6659771 fim de verao rosamunde pilcher

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    Fim de Vero

    Rosamunde Pilcher

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    Captulo 1

    O tempo estivera abafado e enublado durante todo o Vero, sendo o calor do solreprimido pelos nevoeiros martimos que rolavam continuamente do lado do

    Pacfico. Mas por volta de Setembro, como muito freqente acontecer naCalifrnia, estes recuaram mar dentro, espraiando-se sombriamente ao longo dalinha do horizonte.Em terra, para c da zona costeira, terrenos cultivados, prontos para a colheita,regurgitavam de fruta madura, milho, alcachofras e abboras avermelhadas, quetremeluziam luz do sol. O calor mergulhava os pequenos aglomerados de casinhasde madeira na modorra, conferindo-lhes uma aparncia acinzentada e poeirenta. Asplancies, ricas e frteis, estendiam-se para leste, at ao sop da serra Nevada, estaatravessada, em toda a sua extenso, pela grande auto-estrada de Camino Realque, para norte, ia dar a So Francisco e, para Sul, a Los Angeles, atravancada etremeluzente com o ao escaldante de milhares de veculos.

    A praia estivera deserta durante os meses de Vero, pois Reef Point, ficando naponta final da costa, raramente era alvo das preferncias do passeante ocasional.Por um lado, a estrada no era alcatroada, o que a tornava pouco segura econvidativa. Por outro, a pequena estncia de La Carmelia, com as suasencantadoras ruas sombreadas por rvores, o clube local exclusivo e os motisimpecveis, ficavam mesmo no princpio da linha, e qualquer pessoa de bom sensoe com algum dinheiro para gastar ficava-se mesmo por ali. S quem fosseaventureiro, desprovido de recursos financeiros ou profundamente apreciador dezonas de rebentao, que se arriscaria a percorrer o ltimo quilmetro e meio,descendo pelo terreno acidentado e pedregoso, derrapando at quela enseadaenorme, despovoada e ventosa.Mas, naquela altura, devido ao tempo esplndido que se fazia sentir e ondulaosuave do mar, o local estava apinhado de gente. Carros de todos os tipos desciam acolina com dificuldade, estacionando sombra dos cedros e despejando amantes depiqueniques, campistas, praticantes de surf e famlias inteiras de hippies, recm-fartos de So Francisco e a caminho do Novo Mxico e do Sol, semelhana demuitas aves migratrias. E os fins-de-semana traziam os estudantes daUniversidade de Santa Brbara nos seus descapotveis antigos e Volkswagensenfeitados de flores autocolantes, cheios de raparigas e caixas de cerveja enlatada,ficando-se por ali com as suas pranchas Malibu de cores brilhantes. Armavampequenas tendas por toda a praia, enchendo o ar com as suas vozes, risadas e o

    cheiro a bronzeador.De modo que, depois de tantas semanas de perfeito isolamento, vamo-nossubitamente rodeados de gente e de todo o gnero de atividade. O meu pai estavacheio de trabalho, tentando respeitar o prazo que lhe fora dado para terminar umguio, o que o tornava impossvel de aturar. Sem que desse por mim, escapuli-mepara a praia, levando com que me sustentar (hamburgers e Cola-Cola), um livro paraler, uma toalha de banho suficientemente grande para nela me estender vontade, eRusty para me fazer companhia.Rusty era um co. Muito meu, uma criaturinha de abundante pelagem castanha eraa indefinida, porm de grande inteligncia. Quando nos mudramos para acasinha de praia, na Primavera anterior, no tnhamos nenhum co, mas logo o

    problema foi resolvido por Rusty, que tomou essa deciso depois de nos observar

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    sorrateiramente. E dali no moveu pata. Enxotei-o de toda a forma e feitio, o meu paiatirou-lhe botas velhas, mas de nada valeu, pois voltou sempre, inabalvel e semressentimentos, sentando-se a alguma distncia do porto das traseiras, de beioarreganhado laia de sorriso e a dar cauda. Certa manh quente, enchendo-me

    de comiserao por ele, dei-lhe uma tigela de gua fresca para beber. Lambeu-a at ltima gota, e voltou, ento, a assentar o traseiro no cho, fitando-me com aquelear amigvel e abanando a cauda. No dia seguinte, presenteei-o com um osso depresunto, que ele aceitou delicadamente, afastando-se para o ir enterrar. Cincominutos depois, estava novamente de volta. Sorridente, de cauda sempre a abanar.O meu pai saiu de casa e atirou-lhe uma olhadela, embora sem grande convico.No passou de simples demonstrao de fora pouco segura. Apercebeu-se do fatoe aproximou-se um pouco mais.Eu disse ao meu pai:- De quem ser?- Sabe-se l.

    - D a impresso de estar convencido de nos pertencer.- Enganas-te - retorquiu o meu pai. - acha que ns que lhe pertencemos.- No nada feroz e nem sequer cheira mal.Ergueu o olhar da revista que tentava ler- Ests a querer dizer que tens vontade de ficar com esse malfadado bicho?- Acontece apenas que no vejo... no vejo maneira de nos livrarmos dele.- Basta dar-lhe um tiro.- Que horror!- Deve ter pulgas. Tra-las- para dentro de casa.- Compro-lhe uma coleira inseticida.O meu pai mirava-me por detrs dos seus culos. Percebi que fazia um grandeesforo para no desatar a rir. Insisti:- Por favor. Por que no? Far-me- companhia quando estiveres ausente.Respondeu-me:- Est bem.Calcei ento uns sapatos, sem perder mais um segundo, e assobiei a chamar o co;subimos colina at La Carmella, onde havia um veterinrio de grande fama, eficamos espera da nossa vez, numa sala repleta de ces-d'gua, gatos siameses eos respectivos donos. Finalmente fomos atendidos, e o veterinrio, depois deexaminar Rusty, declarou-o em forma, deu-lhe uma injeo e disse-me onde poderiacomprar uma coleira inseticida. Depois de pagar a consulta, samos para comprar a

    dita coleira, voltando em seguida para casa. Quando chegamos cabana, o meu paicontinuava a ler a sua revista; o co entrou delicadamente, e depois de andar aidentificar o novo territrio, espera de que o convidassem a sentar, assim o fez,instalando-se no tapete velho que tnhamos em frente da lareira desativada.O meu pai perguntou:- Como lhe vais chamar?- Rusty - respondi, pois certa vez tivera um resguardo para camisa de dormir emforma de co com o nome Rusty e foi o primeiro que me veio cabea.O problema de adaptao famlia no se ps porque dava a impresso de que oseu lugar fora sempre junto de ns. Para onde quer que eu fosse, Rusty vinhacomigo. Adorava a praia e passava a vida a desenterrar tesouros magnficos que

    depois nos trazia para casa a fim de os admirarmos: velhos fragmentos de navios

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    naufragados, garrafas de detergentes vazias, longos e ondulantes bocados de algasmarinhas. E, de vez em quando, objetos que no retirara propriamente de baixo daareia, tais como um sapato de desporto novo, uma bela toalha de praia, chegandomesmo, certa vez, a furar uma bola, que o meu pai teve de substituir depois de eu

    sossegar o seu choroso proprietrio de palmo e meio. Tambm gostava muito denadar e sempre fez questo em me acompanhar, embora no fosse capaz deavanar muito mais rapidamente que ele, que ficava sempre para trs, seguindo-ocom a maior das persistncias. Seria de esperar que ficasse desencorajado, pormtal nunca aconteceu.Nesse dia, um domingo, nadamos muito.O meu pai, cumprida a meta de trabalho, fora a Los Angeles entregar o guiopessoalmente, de modo que Rusty e eu ficamos a fazer companhia um ao outro,passando a tarde a ir e vir da praia, ora a apanhar conchas ora a brincar com umpedao de madeira que o mar arrastara para a costa. No entanto, j comeava afazer frio e eu voltara a envergar mais alguma roupa; sentamo-nos ao lado um do

    outro a admirar os surfistas, enquanto o dourado se ia escondendo no ocaso,cegando-nos.Os surfistas tinham passado o dia nas suas atividades e, contudo, dava a impressode que no se cansavam. Ajoelhados nas suas pranchas, remavam com os braosmar dentro, passando a zona de rebentao at chegarem s guas bem maiscalmas que ficavam do lado de l. A aguardavam, pacientemente, empoleirados nalinha do horizonte como corvos-marinhos, espera de que as ondas ganhassemaltura para depois agirem. Escolhiam uma, mantinham-se de p enquanto a gua seencurvava na sua subida, formando espuma branca no seu topo e, quando a ondainiciava o estrondoso movimento de queda, enrolando-se sobre si mesma,navegavam sobre ela num poema de equilbrio, com a arrogncia e a autoconfianaque a sua juventude lhes conferia; cavalgavam at esta se abater sobre a areia,saindo depois de cima da prancha com ar indiferente, pegando nela e voltandonovamente para o mar, j que o credo de todo o surfista era o de que os aguardavasempre uma onda maior e melhor, e agora que o sol se punha e comeara aescurecer, no havia um momento a perder.Havia um rapaz que me chamara especialmente a ateno. Era louro, usava ocabelo muito curto, estava profundamente bronzeado e usava os cales justos atao joelho no mesmo tom azul-brilhante do da sua prancha de surf. Era exmio na suaarte, possua um estilo e um arrojo que fazia com que todos os outros noparecessem passar de simples amadores desajeitados. A certa altura, porm, estava

    eu a observ-lo, deu a impresso de que decidira dar o dia por terminado, pois,cavalgando uma ltima onda, aterrou impecavelmente na praia, apeou-se da suaprancha e, voltando-se para lanar um ltimo e prolongado olhar ao mar, banhadopelos tons rseos do crepsculo, virou-se, pegou na sua prancha e comeou acaminhar pela areia.Desviei o olhar. O rapaz veio para os meus lados, acercando-se de um monte deroupa, impecavelmente dobrada, que deixara ali perto. Deixou cair a prancha e tirouuma camisola desbotada do topo da pilha. Voltei a olhar na sua direo e, quando orosto lhe apareceu pela abertura do decote, fitou-me diretamente. No desviei oolhar, usando de firmeza.O rapaz pareceu achar graa. Cumprimentou:

    - Viva.

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    - Ol.Ajeitou a camisola nas ancas. Perguntou:- Queres um cigarro?- Pode ser.

    Inclinou-se para tirar um mao de Luckys e o isqueiro do bolso, atravessou aextenso de areia que nos separava, tirou um cigarro para mim, depois de se servirele prprio, deitou-se ao a comprido a meu lado, apoiando-se nos cotovelos. Tinhaas pernas e o pescoo cobertos com uma camada fina de areia; os olhos eram azuise possuam aquele ar limpo e bem cuidado que ainda era possvel encontrar nosptios das universidades.Comentou:- Ficaste toda a tarde aqui sentada. Nem foste nadar.- Eu sei.- Por que no te juntaste a ns?- No tenho prancha de surf

    - Podias arranjar uma.- Falta-me o dinheiro.- Ento pede uma emprestada.- No conheo ningum a quem o possa fazer.O jovem franziu os sobrolhos.- s inglesa, no s?- Sou.- Ests de visita?- No, vivo aqui.- Em Reef Point?- Sim.Indiquei, com a cabea, a fila de casinhas de madeira desbotada que mal assomavasobre o topo arredondado das dunas.- Como que vieste parar aqui?- Ns alugamos uma das casas.- Vocs, quem?- O meu pai e eu.- H quanto tempo c ests?- Desde a Primavera.- Mas no vais ficar durante o Inverno.Era mais uma declarao de fato do que uma pergunta. Ningum passava o Inverno

    em Reef Point. As casas no tinham sido construdas para fazer frente stempestades, a estrada de acesso ficava intransitvel, as linhas telefnicas caam,no havia eletricidade.- Acho que ficaremos. A no ser que decidamos mudar de stio.- Vocs so hippies ou algo do gnero?Por ter a noo do meu aspecto na altura, no me admirei com a pergunta.- No. Mas o meu pai escreve guies para filmes e materiais para a televiso. Ecomo detesta Los Angeles ao ponto de se recusar a viver l... alugamos estacabana.O jovem mostrou-se intrigado.- E tu, que fazes?

    Peguei numa mo-cheia de areia spera e acinzentada e deixei-a escorrer por entre

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    os dedos.- Nada de especial. Compro a comida, esvazio o balde do lixo e tento manter acabana sem areia.- Esse co teu?

    - .- Como se chama?- Rusty.- Rusty. Ei, viva, amigo!Rusty deu sinal de perceber o cumprimento com um aceno de cabea e depoiscontinuou a olhar para o mar. Para compensar a sua falta de maneiras, perguntei:- s de Santa Brbara?- Hen, hen.O jovem, porm, no tinha vontade de falar dele.- H quanto tempo vives nos Estados Unidos? Ainda tens um sotaque terrivelmentebritnico.

    Sorri delicadamente perante a piada que j ouvira tantas vezes.- Desde os catorze. J l vo sete anos.- Na Califrnia?- Um pouco por todo o lado: Nova Chicago, So Francisco.- O teu pai americano?- No. Comeou por vir para c com o objetivo de escrever um romance, que foicomprado por uma empresa cinematogrfica. Depois foi para Hollywood preparar oguio.- A srio? Ser que o conheo? Como se chama?- Rufus Marsh.- No me digas que o autor de Tail as Morning!Acenei afirmativamente com a cabea.- Caramba - continuou o jovem -, li esse livro de um flego s, ainda andava noliceu. Foi atravs dele que recebi toda a minha educao sexual.Fitou-me com interesse renovado e eu pensei que era sempre assim. Comeavampor se mostrar amigveis e muito simpticos, mas o interesse s surgiaverdadeiramente quando eu mencionava o tal romance escrito pelo meu pai. Pensoque o fato tinha algo a ver com o meu aspecto porque os meus olhos soextremamente claros, as pestanas quase incolores, a minha cara no bronzeia e ficatoda salpicada de sardas enormes. Alm disso, sou demasiado alta para rapariga etenho as mas do rosto muito salientes.

    - Deve ser um indivduo formidvel - acrescentou o jovem.No seu rosto espelhava-se agora uma expresso nova, denotando intriga eperguntas que, obviamente, era demasiado delicado para fazer: Se s filha de RufusMarsh, por que ests aqui sentada nesta praia insignificante nos confins daCalifrnia, com umas calas manchadas e uma camisa de homem que j devia terido para o lixo h muito tempo, e nem sequer tens dinheiro que chegue paracomprares uma prancha de surf?Depois, seguindo, como era ironicamente previsvel, a linha do meu prprioraciocnio, perguntou:- J agora, que tipo de homem ele? Quero dizer, para alm de ser teu pai.- No sei.

    Nunca fora capaz de descrever o meu pai, nem mesmo a mim mesma. Peguei

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    noutra mo-cheia de areia e formei uma montanha miniatura no cimo da qual espeteio resto do meu cigarro, formando uma pequena cratera, um vulco minsculo, com abeata a fazer de ncleo fumegante. Era um homem com uma necessidade constantede movimento; uma pessoa que fazia amigos facilmente para os perder logo no dia a

    seguir; um indivduo briguento, que no deixava uma observao sem resposta,talentoso quase ao ponto da genialidade, mas completamente inibido perante osproblemas da vida do dia-a-dia; um ser humano paradoxal.Repeti:- No sei.E voltei-me para olhar o rapaz que tinha ao meu lado. Era simptico.- Convidava-te para ires tomar uma cerveja l a casa e assim poderias verificar comos teus prprios olhos, mas acontece que ele neste momento est em Los Angeles es voltar amanh de manh.Ouviu a minha informao coando a nuca com ar pensativo, gesto quedesencadeou uma pequena tempestade de areia.

    - Vamos combinar o seguinte - sugeriu -, se o tempo se mantiver bom, no prximofim-de-semana estou por aqui novamente.Sorri.- Estars?- Procurarei por ti.- Est bem.- Trarei uma prancha a mais. Poders praticar um pouco de surfObservei:- No preciso subornares-me.Ele fez-se de ofendido.- Que queres dizer com essa de eu querer subornar-te?- No prximo fim-de-semana, levo-te l acima para o conheceres. Ele gosta de vercaras novas em casa.- No era suborno nenhum. A srio.Abrandei. Alm disso, tinha vontade de fazer surf. Retorqui:- Eu sei.O jovem sorriu e apagou o seu cigarro. O sol, ao mergulhar ao longe, sobre ooceano, comeava a ganhar o formato e a cor de uma abbora. Sentou-se,franzindo os olhos perante o seu fulgor, bocejou ligeiramente e espreguiou-se.Depois declarou:- Tenho de ir.

    Em seguida levantou-se e, ento, hesitou por um momento, ao meu lado, de p. Asua sombra parecia alongar-se interminavelmente.- Ento, adeus - disse.- Adeus.- At domingo.- Okay.- Fica combinado. No te esqueas.- Est descansado.Voltou-se e comeou a andar, parando para recolher o resto das suas coisas; virou-se para me dirigir um ltimo aceno de mo, antes de se afastar pela praia fora, emdireo ao stio onde os velhos cedros semi enterrados na areia marcavam o

    carreiro que conduzia estrada, mais acima.

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    Fiquei a observ-lo enquanto se afastava, apercebendo-me ento de que nemsequer ficara a saber como se chamava. E, o que era pior, ele to-pouco se dera aocuidado de perguntar o meu nome. Eu era, simplesmente, a filha de Rufus Marsh.Mas ainda assim, no domingo seguinte, se o tempo continuasse agradvel, talvez

    voltasse. Se o tempo se mantivesse bom. O que era sempre de desejar.Captulo 2

    Fora por causa de Sam Carter que estvamos a viver em Reef Point. Sam era oagente de meu pai em Los Angeles e, em puro desespero de causa, acabara pornos propor descobrir um local pouco dispendioso para morarmos, pois Los Angelese o meu pai eram de tal maneira antagnicos que este no fora capaz de escreverum nico trabalho comercivel durante a nossa permanncia naquela cidade, peloque Sam ficara beira de perder tanto clientes preciosos como dinheiro.- H um lugar em Reef Point - sugerira Sam.

    - muito insignificante, mas tranqilidade no lhe falta... do gnero daquela que sse consegue nos confins do mundo - acrescentou, esconjurando vises de umaespcie de paraso gauguiniano.Alugramos ento a cabana, embalramos todos os nossos pertences mundanosque eram tristemente escassos, no velho e desconjuntado Dodge do pai, erumramos para aquelas paragens, deixando para trs a poluio atmosfrica, alufa-lufa de Los Angeles, e ficando excitados como crianas ao sentirmos osprimeiros odores a maresia.E ao princpio fora, de fato, excitante. Depois da cidade, era uma delcia acordar aosom das aves marinhas e do rebentar constante das ondas. Era esplndidocaminhar sobre a areia de manh cedo, ver o sol nascer sobre as colinas, pegarnum bocado de espuma e v-la crescer e enfunar com o vento, branca como velasnovas.A nossa vida domstica era, como no podia deixar de ser, simples. Seja como for,nunca fui muito eficiente nas tarefas inerentes a essa condio, e em Reef Point shavia uma lojinha - um supermercado que, na Esccia, a minha av teria chamadode "casa tem-tudo", pois vendia de tudo, desde licenas de porte de arma a bataspara a lida domstica, desde alimentos congelados a pacotes de Kleenex. Eraadministrada por Bul e Myrtle em estilo pouco dinmico e moroso, pois pareciasempre que os vegetais frescos tinham esgotado, assim como a fruta, galinhas eovos, que eram o tipo de compras que eu quereria fazer. Contudo, durante o Vero,

    comeamos a apreciar bastante a carne enlatada e as pizzas congeladas, assimcomo todas as variedades de gelados que, ao que parecia, Myrtle adorava, pois eratremendamente gorda, dando a impresso de que as enormes coxas e ancasestavam prestes a rebentar as jeans que usava, e andava com os braos reboludoscompletamente mostra nas blusas juvenis sem mangas que escolhia para vestir.Agora, porm, decorridos seis meses em Reef Point, comeava a sentir-me inquieta.At quando duraria aquele magnfico "Vero Indiano? Mais um ms, quando muito.Depois, as tempestades comeariam inevitavelmente, a noite cairia mais cedo e aschuvas chegariam, acompanhadas de lama e vento. A cabana no dispunha dequalquer tipo de aquecimento central, apenas de uma lareira enorme na sala deestar atravessada por correntes de ar, que consumia madeira em quantidades

    industriais. Recordava, saudosa, os cestos cheios de carvo que se usavam na

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    minha terra, mas ali era material que no se usava. Sempre que voltava da praia,levava comigo, qual pioneira, algum pau ou pedao de madeira trazida pelacorrenteza, que juntava pilha amontoada contra o alpendre das traseiras. Esta iaganhando uma altura considervel; no entanto, eu sabia que mal comessemos a

    ter necessidade de acender a lareira, daramos conta dela num pice.A cabana ficava mesmo beira da praia, unicamente protegida dos ventosmartimos por uma pequena elevao de terreno arenoso. Era de madeiraacinzentada e erguia-se sobre pilares do mesmo material, pelo que o acesso aosalpendres da frente e das traseiras era feito por um pequeno lano de escadas. Nointerior, havia uma sala de estar espaosa, dotada de janelas panormicas voltadaspara o mar; a cozinha era minscula, estreita; uma casa de banho - sem banheira,apenas um chuveiro - e dois quartos de dormir, um maior, com cama de casal, ondeo meu pai ficava, e outro mais pequeno, o meu, com uma cama de solteiro,destinado a uma criana pequena ou a um parente de mais idade. Estava mobiliadano estilo vagamente deprimente das cabanas de Vero, notando-se que todas as

    peas eram nitidamente provenientes de outras casas maiores. A cama do meu paiera uma vasta monstruosidade de bronze qual faltavam as maanetas e com umasrie de molas que chiavam de cada vez que se virava. E no meu quarto havia umespelho de gesso trabalhado e pintado de dourado, que parecia ter iniciado os seusdias num bordel vitoriano, devolvendo-me a imagem de uma mulher afogada ecoberta de manchas escuras.A sala de estar no estava em melhor estado de conservao: os velhos sofsbalanavam e tinham o forro gasto disfarado por coberturas de crochet, o tapetepudo tinha um buraco e o enchimento de crina de cavalo dos outros sofs dava aimpresso de estar prestes a romper a barreira do tecido. A nica mesa existentefora ocupada, numa das extremidades, pelo pai, que a montara a sua secretria, oque nos obrigava, s refeies, a comer quase em cima um do outro, na outra ponta.O melhor que a casa tinha era o assento da janela, que ocupava toda a extenso daparede, almofadado com espuma e coberto por tapetes e almofadas quentes efelpudas, e to convidativo como um sof velho quando tnhamos vontade de nosenrodilhar a ler, assistir ao pr do sol ou, simplesmente, refletir.Mas era um local solitrio. noite, o vento cutucava e abria caminho por entre asfrinchas que rodeavam a janela e as salas enchiam-se de estranhos rudos erangidos, dando a ntida sensao de que navegvamos num navio, em pleno alto-mar. Quando o meu pai ali estava, nada daquilo fazia diferena, mas quando euficava sozinha, a minha imaginao, inspirada pelas histrias de violncia de todos

    os dias que eu lia nas colunas do jornal da regio, levantava amarras. A cabana emsi j era uma construo frgil e nenhuma das fechaduras das portas deteria umintruso determinado e, agora que o Vero chegara ao fim e os ocupantes dasrestantes cabanas tinham feito as malas e regressado aos respectivos lares,tornava-se ainda mais isolado. Mesmo Myrtle e Bill ficavam a uns bons cinqentametros de distncia, alm do telefone ser uma extenso que nem sempre funcionavacom muita eficincia. Fosse como fosse, nem valia a pena pensar naspossibilidades.Nunca falara ao meu pai nestes medos - ele tinha, vendo bem, um trabalho deresponsabilidade a realizar e como era, intrinsecamente, um homem perceptivo,tenho a certeza de que me considerava capaz de entrar em pnico, uma das razes

    pelas quais me deixara ficar com Rusty.

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    Nessa tarde, depois do dia passado na praia cheia de gente, do sol brilhante e domeu encontro com o jovem estudante de Santa Brbara, a cabana parecia aindamais deserta.O sol deslizara para l da linha do horizonte, levantara-se uma brisa martima e no

    tardava a ficar noite, pelo que, laia de companhia, acendi a lareira, empilhandoafoitamente alguns pedaos da madeira trazida pelas ondas; e, para maior conforto,tomei um duche, lavei o cabelo e, envolta numa toalha, fui ao meu quarto buscarumas jeans lavadas e uma velha camisola branca que pertencera ao meu pai at eu,sem querer, ter feito com que ficasse encolhida.Por baixo do espelho de bordel estava uma cmoda envernizada com gavetas, quetambm tinha de servir de mesinha-de-cabeceira. Sobre ela, por falta de espaonoutro stio qualquer, colocara as minhas fotografias. Eram muitas, ocupavambastante espao e raramente olhava para elas, mas naquela noite era diferente e,enquanto desemaranhava o cabelo comprido, mirei-as, uma a uma, como se fossemde uma pessoa que mal conhecia, de lugares que nunca vira.

    Uma era da minha me, um retrato formal, em moldura de prata. Tinha os ombrosdescobertos, brincos de diamantes nas orelhas e o cabelo acabado de pentear naElizabeth Arden. Adorava aquela foto, porm, no era assim que a recordava. Umaoutra estava mais prxima da realidade; fora tirada num piquenique e depoisampliada; nesta, ela usava a sua saia escocesa e, sentada sobre uma meda de fenoque quase lhe dava pela cintura, ria como se algo de ridculo estivesse prestes aacontecer. E, depois, havia a coleo - mais propriamente a montagem - com a qualenchera ambas as faces do enorme porta-retratos em cabedal: Elvie - a velha casapintada de branco, tendo por fundo um cercado de lanos e pinheiros, a colina aerguer-se ao fundo, o brilho do lago depois do prado, o pequeno barco a motor, e ooutro, maior, no qual costumvamos ir pescar trutas. E a minha av, no umbral dasjanelas francesas, abertas, com a onipresente tesoura de podar nas mos. E umpostal a cores do lago Elvie, que eu comprara na estao de correios de Thrumbo. Eoutro piquenique, com os meus pais juntos, ao fundo o nosso velho carro e umanafado spaniel pintalgado aos ps da minha me.E havia ainda as fotografias do meu primo Sinclair. Dzias delas. Sinclair com a suaprimeira truta, Sinclair envergando o seu kilt, preparado para uma sada qualquer,Sinclair de camisa branca, capito da equipa de crquete do seu liceu, Sinclair afazer esqui, Sinclair ao volante do seu carro e, por fim, com um chapu de papelnuma festa de passagem de ano, parecendo ligeiramente embriagado. (Nestafotografia, tinha um brao em redor dos ombros de uma rapariga morena e bonita,

    embora eu tivesse disposto as fotos de maneira a esta no aparecer.).Sinclair era filho de Aylwyn, irmo da minha av. Aylwyn casara demasiado jovem -disseram todos -, com uma rapariga chamada Silvia. A discordncia da famlia emrelao escolha mostrou-se fundamentada pois, mal deu ao jovem marido um filhovaro, Silvia largou os dois e foi Viver com um homem que era corretor de imveisnas ilhas Baleares. Desvanecido o choque inicial, todos concordaram que fora omelhor que podia ter acontecido, em especial para Sinclair, que foi entregue aoscuidados da av e criado em Elvie no meio do maior conforto. Eu ficara sempre coma idia de que o meu primo desfrutara sempre do bom e do melhor.De seu pai, o meu tio Aylwyn, no conservava nenhuma recordao. Era eu aindamuito pequena, partira para o Canad, voltando, presumivelmente, de vez em

    quando, para visitar a me e o filho, mas nunca durante as nossas permanncias em

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    Elvie. O meu nico interesse nele residia na possibilidade de me enviar um toucadode pele-vermelha. No decorrer dos anos, devo ter feito a sugesto uma centena devezes, mas sempre em vo.De modo que Sinclair fazia, virtualmente, de filho da minha av. No conseguia

    recordar-me de alguma altura em que no me tivesse sentido mais ou menosapaixonada por ele. Seis anos mais velho do que eu, fora o mentor da minhainfncia, infinitamente sbio e constantemente corajoso. Ensinara-me a prender umanzol numa linha, a balouar de cabea para baixo no seu trapzio, a atirar umabola de crquete. Juntos, tnhamos nadado, andado de tren, acendido fogueirasilegais, construdo uma casa numa rvore e brincado aos piratas no velho barco quemetia gua.Quando vim para a Amrica, escrevia-lhe regularmente, mas, pouco a pouco, fuidesistindo devido falta de resposta. Em breve, a nossa correspondncia ficouresumida a cartes de boas-festas no Natal ou a um bilhete escrevinhado pressano dia de anos, sendo atravs da minha av que eu obtinha notcias dele; tambm

    fora por intermdio desta que recebera a fotografia da festa de passagem do ano.Depois da morte da minha me, como se a sua responsabilidade por Sinclair no lhebastasse, a minha av ofereceu-se para me proporcionar, igualmente, um lar."Rufus, por que no deixas a criana comigo?"Fizera a pergunta logo aps o funeral, depois do regresso a Elvie, pondo o desgostode lado e falando sobre o futuro com o seu feitio prtico. No estava previsto euescutar, no entanto encontrava-me ali, nas escadas, e as vozes chegavamnitidamente at mim atravs da porta fechada da biblioteca."Porque j mais do que suficiente ter uma criana ao seu cuidado."Mas eu adoraria ficar com ela e ela tambm me faria companhia."No achas que um pouco de egosmo da tua parte?."No creio. Mas, Rufus, agora na vida dela que deves pensar, no seu futuro..."O meu pai disse uma palavra muito feia. Fiquei horrorizada, no com a palavra, masporque ele lha dissera. Talvez estivesse ligeiramente embriagado...Fazendo de conta que no a ouvira, com os seus modos habitualmente senhoris, aminha av no esmoreceu, baixando, contudo, o seu tom de voz, como aconteciasempre que comeava a ficar zangada."Acabaste de me dizer que vais para a Amrica escrever o guio do teu livro paraum filme. No podes levar atrs uma jovem de catorze anos daqui at Hollywood."Por que no?""E quanto aos estudos dela?"

    "Na Amrica h escolas.""No me custaria nada ficar com ela aqui. S at te instalares, encontrares um lugarpara viver."O meu pai empurrara ruidosamente a cadeira para trs ao levantar-se. Ouvi-oandando de um lado para o outro."E depois mando-a ir e tu mand-la de avio?""Evidentemente.""No dar resultado, sabes.""Porqu?""Porque se deixar Jane aqui contigo, seja por que perodo de tempo for, Elvie tornar-se- o seu lar e nunca mais querer deix-lo. Conheces bem a adorao que ela

    tem por este lugar."

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    "Ento, para bem dela...""Para bem dela, leva-la-ei comigo.Fez-se um silncio prolongado. Depois, a minha av voltou a falar."A nica razo no essa, pois no, Rufus?"

    O meu pai hesitou, como se no desejasse ofend-la."No", respondeu finalmente, "no .""Apesar de todas as consideraes, continuo a achar que vais cometer um erro.""Se assim for, assumo a responsabilidade. Da mesma maneira que ela a minhanica filha e eu no quero separar-me dela."Ouvira o suficiente. Levantei-me com um pulo e subi a correr as escadas s escuras.No meu quarto, de bruos sobre a cama, chorei copiosamente porque ia deixarElvie, nunca mais veria Sinclair, e as duas pessoas que mais amava no mundotinham estado a discutir uma com a outra por minha causa.Escrevi minha av e esta respondeu, evidentemente, e as suas cartas traziam-meos sons e os odores de Elvie. At que um dia, passara-se j um ano, perguntou

    numa carta:"Por que no vens at Esccia?", escreveu. "S para umas pequenas frias, umms, mais ou menos. Temos imensas saudades tuas e por aqui h muito que ver.Plantei um novo roseiral no jardim murado e Sinclair vir c passar o ms deAgosto... tem um pequeno apartamento em Earls Court e ofereceu-me almoo daltima vez em que fui cidade. Se houver alguma dificuldade com a passagem,sabes que basta avisar pois direi a Mr. Benjamm, da agncia de viagens, que teenvie um bilhete de ida e volta. Fala do assunto com o teu pai."A perspectiva de passar o ms de Agosto em Elvie na companhia de Sinclair eraquase irresistvel; todavia, no podia apresent-la ao meu pai porque ouvira adiscusso irada que haviam tido na biblioteca e no acreditava que obtivessepermisso para a viagem.Alm disso, dava a impresso de que nunca havia tempo ou oportunidade para talviagem. Era como se nos tivssemos tornado nmades - chegvamos a um lugar,instalvamo-nos e, pouco tempo depois, partamos para outro lado qualquer. svezes, tnhamos dinheiro em abundncia, mas na maior parte do tempo andvamoscom falta dele. O meu pai, faltando-lhe a conteno da minha me, gastava dinheiroa esmo. Vivemos em manses de Hollywood, motis, apartamentos na QuintaAvenida, penses atravancadas. medida que os anos foram passando, ficvamoscom a sensao de que no fizramos outra coisa na vida seno passear por toda aAmrica e que nunca mais voltaramos a assentar num lugar; em simultneo, a

    lembrana de Elvie ia-se tornando cada vez mais diluda e ganhando foros deirrealidade, como se as guas do lago Elvie tivessem subido e engolido o lugar, eera com esforo que fazia por me recordar que continuava no mesmo stio, habitadopor seres humanos ligados minha vida e a quem amava, no que estes se tinhamafogado e desaparecido para sempre, diludos e indistintos nas guas profundas dealguma catstrofe natural.Aos meus ps, Rusty ganiu. Sobressaltada, olhei para baixo e, por um instante, toalheada estivera, no conseguia perceber o significado da sua presena e da suamanifestao. At que, qual filme visto no vdeo de casa que a certa altura pra,ouviu-se um dique no mecanismo e a vida do dia-a-dia continuou a passar; percebiento que j tinha o cabelo quase seco, que Rusty estava cheio de fome e queria o

    seu jantar e, mais, que comigo acontecia o mesmo. Pousei ento a minha escova e

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    afastei Elvie dos meus pensamentos, deitei mais lenha na lareira e fui entoinspecionar o frigorfico, em busca de algo para comermos.Eram quase nove horas quando ouvi o carro descer a colina, pelo carreiro que vinhade La Carmella. Dei por ele porque vinha em primeira, como todos so obrigados a

    fazer ali, e porque estava sozinha e o meu subconsciente encontrava-seespecialmente receptivo ao mais insignificante som que fugisse normalidade.Lia um livro e, quando ia a voltar uma pgina, parei abruptamente e escutei comateno. Rusty sentiu a alterao verificada em mim e sentou-se, mantendo-semuito quieto, como se no desejasse perturbar o que quer que fosse. Juntos,ficamos escuta. Na lareira, um a acha cedeu e, distncia, a rebentao do marecoou, retumbante. O carro continuou a descer a vertente.Pensei:"Devem ser Myrtle e Bill. Foram ao cinema a La Carmella."A viatura, porm, no parou no supermercado. Continuou a descer, sempre com amudana em primeira, passou os cedros onde os apreciadores de piqueniques

    estacionavam os seus carros, seguindo pelo caminho que s podia vir na minhadireo.Meu pai? Mas o seu regresso s estava previsto para a noite do dia seguinte... Ojovem que conhecera naquele dia, voltando para tomar um copo de cerveja? Umpassante? Um preso fugido? Um manaco sexual...?Pus-me de p num pulo, deixando cair o livro em cima do tapete pudo e corri averificar os fechos das portas. Estavam ambos bem presos. Mas a cabana no tinhacortinas, qualquer pessoa podia olhar para dentro e observar-me sem ser vista. Numfrenesi de medo, fui desligar precipitadamente todas as luzes, embora a lareiracontinuasse bem acesa, enchendo a sala de estar de uma luminosidadetremeluzente... brincando s sombras nas paredes e nos mveis, dando aos sofsum aspecto sombrio e agressivo.No lado de fora, luzes e faris vasculhavam a escurido. Naquele momento, j podiaver o automvel, que se aproximava lentamente, saltando ao passar sobre as razessecas que juncavam o caminho. Passou pela cabana que ficava antes da nossa eestacionou suavemente junto do nosso alpendre das traseiras. E no era o meu pai.Chamei Rusty para o meu lado com um sussurro, sentindo uma certa segurana aoagarrar-me sua coleira inseticida e ao sentir-lhe o calor do plo. Rosnava baixinho,sem, no entanto, ladrar. Depois ouvimos, juntos, o motor ser desligado e a portaabrir e fechar. Por um momento reinou o silncio. Depois soaram passadas suavessobre o piso arenoso que se estendia entre a estrada e o alpendre das traseiras e,

    logo a seguir, bateram porta.Deixei escapar uma espcie de arquejo e Rusty no conseguiu conter-se por maistempo. Libertando-se da priso a que a minha mo o sujeitava, correu para a porta aladrar desalmadamente para quem quer que estivesse do lado de fora.- Rusty! - chamei, correndo atrs dele mas no conseguindo que se calasse. - Rusty,quieto, no faas barulho... Rusty!Segurei-o pela coleira e afastei-o da porta a custo; no entanto, o animal no secalava e eu lembrei-me de que, quem no o estivesse a ver, possivelmente imagina-lo-ia enorme e feroz, o que, se calhar, era o melhor que podia acontecer.Recompus-me, dei-lhe um safano que finalmente o calou, e depois endireitei-me. Aminha sombra, projetada pela luz da lareira acesa, danava de encontro porta

    trancada.

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    teria esperado.A minha raiva comeara a esmorecer e senti-me um tanto envergonhada peloacolhimento intempestivo com que presenteara o desconhecido.-Bem... j que aqui est, melhor entrar.

    Recuei e acendi a luz. A sala ficou instantaneamente inundada pela luz eltrica,brilhante e fria.Mas o desconhecido continuava a hesitar.- No quer ver documentos que comprovem a minha identidade... como o meucarto de crdito, por exemplo? Ou o passaporte?Fitei-o com rispidez, pois embora detectasse um brilho divertido por detrs dosculos, no atinava com o que pudesse estar a ser to divertido.- Se o senhor vivesse aqui h tanto tempo como eu, tambm no abriria a porta aqualquer vagabundo que aparecesse pela calada da noite.- Bom, antes de o vagabundo que apareceu pela calada da noite entrar, talvez noseja m idia ele ir desligar as luzes do carro. Deixei-as acesas para poder ver

    melhor o caminho.Sem esperar pela resposta spera que tanto gosto me teria proporcionado dar-lhe,voltou-me as costas e dirigiu-se para o automvel. Deixei a porta aberta e voltei parajunto da lareira, acrescentando uma acha fogueira; reparei que tinha as mos atremer e o corao a bater violentamente. Endireitei o tapete pudo, atirei, com o p,o osso de Rusty para debaixo de um sof e estava a acender um cigarro quando odesconhecido entrou na cabana, fechando em seguida a porta que dava para oalpendre das traseiras.Virei-me para ele. Era moreno, com a pele branca e o cabelo preto, comuns a muitobom montanhs, era esguio e tinha um ar deveras intelectual, se bem que um tantodesajeitado e simplrio. Envergava um fato de tweed macio, ligeiramente gasto noscotovelos e nos punhos, uma camisa axadrezada em tons de branco e castanho euma gravata verde-escura, parecendo um mestre-escola ou um professor de sabe-se l que cincia. Quanto idade, era impossvel de calcular. Podia situar-se alguresentre os trinta e os cinqenta.Perguntou-me:- J se sente melhor?- Estou bem - retorqui, embora as mos continuassem a tremer-me, pormenor emque ele reparou.- No lhe faria mal nenhum tomar uma pequena bebida.- No sei se h alguma bebida em casa.

    - Onde poderamos procurar?- Talvez debaixo do assento da janela...O desconhecido acercou-se do armrio que ficava no lugar que eu lhe indicara,tateou um pouco no seu interior e, ao retirar o brao, trouxe uma boa camada de pna manga e uma garrafa de Haig, a um quarto, na mo.- Serve perfeitamente. Agora s precisamos de um copo.Fui cozinha e voltei com dois copos, um jarro de gua e o recipiente de gelo quetirara do congelador, ficando a v-lo preparar as bebidas. Estava estranhamentebronzeado. Observei:- No aprecio muito usque.- Considere-o como um medicamento.

    Passou-me o meu copo.

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    - No quero ficar embriagada.- Com essa poro, asseguro-lhe que no.No me parecia descabido. O usque sabia a fumo e proporcionou-me umasensao maravilhosa de calor. Reconfortada, senti um certo embarao por ter sido

    to tola. Sorri-lhe, hesitante.O desconhecido retribuiu-me o sorriso.- E que tal sentarmo-nos?Assim fizemos, eu no tapete pudo, ele na beira da enorme poltrona do meu pai, comas mos escondidas entre os joelhos e o copo da bebida no cho, entre os ps.Perguntou:- J agora, gostaria de saber o que foi que a levou a abrir a porta.- Foi o modo como pronunciou o seu apelido: Stewart. da Esccia, no ?- Precisamente.- De que zona?- De Caple Bridge.

    - Mas fica perto de Elvie!- Eu sei. Sabe, trabalho para Ramsay McKenzie e King...- A firma de advogados da minha av.- Exato.- Mas no me recordo de si.- S estou na firma h cinco anos.Senti um aperto no corao, mas obriguei-me a perguntar:- Por acaso no houve... algum problema...- Nada de especial - retorquiu-me com voz reconfortante.- Ento, porque veio at aqui?- Trata-se de uma questo - disse David Stewart - relacionada com uma srie decartas que ficaram sem resposta.

    Captulo 3

    Passado um bocado, declarei:- No compreendo.- Quatro, para ser mais preciso. Trs da prpria mistress Bailey e uma da minhaparte, escrita em seu nome.- Escrita a quem?- Ao seu pai.

    - Quando?- No decurso dos ltimos dois meses.- Enviaram as cartas para aqui? No sei se sabe, mas acontece que mudamos deresidncia com muita freqncia.- A menina foi a prpria a escrever sua av a dar esta morada.Era verdade. Quando nos mudvamos, eu informava-a sempre do novo endereo.Atirei o cigarro meio consumido para o fogo e fiz um esforo para me adaptar quelasituao inusitada. O meu pai, no obstante todos os seus defeitos, era um homemque no guardava nada para si... pelo contrrio, chegava a pecar por excesso nosentido oposto, barafustando e queixando-se durante dias a fio se algo o perturbavaou preocupava. Relativamente s cartas, porm, no lhe ouvira qualquer referncia.

    O advogado induziu-me a falar.

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    - No viu as cartas de que falo?- No. O que no me surpreende, porque sempre o meu pai que vai buscardiariamente o correio ao supermercado.- Talvez no as tenha chegado a abrir...

    Mas tambm aquela possibilidade estava fora de questo. O meu pai no deixavauma carta por abrir. No que as lesse, mas havia sempre a possibilidade auspiciosade o envelope conter um cheque.Respondi:- No, no o faria. - Engoli em seco e afastei o cabelo da cara. - De que falavam ascartas? Provavelmente no sabe.- Mas evidente que sei.Notei que era capaz de falar com grande secura e no era difcil imagin-lo aoabrigo de uma secretria antiquada, disfarando constrangimentos juntamente comemoes e lidando energicamente com pilhas de testamentos incompreensveis,declaraes escritas e juramentadas, transaes comerciais, contratos de

    arrendamento e mandatos judiciais.- Acontece simplesmente que a sua av deseja que a miss volte Esccia... parauma visita...Retorqui:- Estou a par desse seu desejo, nunca deixa de lhe fazer referncia quando nosescreve.O advogado ergueu um sobrolho, interrogativo.- No tem vontade de l voltar?- Tenho... claro que tenho...Pensei no meu pai e lembrei-me da conversa escutada fazia tanto tempo.- No sei... quero dizer, no uma deciso que possa tomar de nimo leve...- Existe alguma razo para que no v?- Bem, claro que existe... o meu pai.- Pretende dizer que o seu pai no dispe de mais ningum que cuide dos seusassuntos domsticos?- No, no nada disso.Ele aguardou que eu adiantasse algo mais relativamente afirmao, talvez que lhedissesse qual era a minha idia. Fiz por no o fitar nos olhos, olhando antes para ofogo. Tinha a desagradvel sensao de que o meu rosto deixava transparecer umaexpresso que podia ser descrita como envergonhada.O advogado declarou:

    - Sabe, nunca houve nenhum ressentimento pelo fato de o seu pai a ter trazido paraa Amrica...- Ela queria que eu ficasse em Elvie.- Quer ento dizer que tem conhecimento?- Tenho, ouvi-os a discutir. Coisa que raramente fazem. Acho que sempre se derammuito bem. Mas houve uma zanga terrvel por minha causa.- Mas isso teve lugar h sete anos atrs. Certamente que agora, s aqui entre ns,podemos tomar algumas providncias.Apresentei a desculpa mais bvia.- Mas to caro...- Mistress Bailey no tem nenhuma objeo em pagar a sua passagem.

    Imaginei, lugubremente, a reao que o meu pai teria perante semelhante proposta.

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    - Basta que se ausente durante cerca de um ms - continuou o advogado. - No temvontade de ir?Os seus modos desarmaram-me.- Sim, claro que tenho..

    - Ento, porqu essa falta de entusiasmo?- No quero desgostar o meu pai. bvio que ele no quer que eu v, casocontrrio teria respondido a essas cartas de que falou.- Sim, as cartas. Onde podero estar? Indiquei a mesa que se encontrava atrs dele,a pilha de manuscritos e livros de consulta, velhos arquivos, envelopes e,lamentavelmente, faturas por pagar.- A em cima, suponho.- Porque ser que ele nunca lhe falou delas?No respondi, porm imaginei conhecer o motivo.De certa maneira, o meu pai ressentia-se com Elvie e o fato de o lugar me ser toquerido. Sentia, provavelmente, algum cime da famlia da parte da minha me.

    Tinha receio de me perder.Respondi:- No fao idia.- Bem, quando espera que ele regresse de Los Angeles?Retorqui-lhe:- No me parece que seja aconselhvel o senhor v-lo. Serviria apenas para o fazerinfeliz pois, mesmo que concordasse com a minha partida, eu no teria coragempara o deixar aqui sozinho.- Mas, com certeza, poderamos tomar alguma medida...- No, no poderamos. Ele no pode deixar de ter algum que olhe por si. Tem oesprito menos prtico do mundo... nunca comprou nenhum alimento ou gasolinapara o carro e, se eu o deixasse, andaria permanentemente preocupada com ele.- Jane... olhe que no pode deixar de pensar um pouco em si...- Irei noutra ocasio. Diga-o minha av.O advogado refletiu, em silncio, sobre a questo. Acabou de tomar a sua bebida edepois pousou o copo.- Bem, fiquemos por aqui. Amanh de manh, regresso a Los Angeles, por volta dasonze da manh. Tenho um lugar reservado para si no avio que vai para NovaIorque tera-feira de manh. No h absolutamente razo alguma para que noreflita maduramente no caso e se por acaso mudar de idias...- No mudarei.

    O advogado ignorou a minha afirmao.- Se mudar de idias, nada a impede de me acompanhar. - Levantou-se. - Continuoa ser de opinio de que devia ir.Como no gosto que me olhem de cima para baixo, tambm me pus de p.- Parece muito seguro de que irei consigo.- Tenho essa esperana.- Acha que so apenas desculpas, no ?- No totalmente.- Lamento muito que tenha feito uma viagem to longa em vo.- Estive em Nova Iorque a tratar de uns assuntos. E tive muito gosto em conhec-la,embora lamente no ter encontrado o seu pai. - Estendeu-me a mo. - Adeus, Jane.

    Hesitei, mas depois estendi-lhe a minha. Os americanos no so grandes adeptos

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    dos apertos de mo e uma pessoa depressa perde o hbito.- Levarei saudades suas sua av.- Sim, e a Sinclair.- Sinclair?

    - Costuma v-lo, no? Quando ele vai a Elvie.- Sim, sim, de fato vejo-o. E claro que lhe darei saudades suas.Pedi-lhe:- Diga-lhe que me escreva.Dito isto, inclinei-me para fazer uma festa a Rusty, pois no queria que DavidStewart reparasse que eu tinha os olhos rasos de lgrimas.Depois de o advogado se retirar, voltei para a cabana e fui at ponta da mesaonde o meu pai tinha os seus papis. No demorei muito a encontrar as quatrocartas, todas abertas e, obviamente, lidas. No quis saber o que diziam.Prevaleceram os meus instintos mais nobres - e, fosse como fosse, j sabia do quefalavam, portanto limitei-me a coloc-las novamente onde tinham estado, no meio da

    papelada.Fui ajoelhar-me no assento da janela, abrindo-a e ficando a olhar para fora. Estavamuito escuro, o mar parecia negro, e fazia frio, muito embora os meus terrores setivessem dissipado. Pensei em Elvie e desejei profundamente l estar. Revimentalmente os gansos a sulcarem os cus, o cheiro da turfa a arder na lareira dovestbulo. Pensei no lago, de um azul brilhante e calmo como um espelho, ouacinzentado e vergastado por ondas brancas levantadas pelos ventos fortes eintempestivos vindos do norte. De repente, senti uma vontade to violenta de lestar que quase me doeu fisicamente.E senti-me furiosa com o meu pai. No queria deix-lo, mas de fato ele podia terdiscutido o assunto comigo, dando-me a oportunidade de tomar uma decisoprpria. Tinha vinte e um anos, j no era nenhuma criana e aquela atitude, que euconsiderava intoleravelmente egosta e antiquada, provocava-me ressentimento.S espero at ele regressar, prometi a mim mesma. S espero at lhe falar daquelascartas. Dir-lhe-ei... dir-lhe-ei...Mas a minha ira foi de curta durao. Nunca conseguia ficar zangada durante muitotempo. Acalmada, provavelmente, pelo ar da noite, ela acabou por se diluir edesaparecer, deixando-me estranhamente vazia. No fundo, nada mudara. Eu ficariacom o meu pai porque o adorava, porque ele queria-me junto dele, precisava demim. No havia alternativa possvel. E no lhe pediria explicaes sobre as cartasporque o fato de ser apanhado em falta deixa-lo-ia embaraado e humilhado, e era

    importante que, se quisssemos continuar a viver juntos, ele continuasse a ser maisimportante, forte e ponderado que eu.Estava muito entretida a esfregar o cho da cozinha na manh seguinte quando ouvio chiar inconfundvel do velho Dodge a descer a encosta, enveredando depois pelocaminho que ia dar a Reef Point. Limpei rapidamente o ltimo quadrado de linleocastanho cheio de fissuras, depois pus-me de p, atirei o pano do cho para umcanto, despejei a gua no lava-louas e sa ao encontro do meu pai pelo alpendre dafrente, limpando, ao mesmo tempo, as mos ao velho avental s riscas que pusera.Estava um dia estupendo: o sol quente, o cu azul e cheio de nuvens brancas ebrilhantes tocadas pelo vento, a manh resplandecente e o rebentar das ondas altassobre a praia. J fizera uma mquina de roupa, que agora secava, adejando no

    estendal; baixei-me para passar por baixo desta e sa para a estrada, enquanto o

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    carro vinha na minha direo, saltando e balanando violentamente ao passar porcima das razes.Reparei imediatamente que o meu pai no vinha sozinho. Como o tempo estavaesplndido, baixara a capota do carro e ao seu lado vinha, sem a menor dvida, com

    a cabea de cabelos ruivos ao vento, Linda Lansing. Ao avistar-me, inclinou-sesobre a porta do carro e acenou-me, enquanto o co-d'gua branco que trazia aocolo tambm espreitou pela janela, lanando-se num paroxismo de latidos, como seeu no passasse de uma intrusa.Rusty, que estivera na praia muito entretido com um bocado de cesto velho, ouviu oco-d'gua e veio imediatamente em meu socorro, dando a volta esquina dacabana a correr, ladrando desalmadamente, fazendo pequenas investidas contra oDodge, de dentes mostra, incapaz de aguardar o momento de xtase que seriapoder mergulh-los no pescoo do congnere. Antes que houvesse a menorpossibilidade de conversa humana, o meu pai praguejou, Linda gritou e apertou oco-d'gua contra si, este ganiu e eu agarrei Rusty pela coleira inseticida e arrastei-o

    para casa, mandando-o calar e portar-se bem.Deixei-o, entretanto, amuado e voltei a sair. O meu pai apeara-se.- Ol, fofinha - cumprimentou, dando a volta ao carro para me vir abraar e beijar. Oseu amplexo fez-me vislumbrar como seria o de um gorila e a barba que usavaarranhou-me a cara. - Est tudo bem?- Sim, tudo timo - retorqui, afastando-me.- Viva, Linda.- Viva, querida.- Desculpe o comportamento do co.Fui abrir-lhe a porta. Linda vinha completamente maquiada, trazia pestanas postias,um fato de treino azul-beb e sabrinas douradas. O co-d'gua tinha uma coleiracor-de-rosa enfeitada com pedrinhas a imitarem diamantes.- No tem importncia. Mitzi muito nervosa. Creio que tem a ver com o seupedigree excelente.Ergueu o rosto, de lbios esticados, para receber o meu beijo. Mal lho dei, o co-d'gua comeou novamente a ganir.- Por amor de Deus - exclamou o meu pai -, cala-me essa malfadada cadela.Linda atirou-a ento para fora do carro sem cerimnias e tambm saiu.Linda Lansing era atriz. Vinte anos antes, aparecera em Hollywood como starlet, oque significava uma prodigiosa campanha publicitria seguida de uma fiada defilmes medocres, nos quais desempenhava sempre papis de cigana, camponesa,

    usando blusas cingidas de ombros descobertos, lbios pintados de vermelho-escuroe uma expresso lgubre e mal-humorada. Mas este tipo de filmes acabou,inevitavelmente, por sair de moda, assim como o seu tipo de representao, e Lindaseguiu o mesmo destino. Astutamente, pois de estpida no tinha nada, casouimediatamente. "O meu marido est primeiro que a minha carreira", diziam aslegendas que acompanhavam as fotografias do casamento; durante algum tempodesapareceu, de fato, da vida cinematogrfica de Hollywood. Nos ltimos tempos,porm, depois de se divorciar do terceiro marido e no tendo ainda lanado a redeao quarto, voltara a desempenhar pequenos papis para o cinema e a televiso.Para toda uma nova gerao de espectadores, tratava-se de uma cara nova e,dirigida por profissionais sagazes, revelou um talento completamente inesperado

    para a comdia.

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    Conhecramo-nos num desses pavorosos beberetes de domingo beira da piscinaque to integrados estavam na vida social de Los Angeles. O meu pai atrelara-seimediatamente a ela, sob a desculpa de que era a nica mulher presente com quemvalia a pena falar. Eu tambm gostara dela. Possua um sentido de humor vulgar,

    uma voz agradavelmente profunda e uma capacidade surpreendente para se rir desi mesma.O meu pai muito solicitado pelas mulheres; no entanto, sempre conduziu as suasligaes com admirvel discrio. Eu sabia que se envolvera numa aventura comLinda, mas estava muito longe de esperar que a trouxesse para Reef Point consigo.Decidi no dar a entender a minha admirao.- Mas que surpresa. A que se deve a sua presena por estas bandas?- Oh, tu sabes como , querida, quando o teu pai mete uma idia na cabea. Massente-me s este cheiro a maresia!Inspirou profundamente, o que lhe provocou um ligeiro acesso de tosse, e voltou aocarro para tentar descobrir a sua mala de mo. Foi nessa altura que reparei no

    monte de bagagem que enchia o assento de trs: trs malas, uma mala-armrio, ummalote com os acessrios de maquiagem, um casaco de pele de marta num saco deplstico e o cesto de Mitzi, juntamente com o seu osso de borracha cor-de-rosa.Fiquei de boca aberta perante tal profuso de equipamento, mas antes que pudessefazer alguma observao, o meu pai j me pusera fora do seu caminho com ocotovelo, tirando as duas malas.- Bem, no fiques a especada - declarou. - Traz alguma coisa para dentro.E, dizendo isto, seguiu para a cabana. Linda, depois de reparar na minha expresso,decidiu que Mitzi precisava de dar uma corrida pela praia e desapareceu. Eu fizmeno de ir atrs do meu pai, mas, pensando melhor, fui buscar o cesto do co evoltei ento para casa.Encontrei-o na sala de estar. Depois de pousar as duas malas no meio do cho eatirar o seu bon de pala para cima de um sof, tirou uns maos de cartas antigas edocumentos do bolso, colocando-os em cima da mesa. A sala, que eu acabara delimpar e arrumar, ficou imediatamente em desordem, desalinhada, em alvoroo. Omeu pai tinha o condo de provocar aquela situao pelo simples fato de entrar ldentro. Depois, acercou-se da janela, apoiou-se a ela, lanando uma mirada paisagem e sorvendo uma boa lufada de ar. Por cima dos seus ombros largos, euvia, ao longe, a figura de Linda a passear beira-mar em companhia do co-d'gua.Rusty, sentado na bancada da janela, ainda amuado, nem sequer mexeu a cauda.O meu pai virou-se, tirando os cigarros do bolso. Parecia muito satisfeito consigo

    mesmo.- Bem - disse -, no perguntas como correram as coisas?Acendeu um cigarro, depois olhou para mim, franziu o sobrolho, e atirou o fsforousado pela janela, que ficara atrs de si. - Para que continuas com o cesto na mo?Pousa essa porcaria.No o fiz. Perguntei:- Que se passa?- Que queres dizer?Apercebi-me de que toda aquela euforia servia apenas para disfarar um enormeconstrangimento.- Sabes muito bem do que falo. De Linda.

    - Que tem Linda? Gostas dela, no verdade?

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    - Claro que gosto, mas o problema no est a. Que faz ela aqui?- Convidei-a a vir para c.- Com toda aquela bagagem? Por amor de Deus, por quanto tempo?- Bem... - fez um gesto vago com a mo. - Enquanto ela quiser.

    - No est a trabalhar?- Oh, fartou-se daquilo tudo.Foi cozinha ver se encontrava uma lata de cerveja. Ouvi a porta do frigorfico abrire fechar.- Fartou-se de Los Angeles, tal como aconteceu conosco. Foi ento que tive estaidia. - Apareceu porta da cozinha com a lata aberta na mo.- Mal fiz a sugesto, arranjou logo algum que lhe ficasse com a casa e a criada, fezas malas e ficou pronta para vir. - Franziu novamente o sobrolho. - Jane, ganhastealgum afeto especial a esse cesto de co?Continuei a no ligar observao.- Por quanto tempo? - insisti, de m catadura.

    - Bem, pelo tempo que nos apetecer. No sei. Talvez o Inverno.Observei:- No h espao.- Claro que h. E, afinal de contas, de quem esta casa?Esvaziou a lata, atirou-a certeiramente para o balde do lixo da cozinha e saiu paratrazer o resto da bagagem. Dessa vez, levou as malas para o seu quarto. Pus ocesto de Mitzi no cho e fui atrs dele. Na diviso, onde imperava a cama enorme,agora com as malas e ns dois, pouco espao mais restava.Perguntei:- Onde que ela vai dormir?- Bem, onde pensas que poderia faz-lo?Sentou-se na cama monstruosa e as molas rangeram em sinal de protesto. -Precisamente aqui.No me ocorreu nenhuma observao. Limitei-me a olhar para o meu pai. Nunca mevira perante semelhante situao. "Ter ele perdido a cabea?", pensei.Algo no meu rosto deve t-lo alertado ento, pois pareceu repentinamentecontristado e pegou-me nas mos.-Janey, no fiques assim. J no s nenhuma garota, no preciso de disfarar ascoisas contigo. Gostas de Linda; se assim no fosse nem sequer pensaria em traz-la. E far-te- companhia, no terei de te deixar sozinha tantas vezes. Ora, deixa-tedisso, pe uma cara mais alegre e vai fazer uma cafeteira de caf.

    Retirei as mos de entre as dele. Retorqui:- No tenho tempo.- Que queres dizer?-Tenho... tenho de ir fazer as malas.Sa do quarto do meu pai e fui para o meu; tirei a mala de debaixo da cama ecoloquei-a em cima desta; abri-a e comecei a ench-la como se fazia nos filmes,esvaziando as gavetas uma a uma para o seu interior.Atrs de mim, postado entrada do quarto, o meu pai perguntou-me:- Qual a tua idia?Voltei-me para ele com as mos cheias de saias, cintos, lenos de cabea e deassoar.

    Respondi:

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    - Vou-me embora.- Para onde?- Para a Esccia.O meu pai deu uma passada para dentro do quarto e obrigou-me a encar-lo.

    Continuei a falarapressadamente, sem lhe dar tempo a proferir uma palavra.- Recebeste quatro cartas - declarei - trs da minha av e uma dos advogados.Abriste-as, leste-as e nunca me falaste delas porque no querias que eu voltasse.Nem sequer discutiste o assunto comigo.A fora com que me segurava nos braos no abrandou, mas reparei queempalidecera ligeiramente.- Como que soubeste dessas cartas?Falei-lhe de David Stewart.- Ele contou-me tudo - finalizei. - No que fosse necessrio - acrescentei comindiferena -, pois de qualquer maneira j sabia do assunto.

    - E que que sabes exatamente?- Que nunca quiseste que eu ficasse em Elvie depois da morte da me. Que nuncativeste vontade de me levar novamente at l.O meu pai observava-me, estupefato.- Eu estava escuta - gritei-lhe, como se de repente tivesse sido atacada de surdez.- Encontrava-me no vestbulo e ouvi tudo o que tu e a minha av disseram um aooutro.- E nunca proferiste uma palavra sobre o assunto...- De que teria servido?O meu pai sentou-se cuidadosamente na beira da minha cama, como que para noperturbar a arrumao da minha mala.- Preferias que eu te tivesse deixado l?A casmurrice dele enfureceu-me.- No, claro que no, adorei estar contigo e no teria desejado que as coisas sepassassem de maneira diferente, mas tudo isso foi h sete anos atrs e agora souuma adulta e tu no tinhas o direito de me esconder aquelas cartas no me dizendonada.- assim to grande a vontade de voltares?- , sim. Adoro Elvie e tu sabes o que representa para mim. - Peguei numa escova enas minhas fotografias e enfiei-as nas bolsas laterais da mala. - No tencionava...no tencionava fazer nenhuma referncia s cartas, achei que ficarias muito infeliz,

    e eu no podia ir-me embora porque no tinhas ningum que cuidasse de ti. Agora,a situao mudou.- Est bem, mudou e tu vais-te embora. No te impedirei que o faas. Mas comotencionas l chegar?- David Stewart parte de La Carmella s onze horas. Se me apressar, ainda vou atempo de o apanhar. Ele tem um lugar reservado para mim no avio que parte paraNova Iorque amanh de manh.- E quando voltas?- Oh, no tenho a menor idia. Daqui a uns tempos, suponho.Enfiei na mala, a custo, o livro Gifi from the Sea, de Anne Morrow Lindbergh, do qualnunca me separava, fazendo o mesmo ao LP de Simon e Garfunkel. Tentei, debalde,

    fechar a mala demasiado cheia; abri-a ento novamente e amachuquei

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    freneticamente as coisas, continuando, ainda assim, a no conseguir ser bem-sucedida. Acabou por ser o meu pai a consegui-lo, custa de simples fora,carregando na tampa e forando os fechos a prender-se.Olhei-o nos olhos, tendo a mala a separar-nos, e disse:

    - Se Linda no tivesse vindo, no partiria... - A voz falhou-me. Tirei a minhagabardina do gancho de trs da porta e vesti-a por cima da camisa e das calas queenvergava.- Ainda no tiraste o avental - observou o meu pai.Era dos tais pormenores de que, nos velhos tempos, nos teramos rido. Mas naquelemomento, no mais profundo silncio, desapertei a laada e arranquei-o, atirando-opara cima da cama.Perguntei:- Se levar o carro e depois o deixar ao p do motel, tu ou Linda podero ir busc-lo?- Com certeza... - retorquiu o meu pai.E logo a seguir:

    - Espera...Entrou no seu quarto e voltou com uma mo-cheia de dinheiro, notas de um, cinco edez dlares, todas sujas e amarrotadas como jornais velhos.- Toma - disse, enfiando-me o dinheiro num dos bolsos da gabardina -, melhorlevares isto. Poders precisar.Tentei objetar.- Mas o pai...Porm, Linda e Mitzi escolheram esse momento para voltar da praia, esta enchendoo cho de areia e Linda perfeitamente delirante com aquela sua espcie decomunho com a natureza.- Oh, aquelas ondas. Nunca vi nada parecido. Devem ter mais de trinta metros dealtura. - Foi ento que reparou na minha mala, na minha gabardina e,presumivelmente, no meu ar infeliz. - Jane, que ests a fazer?- Vou-me embora.- Para onde, por amor de Deus?- Para a Esccia.- Espero que no seja por minha causa.- Em parte, . Mas unicamente porque isso significa que o meu pai j tem algumque olhe por ele.Linda mostrou-se um tanto desconcertada, como se olhar pelo pai fosse a ltimacoisa que contara fazer. No entanto, disfarou habilmente e tirou o melhor proveito

    da situao.- Bem, timo para ti. Quando que partes?- Vou levar o Dodge at La Carmella...Comeara j a sair s arrecuas, pois a situao estava a tornar-se insustentvelpara mim. O meu pai pegou na mala e foi atrs de mim.- E espero que tenham um bom Inverno. E que no haja demasiadas tempestades.E na arca frigorfica h ovos e latas de atum...Desci as escadas do alpendre no mesmo estilo e, ao ver-me fora de casa, voltei-me,passei por baixo da corda cheia de roupa a secar (Linda lembrar-se-ia de aapanhar?), sentei-me ao volante do automvel e o meu pai colocou a mala noassento de trs.

    - Jane...

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    Eu, no entanto, sentia-me incapaz de me despedir. J ia a caminho quando melembrei de Rusty. Mas nessa altura j era demasiado tarde. O animal ouvira-me sair,a seguir chegara-lhe o som da porta do carro e do motor a ser ligado, de modo quelanara-se velozmente para fora de casa, ladrando de indignao, correndo a par

    comigo, de orelhas achatadas contra a cabea e em perigo iminente de morte.Foi a ltima gota. Parei o carro. O meu pai soltou um grande berro - "Rusty!" - e veioatrs do co. Rusty ps-se de p e raspou a porta do carro com as unhas e euinclinei-me para tentar afast-lo, dizendo:- Oh, Rusty, no faas isso. Vai-te embora. No podes ir. No posso levar-te comigo.O meu pai, que viera a correr, apanhou-nos finalmente. Agarrou em Rusty e ficou emfrente da janela do carro a olhar para mim. Os olhos do co mostravam mgoa eressentimento, mas os do meu pai tinham uma expresso que eu nunca lhe viraantes nem conseguia entender totalmente. Foi nesse momento que compreendi queno tinha vontade de me despedir de nenhum dos dois e desatei a chorar.- Cuidars de Rusty, no, pai? - gritei, sentindo o queixo tremer. - Fecha-o para que

    no possa vir atrs do carro. E v se no atropelado. E ele s gosta de comidapara co da Red Heart, no da outra marca. E no o deixes sozinho na praia, aindaalgum o rouba.Tentei descobrir um leno, mas, como de costume, no achei nenhum e o meu paitirou um do bolso e entregou-mo, sem falar.Assoei-me e, em seguida, estendi os braos e puxei-o para baixo, dando-lhe umbeijo de despedida a ele e outro a Rusty. O meu pai disse "Adeus, minhapequenina", como j no fazia desde os meus seis anos, e eu, soluando maisviolentamente do que nunca, mal vendo o caminho, no olhei uma nica vez paratrs, sabendo, no entanto, que eles tinham ficado no mesmo stio, olhando para mimat eu desaparecer do outro lado da berma.Faltava um quarto para as onze quando entrei na zona de recepo do motel e ohomem que estava ao balco olhou para o meu rosto molhado de lgrimas seminteresse, como se passasse o dia a ver entrar e sair mulheres chorosas.Perguntei:- Mister Stewart j sai?- No, ainda c est. Falta-lhe pagar uma conta de telefone.- Qual o nmero do seu quarto?O homem lanou uma olhada a um quadro.- Trinta e dois. - Mirou a minha gabardina, os jeans e os tnis manchados eestendeu a mo para o telefone. - Deseja v-lo?

    - Sim, se faz favor.- Eu ligo para ele... informo-o de que est aqui. Como se chama?- Jane Marsh.Indicou, com a cabea, uma porta, fazendo-me sinal para que fosse andando.- Nmero trinta e dois - repetiu.Caminhei cegamente pelo carreiro que se estendia a par com uma piscina enorme emuito azul. Viam-se duas mulheres estendidas em cadeiras de recosto, enquanto osfilhos nadavam, gritavam e disputavam uma bia de borracha. Ainda no chegara ameio quando reparei que David Stewart vinha ao meu encontro. Ao avist-lo, deitei acorrer e, para grande interesse das duas mulheres, e tambm para minha grandesurpresa, agarrei-me a ele a chorar; David deu-me um abrao de consolo, depois

    largou-me e perguntou:

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    - Qual o problema?- Nenhum. - Mas comeara novamente a chorar. - Vou consigo.- Porqu?- Mudei de idias, nada mais.

    - Por que razo?No fora minha inteno contar-lhe, porm no fui capaz de me controlar e comeceia falar.- O meu pai arranjou uma amiga, que trouxe de Los Angeles... e ela... ela...David Stewart olhou para as duas mulheres que nos miravam, de olhos arregaladose disse:- Venha da.Conduziu-me para a privacidade do seu quarto e fechou a porta depois deentrarmos.- Agora j pode falar - disse.Assoei-me e fiz um esforo tremendo para me recompor.

    - Acontece apenas que ele j tem algum que cuide dele. Portanto, j posso irconsigo.- Falou-lhe nas cartas?- Falei.- E ele no se importa que parta?- No. Disse que estava bem.David ficou silencioso. Fitei-o e reparei que virara a cabea, olhando-me agorapensativamente pelo canto do olho direito. Mais tarde descobri que fora ganhandoaquele hbito ao longo dos anos devido a um problema de viso e ao fato de ter deusar culos, mas, naquela altura, foi simultaneamente desconcertante e incmodo;era como se me encostassem parede.Infelicssima, perguntei:- No quer que v consigo?- No isso. Acontece apenas que no a conheo suficientemente bem para saberse est a dizer toda a verdade.Sentia-me demasiado infeliz para ficar ofendida.- Nunca minto - declarei, emendando logo a seguir: - E quando o fao fico muitoagitada evermelha. E o meu pai concordou realmente com a minha partida.Para provar o que dizia, meti a mo no bolso da gabardina e tirei uma mo-cheia dedlares sujos e amarrotados. Algumas das notas caram, como folhas mortas, em

    cima da alcatifa.- Deu-me algum dinheiro para gastar.David inclinou-se para apanhar as notas, que me entregou em seguida.- Jane, continuo a achar que devia falar com ele antes de apanharmos o avio.Podamos...- Eu no seria capaz de enfrentar nova despedida.O rosto de David perdeu a expresso severa. Tocou-me no brao.- Ento, fique aqui. No demorarei mais de quinze minutos.- Promete?- Prometo.Saiu. Deambulei pelo quarto que ele ocupara, li um pouco o jornal; depois, espreitei

    pela porta aberta e fui casa de banho, onde lavei o rosto e as mos, penteei o

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    cabelo e prendi-o num rabo-de-cavalo com um elstico que entretanto encontrara.Fui at piscina, onde me sentei espera; quando Mr. Stewart chegou, colocamosa bagagem no carro e eu sentei-me a seu lado; seguimos at auto-estrada, ondetomamos o rumo de Los Angeles. Passamos a noite num motel prximo do

    aeroporto e, no dia seguinte, apanhamos o avio para Nova Iorque, regressando nanoite posterior a Londres; s quando ia a meio do Atlntico que me lembrei dojovem que ficara de ir fazer surf comigo no domingo.

    Captulo 4

    Vivera a maior parte da minha vida em Londres, mas regressar foi como chegar auma cidade em que nunca estivera antes, to mudada a encontrei. Os edifcios doaeroporto, as vias de acesso, a linha do horizonte, os enormes prdios deapartamentos, o trnsito intenso... tudo aquilo acontecera no decorrer dos ltimossete anos. Sentada a um canto do txi, com a mala aos ps, reparei que ainda havia

    tanto nevoeiro que as luzes dos candeeiros de rua permaneciam acesas de dia, eque j nem me lembrava daquela frialdade mida.No dormira no avio, pelo que me sentia entorpecida pela fadiga; enjoada pelosalimentos pouco apetecveis que me haviam apresentado; eram, pelo meu relgio,ao qual ainda no mudara a hora da Califrnia, duas da manh. Doam-me o corpo,a cabea e os olhos devido viagem, sentia os dentes speros e tinha a sensaode que andava com a mesma roupa fazia sculos.Desfilaram painis com cartazes e anncios afixados, fiadas de casas, antes desermos engolidos pela urbe londrina. O txi virou ao chegar a uns sinais de trnsito,enveredou por uma tranqila rua descendente ladeada de carros estacionados eparou em frente de um aglomerado de casas vitorianas, altas e antigas, construdasnum declive.Observei-as melancolicamente, perguntando a mim mesma o que deveria fazernaquele momento. David inclinou-se para me abrir a porta do meu lado e declarou:- aqui que samos.- Como?Olhei para ele e admirei-me de ver um homem, que partilhara a experinciaautodestrutiva - para mim - de empreender uma viagem area contnua por meiomundo, conservar-se assim to limpo, descontrado e senhor da situao. Mas sado carro obedientemente, deixando-me ficar no passeio a pestanejar como umacoruja e a bocejar, enquanto ele pagava ao motorista, tirava as respectivas malas e

    conduzia-me por uns degraus que iam dar ao piso de uma cave. Os corrimes queladeavam as escadas eram de um negro luzidio, a pequena rea pavimentadaencontrava-se limpa e varrida e havia um vaso de gernios... um tudo-nada sujos defuligem, mas, ainda assim, alegres e coloridos. Puxou de uma chave, abriu a portaamarela e eu segui-o, s cegas, para o interior do apartamento.Estava pintado de branco e cheirava a casa de campo. No cho via-se uma profusode tapetes persas, havia coberturas de tecido de algodo estampado no sof e naspoltronas, peas de moblia antiga polidas e de pequena dimenso, um espelhoveneziano sobre a lareira. Vi livros e uma pilha de revistas, um armrio de frente emvidro cheio de pequenas amostras de tapearia feita mo de Dresden... e, aofundo da sala, do lado de fora das janelas, um jardim interior em miniatura, com um

    pltano, junto do qual havia um banco de madeira, e uma pequena esttua

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    implantada num nicho aberto num muro de tijolos esmaecidos pelo tempo.Eu, que continuava de p, bocejei. David foi abrir uma janela e eu perguntei:- este o seu apartamento?- No, pertence minha me, embora costume utiliz-lo sempre que venho a

    Londres.Olhei em redor com ar vago.- Onde est a sua me?Devia ter dado a impresso de que estava espera de a ver aparecer de detrs dosof, porm David no sorriu.- Encontra-se no Sul de Frana, de frias. Agora venha, dispa o casaco e ponha-se vontade. Vou preparar-lhe uma chvena de ch.Desapareceu por uma porta. Ouvi o som de uma torneira a correr, de uma chaleira aser cheia. O simples fato de imaginar uma chvena de ch j me proporcionava umasensao de conforto e bem-estar. Desapertei, desajeitadamente, os botes dagabardina at conseguir, finalmente, desaboto-la. Despi-a e atirei-a para cima do

    que parecia uma poltrona Chippendale. Deixei-me cair no sof. Este tinha almofadasforradas a veludo verde-vivo e eu peguei numa, que coloquei debaixo da cabea.Todavia, creio que adormeci mesmo antes de erguer os ps do cho para meestender ao comprido. Pelo menos, no me lembro sequer de o ter feito.Quando acordei, a luz ambiente mudara. O meu campo de viso abrangia agora umraio de luz, em cuja rea danavam partculas de poeira e que incidia como se fosseo foco de um projetor. Mexi-me e esfreguei os olhos para espantar o sono, voltandoa olhar e reparando ento no cobertor leve e quente que me tapava.Na lareira crepitava um fogo. S depois de a observar durante algum tempo queme apercebi de que era eltrica, com toros, carvo e chamas de imitao. Pareceu,naquele momento, infinitamente aconchegante. Virei ligeiramente a cabea e viDavid, enterrado numa poltrona, rodeado de papis e pastas. Vestia de maneiradiferente - camisa azul, camisola creme, com decote em bico. Interroguei-me, semgrande preocupao, se ele seria uma daquelas pessoas a quem o sono nunca faziafalta. Ouvira-me mexer e observava-me.Perguntei:- Que dia hoje?Mostrou-se divertido.- Quarta-feira.- Onde estamos?- Em Londres.

    - No, refiro-me zona.- Kensington.Inquiri:- Antigamente, vivamos na Melbury Road. Fica longe?- No. bastante perto.Passado um bocado:- Que horas so?- Quase cinco da tarde.- Quando que vamos para a Esccia?- Hoje noite. Temos lugares reservados no wagon-lit do Royal Highlander.Sentei-me com grande esforo e bocejei, tentando afastar o sono do meu organismo

    e o cabelo da cara. Perguntei:

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    - Seria possvel eu tomar um banho?- Com certeza - retorquiu o advogado.Fui ento lavar-me, em gua muito quente, numa banheira que no vedavacompletamente, utilizando profusamente sais de banho da me de David que este,

    delicadamente, me convidou a usar. Terminado o banho, fui minha bagagembuscar uma muda de roupa limpa, empurrando a suja para dentro da mala efechando-a com muita dificuldade; depois, voltei sala de estar e descobri queDavid preparara um ch e torradas com manteiga, e um prato com bolachascobertas de chocolate daquele a srio, no apenas com sabor ao produto, como asque comia na Amrica.Perguntei:- Foram feitos pela sua me?- No. Sa e fui compr-los enquanto dormia. Temos uma lojinha aqui mesmo esquina, o que d muito jeito quando precisamos de qualquer coisa.- A sua me viveu sempre aqui?

    - De forma alguma, s aqui est h cerca de um ano. Tinha uma casa emHampshire, mas era demasiado grande para ela e o jardim transformou-se numapreocupao... no fcil arranjar gente para certos tipos de trabalho. Portantovendeu-a, conservou alguns dos seus objetos preferidos e mudou-se para aqui.O que explicava o ambiente de casa de campo. Olhei para o pequeno ptio eobservei:- Aqui tambm tem um jardim.- Sim, mas pequeno. Mas desse ela prpria cuida.Peguei noutra torrada e tentei imaginar a minha av em semelhante situao. Masfoi impossvel. Era pessoa a quem nunca amedrontaria o tamanho da sua casa, aquantidade de trabalho ou a dificuldade em arranjar cozinheiros e jardineiros. Ocerto era que sempre vira Mrs. Lumley a servi-la, de p, na cozinha, com as suaspernas inchadas, fazendo bolos. E Will, o jardineiro, tinha uma casinha e uma hortasua, onde cultivava batatas, cenouras e crisntemos enormes.- Quer dizer que nunca viveu sequer neste apartamento?- No, mas venho ficar com a minha me sempre que passo por Londres.- Acontece com freqncia?- Alguma.- Costuma ver Sinclair?- De vez em quando.- Que faz ele?

    - Trabalha para uma agncia de publicidade. Imaginava que tinha conhecimento dofato.Lembrei-me de que podia telefonar-lhe. Afinal de contas, ele vivia em Londres eprocurar o seu nmero levaria apenas uns instantes. Ainda pensei em faz-lo, masdepois mudei de idias. No sabia bem qual seria a sua reao e no queria queDavid Stewart testemunhasse o meu possvel constrangimento.Perguntei:- Ele tem alguma namorada?- Ora, montes delas.- No, sabe muito bem o que quero dizer. Algum muito especial.- Jane, para lhe ser franco, no fao idia.

    Lambi pensativamente a manteiga que tinha na ponta dos dedos.

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    - Acha que ele ir at Elvie quando eu l estiver?- bem provvel.- E o pai? O tio Aylwyn continua no Canad?David Stewart empurrou os culos nariz acima com o dedo comprido e moreno.

    Retorquiu:- Aylwyn Bailey faleceu h cerca de trs meses.Fiquei siderada.- Mas nunca ningum me falou disso. Oh, pobre av. Ficou muito perturbada?- Sim, ficou...- E o funeral e tudo...- Foi no Canad. J estava doente fazia algum tempo. No chegou a conseguirvoltar para casa.- Quer dizer que Sinclair no chegou a rev-lo...- No.Interiorizei a informao e senti-me triste. Lembrei-me do meu prprio pai, que era

    de fazer perder a pacincia, mas que nunca me levaria a lamentar um nicomomento do tempo que passramos juntos, e lamentei ainda mais Sinclair. Vieram-me ento memria os tempos em que o invejara, pois, enquanto eu me limitava apassar as frias em Elvie, ele era a que vivia, permanentemente. E quanto a sentir afalta de um pai, o lugar contara sempre com a presena de muitos homens, poisalm de Will, o jardineiro - que adorvamos -, tambm havia Gibson, o guarda, umindivduo rgido mas indiscutivelmente ponderado, e os dois filhos deste, Hamish eGeorge, mais ou menos com a mesma idade de Sinclair e que o incluam em todosos seus empreendimentos, autorizados ou no. E fora assim que Sinclair aprenderaa caar, pescar, lanar papagaios, jogar crquete e trepar s rvores, gozando, deuma maneira ou de outra, de mais cuidados e atenes que a maioria dos rapazesda sua idade. No, pensando bem, Sinclair disfrutara de muitas regalias.Apanhamos o Royal Highlander em Euston e eu devo ter passado metade da noite asaltar da cama para me ir pr janela, deleitando-me com o fato de o comboioseguir para o Norte e de nada no mundo, exceto algum ato desastroso de Deus,poder alterar semelhante situao. Em Edimburgo, fui despertada por uma vozfeminina que me fez lembrar a de Maggie Smith a fazer de Miss Jean Brodie,informando "Edimburgo, Waverley. Edimburgo, Waverley.Soube ento que meencontrava na Esccia, de modo que levantei-me, coloquei a gabardina por cima dacamisa de noite e sentei-me em cima da tampa do lavatrio vendo as luzes deEdimburgo passar e esperando a ponte; a certa altura, o comboio, fazendo um rudo

    completamente diferente, passou o Forth e o rio apareceu muito abaixo de ns,parecendo uma massa de gua escura e brilhante, tremeluzindo com as luzes emmovimento de embarcaes que a distncia fazia parecerem miniaturas.Voltei a enfiar-me na cama e dormitei at chegarmos a Relkirk, altura em quenovamente me levantei e abri a janela, deixando entrar o ar frio e a cheirar a musgoe pinheiros. Encontrvamo-nos prestes a penetrar nas Terras Altas, a regiomontanhosa da Esccia. Eram ainda s cinco e um quarto da madrugada. Noentanto, vesti-me e passei o resto da viagem com o rosto colado ao vidro que sdeixava ver o negrume e a chuva que escorria por ele. A princpio, pouco ou nadaconseguia ver; todavia, depois de percorrermos a passagem e iniciarmos o longodeclive que vai dar a Thrumbo, o dia comeara a clarear. No havia sinal do sol,

    apenas um aclarar imperceptvel da escurido. Sobre o cume das colinas viam-se

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    nuvens densas, cinzentas e leves, mas, medida que descamos em direo aovale, estas foram-se rarefazendo e diluindo at desaparecerem, e, ento, a vastaimensido do vale estreito apareceu diante de ns, com uma tonalidadeacastanhada e tranqila sob os primeiros alvores da manh.

    Bateram minha porta e a camareira meteu a cabea pela abertura para me dizer:- O senhor deseja saber se est acordada. Chegaremos a Thrumbo daqui a cerca dedez minutos. Quer que leve a sua mala?Aceitei a oferta e, depois de ela sair e fechar a porta, voltei para junto da janela, poisa paisagem campestre comeara a tornar-se familiar e eu no queria perder umpormenor que fosse. Eu caminhara por aquele pedao de estrada, cavalgara umpnei naquele campo, fora convidada para tomar ch naquela casinha pintada debranco. Depois, apareceu a ponte que marcava a fronteira da aldeia, a estao degasolina e o requintado hotel que estava sempre repleto de residentes idosos e ondenunca se podia tomar uma bebida.A porta voltou a abrir-se e David Stewart apareceu, enchendo a entrada.

    - Bom dia.- Viva.- Dormiu bem?- Otimamente.O comboio comeara naquele momento a abrandar a velocidade, acionado ostraves. Passamos o semforo, por baixo da ponte. Deslizei de cima do tampo dolavatrio para o cho e segui David at ao corredor, onde vi passar triunfantemente,por cima do seu ombro, a tabuleta assinalando Thrumbo e, logo a seguir, o comboioparou e chegamos ao nosso destino.David deixara o seu carro numa garagem, pelo que me deixou sua espera no ptioda estao, enquanto ia busc-lo. Sentei-me em cima da mala, na aldeia deserta,que, a pouco e pouco, comeava a despertar. Vi luzes acenderem-se uma a uma,chamins comearem a deitar fumo e, pela estrada, veio um homem aosziguezagues na sua bicicleta. Nessa altura chegou at mim, vindo de muito l noalto, um grasnar e um chilrear que se foi tornando cada vez mais audvel e passounitidamente por cima da minha cabea, embora eu no pudesse ver o bando degansos selvagens que voavam acima das nuvens.O lago de Elvie ficava a cerca de trs quilmetros da aldeia de Thrumbo, sendo umavasta extenso de gua, cortada a norte pela estrada principal, junto de Inverness, efechada, no extremo oposto, pelos enormes basties de Cairngorms. Elvie, em si,pouco mais era do que uma ilha em forma de cogumelo, ligada terra pelo

    pednculo, uma faixa estreita de terra que no passava de um caminho elevado quese estendia por entre um terreno pantanoso juncado de caniais, lugar ondecentenas de aves nidificavam.A terra pertencera, durante muitos anos, igreja e, de fato, ainda eram visveis asrunas de uma pequena capela, agora sem telhado e vazia, embora o cemitriodiminuto que a rodeava continuasse a ser cuidado e limpo, os teixosimpecavelmente cortados e a relva macia como veludo, alegrada todas asPrimaveras pelas ptalas coloridas dos narcisos selvagens.A casa onde a minha av vivia servira, em tempos idos, de presbitrio daquelapequena igreja. Com o decorrer dos anos, porm, ultrapassara os seus modestoslimites de origem, sendo-lhe acrescentadas alas e quartos extra destinados a

    acomodar, presume-se, grandes famlias vitorianas. Vista das traseiras, de quem

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    vinha pela estrada, parecia alta e imponente, sendo as janelas voltadas a nortepequenas e escassas, de maneira a conservarem o calor nos Invernos rigorosos,enquanto a porta da frente, pequena e vulgar, encontrava-se, habitualmente,fechada a sete chaves. Aquela sensao de fortaleza era acentuada pelos dois

    muros altos do jardim, os quais, como braos, estendiam-se desde a casa para estee oeste e por onde nem mesmo a minha av conseguira fazer com que umatrepadeira subisse.Do outro lado, porm, o aspecto de Elvie era completamente diferente. A velha casabranca, protegida e enclausurada de frente para o sul, cintilava e dorroitava luz dosol. As janelas e as portas mantinham-se abertas para deixar entrar o ar fresco e ojardim descia at um valado estreito que lhe servia de limite em relao ao campodo lado, onde um vizinho agricultor deixava o seu gado pastar.O campo estendia-se at beira da gua e o bater da ondulao ligeira no cascalho,assim como o mugir suave e o mastigar do gado, fazia parte to integrante de Elvieque, passado um bocado, deixava de se ouvir. S depois de se estar longe e voltar

    que se dava novamente por ele.O automvel de David Stewart, um T.R.4 azul-escuro, revelou-se uma surpresa,mostrando-o inesperadamente veloz para um cidado de aspecto to pacato.Guardamos dentro dele as nossas malas e samos de Thrumbo, indo eu sentada nabeira do meu banco, tanta dificuldade tinha em conter a excitao. Aparecerammarcos conhecidos, que depressa ficaram para trs: a garagem, a doaria e a quintados McGregor; de repente, vimo-nos em campo aberto. A estrada comeou a subirpor entre campos de restolho dourado, as bermas estavam salpicadas de escarlatecom os aglomerados de roseiras-bravas, e j cara geada, pois as rvoresapresentavam-se manchadas com o dourado e o vermelho das primeiras cores doOutono.Foi ento que, ao darmos a ltima volta, deparamos com o lago, que se estendia nossa direita, refletindo a tonalidade da manh cinzenta, enquanto as montanhas seviam mais ao longe, perdidas no meio das nuvens. E menos de um quilmetro maisadiante apareceu Elvie, a casa oculta pelas rvores e a igreja sem tetoromanticamente deserta. Eu no conseguia falar de to excitada e David Stewart,com uma sensibilidade rara, absteve-se de qualquer comentrio. Tnhamos vindojuntos de muito longe, na verdade de uma lonjura tal que era difcil de compreender,mas foi em silncio que finalmente viramos para o caminho que passava em frentedo casebre e o carro serpenteou por entre as bermas altas, passando por entre ospantanais e subindo sob as faias, at parar diante da porta da frente.

    Saltei imediatamente para fora do carro, atravessei o cho coberto de cascalho acorrer, porm a minha av foi mais rpida do que eu. A porta abriu-se, ela apareceue camos nos braos uma da outra; ela repetia incessantemente o meu nome,exalando o perfume dos saquinhos que guardava debaixo das suas roupas, e eudisse de mim para mim que nada mudara.

    Captulo 5

    Um encontro, depois de passados tantos anos, gera sempre confuso. Dissemoscoisas como: "Oh, ests aqui de verdade...", "Achei que nunca mais c chegava...","Fizeste boa viagem?..." e "Est tudo na mesma", depois afastvamo-nos uma da

    outra, ramos das nossas idiotices e voltvamos a abraar-nos.

  • 8/6/2019 6659771 Fim de Verao Rosamunde Pilcher

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    A seguir, foram os ces que vieram aumentar o tumulto, saindo de casa a ladrar-nosaos ps, exigindo ateno. Eram spaniels castanho-e-brancos, que eu no conheciae, no entanto, no deixavam de me ser familiares pois sempre os houvera daquelaraa em Elvie, no restando dvidas de que descendiam daqueles de que eu me

    lembrava. E mal acabara de fazer festas aos animais quando Mrs. Lumley apareceu,tendo ouvido o chinfrim e sentindo-se incapaz de resistir tentao de se juntar recepo domstica. Estava mais gorda que nunca na sua bata verde e saiu de casacom um sorriso enorme, dando-me um beijo, dizendo-me que eu crescera imenso,tinha mais sardas que nunca e que ela estava a preparar um pequeno-almoo dearromba.Atrs de mim, David tirava calmamente as malas do carro e, a certa altura, a minhaav foi cumpriment-lo.- David, deve estar exausto. Obrigado por ma ter trazido s e salva.Para minha surpresa, deu-lhe um beijo.- Recebeu o meu telegrama.

    - Claro que recebi. Estou a p desde as sete da manh. Vai entrar e tomar opequeno-almoo conosco, no vai? Estamos a contar consigo.No entanto, ele apresentou as suas desculpas e recusou, dizendo que tinha agovernanta sua espera, precisava de ir a casa mudar de roupa e seguir para oescritrio.- Bem, ento venha c jantar hoje noite. Sim, fao questo. Por volta das sete emeia. Queremos que nos conte tudo o que se passou.Finalmente, deixou-se convencer e entreolhamo-nos, sorridentes. Dei-me entoconta, com alguma surpresa, de que o conhecia apenas h quatro dias, mas que,contudo, no momento da despedida, sentia que deixava um velho amigo, algumque conhecera toda a vida. Recebera uma incumbncia de execuo difcil, quelevara a cabo com tato e bom humor sem, tanto quanto eu sabia, ter levantado omenor constrangimento a algum.- Oh, David...O advogado fugiu apressadamente minha desajeitada tentativa de agradecimento.- At logo noite, Jane - disse ele, retrocedendo e entrando no carro, cuja portafechou antesde seguir caminho. Ficamos a v-lo virar e afastar-se sob as faias, entrando naestrada depois da curva, at desaparecer.- Rapaz simptico - observou a minha av com ar pensativo. - No achas?- Sem dvida - retorqui. - E gentil.

    Precipitei-me para Mrs. Lumley a tempo de a impedir de pegar na minha mala, queeu mesma levei para dentro de casa, seguida pela minha av e pelos ces; a portafechou-se e David Stewart foi, no momento, esquecido.Chegou-me s narinas o cheir