo? Quando surge ele na vida comum? A histria diz que quando estivermos na presena de um mentor, ou do "Homem Natural", ouviremos uma sugesto sobre a localizao de nosso gnio. As vezes, num caso amoroso, os amantes fazem amor com o Homem Natural e a Mulher Natural ali mesmo, na sala; e se somos es-ses amantes, podemos sentir que se tornam douradas certas clulas do corpo que julgvamos totalmente feitas de chumbo. Amantes e santos sentem que as pontas de seus dedos so douradas, sim; po-dem sentir uma liberdade em relao aos limites ordinrios, durante dias ou meses. O artista sente uma curiosa intensidade quando est trabalhando num objeto de arte, um poema, uma pintura ou escultura; poderamos dizer que o poo sagrado est exatamente no estdio; e o artista tor-na-se capaz de pensamentos e sentimentos muito mais extremos do que comuns. Os dedos que seguram a caneta ou o pincel tornam-se

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    dourados, e vemos de sbito imagens espantosas, e compreendemos que somos bons naquilo que fazemos. O Homem Natural, no caso, equivale a uma presena invisvel, companhia dos ancestrais e dos grandes artistas entre os mortos. Um poema de amor ou de meditao exttica na realidade uma maneira engenhosa de preservar a lembrana do momento em que a ponta do dedo se torna dourada. A jovem corredora atravessa a linha de chegad