7poesia revista
TRANSCRIPT
7faces caderno-revista de poesia
Natal – RN, Ano 4. Edição 7. Jan.-Jul. 2013 ISSN 2177 0794
© Emilio Scanavino
Obra do homenageado Poesia Poesias (1941) Novas poesias (1944) Poemas inéditos (1982) Poesia Completa (2011) Prosa Maleita (1934) Salgueiro (1935) A luz no subsolo (1936) Mãos vazias (1938) Histórias da lagoa grande (1939) Céu escuro (1940) O desconhecido (1940) Dias perdidos (1943) Inácio (1944) O escravo (1945) A professora Hilda (1946) Anfiteatro (1946) O enfeitiçado (1954) Crônica da casa assassinada (1959) O viajante (1973) Três histórias da província (reunindo Mãos vazias, O desconhecido e A professora Hilda) (1969) Três histórias da cidade (reunido Inácio, Anfiteatro e O enfeitiçado) (1969) Diário completo (1970) Este não é um levantamento exaustivo da obra do escritor homenageado; é apenas um recorte de suas principais publicações em vida e póstumas.
7faces
caderno-revista de poesia
Natal – RN
Não se ama os poetas. O que se ama é a obra deixada para especulação literária. Lúcio Cardoso
Apresentação O poeta de mãos vazias
Por Pedro Fernandes
11
A escrita de Lúcio: desenhando perfis e cenários Por Marília Rothier Cardoso
23
Em tom de poesia 1 Rosana Banharoli
39
Leonardo Chioda 46
Lara Amaral 51
Gabriel Resende Santos 58
Alexandra Vieira de Almeida
64
Entremeio O rio transgressor de Sísifo: o absurdo nas novelas de cardosianas
Por Ordilei Costa dos Santos
68
Em tom de poesia 2 Jairo Macedo
107
Homero Gomes 113
Thiago de Souza
115
Mariano Tavares 119
Mario Filipe Cavalcanti 124
sumário
© Emilio Scanavino
Casé Lontra Marques 128
Ana Romano 142
Lúcio por Lúcio Fac-símiles de poemas de Lúcio Cardoso
149
Poesia Completa de Lúcio Cardoso: a edição
Por Ésio Macedo Ribeiro
160
Julian Lesser
Paisagens aéreas
176
O POETA DE MÃOS VAZIAS Não é poeta aquele que não tem seus pares; e os pares hão de ser, inevitavelmente, aqueles que mais lhe oprime pela angústia de não alcançá-los. Aqueles que singularmente produziram uma revolução só comparada à força destrutiva de uma grande fúria natural. Que os pares são deuses e estão para ser destronados tão logo o aspirante poeta consiga perceber em sua estrutura uma pequena infiltração pela qual possam se por e reiniciar em silêncio, no rumorejar lento da tessitura do verso, aquela grande fúria de outros tempos.
Também não é poeta quem desafina com o real a fazê-lo figuração própria para o poema. O poeta há ter lucidez suficiente para ver que o que está à sua volta não pode ser visível pelo olho comum, que esse mundo é cada vez mais mundo de aparência, e o poeta que só aparenta não é digno da confiança alheia. Não é suficiente para ele dedicar-se ao trabalho de perscrutar detalhadamente os movimentos da existência. A cópia fiel é uma tentativa fracassada. O verso há que erguer novas possibilidades de existir, como um caudaloso e perene rio universal a invadir e deslizar por entre o magma sufocador que irriga o mundo contemporâneo. A busca incessante do poeta deve ser a de se reaproximar do estágio genesíaco da poesia, quando espírito e homem comungavam reciprocidades. Mas há que cuidar para ainda que involuntariamente não voltar a torre de marfim de onde já lhe custou descer. Novamente aporta aqui a necessidade de ser limiar. Esse retorno a unidade perdida é talvez o gesto de maior valor da poesia. É por ele que somos reeducados a ver num mundo em que estivemos limitados pelas vendas das ideologias; é por ele que o poema resiste
apresentação
7faces – Pedro Fernandes │ 11
© Emilio Scanavino
e é cada vez mais matéria necessária a refiguração do ser, situado que estamos num mundo cuja existência foi subvertida a ponto de ser transformada em coisas entre coisas. No caso de Lúcio Cardoso é possível admitir pela extensa vivência com palavra o caráter do poeta contemporâneo, ainda que ele esteja em igualdade com muitos nomes de seu tempo dito modernista. Encontramos o autor a se debruçar entre a prosa – o lugar textual com o qual primeiro obtivemos contato – para somente depois compreendê-lo como ser de poesia; esse depois apenas se restringe à produção do poema, que veio depois da prosa, mas ultrapassa todo lugar anterior não apenas quanto ao número de textos do gênero (são aproximadamente 547 poemas), mas porque a melhor parte daquele primeiro lugar é também invadida sem nenhuma licença poética por esta. Produto, certamente, de sua tentativa formal e que o distingue entre os vários nomes da cena contemporânea: Lúcio foi, com Clarice Lispector, um dos precursores no Brasil do romance de fluxo de consciência. No caso aqui – na poesia – não há espaço para o experimentalismo gratuito a ponto de por em risco as potencialidades do gênero. Lúcio, o poeta, buscou revestir o poema da natureza mais humilde da palavra sem fazê-lo num dizer pobre ou num dizer situado no mais alto alcance do homem erudito. A erudição do poeta é uso de uma dicção capaz de reinventar sem que a reinvenção esteja exposta como um destaque visto propositalmente ao olho nu ou visto ainda naquela fronteira onde só os docilizados pela matéria da erudição fabricada estão suscetíveis de alcançar. Porque poeta, de fato, é quem ultrapassa o comum e o usual com a mesma força que do comum e do usual, não quem se propõe a uma farsa barata com a linguagem. O poeta é que de mãos vazias arranca novas possibilidades de dizer. Pedro Fernandes
Poeta e editor da ideia
7faces – Pedro Fernandes │ 12
Lúcio Cardoso (1912-1968)
Lúcio Cardoso em 1930. Arquivo da Revista de História da Biblioteca Nacional (reprodução)
Dentro de mim, sombra – mas fria e calma. Fora, sombra onde cumpro os gestos que todos sabem. O que aprendemos, é como nos ocultar de um modo banal, como toda gente mais ou menos se oculta. O que ocultamos, é o que mais importa, é o que somos. Os loucos, são os que não ocultam mais nada – e em vez dos gestos aprendidos, traduzem no mundo exterior os signos do mundo secreto que os conduz. Lúcio Cardoso, Diários Lúcio Cardoso (1912-1968) foi um multiartista. Não se restringiu às experiências com o romance e escreveu peças para o teatro, crônicas, contos, roteiros para o cinema, diários e poemas; além de uma intensa vivência com a pintura e o desenho, tendo realizado quatro exposições individuais em galerias de arte do Rio de Janeiro e de São Paulo. Como já bem terá lido a crítica de sua obra poética, ela é síntese de uma geração inquieta. Sua poesia revela a melancolia de um mundo íntimo, isolado e em decadência. Está no limite do transcendente, do metafísico, do imaginário. José Paulo Paes, por ocasião de uma edição de poemas inéditos de Lúcio editada em 1982 situa o poeta entre dois expoentes da literatura moderna portuguesa, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Como o primeiro poeta, ele se viu seduzido pela ideia do fingimento, esconder-se para revelar-se; como o segundo, Cardoso tratou sobre dois temas caros a sua poesia, o amor interdito e a loucura. Deixou mais de cinco centenas de poemas em que se experimenta dentre os vários motivos poéticos, estes apontados por Paes.
o homenageado © Emilio Scanavino
© Emilio Scanavino
Amanhecer A noite está dentro de mim, girando no meu sangue. Sinto latejar na minha boca, as pupilas cegas da lua. Sinto as estrelas, como dedos movendo a solidão em que caminho. Logo o perfume da poesia sobe aos meus olhos trêmulos, cerrados, ouço a música das coisas que acordam sobre o corpo negro da terra e a voz do vento distante e a voz das palmeiras abertas em raios e a voz dos rios viajantes. E a noite está dentro de mim. Como um pássaro, meu sonho ergue as asas no coração da sombra. Ouço a música das flores que tombam, o tropel das nuvens que passam e a minha voz que se eleva como uma prece na planície solitária. Então sinto a noite fugindo de mim, sinto a noite fugindo dos homens e o sol que avança na garupa do mar e as nuvens curvas que enchem o céu como grandes corcéis de fogo cor-de-rosa desaparecendo sugadas pela treva. Lúcio Cardoso, Poesia Completa
Instante Entre quatro tempos azuis. lagoa de olhos claros e algas morrendo na tarde. De ti veio o estremecimento e o primeiro assomo de frio: o tempo urgia. No entanto, só a pedra enorme fitava o verde - e repousava. Seria inútil gritar outra coisa pois a vertigem sobre e somos a mesma coisa: lentas, as casas nos odeiam. Exausta, a paisagem se abre à fúria da noite: solidão, aqui estou. Lúcio Cardoso, Poesia Completa
São Nomes do Amor, os da Carícia São nomes do amor, os da carícia, são nomes do amor os do desejo. São nomes que falamos úmidos e mortais, entregue à faina de criar o deus que nos vive e nos faz arder na sua elástica chama. (Depois é que os deuses se transformam e em lugar da maravilha adolescente, são monstros de carvão que nos procuram, egos e impotentes, do fundo do passado). São nomes do amor, os da fome, que faz errar as nossas mãos ambiciosas ao longo das fitas e cetins. São nomes do amor os da sede, da inútil repulsa, do ciúme e da insolência. São nomes do amor os que voam dos nossos lábios e são vermelhos e pálidos, porque contêm todo o nosso sangue, e volteiam, e sussurram, e deslizam, cisnes, estrelas ou rosas verdes. São nomes do amor todos os que nos queimam e nos fazem esquecer a identidade do mundo e nos embriagam, nos tornam ácidos, etílicos, gelados e evanescentes como donzelas martirizadas. São nomes do amor, são nomes, são nomes e legiões de nomes, e sempre nomes, que povoam a terra da repetição e do olvido: porque todos os nomes do amor são um único nome e mudos, esquecemos os nomes das outras coisas, porque só compreendemos e só nascemos para um único, o nome que te dei, amor. Lúcio Cardoso, Poesia Completa
Poema Aventureiro Urgente, o demônio das piscinas! A carne, sob a água mole dos chuveiros, é pálida e mansa como um lírico, um punhado de feno ou de algodão. Quero a túmida semelhança de brancos girassóis passados contra o verde iluminado contra o continuamente angustiado das emoções e dos pressentimentos. Nasci para o inferno e o áspero dos mal-entendidos. Sempre que de mim esperam um crime, um poema toma forma. Lúcio Cardoso, Poesia Completa
A escrita de Lúcio:
desenhando perfis e
cenários
Por Marília Rothier Cardoso
Nos anos trinta, quando começou a publicar seus romances e novelas,
Lúcio Cardoso, assim como seus companheiros de vida artística e
literária, estava fascinado pelas imagens. A abrangência crescente do
circuito do cinema e a abertura de possibilidades estéticas, operada
pelas vanguardas, aproximavam os experimentos com a técnica de
filmagem da inventividade nas artes plásticas. Se a escrita parecia uma
prática indispensável, as palavras não se continham nos limites da
convenção verbal e buscavam ritmos inusitados, articulando efeitos de
luz e sombra, cor e movimento. Persistente no exercício diário com a
linguagem, o escritor construía sua carreira aventurando-se pelas
outras artes. Frequentava pintores, cineastas e críticos, a cujo projeto
cosmopolita não interessava nacionalizar as vanguardas; por isso, aí,
investigavam-se outras formas de ser contemporâneo da modernidade.
7faces – Marília Rothier Cardoso │ 24
Um testemunho valioso dos rumos projetados pela arte e pensamento
de Lúcio e seu grupo é a longa carta de Mário Peixoto, datada de
fevereiro de 1937 e guardada no arquivo do primeiro. Mais próxima da
crônica lírica do que da comunicação de notícias pessoais, dá conta de
exercícios de observação estetizante, que deveriam ser comuns aos
correspondentes. Assim, mesmo que a resposta tenha-se perdido, é
fácil rastrear, hoje, no intercâmbio entre os amigos, o empenho
extremo em transmitir nuances complexas de sensações. O remetente
se descreve desempenhando a atividade que lhes parece decisiva:
Separo instintivamente as coisas mais próximas a
mim e que me rodeiam opressivamente, numa
ânsia de passar-me com elas para você, como num
jogo de desafio (PEIXOTO. In: LC-170, cp, 170).
Fica evidente que se serviam das cartas, do diário (talvez também de
notas e croquis ao acaso) para ganhar potência na caracterização dos
cenários tal como seria percebido pelas personagens e afetaria o
comportamento delas. A intensidade do olhar, correspondendo aos
gestos tensos das duas mulheres e do homem, limitados ao pequeno
barco, nas tomadas principais de Limite, certamente resulta desse
treino insistente de transformar a agudeza das percepções em
linguagem. Não se trata de tarefa fácil. Mário se mostra insatisfeito
com as tentativas que faz diante de Lúcio – receptor escolhido, pois
afeito à mesma prática:
Assim, os morros cobrindo-se de cerração, a
serraria que acabou de parar, alguns pingos soltos
na folha da jaqueira e as vozes apreendidas de
longe... E este estúpido desespero de saber de
antemão – de conhecer – o esforço vão desta
maldita febre: nada se transmite integralmente!
(Peixoto, In: LC – 170, cp, 170).
Numerosas reflexões, que Lúcio Cardoso foi anotando, nos cadernos
onde registrava sua trajetória artístico-intelectual, compartilham o
“desespero” mencionado por Mário Peixoto. Atormentados pela
demanda de uma linguagem de expressividade máxima, debatiam-se
contra as soluções fáceis na montagem das partes de suas obras. Por
isso mesmo, deixaram várias delas inacabadas e a todo momento
sentiam-se perdidos entre os obstáculos da produção e divulgação de
seus trabalhos. Na segunda metade dos anos trinta, quando se
correspondeu com o amigo cineasta, Lúcio já devia manter seu diário,
mas essas entradas devem ter-se extraviado. No entanto, a dicção de
Mãos vazias (1938) e O desconhecido (1940), primeiras novelas onde se
configuravam as marcas singulares de seu estilo, evidencia um
amadurecimento considerável na construção de torneios verbais
provocadores de sensações. Acompanhando o olhar da personagem
Ida, o narrador de Mãos vazias transmite ao leitor seu desejo de
libertação indistintamente confundido com as impressões do cenário
matinal que a cercava:
Aquele minúsculo ponto vermelho oscilando na
treva exercia agora sobre ela uma estranha
fascinação. Os cantos se amiudavam, os galos
pareciam se multiplicar na penumbra dos quintais.
Uma vida diferente, sombria e impetuosa,
começava a subir desse amálgama onde a noite
palpitava (CARDOSO, 1968, p. 47).
Por sua vez, o clima soturno, que tensiona a leitura ao longo de toda a
extensão de O desconhecido, anuncia-se, na primeira página, também
pelo olhar ansioso do protagonista em fuga, lutando contra a
tempestade que o acossa:
Durante um minuto tateou cegamente, à procura
da porta. A chuva lhe batia em cheio no rosto, o
vento agitava furiosamente as pontas do xale com
que cobrira a cabeça. (...) Sentiu subir-lhe então
uma onda de impaciência e golpeou duramente a
madeira, até que a porta se abriu de repente e uma
lanterna se inclinou para fora, projetando em
círculo sua luz oleosa. Por detrás do vidro vermelho
da lanterna, surgiu a cabeça da mulher que gritara
(CARDOSO, 1969, p. 109)
Em contraponto à fixação dessa prática descritiva, imbricada ao
desdobramento das tramas ficcionais, localiza-se, por exemplo, nos
registros de 1942 e 1943 – os mais antigos do diário, conservados no
arquivo do escritor – uma espécie de crônica rememorativa e
metalinguística, onde se acompanha um ensaio da prática mencionada:
7faces – Marília Rothier Cardoso │ 26
Primeira edição de Mãos vazias e O desconhecido
(...) tempo nublado, relva coberta de orvalho ainda.
Barulho de vento nos eucaliptos, gritaria de
pássaros, mugidos de gado e, vindos de longe,
latidos de cães. / Queria meus pensamentos
límpidos, fluentes e livres. O ar que circula aqui! / O
vento soprando em mim insufla todos os sonhos de
grandeza (LC – 13, pi, 161).
Encontra-se, nessa “Despedida de Barbacena” inserida no diário de
1943, o mesmo empenho de Mário Peixoto em consolidar, como
operador do pensamento que se constrói através da arte, a
sensibilidade reelaborada pela intuição investigativa e, assim, trazer,
para o campo intelectual, a percepção e o afeto que esta desencadeia.
Ambos entendem que a arte se potencializa como operadora do
conhecimento porque investe o corpo nas atividades de observação e
julgamento. Uma frase anterior, de 1942, datilografada no mesmo
conjunto, indica – a propósito da experiência de ouvir Beethoven – o
nexo imediato do efeito estético com o impulso questionador. Embora
lhe pareça descabido, a ansiedade do sujeito que propõe problemas
não fica alheia à beleza da linguagem com que questões e impasses se
apresentam:
Estou certo de que amo a beleza (...) e agora
confessarei um absurdo: às vezes sinto um
elemento estético, uma beleza que me satisfaz
nesses problemas torturantes que surgem em mim
e em tantos outros (...) (LC – 13, pi, 261).
Embora distante de toda a literatura programática, produzida e
divulgada pelo movimento modernista, Lúcio Cardoso jamais se
mostrou um artista ingênuo. Tendo mantido um “diário não íntimo”
por, pelo menos, duas décadas (e continuado a grafar pequenas notas
truncadas mas compreensíveis, mesmo depois que a doença lhe
dificultou a escrita), legou ao futuro uma rigorosa autocrítica e os
resultados instigantes de suas tentativas de politizar a seus modo as
tarefas artísticas, isto é, ensaiando o entrelaçamento de estética, ética
e religião. Sua trajetória, desconsiderada e esquecida pelos críticos
mais influentes, passou ao largo do experimentalismo dos líderes da
“Semana de 22”, que buscaram nacionalizar as manifestações culturais,
quanto dos parâmetros neorrealistas do chamado romance nordestino.
Leito de Nietzsche e certamente interessado nas perspectivas da
7faces – Marília Rothier Cardoso │ 28
psicanálise, integrou-se à modernidade pela via cosmopolita dos
pensadores católicos, do cinema expressionista e de um resgate
particular – e ainda pouco discutido – o da linhagem melodramática.
Importa, aqui, destacar, como índice dessa tendência, a cena-clímax de
O desconhecido, onde a violência do assassinato, que o protagonista
cometeu tomado de paixão, transmite-se ao leitor, numa espécie de
choque sensorial, resultante da exacerbação das imagens visuais e
táteis:
Então as trevas se converteram em vermelho, um
vermelho ardente, oleoso que o sufocava. Tomou a
enxada, levantou-a no ar, vibrou no amigo dois
golpes furiosos. (...) / E, sem mais saber realmente o
que fazia, dominado por aquela onda vermelha que
lhe afogava a alma, continuou a desferir golpes, até
que, exausto, ouvido o corpo tombar pesadamente”
(CARDOSO, 1969, p. 235).
Só quando se desvencilhar de vez dos critérios modernistas de
economia e funcionalidade é que a crítica dará a devida atenção à
perspicácia de Lúcio ao apropriar-se do melodrama e valorizar-lhe os
elementos de sedução do público heterogêneo, sem repetir seu
esquema maniqueísta. Consumidor, ele próprio, do melodrama
cinematográfico, capaz de reconhecer a força do enredo para estímulo
da atenção problematizadora, o romancista importa os resíduos
arcaicos da necessidade trágica e a disposição que desconstrói a dúvida
moderna, fazendo uma aposta consistente nas possibilidades da
retomada de um melodrama-em-diferença. Entre certa
superestetização da escrita descritivo-narrativa das novelas dos anos
trinta e quarenta, onde se encontra, por exemplo, a transformação do
“desconhecido” num protagonista desconcertante – porque passa de
vítima a algoz numa simples virada da intriga – até a arquitetura
requintada e harmonizadora de excessos, que se depreende da Crônica
da casa assassinada (1959), vai um laborioso aprendizado. Algumas das
etapas desse trabalho persistente têm registro esclarecedor no diário,
outras podem ser acompanhadas na leitura comparada das narrativas e
na análise dos fragmentos de obra preservados no arquivo. Praticante
contumaz da escrita, Lucio Cardoso perseguiu, nas mais variadas
vertentes da linguagem, uma qualidade de que talvez ele próprio não
tenha se dado conta – a sedução, característica da arte popular,
desviada para um convite irresistível, uma tomada de posição crítica
7faces – Marília Rothier Cardoso │ 29
diante do bom senso. Enquanto os regionalistas depuravam o romance
oitocentista dos rastros de melodrama e os adeptos da vanguarda (até
mesmo Nelson Rodrigues dos contos e crônicas) parodiavam os
enredos intrincados e lacrimejantes, Lucio teria tomado a decisão de
levar a sério as paixões dramáticas, estuda-las para explorar a força de
sua vitalidade.
Em contraste com a imaginação visual e verbal de Mario Peixoto,
avessa ao encadeamento de tramas, Lucio Cardoso não desprezava a
ação com seus momentos de suspense. Ainda que, como amigo,
admirasse o cinema expressionista, divulgado pelo grupo do Chaplin
Clube, sob a liderança de Octavio de Faria, seu apego ao cinema vinha
da infância, certamente dos dramas mudos de Griffith, centrados em
heróis corajosos e mocinhas indefesas:
Lembro-me do monte de revistas cortadas, os
desenhos, os programas, que inventei, as telas
improvisadas... Na Tijuca, no porão de uma casa
onde moramos, havia uma cidade inteira de
cinemas (CARDOSO, 1970, p.11).
A montagem de Limite (1931) expõe uma evidente fuga da
narratividade; captam-se momentos intensos da vida das personagens,
sem apoio numa cadeia de causas e consequências. O filme trata as
imagens como a pintura que desfigura seus objetos-tema, afastando-se
dos nexis da representação. De modo menos radical, o romance, O
inútil de cada um (1933), também privilegia fragmentos de cena,
retratos psíquicos das personagens, com lances de uma trama rala que
não quer empolgar o leitor. De seu lado, Lúcio resistiu à ruptura com o
enredo. Seu conforto com a linearidade figurativa dava-se pelas
estratégias de entrelaçar vários fios narrativos e abandonar a
verossimilhança, situando as tramas para além da fronteira com o
mítico e o fantástico.
Nas anotações dos anos quarenta, que não foram incluídas nem no
Diário I, publicado por Lúcio, nem no Diário completo, que Octavio de
Faria editou postumamente, há muitos comentários a partir de leituras
de Nietzsche. Mesmo que simplificadores e até equivocados, em
contraponto à leitura de pensadores recentes, esses comentários se
afinam com o interesse do filósofo pela revitalização de ritos gregos
arcaicos: “preferiria simplesmente amar a tragédia, tal como os gregos,
viver o alto pessimismo que Nietzsche preconizava” (LC – 13, pi, 261).
Essa exposição de preferência parece estar na base do projeto
cinematográfico de Lúcio. Mesmo desconhecendo as cenas filmadas de
A mulher de longe, material de difícil acesso, é possível perceber a
consistência do mito injetando força afirmativa ao argumento de
estrita economia, que se delineia no roteiro. Várias entradas de 1949,
que iniciam o Diário completo, bem como documentos do arquivo
permitam reconstruir a filmagem, proposta e dirigida por Lúcio
Cardoso, Conta-se com uma preciosa caderneta, onde o escritor-
cineasta registrava seu trabalho e onde, num talho de letra bem mais
descuidado que o das outras páginas – certamente de um assistente de
Rui Santos, o diretor de fotografia –, estão esquematizados os dados
técnicos para a filmagem de alguns takes (conforme nomenclatura da
época). Preservaram-se também, ainda que com algumas lacunas, as
folhas datilografadas do roteiro, cuja numeração das tomadas coincide
com a dos esquemas. Na descrição do inventário, organizado pelo
Arquivo-Museu de Literatura brasileira da Fundação-Casa de Rui
Barbosa, não se atribui o roteiro à autoria de Lucio; no entanto, tudo
indica que ele assumiu o texto – redigido, com certeza, a partir de seu
argumento – pois há, no mesmo, cortes e acréscimos grafados em sua
caligrafia.
A atriz Maria Fernanda e o escritor Lúcio Cardoso durante as filmagens de “A mulher de longe”.
A intriga de A mulher de longe desenvolve o mesmo tema da novela O
desconhecido – tema que receberá tratamentos mais e melhor
elaborados em obras posteriores, O viajante e Crônica da casa
assassinada – a chegada do forasteiro perturba a vida da comunidade
por onde passa, tornando impossível a volta à situação anterior. Como
artista, consciente da singularidade de seu trabalho, deseja
experimentar os efeitos de um estímulo inesperado sobre mentes
acomodadas à rotina. Em diversos momentos de sua carreira, Lúcio
empreendeu essa tarefa investigativa, captando as revelações e os
transtornos, os ganhos futuros e as perdas irreparáveis que provoca a
intervenção do estranho – muitas vezes, do estranho-familiar. Parte
dessa vertente exploratória pela via da narrativa ficcional, o filme
inacabado parece uma etapa decisiva entre a elaboração ainda
imatura, nos seus lances melodramáticos, de “O desconhecido” e o
equilíbrio técnico-estético das soluções escriturais atingidas em Crônica
da casa assassinada.
O cuidado do roteiro em garantir a potência dos efeitos visuais na
articulação das cenas deve ter servido de lição de economia narrativa.
Ao passo que, na novela, longas descrições detalham a atmosfera
psicológica experimentada pelas personagens, no filme, a tensão que a
permanência do desconhecido provoca apresenta-se através de falas
raras, contidas e principalmente de movimentos e ações das
personagens e figurantes – ações planejadas na medida de sua
plasticidade e movimentos realizados de preferência por grupos
contrastantes, de modo a compor quase-coreografias semelhantes a
danças rituais.
Observado no seu conjunto, o roteiro distribui as sequências de modo
simétrico, em paralelo, alternância ou reiteração. O impacto
perturbador da chegada do estrangeiro numa vila de pescadores
destaca-se por produzir-se através de sequências semelhantes que se
sucedem. As velhas do povoado encontram uma mulher morta na
praia, cobrem-lhe o corpo e se afastam temendo “a desgraça”, pois ela
pode contaminá-los com a peste; enquanto se afastam, acompanhadas
a certa distância pelos homens, um pescador, que se distancia do
grupo, vê outra mulher num barco à deriva e ajuda-a a descer em terra.
Dizendo que vem “de muito longe”, a recém-chegada se apresenta
como fugitiva da “peste”.
7faces – Marília Rothier Cardoso │ 32
© Emilio Scanavino
A simetria entre a chegada à praia das duas mulheres – uma morta e
outra viva mas dando notícia da peste --, ao enfatizar o clima tenso que
se instala na aldeia de pescadores, inaugura o desenvolvimento
paralelístico da narrativa verbo-visual, onde vão-se destacar as marchas
de grupos assustados em protesto contra o que lhes parece a invasão
da desgraça. Percebe-se o cuidado com que são planejados os takes
dessas cenas processionais pela correspondência entre a descrição do
take 161 da sequência 13 com o esquema, anotado na caderneta sob o
mesmo número. Aí, com as indicações precisas de lente, filtro, distância
e diafragma, seguidas do desenho do espaço da locação com o
posicionamento da câmera, descreve-se a ação ritual da personagem:
D. Cora com um pincel e tinta branca, nos 5 mts.
Fazem traço vertical (sic), em 1,80, faz um traço
horizontal, completando a cruz. Está vestida de
preto, com um véu preto na cabeça, caindo em
duas pontas sobre o peito (LC, pi, 13 – 261).
Os gestos de integrantes dos grupos de aldeões em protesto,
desenhando cruzes e amarrando caveiras de bois nas fachadas das
casas, destacam-se pelo contraste entre o branco e o negro, as tarefas
distintas de homens e mulheres. Já, na sequência 28, a roteirização dos
deslocamentos de personagens e figurantes numa procissão de
“esconjuro” prevê, como ponto de partida, o surgimento de uma luz de
vela, acesa no interior da igreja. O contraste da luz na sombra passa a
determinar a ordem da procissão, que se forma com “grupos de virgens
de branco com cruzes pretas nas mãos”, “homens de preto carregando
estandartes brancos”, “mulheres de preto com flâmulas brancas” e
entoa hinos enquanto o padre vai “à frente, asperzindo os lugares
amaldiçoados” (LC, pit, 22 – 334).
Através da consulta ao arquivo, o que se apreende, acompanhado as
etapas da filmagem, é a aptidão crescente do diretor e sua equipe para
converter imagens em efeito artístico e sentido questionador. A
cenografia de exploração de contrastes adéqua-se à agressividade
violenta da paisagem escolhida como locação. É o que se pode
depreender do registro do diário, em 28 de agosto de 1949:
(...) visitamos hoje algumas praias lamacentas (...).
São extensões cobertas de um barro feito de areia e
sangue que escorre dos matadouros próximos e que
exalam um miasma fedido, assim que o sol se torna
mais forte; essa lama atrai os urubus, às centenas,
sinistros reis desses pântanos amaldiçoados
(CARDOSO, 1970, p.10).
Todavia a construção da A mulher de longe provou-se uma experiência
valiosa de escrita, seja esta desenvolvida em qualquer linguagem. Se,
para a descrição verbal do cenário, a tarefa constante de refinar seu
conhecimento dos fazeres da arte, Lúcio Cardoso encontra vocabulário
eficaz à exposição da “máscula poesia” dos ambientes, também, na
direção das tomadas de câmera e nas e nas marcações cenográficas vai
descobrindo o ponto de equilíbrio entre eloquência e sobriedade.
Enquanto artista versátil, que se renovava mudando de gênero, meio e
linguagem, exercitou sem preconceito, a exploração literária do tom
melodramático, apostando na velha sabedoria de como afetar o leitor.
Mas, sempre insatisfeito com os resultados, voltou-se para as
lembranças da infância e foi testar sua capacidade de contar estórias
com chocantes e, ao imaginar uma trama adequada a eles,
contaminou-se da violência mítica que serviu às tragédias arcaicas.
Insuflou nos motivos melodramáticas, que “pessimismo” vigoroso,
afirmativo dos gregos do passado.
Não importa que o filme tenha ficado incompleto, o enfrentamento das
dificuldades para concretizar seu próprio projeto revitalizou, sem
dúvidas, os instrumentos narrativos que vinham sendo empregados na
literatura e no teatro. Explorando, como estrangeiro, as complexidades
da produção cinematográfica, Lúcio Cardoso ganhou impulso na
continuidade de sua trajetória e, assim. Garantiu às obras posteriores
maior ético-estética.
Notas
¹ No roteiro, o take 43 da sequência 3 – aquela em que a aldeia se
assusta com encontro de um cadáver de uma mulher na praia – traz a
seguinte fala da “velha” que lidera a comunidade na resistência aos
forasteiros: --“ É desgraça certa esta mulher que o mar trouxe de
longe”.
Referências
Acervo Lúcio Cardoso do Arquivo da Museu de Literatura Brasileira da
Fundação-Casa de Rui Barbosa – pastas consultadas: LC, 170, cp -170;
LC 13, pi – 216; LC, 22, pit – 334.
CARDOSO, Lúcio. Diário completo. Org. Octávio de Faria. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1970.
CARDOSO, Lúcio. “Mãos vazias” e “O desconhecido”. In: Três histórias
de províncias. Rio de Janeiro: Bloch, 1969.
7faces – Marília Rothier Cardoso │ 36
Em tom de poesia 1
© Emilio Scanavino
Rosana Banharoli Santo André – SP
Jornalista por formação, poeta por teimosia. Autora de Ventos de Chuva (Scortecci 2011), livro financiado pelo Fundo de Cultura de Santo André. Membro da equipe do blog Concursos Literários-Prêmio TopBlog 2012. Foi residente na Casa do Sol – Instituto Hilda Hilst, em 2012. Trabalha com coordenação e difusão cultural.
Resposta à Cantata de Bach para 2013 Que na vida a submissão seja dócil inocência & Que da vida a subserviência seja só um nome sem uso
7faces – Rosana Banharoli │ 40
1-no fundo da noite o uivo multiplicado corta a conversa de sonhos e dá voz ao holocausto :silêncio do medo
2-um caminho de esperas traz a noite de instantes vazios pensamento deserto pernilongo relógio pingo tempo de escapes vãos :um olhar de gato sabe vê e aguarda o dia .
7faces – Rosana Banharoli │ 42
Detalhe do escritório de Hilda Hilst
Hilda Hilst: o escritório duas janelas uma face do jardim e a porta de treliça por escorrer a poesia ... ali nascente Casa do Sol/nov.2012
3-o som é de mar ventos que deslocam ondas bailado verde movimentos que voltam liberdade oportuna de poucos : até as águas têm raízes
7faces – Rosana Banharoli │ 45
Leonardo Chioda Jaboticabal – São Paulo
Lê imagens e escreve. Nascido em Jaboticabal, interior de São Paulo, vive maior parte do tempo na capital, transitando entre a planta e a pedra. Formado em Letras pela UNESP e em Literatura Italiana pela Università degli Studi di Perugia, é professor de língua italiana e cursou Poesia Portuguesa Contemporânea na USP. Autor do blog Café Tarot, pesquisa, ensina e publica sobre os arcanos refletindo seus traços na cultura popular, no cinema, nas artes plásticas e na literatura [com a bênção imaginária de Ítalo Calvino]. Vem constatando que o mundo é oráculo tecido em poema. E tem semeado poemas em publicações diversas como Zunái, Macondo, Um Conto e Mallarmargens para colher Tempestardes, seu livro de estreia, pela Editora Patuá.
Itaparica
cocar de ferro sargaço moicano ao fogo celeste cristal no lodo agreste aqui está o teu poeta para dizer-te te amplio musa das praias desertas conchas antigas obstruindo os prazeres medusa a lamber os meus pés no silêncio solar da fonte e da erva no sirênico tocar dos pormenores
7faces – Leonardo Chioda │ 47
Notícias do oceano central
fogo azul fogo fátuo foto fato de guerra interna dois de espadas ladrilho navalha carne al taglio detalhe entalhe: a pétrea azul pétala em tempo azul-sangue português mosaico baiano o ladrilho prosaico hidráulico o coração azulágrima bulbo de caos azulantigo o mar o mar primordial
7faces – Leonardo Chioda │ 49
Enigma [ao som de sigur rós] já construirei o leito e me deitei nos tempos vindouros vejo que serei velho ontem e amanhã fui menino foi o espelho a me convencer me transformo e em pé triunfarei hoje cedo saberei que mais tarde venci e não haverá passado que não é o meu futuro
7faces – Leonardo Chioda │ 49
Lara Amaral Brasília – DF Formada em Jornalismo, Lara escreve poesia desde os 13 anos de idade, e arrisca alguns contos de vez em quando. Tem poemas publicados na coletânea Maria Clara: universos femininos e em várias revistas como Zunái, Mallarmagens e Germina Literatura.
Pedra, demasiado pedra “É penedo, se limar um pouco, ajuda.” “Precisa lapidar isso tudo que entulha!” Oh, que bruta! Era a mesma ladainha: “Tem de mudar, polir!” Eu discutia, antes. Agora: muda – muda. Joguei-me umas dezenas de vezes da ladeira, rolei para ficar redonda. Esfera de ônix forçando o encaixe em conversa de tabuleiro de mármore. Lá embaixo, sempre um caos de minérios, todos sem valor no mercado. Rochas me aparavam sem querer, não podiam sair da fila; outras continuavam caindo. Fui ferida numa ponta que ficou por lixar. Estou bem assim? Já posso refletir seu rosto com menos pânico? Ou não sou preciosa o bastante para brilhar à luz de fundo? Talvez radioativa, no escuro. Sou das mudas, mudas. Finjo que minha loucura é dessas, que ser feliz é vestir roupinha nova, ter salto tinindo como ametista; comprar, comprar, lascar... Depois eu que sou bronca. Para que vestir calhau, com essa cabecinha já tão calva de limar? Tanto trabalho para nada... É, eu não entendo de mitos de bar, mas balanço a cabeça em falsa concórdia – só cuido de não friccionar muito e atear fogo – pesam-me um pouco os quilates-miolos dos seus ouros de tolo, demasiado tolos.
Mas veja, estou sem fala, aproveitei para esfolar a boca no rochedo enquanto rolo. A face já desfigurada, mas há na base do barranco canetas permanentes pra pichar sorriso afônico. E olha o que encontro lá embaixo! Pedras novinhas em folha, esticadas e luzindo para o próximo verão; os trajes caindo como luva de pelica em cascalho. Há quem se espante com a previsão de granizo. Os meteoritos? Arremessam-se todos.
7faces – Lara Amaral │ 53
©Eduardo Nery
Babel Sinto que te trarei à tona todos os medos. Acende-se a fornalha e o corpo extasiado pensa que se alça sublimando com o cozimento dos nervos. Sempre se engana o corpo, porque se dá com outro Mas as almas enre- gelam-se em súplica pelo tempo de recolhimento. A pele é teimosia, aproxima-se fecunda en- levada pelo amor e seu braço dado com a morte.
espelhos d’água
venha ao mirante e veja o que não perdeu entrada franca mas limpe os pés no capacho do peito habituado, você sabe aqui dentro o vento faz a curva como a água nos calcanhares à beira-mar, parte tenta retornar ao fundo, a areia algema os tornozelos soçobram os dedos devagar, o sal até o topo das cutículas queima os cantos que comi foi-se a época que eu tentava emergir, agora nem preciso cavar, afundo mansamente um vai e vem de algas arranhando as pernas mais algumas voltas que me derem essas ondas viro estante de coral ou canto triste para as conchas
7faces – Lara Amaral │ 56
Arbitragem
Se eu me for agora definitivamente, irá metade da minha mãe uma amizade antiga contorcerá remorsos o primeiro amor tirará a tarde livre dirá ao novo amor que precisa trabalhar e chorará por horas a minha ausência que nem era há tanto uma falta numerosa. O restante do efeito dominó pouco importa, nem mesmo a primeira peça que se derruba à respiração profunda de quem desistiu em tempo diverso, desconexo, cada um encontra a cura, um tampão, ou forma de culpar quem vai porque quis a liberdade: utopia clichê, história para não dormir, conto que diminui um ponto onde antes havia alguém, personagem do próprio, menos da vida – desvia, ordinária Ser livre... não se escolhe nascer sequer morrer em paz.
7faces – Lara Amaral │ 57
Gabriel Resende Santos Rio de Janeiro – RJ
Nasceu no Rio de Janeiro, na última década do século passado. Bloga em Occam, Big Bangs e Outras Explosões e Os Escritores Invisíveis. Tem textos publicados em revistas eletrônicas como Zunái, Germina, Mallarmargens e Diversos Afins. Participou recentemente da antologia Desvio para o Vermelho – 13 poetas contemporâneos organizada por Marceli Andresa Becker e editada pelo Centro Cultural São Paulo.
tentativa de cantar a musa renovar a linguagem através dos cabelos mexer os quadris e arriscar a rima o dadaísmo dessas feições de selva todo senso comum entranhado nos hormônios curvas principais puxando um segredo maníaco atrás de sua figura puritana a madame dos sonhos brancos e semânticos o expressionismo da mão fina o simbolismo da pupila os cílios essas aranhas embriagadas sabonete rítmico esfregando o adjetivo tímido da página inscrito bem no seu gemido rebuscado o verbo anacrônico fugindo espantado do modernismo de seus passos de dança a lisura de suas coxas desajeitadas ignorando se abab aabb importam quando os contornos leves se destacam da fumaça e a palavra perde seu significante significando mais que isso um arfar silvestre pingo de suor escorrido do nariz altamente erudito.
7faces – Gabriel Rezende Santos │ 59
fotografia de verão esconderijo da pele, não revele o tigre pulando de veia em veia. o papel fílmico onde dentes calados gesticulam mudanças em sépia em laranja. engane, engane-se, as feições do homem mais pobre livres da fama. o sorriso disfarça, morreu mas não perdeu a graça. nariz aberto: galáctico, galactus, o buraco negro, irmão de sangue embora não de história. da boca pequena ou grande que a pele esconde, o xingamento inaudível. da tarde na pose, bicho-papão presente, desdentado e fodido, sai um mal-passado que ninguém deseja: o dia é tão feroz que os negativos viram cinzas antes do xis.
7faces – Gabriel Rezende Santos │ 60
estreia sempre olho pra trás nas filas de cinema. a partir disso queria contar uma história que levaria a um romance ou um conto sobre a musa que conheci e perdi mas é urgente muito mais urgente o longo tempo de criação me impediria de dizer que sempre olhei pra trás nas filas de cinema. não sei se o que espero da fila ignorante é uma cutucada no ombro voz familiar se identificando na ponta do ouvido a revelação que nos salvasse de olhar os confetes caindo da árvore moribunda pra formar a palavra adeus no solo frágil. não importa se o que vem é a ação o suspense o romance dos sonhos mágicos estrangulados pelo calor antirrômantico: o que importa é que sempre olho pra trás nas filas de cinema. os colegas prestes a cair das alturas também olham pra trás esperando a pipoca que chega a namorada que se atrasa o vazio de estar vivendo a espera. saio de casa depois de ler paulo leminski apenas para olhar pra trás nas filas de cinema. os sujeitos repetitivos usam as mesmas roupas para desenhar suas amadas em traço oriental os sujeitos repetitivos vão reclamar da vida sempre que a primeira oportunidade aparece os sujeitos repetitivos olham pra trás nas filas de cinema e pensam ter encontrado algo no exato segundo em que as portas se abrem e os ingressos para a escuridão são solicitados. sempre olho pra trás nas filas de cinema. os pés se levantam secos. tomara que o filme seja bom.
até amanhã amanhã tu vai. leva junto teu romantismo frank booth e dedo mindinho a única parte em que sobra amor. queria aninha ficando comigo e narrar melhor o vácuo nas garras do namorado. problema é que aninha não curte ser aninha. vai pra máquina do tempo ouvir algum hit dos anos oitenta filme de terror em dose dupla na apresentação do zé. queria comer uma palavra sobre os exércitos do crack mas estou pouco musical num mês tão engarrafado. os amigos viajam por meses namoradas por milênios cachorros pelos segundos em que o rabo não cansa tivesse eu o fôlego dos psicopatas. os pastores dizem ô drummond meu filho sai desse corpo que não te pertence que os poemas desse moleque gabriel graças a jesus também não. minha parte consciente fica ofendida e quer briga mas drummond que é morto forte e rei não me dá bola. porra carlos. fim de semana tu vai. com um facão debaixo do braço e uma máscara de halloween pra dar susto em todo mundo que todo mundo te incomoda demais. olha beleza sim mas depois não me venha pedir receita de microondas ou aquele disco emprestado. vai mesmo embora que deus proteja. se for pra fazer o seppuku faz direito não faz esguelha com os comprometidos anota o telefone de casa não morde ninguém se te chamarem aceita tá com calma que recusa pode ir sem sangue por favor tua memória é mesmo uma bosta.
7faces – Gabriel Rezende Santos │ 62
ainda não acabou não acabou mesmo, a palavra que palavreada exclama: uma interrogação corta o verso antes de outro ponto final, a rima vindo não rima a rima evapora, calmamente? por favor os longos cabelos escorridos na iminência do susto o verbo pegando soluço, onde a história filho meu onde a história contava que as deidades escondidas escaparam quando o holocausto passara, a dinamite passara, passara o aedes aegypti, globo terrestre tomado de poemas belíssimos e piadas monstruosas, um revolucionário gritando do caixa de som que o amor não estava perdido e que as canções de amor eram tudo menos canções de amor, militares reações químicas, ninguém sabe mais o que significa rádio ou ratio ou prazer, cadê a poesia nisto aqui, mas o macarrão instantâneo é melhor que néctar de artéria suicida, cerimônias cerimônias cerimônias cerimônias e muitas velas porque luz que é boa está cortada assim como a veia a palavra a interrogação e o tempo do mundo, os longos cabelos escorridos escondem a cara rugosa da lua e as crianças se escondem das escolas, começa a tocar uma grande canção do rock britânico, não vale continuar, os lusófonos sabem a música de seu idioma, por favor antes de começar aperte o botão verde confirme o valor e conte nos dedos os milésimos de segundo pro fim do universo, obrigado, volte nunca, tomara que a trilha-sonora seja boa, retrô, anos 80, vhs, sei lá, você queria dar um beijo de despedida mas ela está ocupada em duzentos cinemas passando de três em três horas na sala três, quando o céu estiver amarelado demais, cerra as pálpebras, serra os nervos, braços colados no corpo, sem melodrama aceita a benção, fecha a tampa quando acabar.
7faces – Gabriel Rezende Santos │ 63
Alexandra Vieira de Almeida Rio de Janeiro – RJ
É agente de leitura, tutora de ensino superior, poeta, contista, cronista, ensaísta. É Doutora em Literatura Comparada (UERJ). Publicou um livro de crítica literária em 2008. Tem vários ensaios literários publicados em revistas acadêmicas e livros. Tem dois livros de poesia publicados pela editora Multifoco: 40 poemas e Painel (2011).
Claridade De que me adianta esta escuridão se transformo noites em dias sombras em claridade De que me adiantam os muros se esvazio a sombra de sua plenitude É mais belo olhar para a tarde Prenúncio de um dia sossegado a afundar os olhos da insônia Vagueio ao sol vespertino que esculpe a memória dos astros À sua volta, um atalho de pássaros a sobrevoar na manhã de calamidades A claridade se olha no espelho e descobre sua irmã gêmea, a escuridão, a vagar qual fantasma no quarto de névoas O céu se encobre de joias amarelas que caem nas minhas mãos prestes a abraçar a claridade da manhã.
7faces – Alexandra Vieira de Almeida │ 65
© Adam Garelick
Soterra
Soterra, fere a terra no entremeluzir das pedras, orgasmo oco de pedra, de terra, de sal Dádivas do céu chuvas salinas das preces a molhar as páginas da vida Vento amotinado de algas amarras de lenços nos braços o choro incandescente das trevas Sol enfraquecido pela chuva se aquece no seu rosto Cascos de vida lança que se parte no astro Soterra a fera, na selva monstros faiscando luzes gigantes Na cor dos lábios uma prisão de infectos insetos Azul que corta, na face o verbo que tremeluz no papel da terra Soterra imagens na fímbria das páginas brancas Terra que esconde pequeninos seres Na haste da planta a gana da semente a esmiuçar gestos do sol Soterra, em treva as letras do atrevimento Littera desperta pelos escombros da terra Soterra.
7faces – Alexandra Vieira de Almeida │ 67
O riso transgressor de
Sísifo: o absurdo nas
novelas cardosianas
Por Odirlei Costa dos Santos
entremeio
© Tchalê Figueira
Em seus desígnios provocadores, Lúcio Cardoso deseja intensificar
formas, cenários, máscaras, efeitos e cores, compondo uma mise-
en-scène para suas personagens, os fantoches de um espetáculo
de horrores. Elas esperam um discurso que não é menos do que a
voz do próprio autor, onipresente em quaisquer narrativas que
compõem sua prosa de ficção. Se tal discurso é o mesmo que
encontramos em sua escrita íntima ou metaescrita (como
observamos no primeiro capítulo), antes pertence a um constructo
literário forjado para abalar os ânimos de uma moral circunscrita
ao seu próprio tempo. Pelo seu comportamento doidivanas e pela
gana com que gozava a vida¹, este Casanova boêmio e sedutor,
afeito a festas e encontros, sempre acompanhado por uma legião
de amigos, parecia estar longe de se deter diante da opressão
excessivamente religiosa que encontramos em seus livros. O
chicote de sete pontas e a expiação diante de um Deus
terrivelmente vingativo foram estrategicamente deixados às
pobres almas combalidas de suas personagens sem redenção.
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 70
A respeito das novelas, em Corcel de fogo, Mario Carelli apontaria
que “na novela o que interessa a Lúcio não é tanto o aspecto
impressionante de uma cena de pesadelo, mas a possibilidade de
enriquecer uma atmosfera e aprofundar o estudo da psicologia
dos personagens.” (CARELLI, 1988, p. 117). Não obstante,
acreditamos que a cena de terror muito interessa ao escritor
enquanto projeção do mal-estar, como homem de cinema e teatro
que foi, fato já observado no que tange à sua relação com o
decadentismo. Carelli se refere como a análise psicológica – fato
tão decantado por vários estudos e artigos sobre o autor – nos
leva a repensar tal análise para reconsiderá-la como fruto do
interesse de Lúcio em devassar a alma de personagens para
apontar seus aspectos mais controversos e provocadores. Lúcio
não se fez de rogado ao explorar profundamente os contornos
dramáticos (por vezes excessivos e extravagantes) e, de tal modo,
que muitas de suas narrativas possuem um caráter
eminentemente insólito. A preocupação em enriquecer uma
atmosfera, como Carelli acertadamente aponta, leva o escritor
mineiro a configurar um caleidoscópio de situações grotescas que
beiram o contrassenso. O grotesco nos conduziu até O mito de
Sísifo: ensaio sobre o absurdo, de Albert Camus, pela referência
óbvia que o livro do pensador faz sobre a absurdidade em seu
título. Não obstante, pela leitura do texto de Camus, observamos
que o modo com que trata o absurdo é absolutamente distinto e
distante do enfoque usual. Procurávamos um conceito;
encontramos outro ainda mais fértil e, ao mesmo tempo,
absolutamente esclarecedor. O absurdo colocado sob outro
prisma, coincidentemente, estabelece a mesma relação sui generis
que Lúcio Cardoso possui da absurdidade ao construir suas
novelas. O universo absurdo está submetido ao crivo de sua lente
expressionista, que intensifica os matizes deste universo
alucinatório construído deliberadamente para provocar o leitor e
suscitar nele um mal-estar irremediável, o que veremos em todo o
presente artigo.
Albert Camus inicia o ensaio tendo como mote o suicídio, o ponto
nevrálgico que atinge os limites de valoração da existência –
lembremos que o suicídio é uma questão onipresente em quase
todas as novelas de Lúcio Cardoso. O modo como tal questão se
alia à falta de sentido da vida encerra uma atitude autodestrutiva,
tão comum às personagens do autor. Camus lembra que o suicídio
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 71
dificilmente é consequência de um ato morosamente reflexivo;
antes pertence à ordem dos estados indômitos e aos impulsos
irrefreáveis da alma, característicos dos espíritos perturbados das
narrativas cardosianas. Em meio à galeria de suicidas do ciclo de
novelas cardosiano, encontramos Ida, que submerge no pântano
no desfecho de Mãos vazias. Já em O enfeitiçado, a corda sombria
dependurada na janela do quarto foi o objeto com que
possivelmente Inácio se enforcou, algo que a inacabada novela
Baltazar, a última que compõe a trilogia “O mundo sem Deus”,
possibilita inferir. A mãe do jovem Cláudio também se mata por
envenenamento em O anfiteatro, mesmo modo com que o
adolescente Gil fomenta sua tentativa gorada de suicídio. No início
de Baltazar, a prostituta Adélia de Val-Flor termina sua
deambulação buscando provocar a própria morte em frente às
barcas. Nem mesmo crianças escapam incólumes da obsessão
trágica de Lúcio: citemos o caso de Sofia, uma menina de nove
anos que se atira em uma represa, após a tortura emocional a que
foi submetida pela professora Hilda, na novela homônima.
O suicídio seria a tenaz confissão de que a vida não vale a pena ser
vivida, segundo Camus. E não vale por se submeter a
características imanentes da própria existência, que tanto o
pensador argelino como o escritor mineiro reforçam: o caráter
irrisório que se tornou o hábito de viver, a insensatez das razões
que funcionam como esteio para a maioria dos homens e a
inutilidade que reveste as atitudes humanas. A constatação de tais
características faz surgir o sentimento do absurdo, diante desta
vida cíclica e absolutamente inútil e despropositada. A vida, o
trabalho, as horas que se repetem, a mediocridade que embala as
pequenas buscas prosseguem em vibrações continuamente
monocórdias, até o momento em que uma espécie de espanto
possa suscitar o movimento da consciência. O homem é
arrebatado por seu próprio pensamento: “Começar a pensar é
começar a ser consumido.” (CAMUS, [s.d], p. 15). Importante
apontarmos aqui como o conceito de absurdo por Camus tem um
sentido bastante peculiar em relação àquele que normalmente o
termo assume de forma corrente. Tal absurdo não se remete
diretamente à improbabilidade e ilogicidade das coisas; antes faz
referência a uma lógica esvaziada de sentido, a situações que
habitualmente são consideradas plausíveis na ordem vigente de
coisas vividas e sentidas, mas que são absolutamente desprovidas
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 72
de um sentido profundo que as tornem realmente justificadas,
após a observação mais densa de um olhar consciente e
desvelador.
O homem absurdo é o sujeito consciente da absurdidade do
mundo. Ele é capaz de sentir a lassidão e a falta de propósito que
levam ao sentimento do absurdo, e é justamente por estabelecer
uma consciência desta situação que ele efetivamente se torna o
sujeito absurdo. Como confirma Camus em O homem revoltado,
“para afirmar que a vida é absurda, a consciência tem necessidade
de existir.” (CAMUS, 1951, p. 15). O estranhamento do habitual e
uma nova percepção da densidade dos objetos, livres dos véus
com que são revestidos pelos hábitos mundanos, conduzem à
quebra deste elo que mantém o estado amorfo de todas as coisas,
como verificamos pelo ensaio de Camus:
Os homens também segregam algo de inumano.
Em certas horas de lucidez, o aspecto mecânico
dos seus gestos, a sua pantomima privada de
sentido torna estúpido tudo o que os rodeia. Um
homem fala ao telefone por detrás de uma
divisória de vidro; não o ouvimos, mas vemos a
sua mímica sem alcance: perguntamos a nós
próprios porque vive ele. Esse mal-estar ante a
humanidade do próprio homem, essa queda
incalculável ante a imagem daquilo que somos,
essa ‘náusea’, como lhe chama um autor dos
nossos dias, é também o absurdo. Também o
estranho, que em certos segundos vem ao nosso
encontro num espelho, o irmão familiar, e
apesar disso inquietante que encontramos nas
nossas próprias fotografias, é ainda o absurdo.
(CAMUS, [s.d], p. 27).
Seja em sua prosa simbólica, seja em sua poesia sofisticadamente dramática, seja através das manifestações confessionais, por onde quer que passe, a obra de Lúcio Cardoso deixa marca inegável, um farol para a literatura brasileira de ontem e de hoje. Escritor habilidoso e dono de recursos estilísticos acima da média, Cardoso monopolizou as atenções sobretudo graças à sua prosa carnavalescamente erigida nas imagens, na metáfora e nas estilizações. Fábio Cardoso
© Tchalê Figueira
Em Mãos vazias², Ida inicia um processo vertiginoso de desespero
após a morte do filho de seis anos, o que se torna o catalisador
necessário para provocar-lhe o estranhamento do universo
limitado em que vivia. Como em toda personagem cardosiana que
se preze, a capacidade inata para o Mal e para a loucura, bem
como o desconhecimento das próprias forças obscuras, são os
elementos que ajudam a desencadear o drama perturbador. Ainda
no dia do enterro, Ida recebe a visita do médico de seu filho e se
entrega sexualmente. Logo depois do ato “ocorreu-lhe afinal que
tinha se entregue ao médico friamente, sem nenhum desejo”
(MV, p. 219), o que demonstra como Ida aos poucos perdia o
controle sobre si mesma, percebendo que “há momentos na vida
em que a pujança dos acontecimentos torna impotente todo
esforço para dominá-los; nada são senão correntezas poderosas
que se agitam na penumbra do ser e o arrastam com o ímpeto das
forças implacáveis da natureza.” (MV, p. 232). A insipidez da vida
na pequena São João das Almas se alia a um ódio avassalador que
sente por Felipe, o marido que julga ser fraco e medíocre. Apesar
de ser um esposo prestimoso, a incapacidade do homem de
entender o turbilhão de sentimentos que a invadira – “Felipe era
um espírito reto, mediocremente reto” (MV, p. 263) – faz com que
Ida seja tomada por um rancor irremediável: “Queria-o mais
ríspido, imaginava proezas que o pobre Felipe nunca chegaria a
realizar. Nem sequer seria capaz de compreender o seu
pensamento, quando chegasse a descobrir os estranhos desejos
que a perturbavam.” (MV, p. 216). O repúdio pelo esposo e pelo
casamento acentua-lhe ainda mais o espírito de inquietação:
A mulher recomeçou a examiná-lo. “Como é
vulgar”, pensou, sentindo avolumar-se o seu
desdém. “Realmente, nada deseja, senão
encontrar o meio mais fácil de passar o tempo.”
Os olhos frios de Ida continuaram a pesquisar-
lhe os defeitos e ela percebia que isso aplacava
uma sede desconhecida na sua alma. Naquela
noite tinha a necessidade de odiar alguém.
Sentia-se cheia de uma força perversa e
tumultuosa, capaz de desencadear como o vento
que no outono verga inesperadamente as
árvores. (MV, 226)
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 76
A lassidão do espaço da província é o antípoda do aluvião de
sentimentos a tomar a personagem de assalto: “Ó Deus, aquela
vida, aquela casa pequena, aquelas rosas do lado de fora, o ar
abafado da sala quando fumegava sobre a mesa a terrina de
sopa... Tudo isto era ignóbil, ignóbil.” (MV, p. 233). O
estranhamento é agravado pela capacidade de destruição
imanente a quase todas personagens cardosianas e o perfil de sua
tragédia aos poucos era traçado pelo próprio mal que não
compreendia: “Certas ideias giram em nosso sangue até se
converterem numa obsessão; de novo aquele ato apresentava-se
revestido de estranheza e ela se detinha imóvel, sem saber ao
certo o que fizesse (...) Que demônio era aquele que lhe agitava o
ser?” (MV, p. 238). Diante da passividade do marido, ao
demonstrar uma reação inócua diante da confissão de adultério,
Ida decide fugir de casa e vagar pela cidade como uma espécie de
Lilith desgarrada e sem redenção e, tal como o mito da lenda
judaica³, está irremediavelmente condenada ao mal, como um
“espírito feminino que foi negado, reprimido e rejeitado, e que
consequentemente torna-se um espírito maligno.” (SANFORD,
1988, p. 156). Durante sua deambulação, reconhece que “nada
fizera senão reabilitar a sua personalidade esmagada por uma vida
obscura e fácil” (MV, p. 272) e, ao se lembrar do suicídio de uma
prima da cidade, reprimida pelas parentes por seu
comportamento julgado imoral, conclui que “duas são as espécies
de faces que transitam pelo mundo: as que refletem a serenidade
adquirida e as agitadas, como as de Maria, capazes de todas as
loucuras.” (MV, p. 273).
A força incapaz de vencer as barricadas que a cerceiam é o mal
que não encontra formas de sublevação, o que leva o médico de
Mãos vazias constatar que o transtorno de Ida “é o de não saber
como empregar a sua força” (MV, 267), levando a uma completa
aridez e a um grande vazio. Diante da falta de sentido para a vida,
Camus lembra que o sujeito estará diante de apenas duas
condições, como no caso de Ida: morrer voluntariamente pelas
próprias mãos ou optar pela esperança. Novamente o médico da
novela apontaria que “passamos a vida inteira como adormecidos,
mas sucede que um dia o destino abre os nossos olhos e nos
obriga a escolher um caminho.” (MV, p. 288). A escolha de Ida é
pela evasão final, que assegura o desfecho da novela:
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 77
O odor fétido do pântano estonteou-a um momento, mas, levada
pela força da ideia que a dominava, Ida não se deteve,
continuando a correr. Junto da água, deteve-se um minuto,
desorientada com o mau cheiro que subia. Nas suas costas sentia
o luar como uma punhalada. Começou a penetrar lentamente,
sentindo as raízes e os detritos chocarem-se na suas pernas. A luz
da Lua varava o pântano, estendia-se até o centro do rio, como o
reflexo morto de um incêndio. Então docemente, Ida deixou-se
desvalar, perdeu-se para sempre nas profundezas da noite. (MV,
p. 308).
Se optamos por não desertar voluntariamente da própria vida,
restaria a esperança; não obstante, Camus rechaça tal
mistificação: não há razões, expectativas ou verdades que
poderiam indicar um novo norte. O sujeito é obrigado a abolir
pseudoesperanças que fomentariam o esteio de uma trajetória
existencialmente esvaziada de profundidade. Camus esclarece não
optar pelo suicídio, embora longe fosse o caso de Ida
simplesmente abandonar a ideia de se afogar no pântano e
encontrar um sentido para a vida. Para o sujeito plenamente
consciente do sentimento absurdo, tal como a mulher que não
somente estranha como contesta o marido, o casamento e toda a
vida mediana ao seu redor, aniquilar o mito da esperança
representa o limiar de uma existência redimensionada aos limites
de uma vida sem apelo, “em que nada é possível, mas tudo é
concedido e após o qual só há o desmoronamento e o nada. Ele
pode então decidir-se a aceitar viver em tal universo e tirar dele as
suas forças, a sua recusa à esperança e o testemunho obstinado
de uma vida sem consolo.” (CAMUS, [s.d], p. 76). Podemos
também fugir da província para a cidade, onde encontraremos os
náufragos cardosianos que recusaram o suicídio e se tornaram os
sujeitos absurdos conscientes do tédio, da inutilidade e da
insensatez da absurdidade mundana. São tais sujeitos que
enfrentam a loucura e a morte os desafiadores presentes nas
novelas Inácio e O enfeitiçado4.
A luta tenaz de Lúcio Cardoso sempre foi contra o homem
apaziguado e sua relutância em romper com as interdições morais
que o impediam de explorar seus limites desconhecidos. A
errância diante do mistério maior que aterroriza representa um
caminho sem volta àquele que estiver preso ao sentimento do
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 78
absurdo: “O homem é sempre presa das suas verdades. Uma vez
reconhecidas, não pode libertar-se delas. É preciso pagar esse
preço. Um homem que se torna consciente do absurdo fica-lhe
ligado para todo o sempre.” (CAMUS, [s.d], p. 46). O sujeito
esmagado pelo cotidiano não está livre para abandonar-se ao
desvelamento da “densidade e estranheza do mundo” (CAMUS,
[s.d], p. 27), bem como é incapaz de transgredir os interditos em
busca das regiões caóticas das quais emerge o estado de
convulsão que o conduz ao conhecimento de si – ou, melhor
pensando, ao completo desconhecimento: “Mesmo este coração
que é o meu ficar-me-á para sempre incompreensível.” (CAMUS,
[s.d], p. 31). Camus não só desmistifica a extrema necessidade do
homem em estabelecer verdades peremptórias (sejam de ordem
social ou religiosa) como rechaça quaisquer possibilidades de
impor sentidos que expliquem o mundo:
Não sei se este mundo tem um sentido que o
ultrapassa. Mas sei que não conheço tal sentido
e que de momento me é impossível conhecê-lo.
Que significa para mim um significado fora da
minha condição? Só posso compreender em
termos humanos. O que toco, o que me resiste,
eis o que compreendo. E ainda sei que não posso
conciliar estas duas certezas, o meu apetite de
absoluto e de unidade e a irredutibilidade deste
mundo a um princípio racional e razoável. Que
outra verdade posso reconhecer sem mentir,
sem fazer intervir uma esperança que não tenho
e nada significa nos limites da minha condição?
(CAMUS, [s.d], p. 67).
Se Camus lança luz sobre a (in)capacidade do sujeito em viver nos
desertos onde a esperança não é mais o refúgio comum, Lúcio
aponta que a serenidade de espírito não passa de um engodo
irrisório, além de espicaçar intensamente uma esperança que não
condiz com o destino trágico de suas personagens. Rogério e
Inácio Palma, filho e pai, protagonistas respectivamente de Inácio
e O enfeitiçado, são porta-vozes da concepção do absurdo tal
como apresentada por Camus em O mito de Sísifo, como podemos
inferir pelas palavras de Inácio: “O homem nasce do chão, vem da
poeira e da terra escura como as plantas, é uma força
desenraizada e cega, uma pobre árvore solta na imensidão. Não
há destino, nem missão a cumprir. Duramos como os objetos
mortos duram.” (E, p. 227). O homem cardosiano, consciente do
seu destino esvaziado de qualquer propósito coerente, é capaz de
esgotar ao máximo o sentimento do absurdo em uma perspectiva
ainda mais trágica do que a apontada pelo escritor argelino. As
personagens da trilogia “O mundo sem Deus” elevam a revolta
existencial a tal nível que loucura, autodestruição e morte estão
confundidas às ferragens de suas almas trágicas. Como o próprio
título da tríade permite inferir, encontramos nela pontos de
convergência com a existência sem apelo de Camus, o que conduz
o sujeito a aniquilar a esperança como único alento de uma
sobrevivência possível. A consciência da inutilidade das tábuas de
salvação coloca o homem como estrangeiro do mundo, surtindo
nele uma sensação de subsistir à margem, como percebemos em
Inácio ao deplorar os controles moralizantes que lhe são
absolutamente irrisórios. Inácio torna-se um náufrago que vive
sem esperanças, apelos e interdições morais. Está livre de Deus,
dos outros homens e do seu futuro, pronto para esgotar-se ao
máximo sem quaisquer subterfúgios:
Quase tudo em que os homens creem como
sensato e positivo, deixara de existir para mim;
muitas vezes vi-me apenas como uma força
bruta e sem destino, independente dos rigores
das leis e dos sábios mandamentos instituídos
como a base sacramental da sociedade. Eu não
pertencia a coisa alguma, eu não acreditava em
coisa alguma, vivia. E para viver, não queria
perder um só minuto, todo o tempo me era
precioso e raro, tudo me servia. Assim
disponível, como podia admitir o avanço dessa
solidão que eu tanto detestava? (E, p. 215).
Não obstante, a perda do consolo perpetua um caminho
extremamente árido e por vezes desesperador, como observamos
nas novelas cardosianas. Se Camus propõe a consciência e a
revolta contra aqueles que pretendem fugir do enfrentamento,
Lúcio expõe espíritos revoltosos que sustentam o filão dos
desafiadores morais, com suas paixões incontroláveis, suas
subversões sexuais e suas atitudes disparatadas. Os rebelados
cardosianos não renunciam à consciência do absurdo, e são por
ela arrastados até à completa loucura ou autodestruição. Assim
como observamos em O mito de Sísifo, abolir a esperança não é o
mesmo que sucumbir à renúncia ou à resignação:
Viver é fazer viver o absurdo. Fazê-lo viver é,
antes de mais, olhá-lo. Ao contrário de Eurídice,
o absurdo só morre quando dele nos afastamos,
sem voltar a cara para trás. Uma das únicas
posições filosóficas coerentes é a revolta. Ela é
um confronto perpétuo do homem e da sua
própria obscuridade. É a exigência de uma
impossível transparência. Equaciona o problema
do mundo a cada segundo. Tal como o perigo
fornece ao homem impossibilidades
insubstituíveis de tomada de consciência, assim a
revolta metafísica dilata a consciência ao longo
da experiência. É a presença constante do
homem em si próprio. Não é aspiração, pois é
sem esperança. Esta revolta não passa da certeza
de um destino esmagador, mas sem a resignação
que deveria acompanhá-la. (CAMUS, [s.d], p. 69-
70).
Já no início da novela Inácio, Rogério é tomado de tal forma pela
consciência do absurdo que ela condiciona também o limiar do
seu estado de insanidade. O modo como a constatação da
absurdidade se confunde com a futura condição de demência da
personagem atende às necessidades provocadoras de Lúcio, por
possibilitar que o autor carregue ainda mais a ambientação
lisérgica da história e (des)focar todo um corpo de situações com
sua lente expressionista. O aspecto bizarro com que as
personagens são expostas e as atitudes disparatadas de Rogério e
seus convivas demonstram como Lúcio parte de um ponto traçado
por Camus para transformar o estranhamento inicial num
caleidoscópio insólito de formas e expressões que contribuem
(deliberadamente) para o estado de mal-estar do leitor. O
enfeitiçado segue o mesmo viés da primeira parte da trilogia, ao
explorar intensamente o sentimento do absurdo, face ao
protagonista que circunscreve às suas impressões pessoais o
desprezo por quaisquer sentidos plausíveis para a existência. Se
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 81
em O mito de Sísifo o homem absurdo é capaz de buscar
experiências em meio à inutilidade da vida, para Lúcio Cardoso a
derrocada de suas personagens pertence ao viés trágico que
devem obrigatoriamente percorrer, o que confirma a postura
extremista do escritor.
Rogério Palma é o homem absurdo que explora com afinco o
conceito de absurdidade (lembrando que podemos dizer o mesmo
de seu pai). Desperto de uma intensa febre, o espanto diante do
absurdo norteia todas suas atitudes posteriores e, assim como
aponta Camus, aos poucos assume os contornos de uma paixão
lancinante, a ponto de o escritor indagar “se podemos viver com
as nossas paixões, se podemos aceitar a sua lei profunda, que é a
de queimar o coração que elas ao mesmo tempo exaltam.”
(CAMUS, [s.d], p. 35). No momento em que abandona seu quarto
de pensão em direção às ruas do Rio de Janeiro, Rogério é tomado
de assalto por uma intensa disposição de ânimo a partir do novo
alcance de seus pensamentos:
Que grande espetáculo é a vida! E eu sentia que,
mais do que qualquer outra coisa, minha “idéia”
me auxiliava a viver naquele instante. Era sua
força que me impulsionava. Sem descanso,
perguntava a mim próprio: diante desta euforia,
deste entusiasmo, como pode você conceber
que tenha vivido durante tanto tempo naquele
quarto lúgubre, entre livros empoeirados e idéias
que assassinavam aos poucos? Se não fosse a
súbita descoberta dos “tempos novos”,
certamente você teria morrido, e neste caso não
seria uma morte plenamente justificada, já que
você nada tinha feito para merecer uma
existência melhor? Mas as idéias são simples
fragmentos, coisas diminutas, parcelas íntimas
que brotam do nada e, no entanto, sacodem a
base do mundo. As idéias são forças
extraordinárias em movimento. (I, 22).
Rogério deseja encarar o mundo extrapolando seus limites morais,
com atitudes que o conduzem a uma loucura vertiginosa. O
personagem aponta o dedo sobre o absurdo enquanto seu estado
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 82
de desvario prossegue em moto-contínuo, como se sua própria
loucura crescente fosse paradoxalmente o modo mais lúcido de
lidar com o desvelamento da absurdidade ao seu redor, o que o
leva a supor: “No dia em que soubéssemos de tudo, morreríamos.
Sim, há coisas que ignoramos e cuja ciência nos mataria
infalivelmente.” (I, p. 30). Camus não subestima a força do
sentimento absurdo sobre o homem consciente, ao apontar como
“a tenacidade e a clarividência são espectadores privilegiados
nesse jogo desumano em que o absurdo, a esperança e a morte
travam o seu diálogo.” (CAMUS, [s.d], p. 21). A loucura de Rogério
se alimenta intensamente do ódio para não mais se submeter à
resignação, um ódio tão clarividente que por vezes nos remete aos
últimos lampejos de lucidez que possui. Diante de Duquesa, dona
da pensão que insiste em assediá-lo, o jovem adensa o rancor
extremo com que encara as pessoas ao seu redor: “Tornou-se
mais agudo, instantaneamente, o meu antigo desgosto pelo
gênero humano. Na verdade, como tolerar semelhante monstro
perto de mim, dias, noites, semanas inteiras? O suicídio surgiu-me
como uma benção.” (I, p. 19). Vemos como toda repulsa capaz de
sustentar é instigada pelos sujeitos que perpassam a história, e
são eles que mais permitem a Lúcio carregar nas cores deste
mundo insólito que tanto persegue. O absurdo das situações é
(des)focado por uma lente transfiguradora a atender as grandes
obsessões cardosianas que, como lembra Carelli a respeito de
Inácio, configuram “personagens que se espiam, os seres acuados
que se mascaram para aparar os golpes, a vida comparada a uma
doença, a morte violenta, as manifestações grotescas da loucura.”
(CARELLI, 1988, p. 130).
Li seu livro numa só tarde. Naturalmente sem interromper. (...) O fato é que gostei de Inácio com tanta curiosidade e tanto interesse como dos outros. Ele é uma mistura (nesse livro mais, me parece) de coisas que a gente sempre toca, como a Duquesa fazendo café à moda da roça e a flor ‘sem serventia nenhuma’, com coisas que a gente nunca toca, como Inácio, meu Deus... Quando chegou o momento em que o rapazinho diz finalmente: eu queria saber como minha mãe e você se conheceram, eu parei e fiquei descansando 15 minutos. E quando ele fica louco, que alívio. (...) Clarice Lispector - Nápoles, Itália, 26 de março de 1945
Lúcio Cardoso na década de 1940
O auge da perturbação de Rogério é estar tête-à-tête com Inácio.
Sente pelo pai um misto de fascínio e repulsa, ao notar-lhe o
“poder de arrancar as coisas do vazio, de produzir tudo como um
feiticeiro com sua varinha, como alguém que faz explodir um fogo
de artifício” (I, p. 109), e aponta ainda o que chama de sua
“capacidade de transfiguração”, ao notar na figura paterna como
“ainda mesmo que se tratasse do fato de tomar uma laranjada,
para Inácio esse episódio banal se convertia em algo de estranho e
maravilhoso.” (I, p. 109). O pai irá nutrir ainda mais o repúdio do
filho pelo estado de coisas ao seu redor, como para torná-lo um
cúmplice: “Os homens me causam um desgosto profundo.
Cheiram mal, vestem-se de uma maneira inconcebível, são tolos e
pretensiosos. Não é possível que Deus tenha inventado seres tão
sórdidos para testemunhar da sua grandeza.” (I, p. 113). Neste
ponto, observamos como as personagens de Inácio e O enfeitiçado
rejeitam sentidos ou consolos para suas existências, tal qual
observamos no ensaio de Camus. Encontrar forças para o
enfrentamento moral e arregimentar uma capacidade de
resistência implacável são os modos com que o homem
possivelmente pode não sucumbir ao suicídio. Longe estaria a
possível busca do homem em apoiar-se em pseudoexpectativas ou
em explicações metafísicas – Deus e a confiança no Outro são
estritamente abolidos. Citemos o entendimento do personagem
Inácio: “Que era o mundo, que significavam aqueles sinais? Estrela
solta, erosão sem significado, esboços de um grande sonho
fracassado? Aquela monstruosa paisagem, cheia de formas sem
sentido, não atestava a favor de outra experiência, perdida entre
os dedos sem forças do homem?” (E, p. 227) O homem deve viver
sem apelo ao se desligar do desejo de almejar sentidos para a
vida, tendo como horizonte a consciência da morte como única
realidade concreta. A vida conduz o homem a um esforço inútil e
sem esperança, assim como o mito de Sísifo sugere:
Já todos compreenderam que Sísifo é o herói
absurdo. É-o tanto pela suas paixões como pelo
seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o
seu ódio à morte e a sua paixão pela vida
valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu
ser se emprega em nada terminar. É o preço que
é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não
nos dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 85
mitos são feitos para que a imaginação os anime.
Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um
corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme
pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma
subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto
crispado, a face colada à pedra, o socorro de um
ombro que recebe o choque dessa massa
coberta de barro, de um pé que a escora, os
braços que de novo empurram, a segurança bem
humana de duas mãos cheias de terra. No termo
desse longe esforço, medido pelo espaço sem
céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade
está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em
poucos instantes para esse mundo inferior de
onde será preciso trazê-la de novo para os cimos.
E desce outra vez à superfície. (CAMUS, [s.d], p.
149).
As personagens cardosianas se aproximam do herói absurdo, tal
como aponta Camus, pela plena consciência que possuem da vida
como um esforço inútil e a consequente perda da fé em Deus e
nos homens, que as conduzem à derrocada moral e espiritual.
Seguem de tal modo para o abismo (e muitos se atiram
apressadamente nele, com a sofreguidão própria das almas
alucinadas) que tamanha lucidez diante da inutilidade existencial
paradoxalmente se transforma em uma espécie de loucura – ou
antes a demência de alguns está sub-repticiamente revestida de
tamanha clarividência que seus atos se tornam ainda mais
assustadores. São personagens dolorosamente conscientes, como
aponta Camus: “Se este mito é trágico, é porque o seu herói é
consciente (...) O operário de hoje trabalha todos os dias da sua
vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo.
Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna
consciente.” (CAMUS, [s.d], p. 149). Camus completa: “Sísifo,
proprietário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a
extensão de sua miserável condição: é nela que ele pensa durante
a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento
consome ao mesmo tempo a sua vitória.” (CAMUS, [s.d], p. 149).
Inácio possui um entendimento claro do mal sob o qual irá
sucumbir, e a clareza do nefasto presságio cardosiano – “A
tragédia é o estado natural do homem” (CARDOSO, 1970, p. 05) –
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 86
é o leitmotiv de toda a sua trajetória, assim como a de outras
personagens, e torna-se também responsável por este intenso
mal-estar causado nos leitores:
Começa aqui a minha destruição. Não temam,
não recuem diante da palavra, pois ela serve
apenas para exprimir o sistema de desintegração
que foi o meu, tão idêntico em suas linhas
essenciais a todos os processos de falência e
morte que a humanidade conhece (...) Há agora
em mim uma vivacidade que me assombra – a
dialética do caos é extremamente inteligente. E
não sei, vou separando os detalhes, inutilizando
frases, acontecimentos, com uma certeza febril:
o amor de certas almas se assemelha à danação.
(E, p. 242).
Aos espíritos combativos, Camus propõe a revolta, a liberdade e a
paixão como únicas possibilidades para o enfrentamento da
realidade irrisória. Em O homem revoltado, obra que de algum
modo complementa as ideias de Ensaio sobre o absurdo, Camus
reforça a proposta: “Eu grito que não creio em coisa alguma e que
tudo é absurdo, mas não posso duvidar do meu grito e tenho pelo
menos de crer no meu protesto. A primeira e única evidência que
assim me será proporcionada, no interior da experiência absurda,
é a revolta.” (CAMUS, 1951, p. 20). Tendo a morte como a única
certeza entre tudo o que almeja, a privação de esperanças e de
um futuro, por outro lado, aumentam a disponibilidade do
homem para explorar possibilidades concretas – a arte sendo a
mais proeminente entre elas – diante da existência inútil, e Camus
reforça a proposição a partir de uma frase que parece
redimensionar o aforismo de Descartes: “Eu revolto-me, logo
existimos.” (CAMUS, 1951, p. 38). Negando a imortalidade e a
conveniência de se amparar em sentidos irrisórios, Camus propõe:
“O absurdo elucida-me neste ponto: não há amanhã. Eis, daqui em
diante, a razão da minha profunda liberdade.” (CAMUS, [s.d], p.
74). O homem rejeita o desejo de ser imortal – imortalidade que o
ascetismo religioso encerra, pela necessidade do homem negar a
si mesmo e a sua realidade concreta como ponte para viver em
outra existência após sua “salvação” – por um maior número de
experiências possível diante da falibilidade de pseudoverdades
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 87
metafísicas. Temos uma atitude de desprezo próxima àquela de
Nietzsche em um dos adágios de Aurora:
Aos sonhadores da imortalidade – Desejais, pois,
uma eterna duração a essa bela consciência de
vós mesmos? Não é um descaramento? Não
pensais em todas as outras coisas que teríeis
então de suportar por toda a eternidade como as
suportastes até aqui, com uma paciência mais
que cristã? Ou julgais poder obter, pela vossa
presença, um eterno sentimento de bem-estar?
Um único homem imortal sobre a terra bastaria
para mergulhar tudo o que o envolvesse numa
fúria universal de suicídios e de enforcamentos
pelo desgosto que inspiraria! E vós, habitantes da
terra, com os vossos conceitozinhos de alguns
milhares de minutos de tempo, quereis estar
eternamente dependentes da existência eterna e
universal! Pode ser-se mais importuno? –
Finalmente: sejais indulgentes com um ser de
setecentos anos! – Ele não pôde exercer a
imaginação a descrever o seu próprio
“aborrecimento eterno”, - não teve tempo disso!
(NIETZSCHE, 1977, p. 174).
Se os vaticínios de Inácio sobre seu próprio destino são expostos
de forma lúcida – lembrando que tamanha lucidez acompanha
quase sempre o modo como as personagens cardosianas encaram
a própria fatalidade –, o desprezo pela existência miserável e o
desdém a toda uma moral que o circunda desnuda um ponto
nevrálgico que une implacavelmente os sujeitos fatídicos de Lúcio
aos escritos de Camus, como este aponta: “Não há destino que
não possa ser sugado com o desprezo.” (CAMUS, [s.d], p. 149). Tal
pensamento será o norte dos protagonistas da trinca Inácio, O
enfeitiçado e Baltazar, pela qual a falência de Cristo é decretada e
por onde o degredo de uma vida esvaziada de fé retira das
personagens qualquer possibilidade de redenção.
O desprezo é grande aliado da avidez insidiosa com que as
personagens de Lúcio Cardoso empreendem sua descida aos
infernos, sejam aqueles que queimam as sacristias mineiras e os
altares religiosos das províncias, sejam aqueles responsáveis pelos
conflitos ontológicos em meio à decadência do submundo das
cidades. Este imenso repúdio se confunde às engrenagens das
intenções provocadoras de Lúcio Cardoso, principalmente em suas
novelas urbanas. Se no ambiente da província as personagens
ainda sucumbem sob o peso do remorso e da expiação religiosa –
lembremos José Roberto na agonia final em seu quarto, após o
assassinato de Paulo –, as personagens citadinas preferem
chafurdar no pântano amoral com seus comportamentos
tresloucados. O ódio é componente essencial das personagens
cardosianas, onipresente na essência de cada um deles e na
atmosfera que os envolvem, como afirma Inácio: “Sempre o senti
em torno de mim, impregnando as ações e os gestos, sempre o
senti escorrer imponderável entre os homens, atento, vigilante,
olhos acesos e imóveis na obscuridade das casas, nas esquinas
frequentadas, nas sarjetas, nos bailes e nos cafés.” (E, p. 171).
Podemos destacar os matizes do ódio cardosiano: surdo, contínuo
e arrastado, comparado a um mofo insidioso que se espalha
morosamente, espécie de mal que sub-repticiamente contamina
todos os homens:
Enganei-me, ao dizer que o ódio permanece de
olhos acesos; ele não tem olhos, ou se os tem,
são pupilas cegas, úmidas pupilas de mofo, pois
só o mofo traduz esse lento e progressivo
trabalho, essa sufocante vegetação. Aos olhos
menos desatentos não será difícil verificar o que
está mofado, pois são nossas mãos que se
mostram duras e cansadas, é o sangue que gira
menos forte em nossas veias – e se os lábios
nunca podem sorrir, os corações batem sem
alma, um imenso véu de neblina e tédio se
estende sobre o mundo. (E, p. 171).
Lúcio Cardoso faria sua louvação ao ódio com a publicação da
novela A professora Hilda7 (1946). Pela personagem homônima, o
autor almejava criar um arquétipo da personificação do mal. Em
um pequeno texto que funciona como introito para a novela, o
novelista apontaria alguns indicativos na construção de suas
personagens insólitas: “Pois o Mistério é a única realidade deste
mundo. E, se dele temos tão grande necessidade, é para não
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 89
morrer do conhecimento dos nossos próprios limites, como as
criaturas loucas e martirizadas a que tentei dar vida.” (H, p. 269).
Assim como o homoerotismo, o suicídio e a corrupção sexual
nortearam o tour de force do escritor polemista, a provocação em
Hilda terá como esteio o ódio – mais precisamente a tenacidade
do ódio provinciano, espécie de ódio mineiro a se fortalecer na
surdina, alimentado pela violência própria da interioridade. A
personificação demoníaca foi acentuada deliberadamente pelo
escritor, a começar pela própria descrição da protagonista, feita
com detalhes que procuram a todo custo enfatizar os traços
maléficos da anti-heroína. Mario Carelli aponta que o apuro na
descrição da personagem é feita de modo com que “as
observações agudas, quase rangentes, sublinham a crueldade do
personagem” (CARELLI, 1988, p. 123), num trabalho descritivo que
o estudioso italiano apontaria ser um “retrato talhado a escalpelo
(talvez um pouco esquemático, como ele [Lúcio] próprio
reconhecerá)” (CARELLI, 1988, p. 125), a confirmar o desejo do
escritor em realçar os contornos dramáticos para fortalecer a
imagem de uma personagem moralmente controversa. Deste
modo, temos a descrição de Hilda:
Que romance estranho e assombrado você escreveu! (...) Me deu um bruto de soco no estômago, fiquei sem ar, li, lia, o caso me prendia, os personagens não me interessavam, às vezes as análises me fatigavam muito, às vezes me iluminavam, não sabia em que mundo estava, inteiramente despaisado. (...) Achei seu livro absurdo porque os personagens me pareceram absurdos. Tanto no Brasil como em qualquer parte do mundo. E não pareceram, não cheguei a senti-los como personagens do outro mundo. Loucos? Aberrados de qualquer realidade já percebida por mim? Ou antes criaturas exclusivamente criadas pelo autor para demonstrar a sua percepção sutil e pra mim um bocado confusa (não compreendi exatamente) da luz no subsolo? Tive mais a sensação que se tratava deste último caso. (...) Seu livro é um forte livro. Artisticamente me pareceu ruim. Socialmente me pareceu detestável. Mas percebi perfeitamente a sua finalidade (no livro) de repor o espiritual dentro da materialística literatura de romance que estamos fazendo agora no Brasil. Deus voltou a se mover sobre a face das águas. Enfim. É possível que você tenha agido um pouco nazisticamente, ou comunistamente demais. Quero dizer: viu por demais a tese, teve o desejo de agir de certo modo, e abandonou por essa norma de ação e intenção, arte e realidade. Mário de Andrade, carta a Lúcio Cardoso sobre A luz no subsolo
© Tchalê Figueira
Era uma mulher de estatura abaixo do normal,
ligeiramente volumosa, cabelos pretos, sedosos,
partidos no meio e rematados em duas tranças
no alto da cabeça. Seus olhos eram miúdos e de
órbitas profundamente cravadas na face, seu
nariz era pequeno e sem importância, os lábios
estreitos e cruéis, incimados por um buço forte.
Toda a extraordinária força que emanava de sua
pessoa parecia, apesar de tudo, partir
exclusivamente desses olhos pequenos, onde
uma nota qualquer, aguda e maldosa, como que
ainda avivava mais o seu brilho constantemente
vigilante e desconfiado. Trajava-se severamente
de preto, uma estreita fita de veludo no pescoço
roliço, onde ainda se demorava uma mocidade
pesada e sem graça, último reflexo de uma vida
destituída de qualquer vislumbre de
sensualidade. (H, p. 271).
A professora reside em um lugarejo recôndito ao lado de uma
estrada de ferro e no local possui posição soberana para dominar
as rédeas de todas as realizações políticas, familiares e sociais da
comunidade, incluindo eleições, festas e batizados. Todo o
domínio da professora, porém, é ameaçado com a notícia da
chegada iminente de outra professora nomeada para o lugar, algo
que desperta em Hilda o desejo de realizar uma série de ardis para
expulsá-la. A professora parece viver em uma espécie de inferno
pessoal criado por si mesma, envolto pelo marasmo da província a
acentuar uma espécie de falta de expectativa que a faz sempre
“desvendar alusões misteriosas, intrigas fáceis e manobras em
torno de si” (H, p. 272), quando “tudo lhe parecia uma ofensa sem
remédio ou um golpe mortal” (H, p. 272) ou ainda “as palavras
mais insignificantes lhe surgiam aos olhos pejadas de sentido; os
descuidos mais banais convertiam-se em imperdoáveis afrontas”
(H, p. 272), sendo que tais intrigas pertenciam absolutamente às
maquinações de sua mente doentia e fantasiosa. Lúcio adensa as
características do espírito rancoroso da personagem:
Pelo fato de se ofender com tanta obstinação e
de sorrir tão continuadamente, o hábito lhe
criara uma máscara pálida e altiva, onde sempre
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 92
parecia flutuar um misto de náusea e desdém.
Mas Hilda não perdoava, não sabia perdoar. Sua
natureza fechada ao mistério da fé era um
mecanismo de julgamento severo, uma balança
delicada e precisa das faltas alheias. E, de tanto
ocultar seus sentimentos, criara no coração um
obscuro e largo depósito de rancores
concentrados. Nele, nesse cofre de sentimentos
ásperos, borbulhava com o correr dos anos um
líquido escuro que lhe atormentava a alma, um
desespero soterrado e estranho, que às vezes lhe
fazia descer aos olhos um vapor espesso. Nessas
ocasiões sua rigidez aumentava, mal dirigia
palavras aos outros, recusava convites, impedia
festas, acentuava maldosamente palavras
desprevenidas, forjando situações inexplicáveis e
inimizades sem conta. (H, p. 273).
Tal empenho acentuadamente deliberado para salientar as
nuances de uma personagem cruel também se encontra na
descrição de Miguel, na novela O desconhecido8. Ao descrever
seus seres mais venais, Lúcio não hesitava em carregar nos traços
pictóricos de suas imagens expressionistas quase caricaturais, a
ponto de transformar o cocheiro em uma alegoria da
perversidade, com uma descrição que nos remete a uma espécie
de vampiro de Dusseldorf. O homem a bradar o chicote para seus
cães agressivos, deixados sem comida para que se tornassem
assassinos, é uma destas criaturas misteriosamente demoníacas
que Lúcio sempre ressaltou em suas novelas da província.
A obliquidade, aspecto apontado no que tange ao homoerotismo,
nos conduz a uma outra categoria emblemática não somente das
novelas, como de toda sua prosa de ficção: a força do
ressentimento. Notamos, ao final do tópico anterior, como a
revolta é uma atitude absolutamente concreta e dinâmica que
Camus defende; não obstante, muitas das personagens de Lúcio –
notadamente as figuras enclausuradas da província – se afastam
da revolta tal como foi apontada pelo escritor argelino para se
metamorfosearem em espíritos perigosamente ressentidos. Em O
homem revoltado, Camus aponta uma relevante distinção entre
revolta e ressentimento:
O ressentimento é muito bem definido por
Scheler como uma auto-intoxicação, a secreção
nefasta, em recipiente fechado, de uma
prolongada impotência. Mas a revolta, pelo
contrário, despedaça o ser e ajuda-o a
transbordar de si próprio. Ele liberta vagas que,
estagnadas, se tornam furiosas. O próprio
Scheler põe a tônica sobre o aspecto passivo do
ressentimento, salientando o lugar importante
que ele ocupa na psicologia das mulheres,
votadas ao desejo e à posse. Na origem da
revolta, houve, pelo contrário, um princípio de
atividade superabundante e de energia. Scheler
teve igualmente razão ao afirmar que a inveja
contribui poderosamente para o ressentimento.
(CAMUS, 1951, p. 31).
Os sujeitos da província estão intoxicados pela sensação
claustrofóbica do enclausuramento das casas, das igrejas e de si
mesmos. Não são silenciosos por mero acaso – Lúcio sempre
demarcou que, sob a parcimoniosa eloquência mineira, jazia a pior
crueldade possível. Aquele mofo lento e insidioso citado por Inácio
é ainda mais nefasto quando progride no território limitado da
província, com suas residências de janelas sempre cerradas, suas
longas estradas empoeiradas sob o sol impiedoso, suas sacristias
cheirando a incenso nauseante, suas famílias repletas de desejos
abnegados cujo rancor, longe de ser o fogo fátuo das histórias
esquecidas, se torna demasiadamente longo e arrastado. Sabemos
que lançar uma luz implacável sobre o inferno das províncias
pertence ao projeto pessoal de Lúcio contra Minas, dominada
pelos demônios do silêncio e do cárcere privado. Hilda compõe
parte do arsenal de sujeitos ressentidos, com seu ódio alimentado
pelo tédio, pelo marasmo e pela interiorização caótica. Enquanto
as cidades condicionam a eclosão das revoltas – mesmo as
personagens urbanas mais autodestrutivas são, de algum modo,
combativas e desafiadoras –, as províncias representam o espaço
do re-sentir, o sentir duplicado como um moto contínuo nunca
exposto, nunca apaziguado.
Lúcio demarcou personagens tão silenciosas quanto cruéis, seres
repletos de perversidade que medram nas províncias, como
Aurélia, dona da decadente fazenda Cata-ventos em O
desconhecido, ao apontar que “havia nela uma ressonância de
paixões reprimidas, de ódios recalcados e pequenas misérias
subjugadas.” (OD, p. 21). Destaca ainda que a mulher “amava
também criar mistérios, espalhá-los em torno de si como
dissimuladas armadilhas. Gostava de ver as pessoas desprevenidas
se envolverem nas teias que tecia na quietude dos pequenos
cantos, no enigma de pequenos atos deixados em começo.” (OD,
p. 41). Os ressentidos cardosianos são sempre solitários – pela
extrema solidão, a tendência para o Mal se concretiza e o
isolamento dimensiona o inferno pessoal que posteriormente
contamina a todos. Como no caso de Miguel, uma ambientação
quase fantasmagórica envolve Aurélia, dando forma a uma
maldade quase sobrenatural.
Enquanto nos espaços citadinos a revolta exteriorizada extrapola
os limites da angústia e do desespero, rompendo as barricadas
que aprisionam o ódio, nas províncias o rancor se prolonga como
uma metástase silenciosa e contínua. A relação entre revolta e
ressentimento se projeta inversamente nas novelas, já que o
revoltado cardosiano enlouquece ou arregimenta mecanismos de
autodestruição não só como ressonância da inadequação que
sentem, mas também como forma de imposição do próprio Ser –
e o ressentido cardosiano, o mais perigoso entre todas as
personagens, mesmo que envenene a si mesmo, é obcecado com
o aniquilamento do Outro. Em O desconhecido, Aurélia quer fazer
de José Roberto literalmente seu escravo, para exercer sobre
alguém sua necessidade mefistofélica de domínio e destruição.9
Camus elucida melhor a questão: “O ressentimento é sempre um
ressentimento contra o próprio que o experimenta. O revoltado,
pelo contrário, no seu primeiro movimento, opõe-se a que
toquem naquilo que é. Luta pela integridade de uma parte do seu
próprio ser. De princípio, não pensa em conquistar, mas em
impor.” (CAMUS, 1951, p. 31). A imposição do rebelado se dá
principalmente pelo distanciamento das bases moralizantes, seja
pelo sexo ou pelas drogas, e funciona implacavelmente como uma
provocação daqueles que se sobrepõem aos limites da resistência.
Os personagens citadinos destroem a si mesmos como
consequência da insubordinação, e sucumbem sob o efeito
catártico do riso transgressor a exacerbar o clima dramático da
loucura acintosamente expurgada; já os provincianos focam a
destruição do Outro, sob uma dramaticidade tensa, austera e
silenciosa, própria dos dementes contidos, que preparam suas
trincheiras em surdina – o entrincheiramento tipicamente
mineiro. Timóteo travestido aguardou por mais de 20 anos sua
vingança, esperando o momento oportuno para expor sua
monstruosidade – e quando se liberta do autodegredo, em pleno
enterro de Nina, funciona como um estopim para a decadência
dos Menezes – a decadência mineira.
Nas residências da província, as personagens erguem seus últimos
altares para o inferno, como na casa de fazenda de Madalena cujo
pesadelo é constante, da primeira à última página de A luz no
subsolo; ou como no castelo provinciano de Donana de Lara em O
viajante, de onde retira o filho aleijado uma única vez para atirá-lo
aos urubus que voam sobre o precipício. Tais casas são
verdadeiras estufas de rancor e ódio, que aceleram o rumo dos
acontecimentos trágicos, e a avidez do ódio é própria do autor
que deseja expressar a ruína da tradicional família mineira. O tom
oblíquo do ódio mineiro conduz a um estado de mistério sempre
intrigante para o escritor, que lhe possibilita criar atmosferas
quase fantasmáticas, como aquela a assaltar José Roberto na
fazenda Cata-ventos:
A atmosfera de irrealidade que desde o
entardecer parecia vir impregnando tudo a que
ele assistia, esses gestos absurdos e essas
reticências cheias de mistério no silêncio da
noite, essas criaturas que vinha encontrar
girando em torno de uma mola secreta – tudo
isso acelerava o vago sentimento de terror que
vinha sentindo estreitar-lhe desde cedo o
coração. (OD, p. 38).
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 96
Lúcio Cardoso em 1946. Arquivo do Instituto Moreira Salles (reprodução)
A forte impressão de Mistério pertence ao olhar expressionista
que Lúcio lança por Minas Gerais, terra da qual nunca conseguiu
se desligar por completo: “O que amo em Minas são os pedaços
que me faltam, e que não podendo ser recuperados, ardem no seu
vazio, à espera de que eu me faça inteiro – coisa que só a morte
fará possível.” (CARDOSO, 1970, p. 293). Em uma de suas últimas
viagens pelos rincões mineiros, de passagem pela cidade de Ubá,
zona da mata mineira (onde possivelmente, pelos seus arredores,
poderia ser encontrada a decaída mansão dos Meneses de Crônica
da casa assassinada), Lúcio explicitaria suas mais pungentes e
definitivas declarações a partir da ligação atávica com o estado.
Seria pelo registro diário que confirmaria a latência do seu ódio e
de sua fascinação por Minas, “esse espinho que não consigo
arrancar do meu coração.” (CARDOSO, 1970, p. 293). Todos os
ambientes sombrios de seus livros e novelas parecem se remeter a
uma eterna “tristeza mineira” que tanto o perseguiu e o fazia
lastimar: “Minas é muda e cega. Sua crueldade vem do sentimento
terrível do seu poder: são léguas e léguas de brejos, carrascais,
lama, poeira e desolação.” (CARDOSO, 1970, p. 293). Minas Gerais
e suas longas estradas empoeiradas e soturnas, suas fazendas
outrora faustuosas a ostentar a derrocada dos valores e tradições
mineiros, suas residências misteriosas de portas e janelas
trancadas – Mario Carelli lembraria, em Corcel de fogo, que a casa
da fazenda Cata-ventos, de O desconhecido, lembraria o palácio
de Nosferato do cineasta Murnau –, suas personagens carregadas
de um ódio tão perene quanto amargamente silencioso definiriam
os contornos e matizes do universo trágico cardosiano, cuja
imagem de sangue e violência ele retira profundamente do berço
natal que o transtorna como uma maldição.
Notas
¹ A leitura de Vida vida, de Maria Helena Cardoso, nos permite inferir tal colocação, já que a escritora relembra o modo com que o escritor foi apegado à vida, bem como lutou com afinco pela recuperação de sua saúde, no anseio de voltar a escrever e terminar seus romances e novelas. A luta persistiu anos depois do primeiro derrame, até a crise fatal em 1968. ² A referência à novela Mãos vazias será feita pela sigla MV, seguida do número da página. ³ Ver SANFORD, John . Mal: o lado sombrio da realidade. São Paulo, Paulinas, 1988, pág. 155.
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 98
4 As referências às novelas citadas serão feitas respectivamente pelas iniciais I e E, seguidas do número da página. 7A referência à novela será feita pela sigla H, seguida do número da página. 8A referência à novela será feita pela sigla OD, seguida do número da página. 9Curioso notarmos como a passagem possui uma clara referência à tentação de Jesus, presente no Evangelho de Mateus 4, 1-11, quando Aurélia oferece todas as joias de família para o desconhecido: “Pois tudo será seu, se você me adorar, se me seguir de joelhos, se for meu como um objeto, como a poeira do chão, como o que depende de mim para a vida e para a morte.” (OD, p. 150).
Referências
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução: Virgínia Motta. Lisboa:
Edição Livros do Brasil, 1951.
_______. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Tradução: Urbano
Tavares Rodrigues e Ana de Freitas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, [s.d].
CARDOSO, Lúcio. A luz no subsolo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003.
_______. Inácio, O enfeitiçado e Baltazar. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
_______. O desconhecido e Mãos vazias. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
_______. Diário completo. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1970.
_______. Três histórias da cidade. (Inácio, O anfiteatro e O enfeitiçado).
Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1969.
_______. Três histórias da província. (Mãos vazias, O desconhecido e A
professora Hilda). Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1969.
CARDOSO, Maria Helena. Vida-vida. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1973.
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 99
CARDOSO, Rafael. Uma harmonia difícil: Lúcio Cardoso e o cinema. Cult,
São Paulo, n.14, p. 60-63, set. 1998.
CARELLI, Mario. A música do sangue. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da
casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. São
Paulo: Scipione Cultural, 1997.
______. Crônica da casa assassinada: a consumação romanesca. In:
CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada
por Mario Carelli. São Paulo: Scipione Cultural, 1997.
______. Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso (1912 – 1968).
Tradução: Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
FARIA, Octavio de. Lúcio Cardoso. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa
assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. São Paulo:
Scipione Cultural, 1997.
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Tradução: Rui Magalhães. Porto/Portugal:
RES Editora, 1977.
SANFORD, John A. Mal: o lado sombrio da realidade. Tradução: João
Silvério Trevisan e Sílvio José Pilon. São Paulo: Paulinas, 1988.
7faces – Ordilei Costa dos Santos │ 100
Lúcio Cardoso Três tons
Em Tom de Rosa Rasga, tira, teu suavíssimo esplendor. Rasga, insone, o teu veludo cor de sândalo, antes que a dura pauta enfureça ao chegar do teu calor. Rasga. Antes que seja carne a tua ilusória memória de inocente. Rasga o teu odor, fende tua ilharga, cera e sangue, destrói – oh destrói a alma que te habita. Que viver perdura, e que existe que não sofra a ânsia de morrer? Destrói, rosa, teu próprio ser: configure-se branco, o que é cor - e antes do amanhecer sobrevenha em cinza: todo rosa não é mais do que uma invenção do vento.
Em Tom de Chama Sempre te esperei, sempre, ó todo o sempre não fosses senão uma fugitiva imagem do que acaba. Sinto, eu, este mundo desaba. Cor subindo, que te assiste, neste teu ser de ígneo de verde e de crepitar? Acena a chama. Seca a velar, quem ama este fumo esvaído no vento? A chama é acontecido. Mas volta, lento, um grito: é um outro eu, existido.
Em Tom de Quente
Anuncia, teu oculto amarelo: anuncia, esse amarelo tenso. Ó melodia de óxido e gesso, estátua de ferrugem: que cor se esconde em tua imagem e fuzila, silente, em teus olhos de sombra? Anuncia, amarelo, e em todo o teu vagar opalescente, descortina o véu: detrás, eu sei, resplende, a meio, um sol poente.
Em tom de poesia 2
© Emilio Scanavino
Jairo Macedo Goiânia – GO
É jornalista. Nascido e criado em Goiânia/GO, hoje reside em Brasília/DF. Ainda inédito em livro, criou a microeditora Maldita Cafeína.
ainda tô esperando você chegar com novidades nas mãos e areia nos pés contando que voltou pra sempre e que vai sair pela direita daqui a pouco sem dizer palavra. insinuando que, de tão irreal, tão desenho animado, tão vestir o disco e botar a roupa na vitrola, finalmente é você quem dança sem uniforme colante na sala de justiça dessa cidade movediça.
7faces – Jairo Macedo │ 108
as sete estações do trem de hidrolândia não viajar, apenas se deslocar perder-se em tempo e espaço feito o baudelairiano de apartamento que é. suar na entrada de parques aquáticos assistir grandes jogos de alambrado errar a esquina, coçar a cabeça flanar em calçadas estreitas e semáforos longos leve como um ônibus metropolitano de linha amarelo barulhento e velho, muito velho.
essas cidades sem desafogo
são assim terríveis te fazem meio ridículo lendo livros no terraço dos shoppings discutindo o onírico que flutua sobre o bacon do x-bacon ou a cotação da cerveja no perímetro Centro/Setor Oeste ali naquele trecho drive thrus mal-assombrados povoam fantasmagorias de apartamentos complementam insônias e mantém ativos os supermercados 24 horas em qualquer rua daquelas teu suor pode cair em mim preguiçoso, no meio da foda enquanto disfarço e pondero demoradamente sobre quantas latas chutaram os grandes homens em grandes dias e quantas latas chutarei eu no caminho de volta pra casa.
7faces – Jairo Macedo │ 112
Homero Gomes Curitiba – PR Autor dos trabalhos inéditos Sísifo Desatento (contos) e do romance Tempo do Corpo, colaborou com o jornal Rascunho, as revistas Cult, Germina Literatura, Ficções, Rapadura e TriploV (Portugal). É editor dos blogs Paralelo Um e Jamé Vu, e colunista nos portais Página Cultural e Mundo Mundano.
A vereda se encheu de pedras A vereda se encheu de pedras que brotavam no borbulhar dos pés.
As pedras cuspiam espinhos – nuvem de dor ao redor da visão –, a pele rasgou no caminho: pedaços da história deixando marcas.
A vereda no meio das pedras. Os olhos fecharam para supor destinos, os dentes cravados nos lábios: a voz e o grito presos dentro das pedras.
Os nervos endureceram espinhos. A vereda borbulhou de pés.
Pegadas de dor sobre a vereda marcada de história. Pois a vereda se encheu de espinhos.
Nos olhos cansados, a vereda de restos num campo de pedras. A vereda se fez com pegadas que deixaram de borbulhar nos pés.
7faces Homero Gomes │ 114
Thiago Souza Belém – PA Thiago Gonçalves Souza nasceu, cresceu e está envelhecendo, preparando-se, dia a dia, para o enfim. Entre hoje e depois, pretende, desesperadamente, fazer algo belo, mais que útil.
O corpo contemplado
I O corpo contempla-se cansado: É todo poema do longo do dia. O corpo procura porém o corpo outro Para um novo todo poema – O que o corpo quer é metapoesia. II Inscrito no corpo o cansaço, O que nele se lê é o longo do dia. Mas o corpo lê o corpo outro Em novo verso, em nova rima, E ele quer o corpo outro feito melodia.
7faces – Thiago Souza│ 116
À margem do fundo Da margem outra eu olho águas e águas em silêncio murmúrio... Ensaio a voz, como se ela guardasse a possibilidade Esperando pelo raiar do dia. Quem sabe não vemos para além da noite não ouvimos para além do rumorejo? ... mas é escuro agora, e haverá quem do lado de lá, longe, mesmo depois de tanta chuva e amplidão?
7faces – Thiago Souza│ 118
Mariano Tavares Mossoró – RN
Mariano Tavares nasceu em Açu, Rio Grande do Norte. Cantor e compositor, tem lançados os CDs O SoBrado (2004) e Sem Parar (2005). Também leciona literaturas anglófonas na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Muito raramente, brinca de ser tradutor e poeta.
©Andrey Bogoslowsky
Kamiquase para Ana Cristina César Não posso, Ana, eu moro no segundo andar e não sei voar nem quando estou nu. O apartamento é emprestado, as paredes são lindas, tudo ficaria manchado de vermelho e dor. Não posso, Ana, eu não sei viver sem fins de tarde sem intermédios de luz sem ver a vida passar absurda. Foram tantos chamados que perdi a conta, tantas bocas, tantos pés, tantas cabeças, tantos sonhos, coração. Não posso, Ana, não fumo mais cigarros distraidamente e não sou chegados a navios, nem mesmo quando ancoram no espaço. Repetidas vezes assisti o salto, o mergulho, o corte, a ausência e o riso da sorte que até perdeu a graça. Mas acredite, Ana, que naquele mesmo dia quando quase kamikaze segurei sua mão pude entender o sacrifício furando a polpa dos versos.
7faces – Mariano Tavares│ 121
Não posso, Ana, eu gosto de quebrar o silêncio com a ponta dos pés, com os pingos da chuva, e com o cheiro dos cafés. Não posso, Ana, eu danço e canto sempre que preciso.
Um dia desses no dia em que você chegou haviam-me esgotado todas as lágrimas ou vice-versa na mirada do tempo já era quase tarde ou era fim de tarde rubro, dolorido desde então quando o sol começa a pousar no fim da rua ouço seus pés dançando (pra mim)
7faces – Mariano Tavares│ 123
Mario Filipe Cavalcanti Recife – PE Nasceu em 1992, no Recife – PE. Desde cedo demonstrou inclinação à leitura e à escrita. Estudou piano clássico na Escola de Artes do Recife. Aos 17 anos ingressou na Faculdade de Direito do Recife (UFPE), onde continua a graduação. Vencedor do Concurso Nacional de Contos da Associação Nacional de Escritores (ANE), em 2012; colunista na revista eletrônica Varal do Brasil.
Indiferença
Cidade de vidro cinza
Poeira de fuligens
Carros, bolsas, gente,
Horas,
Agamenon engarrafada
D’outro lado da via
Pau-brasil
Desabrochando
Em rosa
7faces – Mario Filipe Cavalcanti│ 125
©Amadeo Modigliani
Surpresa
Hoje olhei aquele menino da foto...
Álbum antigo, baú de espantos...
Menino peralta,
macacão vermelho
gritando alegrias...
Olhei tão feliz menino
indagando os porquês de felicidades tamanhas.
Vir ao mundo?
Ah, menino tolo, nada sabes do mundo!
E’além do mais, não é para tanto o mundo!
E disse àquele menino da foto:
“sossega, pequeno, o mundo é oco!”
E aquele menino respondeu-me
Com risos ainda maiores...
Aquele menino da foto
Depois soube, era eu.
7faces – Mario Filipe Cavalcanti│ 127
Casé Lontra Marques Vitória – ES Casé Lontra Marques nasceu em 1985, em Volta Redonda (RJ). Mora em Vitória (ES). Escreveu os livros: Indícios do dia; Movo as mãos queimadas sob a água; Saber o sol do esquecimento; A densidade do céu sobre a demolição; Campo de ampliação; Mares inacabados.
Nomear os sons na dissolução Nomear os sons na dissolução conserva um pouco das sílabas ofensivamente estendidas ao espanto inicial? quase esqueço o que responder — enquanto somos arrastados — até o fundo das retinas: sustentando (pânico após pânico) a fabricação da apoteose — minto — da metamorfose corporal;
7faces – Casé Lontra Marques│ 129
com súbito prazer; insisto: assim que o bulbo — depois de algum silêncio — mas antes do acaso: assim que o bulbo (o bulbo) esfria no asfalto — eles sempre correm — é claro — todos agora correm —
por que logo eu tentaria coibir uma qualquer intrusão? nascemos para a língua: jogados no tempo — sem a exatidão da voz — contra essa espessa mudez: nascemos para o que nos ressuscita — arremessando um rosto — nos cristais da cica
7faces – Casé Lontra Marques│ 131
© Tom Climent, Miracle Pool, 2012
Minutos antes da estiagem Minutos antes da estiagem que agora pretendo aproximar dos dias disseminados pela insuficiência — assoprando o assombro — unimos as línguas num lapso de relutante quietude (para logo poder aludir aos ferimentos entrecortados
por profusas quebras em ínfimos acasos) evito devolver as mãos ao emudecimento que nos afasta da água adversa; enquanto algumas de nossas retinas depuram códigos que a dor apenas deplora (diante da infância ainda fria) rodeamos outra boca
7faces – Casé Lontra Marques│ 134
© François-Henri Galland
— cujos murmúrios se amontoam — enterrando o mesmo nome num imenso limiar? rodeamos outra boca — entre raptos de fala — talvez para também exercer aqui uma última distração? encosto a cabeça no esquecimento que sedimenta o assoalho — com uma vegetação oblíqua — incubando em minhas suturas
a imagem de seus hábitos (até a suspensão das pupilas onde apoiamos sempre poucas pedras) reposiciono um ritmo urgente na noite orgânica: corpo que se desfaz em frases anfíbias:
7faces – Casé Lontra Marques│ 137
após desossar a pressa com que ensurdeci — ao suspender os tímpanos do estrado — um sopro no pulso abre cada palma da palavra
Sobrevivemos ao calor de acordar perto dos olhos Sobrevivemos ao calor de acordar perto dos olhos porque algumas ausências se agravam — mesmo sem ostensiva perda óssea — conseguimos diluir um sono aceso no susto cujas arcadas alinham nossas lacunas: expondo o repouso difuso da vogal que aviva a chuva desembrulhada
pela memória inumana: o tempo regressa à frase até agora fincada como uma guelra na calma inóspita da casa; junto ao resto de rosto que arrasto pelo espanto distribuindo as hesitações sintáticas do trauma
7faces – Casé Lontra Marques│ 140
— durante um lento desmembramento — enterramos os tímpanos nos estigmas quase exaustos da vigília cujas fendas já infestam novas faltas: ao também reunir antigos rastros sob esquivas rasuras:
pausas hoje ausentes do isolamento vocabular preservam os móveis inoculados na claridade onde mergulho parte da nuca ancestralmente informe de uma criança avessa à sede não contaminada por nenhuma fúria
7faces – Casé Lontra Marques│ 142
Ana Romano Córdoba – AR Ana Romano nasceu Córdoba em 1944. É professora de Francês. Obtevo prêmios e menções honrosas em diversos prêmio literários e integra várias antologias. Participou em oficinas de poesia coordenadas por Fernando Molle, Walter Cassara, Harnán A. Isnardi e Rolando Revagliatti. Tem publicado um livro de poemas: De los insolentes fantasmas (Vela al Viento, Argentina, 2010)
Presagio Apiñada entre tablas se acopla La mirada mansa Es llena de vida que sucumbe El hombre aguijonea Con premura los colores Estéril es la entrega Masacran Y el suplicio.
7faces – Ana Romano│ 144
Ranura Mañana de presagio El viento es negro Arrumbado asoma El disparador en este día nublado empuja.
© Henri Matisse
Secuencia
Desnudos ante el viento los cuerpos Desnudos flamean en el fuego Desnudos junto al río encandilado Desnudos frente al espejo estallan Desnudos se detienen al llegar a la cima.
7faces – Ana Romano│ 147
Transmutación
El cuerpo ajado que acaricias por los bordes de la rutina Encallas Centro terso imponente Y absorbes útero.
7faces – Ana Romano│ 148
LUCIO POR LUCIO
│
2. Fac-símile do poema “[Opala morta. Flor fechada]”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.
1. Fac-símile do poema “Wolff”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.
2. Fac-símile do poema “[Opala morta. Flor fechada]”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.
3. Fac-símile do poema “[Sol que morri, à toa,]” (frente). ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.
4. Fac-símile do poema “[Sol que morri, à toa,]” (verso). ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.
5. Fac-símile do poema “[Branco, é imaginar]”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.
6. Fac-símile da fl. 1 do poema “As vagas”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.
8. Fac-símile da fl. 2 do poema “As vagas”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.
7. Fac-símile do poema “O outro”. ALC, AMLB, FCRB, pasta LC28pi.
Lúcio Cardoso na década de 1960
Poesia completa, de Lúcio Cardoso: a edição
Por Ésio Macedo Ribeiro
Após nove anos e meio de trabalho, dei por finalizada a edição de
uma importante obra de Lúcio Cardoso (Curvelo, MG, 1912 – Rio de
Janeiro, RJ, 1968). Importante não só pela excelência dos textos
presentes nela, mas também pelo seu ineditismo. A Poesia completa
foi publicada pela Editora da Universidade de São Paulo, numa edição
capa dura, com 1.120 páginas, no ano de 2011, antecipando as
comemorações do centenário do autor do ano seguinte.
Capa (aberta) da primeira edição da Poesia completa de Lúcio Cardoso. Coleção Ésio Macedo Ribeiro.
Neste artigo, comentarei sobre o processo de organização deste livro,
pormenorizando os problemas e as soluções que encontrei para que
o resultado final fosse o melhor possível.
7faces – Ésio Macedo Ribeiro│ 160
A edição crítica da Poesia completa de Lúcio Cardoso é o resultado da
minha tese de doutorado, intitulada Edição crítica da poesia reunida
de Lúcio Cardoso, orientada pelo Prof. Dr. João Adolfo Hansen e
apresentada, em 2006, à Área de Literatura Brasileira do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Em trabalhos do porte deste, temos, em princípio, que conhecer todo
o material a ser inserido, o que no caso de Lúcio Cardoso não foi
tarefa das mais difíceis. Isto porque, ainda que existissem dispersos e
inéditos, cuja localização demandou mais tempo do que o esperado,
a quase totalidade do acervo encontra-se depositado no Arquivo
Lúcio Cardoso (ALC) do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira
(AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). Depois disso
passamos a definir a forma organizacional do trabalho.
Tratando-se de edição crítica, após defini-la, temos que conhecer os
princípios da crítica textual, linha de trabalho que nos permite
verificar com precisão, tanto quanto possível, o que um autor de fato
escreveu ou o que ele desejou que fosse a versão final de cada texto
seu. O procedimento adotado permite cotejar ou pôr lado a lado os
textos publicados de uma obra, junto com os textos manuscritos que
sobreviveram, no sentido de encontrar as mudanças feitas pelo autor
em seus vários estágios de escritura, para identificar e corrigir as
fontes erradas, visando estabelecer o texto segundo a última versão
do autor.
Esse método de investigação nos fornece subsídios para uma melhor
forma organizacional do trabalho. O processo requer registro e
transcrição meticulosa das variantes dos versos, segmentos e
palavras, constituindo, assim, extraordinário e copioso material para
o estudo da ação de Lúcio Cardoso em seu processo criador.
Definido o método de trabalho, parte-se para a seleção do apoio
teórico. Trabalhei, nesta edição, com os vários livros de estudos de
crítica textual de, entre outros autores, Antônio Houaiss, Cleonice
Berardinelli, Ivo Castro, Júlio Castañon Guimarães, Philippe
Willemart, Segismundo Spina e Telê Porto Ancona Lopez, que
discutem teorias da gênese da escrita e alguns dos fundamentos dos
estudos da edótica e da crítica textual sobre os manuscritos literários.
7faces – Ésio Macedo Ribeiro│ 163
Lúcio Cardoso deixou, só de poesias, 675 documentos, distribuídos
entre manuscritos autógrafos e datiloscritos, e publicou 84 vezes
poemas em periódicos. Desses, alguns foram inseridos, antes ou
posteriormente, em seus livros, e outros, publicados mais de uma vez
em veículos diferentes. Isto é, essa quantidade foi a que pude
localizar, pois pode haver mais.
A edição da Poesia completa contou com uma “Apresentação”, um
ensaio introdutório (“Introdução à poesia completa de Lúcio
Cardoso”), uma “Introdução crítico-filológica”, uma “Cronologia de
Lúcio Cardoso”, seguido pela “Poesia completa” (Poesias (1941),
Novas poesias (1944), Poemas inéditos (1982), Poemas publicados em
periódicos (1934-2009), Poemas póstumos, Poemas póstumos
“incompletos”), pela “Bibliografia” e por um “Índice de títulos e
primeiros versos”, o que enriqueceu a edição por facilitar a consulta
dos poemas pelos leitores.
Capa da primeira edição de Poesias de Lúcio Cardoso. Coleção Ésio Macedo Ribeiro.
Capa da primeira edição de Novas poesias de Lúcio Cardoso. Coleção Ésio Macedo Ribeiro.
Capa da primeira edição de Poemas inéditos de Lúcio Cardoso. Coleção Ésio Macedo Ribeiro.
Trouxe ainda, para fechar o livro, dois apêndices. No “Apêndice 1”,
apresento uma “Bibliografia anotada (1934-2009)” de e sobre Lúcio
Cardoso, ampliada e totalmente revista, trabalho que pretendeu
fornecer subsídios a futuros pesquisadores da vida e da obra de Lúcio
Cardoso. Finalmente, no “Apêndice 2”, exibo os “Fac-símiles de
Poemas de Lúcio Cardoso” (ver ao final deste artigo). São oito fac-
símiles de seis poemas do autor, que escolhi com a estrita intenção
de mostrar ao leitor exemplos do tipo de papel, tinta ou lápis
utilizados, a tipologia de uma das máquinas de escrever que utilizou,
a grafia e os movimentos da escrita dele.
***
É importante comentar o estado geral do espólio deixado por Lúcio
Cardoso desde o momento em que esteve em poder dele até sua
transferência, quando ele morreu, para as mãos de sua irmã e amiga
dileta, a também escritora Maria Helena Cardoso. Trato ainda da
doação de todo o espólio de Lúcio Cardoso à FCRB.
Os originais manuscritos dos textos de Lúcio Cardoso têm uma
história pitoresca. Para começar, assim como Fernando Pessoa, Lúcio
Cardoso os guardava em sua casa em uma velha arca. Essa atividade
se manteve inalterada até ele sofrer o derrame que o deixaria
hemiplégico, em 1962, fato que o levou a mudar-se para a casa de
Maria Helena Cardoso, onde poderia receber melhores cuidados
médicos e a atenção de familiares e amigos.
Na mudança, levaram-se poucos pertences de Lúcio Cardoso. Seus
manuscritos foram deixados para trás. Até que, certo dia, Lúcio
Cardoso solicitou que fosse levada para junto dele a arca e seu
respectivo conteúdo. E Maria Helena, com quem ele passou a residir,
solicitou a alguém, que ela não lembra quem era, conforme
correspondência ao poeta e amigo de Lúcio Cardoso, Emil de Castro,
que fosse à ex-residência de Lúcio Cardoso, onde agora residia
Walmir Ayala, buscar a arca. Essa pessoa não identificada retirou
todos os guardados que havia nela e, enrolando-os num lençol,
transferiu-os para a casa de Maria Helena, incluindo todos os
manuscritos dos poemas que, até aquela data, em sua grande
maioria eram inéditos. Lúcio Cardoso queria apenas tê-los perto de
si, pois, por causa da hemiplegia, perdera os movimentos do lado
7faces – Ésio Macedo Ribeiro│ 166
direito do corpo e a fala, nunca mais escrevendo até sua morte,
ocorrida em 1968.
Após sua morte, esses documentos permaneceram intocados, em
poder de sua irmã até 1972. A partir desse ano, com a ajuda de
Walmir Ayala, ela resolveu doar todo o acervo. Isso foi feito em várias
etapas. Após a morte de Walmir, em 1991, Maria Helena recebeu a
ajuda do crítico literário e ensaísta André Seffrin para executar seu
intento.
De posse do espólio, a FCRB, em prol de preservar e ao mesmo
tempo viabilizar a pesquisa da documentação a estudiosos da vida e
obra de Lúcio Cardoso, designou Eliane Vasconcellos Leitão e
Rosângela Florido Rangel como responsáveis por catalogar e arquivar
os documentos de Lúcio Cardoso depositados naquela fundação.
O trabalho resultou no catálogo do Inventário do arquivo Lúcio
Cardoso, que foi publicado em 1989 pela própria fundação,
objetivando a divulgação da rica documentação que cobre o período
de 1927 a 1968.
Capa da primeira edição do Inventário do arquivo Lúcio Cardoso. Coleção Ésio Macedo Ribeiro.
A análise e a classificação do material não foram muito acuradas,
pois encontrei entre os manuscritos dos poemas, trechos de textos
teatrais e de prosa ― refiro, aqui, apenas e tão-somente os
manuscritos dos poemas de Lúcio Cardoso depositados na FCRB,
parte maior do objeto desse trabalho. Os poemas foram arquivados
em ordem alfabética de títulos e primeiros versos, o que por um
lado facilita a consulta, mas por outro a dificulta, pois os
documentos não foram ordenados antes de seu arquivamento.
Segundo Plínio Doyle, no texto introdutório do Inventário do
arquivo Lúcio Cardoso (p. 7), a equipe teve um tempo exíguo para
organizá-lo, o que pode explicar os deslizes que menciono. Por
exemplo, ao começar a pesquisar os manuscritos, percebi que
muitos dos supostos “poemas”, segundo encontrei na organização
feita por Octávio de Faria para o livro póstumo Poemas inéditos,
não estavam mais juntos.
Ao que tudo indica, Octávio de Faria manuseou os manuscritos
antes que eles fossem abertos à pesquisa pública em dezembro de
1986. Há, em Poemas inéditos, muitos poemas incompletos e/ou
textos que são apenas fragmentos, outros que nem sequer
pertencem a Lúcio Cardoso, erros de transcrição, entre outras
discrepâncias. Mas, feitos os devidos descontos por esses
“deslizes”, a edição de Octávio é louvável. Pois, como mencionei,
além de reunir os poemas do espólio, ele teve a pertinente ideia de
coletar entre os amigos de Lúcio Cardoso os poemas que o poeta
lhes dera de presente.
O ALC não seguiu a organização de Octávio. Quando consultei os
documentos lá conservados, percebi que muitos deles
demonstravam a mesma incompletude apresentada em Poemas
inéditos. Poemas que estavam completos no livro em questão, por
exemplo, foram separados durante o arquivamento e vice-versa. As
diferenças e semelhanças dos manuscritos podem ser percebidas
pelo tipo e dimensão dos papéis utilizados, cor de tinta ou lápis
empregados, a grafia, a temática e a cronologia, entre outros
fatores. Muitas vezes, o que se pensava ser poema era, na verdade,
parte de outro. Enfim, um verdadeiro quebra-cabeça. Ordenar e
montar as peças desse emaranhado de manuscritos de poemas foi
uma das tarefas desse trabalho.
7faces – Ésio Macedo Ribeiro│ 168
Além do problema referente à ordenação dos poemas, outro fator
que prejudicou o estabelecimento dos textos foi reconhecer a
autoria de alguns poemas datiloscritos. Isto se deveu
principalmente ao fato de Octávio de Faria ter contratado uma
datilógrafa, Maria Helena Geordani, para copiar os poemas de Lúcio
Cardoso para ele fazer a seleção para o livro Poemas inéditos. Isso
pode ter colaborado para a imensa massa de poemas de Lúcio
Cardoso datilografados sem data e sem assinatura. Alguns trazem,
inclusive, conforme menciono nas notas das variantes,
interferências manuscritas que não são de Lúcio Cardoso. Supondo,
por estes fatores, que algumas dessas cópias de poemas não
tenham sido elaboradas pelo autor, inseri na descrição das lições
presentes na colação a informação de que se tratam de datiloscritos
apógrafos.
Com relação aos manuscritos, temos um problema de mesma
ordem, pelo fato de que, na recolha dos poemas por Octávio,
muitos amigos de Lúcio Cardoso, em vez de enviarem os originais
dos poemas a eles presenteados, preferiram enviar copias feitas do
próprio punho. Mencionei a essas, também, na descrição das lições
presentes na colação, informando que se trata de manuscritos
apógrafos.
Conforme já mencionei, outro problema que detectei ao consultar o
ALC foi que os responsáveis pela sua organização e catalogação
inseriram, além dos textos poéticos, também textos teatrais,
trechos de diário, esboços de romances, de novelas e de traduções
de Lúcio Cardoso. Material que excluí da presente edição.
Não menos problemático, como se pode ver na minha descrição das
lições presentes na colação, é o fato de Lúcio Cardoso ter o costume
de escrever em todo e qualquer tipo de papel e em qualquer lugar
que estivesse, fosse um bar, restaurante, hotel ou casa de amigos. E
não tinha por hábito numerar as páginas quando escrevia os versos,
por exemplo, em um bloco de notas. O que ajuda a ordenar o
material disperso deixado por Lúcio Cardoso é a sua letra ―
felizmente legível ― que apresenta pouca variação da grafia da
primeira safra de poemas, datada de 1931, até a última, datada de
1962.
7faces – Ésio Macedo Ribeiro│ 169
Ao apresentar os estados da evolução dos textos poéticos de Lúcio
Cardoso, como emendas, alternativas e hesitações, procurei
oferecer ao leitor não só a possibilidade de conhecer sua obra em
verso, mas também seu processo minucioso de elaboração.
Finalmente, as poesias de Lúcio Cardoso são pouco estudadas pela
academia e desconhecidas pelo público em geral. Sendo assim, a
edição crítica de sua Poesia completa deve trazer benefícios em
relação à leitura do que permanecia inédito e também corrigir o
que estava mal editado.
Referências
CARDOSO, Lúcio. Poesias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941.
______. Novas Poesias. Capa de Santa Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio,
1944.
______. Poemas Inéditos. Organização de Octávio de Faria. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1982.
______. Poesia completa. Edição crítica de Ésio Macedo Ribeiro. São
Paulo: Edusp, 2011.
INVENTÁRIO do Arquivo Lúcio Cardoso. Org. de Rosângela Florido Rangel
& Eliane Vasconcellos Leitão. Rio de Janeiro: FCRB/MEC, 1989. (Série CLB;
4).
7faces – Ésio Macedo Ribeiro│ 170
© Emilio Scanavino
Poema Que sei fazer, meu Deus, senão amar? As tardes de estio, o vento nos caminhos, a ausência. Sinto que tudo não será senão um sonho a se dilacerar no tempo imóvel. O vento nas folhas, o vento no rio, o vento arrastando as nuvens indefesas. O teu olhar, os teus cabelos que rolam, o meu amor que não se acaba. Que sei fazer, meu Deus, senão sofrer? Lúcio Cardoso, Poesia Completa
O Tédio das Cidades Prisioneiras à beira do oceano, as cidades não conhecem a vertigem dos desertos once explode o cântico das vagas! Ao longo das areias sonolentas, choram o céu imenso que as abraça, e azul que tonto se despenha sobre o mar. Ei-las, grandes, soturnas, acesas junto à orla dos portos oleosos. Ei-las sondando a linha do futuro, desvendando no silêncio dos astros o mistério da vida - ei-las atentas à maldição da permanência, do sangue que flui na voz do mar e à febre das partidas. Oh! a noturna tristeza destes mundos, agonizando contra o peito das muralhas! Jamais o espaço livre, a onda, jamais o vento que arde nos velames, jamais a prece dos naufrágios, a tormenta que nasce dos poentes, e o abismo aberto em chagas à fúria dos ciclones! Jamais o brigue que soçobra, jamais o delírio das vitórias acesas aos uivos do relâmpago! Quando o sol desce no ápice das vagas, gemem sobre os destroços que regressam sonhando as partidas impossíveis - e só o mar esplende aberto ao sopro das manhãs… Lúcio Cardoso, Poesia completa
Corta a Lâmina Corta a lâmina esse espaço do dia iluminado - corta o ciúme, o tardo e o angustiado amortalhado no seu leito de falso e renúncia. A carne soando seu último suspiro, o berço, a amante, o regicida - o que corta a lâmina se esvai ao esforço do tempo. Vai, à suburra incalma das sarjetas, serra e monstro, trabalhando seu programa de aparar e destruir - uma floresta em aço iluminada, a lâmina se produz, decepa e vence até que o óxido anoitece seu poder de apara e o morticínio. Fala o monturo em seu agreste fim enquanto fácil a tarde vai descendo sobre o esforço vencido deste limpo só que se avermelha à lembrança do oculto anavalhado.
Lúcio Cardoso, Poesia completa
© Emilio Scanavino
JU
LIA
N
LE
SS
ER
paisagens
aéreas
Julian Lesser nasceu e vive em Nova York. Em 2005 recebeu seu BFA da Universidade de New Paltz com concentração na pintura. O trabalho de Lesser incorpora toda a energia e a pressa da cidade, além do colorido de uma natureza ausente, por onde se mais convive entre o concreto e o asfalto. Essa influência da natureza, entretanto, não está em Nova York, mas em New Paltz , lugar onde se apaixonou pela exuberância paisagem das colinas e das montanhas. Daí o tema das flores numa sequência temática “Just Flowers”, ou a sequência “Flower and city landscapes”, ou ainda “Aerial Landscaps” – cuja parte se pode observar a seguir. “Paisagens aéreas” (em tradução direta) retrata a beleza que existe em paisagens naturais, quando vistas do alto. A terra torna-se uma colagem de cores e formas irreconhecíveis ao olho nu. A expansão urbana, a poluição e outras características terrestres vistas de cima são tudo cores, como se chão estivesse a derreter. Para Lesser, estas pinturas nos dizem que, enquanto nossas próprias vidas de perto podem parecer terrivelmente importante minuto a minuto, não devemos esquecer que de um ângulo mais aberto (quando tudo é visto de cima, por exemplo) não é nada mais do que um mar de cores e formas abstratas. A série reflete ainda dois sentimentos opostos. A sensação de grandeza do homem sobre a natureza e sua redução perante a ela. Contrastes que se revelam na materialização das cores – responsáveis elas não apenas para essa representação de um mar com tudo, a vida e seus pertences, dentro de um só ângulo, mas também pela vertigem que é está diante da simultaneidade das formas.
OS CONVIDADOS
Marília Rothier Cardoso É graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1967); mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1976) e doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1990). Atualmente é professora assistente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: crítica literária, arquivo, composição textual, escritor e intelectual e crítica biográfica. É pesquisadora B2 do CNPq. Ordilei Costa dos Santos Jornalista e doutorando em Teoria Literária pelo programa Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ésio Macedo Ribeiro é doutor em Literatura Brasileira pela USP, escritor, pesquisador e bibliófilo. Tem onze livros publicados, dentre eles, O riso escuro ou o pavão de luto: um percurso pela poesia de Lúcio Cardoso (Edusp/Nankin, 2006), a edição crítica da Poesia completa de Lúcio Cardoso (Edusp, 2011) e a edição dos Diários de Lúcio Cardoso (Civilização Brasileira, 2012). Organizou, ainda, com Silvana Maria Pessôa de Oliveira e Viviane Cunha, o número 39 da Revista do Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da UFMG, que traz um “Dossiê Lúcio Cardoso”, contendo doze ensaios sobre o autor (FALE – UFMG, jan./jun. 2008).
7faces caderno-revista de poesia set7aces.blogspot.com O caderno-revista de poesia 7faces é uma produção semestral independente projetada, diagramada pelo poeta Pedro Fernandes. Editores Pedro Fernandes Cesar Kiraly Organização desta edição Pedro Fernandes e Cesar Kiraly Convidados para esta edição Marília Rothier Cardoso Ordilei Costa dos Santos Ésio Macedo Ribeiro Colaboradores (por ordem de apresentação) Rosana Banharoli Leonardo Chioda Lara Amaral Gabriel Resende Santos Alexandra Vieira de Almeida Jairo Macedo
Homero Gomes Thiago Souza Mariana Torres Mario Filipe Cavalcanti Casé Lontra Marques Ana Romano
Agradecimentos A todos que enviaram material para a ideia e em especial aos professores Marília Rothier Cardoso, Ordilei Costa dos Santos e Ésio Macedo Ribeiro que se dispuseram a escrever sobre Lúcio Cardoso. Contato Pelo correio eletrônico dos editores, [email protected], [email protected] ou através do correio eletrônico da redação [email protected] 7faces. Caderno-revista de poesia. Natal – RN. Ano 4. Edição n. 7. jan.-jul. 2013. ISSN 2177-0794
Licença Creative Commons. Distribuição eletrônica e gratuita. Os textos aqui publicados podem ser reproduzidos em quaisquer mídias, desde que seja preservada a face de seus respectivos autores e não seja para utilização com fins lucrativos. Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores e fica disponível para download em set7aces.blogspot.com Os editores deste caderno-revista são isentos de toda e qualquer informação que tenha sido prestada de maneira equivocada por parte dos autores aqui publicados, conforme declaração enviada por cada um dos autores e arquivadas no sistema 7faces.
Capa/Contracapa: Emilio Scanavino Nasceu eu Génova em fevereiro de 1922 e morreu em Milão em novembro de 1986; foi um pintor e escultor italiano. Foi aluno Escola de Arte Nicolò Barabino de Génova, onde conheceu seu professor Mario Calonghi, que teve uma grande influência na primeira formação; já em 1942 teve sua primeira exposição no Salone Romano de Génova. Neste mesmo ano ele se matriculou na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Milão. Cinco mais tarde, em Paris, tem contato com poetas e artistas como Edouard Jaguer , Wols eCamille Bryen, experiência que resulta na formação de sua obra da maturidade. Esteve na 25 ª edição da Bienal de Veneza, na galeria de Apollinaire de Londres, onde conheceu Philip Martin, Eduardo Paolozzi, Graham Sutherland e Francis Bacon. No retorno à Itália abriu seu primeiro estúdio em Milão. Depois, em 1962, abre seu atelier numa casa em Clice Ligure. Premiado várias vezes, trabalhou até os últimos anos de sua vida e participou de várias exposições dentro e fora de seu país e fora dele. O ponto alto de sua carreira nasce nos anos 1970 em diante com a série de pinturas Nó, marca de seu estilo, relembrado nas páginas desta edição da 7faces. Tchalê Figueira Além das imagens de Emilio Scanavino, esta edição da 7faces apresenta imagens do artista plástico Tchalê Figueira (vide o texto “O riso transgressor de Sísifo: o absurdo nas novelas cardosianas”): Tchalê Figueira nasceu em 1953 na ilha de S. Vicente, em Cabo Verde. Viveu em Basel, na Suíça, onde concluiu, em 1979, o curso de Belas Artes na Basel School of Fine Arts. Desde 1985 vive e trabalha no Mindelo. Em 2008, foi premiado pela Prix Fondation Blanchère na Bienal de Dakar. Além do seu trabalho nas artes visuais, Tchalé é musico e poeta. Em 1992 publicou o livro Todos os naufrágios do mundo, em 1998 Onde os sentimentos se encontram e em 2001 O azul e o mar.
As imagens desta edição foram coletadas da internet e nos casos identificáveis cita a fonte de todas as obras aqui disponibilizadas. Em caso de violação de direitos, mau uso, uso inadequado ou erro entrar em contato; nos comprometemos a atender as exigências no prazo legal de 72 horas contadas do momento em que tomarmos conhecimento da notificação.
Para participar da ideia, deve o poeta consultar o espaço set7aces.blogspot.com, para ler as regulagens e enviar o material; ou solicitar aos editores através dos contatos [email protected] e [email protected] o envio das regulagens.
Selo Letras in.verso e re.verso
Existe o cão. Preto, ronda em torno desse oco que nós somos. Velha igreja, pano, a bandeira diante do vazio: um pássaro transmite a sua forma e voa dentro do quadrado sem ninguém. Peras, maçãs, acontecidas lantejoulas participam, a hora se exprime - e sobre o longo acomodado no seu sono o moço acorda: Artur. No silêncio um vermelho agudo se define. Lúcio Cardoso