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53 | REPOL | Revista Estudos de Poltica, Campina Grande, vol. 1, n 1, 2012.
A Concepo Democrtica de Bobbio: uma Defesa das Regras do Jogo
____________________________________________
Antnio Kevan Brando Pereira
Universidade Federal do Cear
1 A CONCEPO BOBBIANA DE DEMOCRACIA
O tema da democracia ocupou um lugar central na carreira intelectual do filsofo, jurista
e pensador poltico italiano Norberto Bobbio (1909-2004). Ele foi, acima de tudo, um entusiasta
da democracia. A nfase na necessidade de se implementar na prtica os princpios democrticos
permeia toda a obra do autor, onde ele refora que mesmo o regime democrtico mais distante
do ideal jamais pode ser comparado com um regime autocrtico ou totalitrio.
Este ensaio tem como objetivo analisar alguns pontos da concepo bobbiana de
democracia. Para isso, dividimos o texto em quatro tpicos que dizem respeito s principais
discusses do autor em torno dessa temtica. O primeiro deles trata da concepo processual
ou teoria das regras constitutivas da democracia, que consiste numa defesa das regras do
jogo. Em seguida, temos o clssico debate em torno da democracia representativa e da
democracia direta, em que o autor tenta demonstrar que no se tratam de formas alternativas ou
excludentes. O terceiro tpico traz a importante discusso entre liberdade e igualdade, onde sero
apresentados contrapontos entre diferentes vises ideolgicas. Por fim, investigaremos
detalhadamente um texto clssico de Bobbio, O Futuro da Democracia, em que o autor realiza
uma comparao entre os ideais democrticos e a situao concreta na qual os regimes atuais se
encontram.
2 A CONCEPO PROCESSUAL DE DEMOCRACIA
A concepo processual, ou teoria das regras constitutivas da democracia, um
ponto central do pensamento de Bobbio. Para iniciar nossa anlise, vale a pena observar o que o
autor nos diz antes de estabelecer uma definio mnima de democracia:
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Afirmo preliminarmente que o nico modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrtico, o de consider-la caracterizada por um conjunto de regras (primrias ou fundamentais) que estabelecem quem est autorizado a tomar decises coletivas e com quais procedimentos. Todo grupo social est obrigado a tomar decises vinculatrias para todos os seus membros com o objetivo de prover a prpria sobrevivncia, tanto interna como externamente. (BOBBIO, 2009, p. 30).
Partindo desse pressuposto, podemos adentrar neste aspecto do pensamento democrtico
bobbiano a partir daquilo que ele chamou de significado formal de democracia, segundo o
qual, por regime democrtico entende-se, primariamente, um conjunto de regras de
procedimento para a formao de decises coletivas, em que est prevista e facilitada a
participao mais ampla possvel dos interessados. (BOBBIO, 2009, p. 22).
De acordo com Bobbio, inerente a qualquer regime democrtico a instituio de normas
e leis que regulem o jogo das disputas polticas. Com o advento do Estado moderno, passou-se
a estabelecer previamente em constituies um conjunto de regras que tratassem da forma de
como o poder poltico seria disputado e exercido em um dado pas. Na viso do autor, a
existncia de tais regras caracteriza um regime como democrtico, visto que num estado
autocrtico o poder nunca est em disputa, e o povo jamais chamado para tomar alguma
deciso. Nesta perspectiva, as regras do jogo valem como condio da democracia.
No intuito de reforar as diferenas entre as formas democrticas e no democrticas de
governo, o pensador italiano destaca que possvel perceber alguns requisitos essenciais que
caracterizam e so inerentes s primeiras. O principal requisito para se classificar um regime
democrtico , justamente, a adoo por parte deste do referido conjunto de regras que
regulam, antecipadamente em Lei, quem est autorizado a tomar decises coletivas e com quais
procedimentos. Analisando esse momento da teoria bobbiana, Michelangelo Bovero afirma que
as teorias das regras constitutivas servem como um instrumento de diagnstico para medir o
grau de democracia dos regimes polticos. (BOVERO, 2009, p. 58).
Nesse sentido, Bobbio enumerou algumas regras que ele classificou como
procedimentos universais, ou seja, so normas que podem ser encontradas em qualquer regime
chamado de democrtico. Vejamos cada uma delas:
1. Todos os cidados que alcanaram a maioridade, sem distino de raa, religio, condio
econmica e sexo, devem desfrutar dos direitos polticos, ou seja, todos tm o direito de
expressar sua prpria opinio ou de escolher quem a exprima por eles;
2. O voto de todos os cidados deve ter o mesmo peso;
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3. Todas as pessoas que desfrutam de direitos polticos devem ser livres para poder votar de
acordo com sua prpria opinio, formada com a maior liberdade possvel por meio de
uma concorrncia livre entre grupos polticos organizados, competindo entre si;
4. Devem ser livres tambm no sentido de ter condies de escolher entre solues
diferentes, ou seja, entre partidos que tm programas diferentes e alternativos;
5. Seja por eleies, seja por deciso coletiva, deve valer a regra da maioria numrica, no
sentido de considerar o candidato eleito ou considerar vlida a deciso obtida pelo maior
nmero de votos;
6. Nenhuma deciso tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria,
particularmente, o direito de se tornar, por sua vez, maioria em igualdade de condies.
Se essas seis regras forem aplicadas na vida poltica de uma coletividade, esta pode ser
classificada de democrtica, mas, neste momento, cabe uma importante observao: para Bobbio,
nenhum regime poltico na histria jamais seguiu completamente o contedo de todas essas
regras. Com isso, ele nos diz que podemos constatar apenas graus diferentes de aproximao do
modelo ideal, por isso lcito falar de regimes mais ou menos democrticos. (BOBBIO, 2000, p.
367).
As dificuldades de seguir as seis regras expostas acima podem ser explicadas a partir da
investigao de um regime democrtico concreto Bobbio fez isso exaustivamente , onde o que
deve ser levado em conta um possvel desvio entre o que est posto no enunciado das regras e
o modo como elas so aplicadas na realidade. isso que nos permite reconhecer democracias
reais mais democrticas ou menos democrticas.
Confrontando a todo instante regime autocrtico e regime democrtico, o autor
coloca que mesmo a democracia mais distante do modelo ideal (o total cumprimento das regras)
no pode ser confundida com um estado autocrtico, onde, em nenhum momento, as decises
polticas passam pela maioria da populao ou por seus representantes. A democracia, que uma
forma de governo fundamentada na soberania popular, um processo em constante
aperfeioamento, da a necessidade de se estabelecer critrios para definir o exerccio do poder
poltico. Para isso, cabem aos regimes democrticos aperfeioarem o seu mtodo na defesa das
regras do jogo.
Mas o debate no se encerra aqui. A concepo processual nos remete s formas de
democracia que estabelecem diferentes critrios para a tomada de decises coletivas, a saber, a
democracia representativa e a democracia direta. disso que trataremos a seguir.
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3 DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E DEMOCRACIA DIRETA
Tanto a democracia representativa, quanto a democracia direta descendem do mesmo
princpio de soberania popular (a ideia de que o poder emana do povo), mas se diferenciam
pelas modalidades e pelas formas com que essa soberania exercida. Por qual motivo existem
essas duas formas? Elas podem ser praticadas conjuntamente, ou uma exclui a outra? Em meio s
intensas discusses sobre a necessidade de se ampliar a democracia no decorrer do sculo XX,
Bobbio no fugiu ao debate e afirmou: democracia representativa e democracia direta no so
dois sistemas alternativos (no sentido de que onde exista uma no pode existir a outra), mas so
dois sistemas que se podem integrar reciprocamente. (BOBBIO, 2009, p. 65). Comearemos
analisando a democracia representativa, aquela que o autor chamou de a democracia dos
modernos. (BOBBIO, 2011, p. 149).1
O surgimento da forma representativa de democracia est relacionado ao pensamento
liberal. Os liberais pregavam a necessidade da instaurao de um Estado de Direito que
garantisse as liberdades individuais, a igualdade jurdica perante a lei, bem como o direito de
participar das decises polticas democraticamente. Mas, eles se perguntavam: como instituir
um regime democrtico em um territrio to extenso e muito populoso, que era caracterstico
dos estados modernos? Seria invivel, por exemplo, realizar a democracia como nos moldes da
Grcia Antiga.ponto de interrogao
a partir dessa convico que nasce a ideia da representao, ou seja, na impossibilidade
de reunir todos os cidados em uma praa pblica como na gora ateniense os liberais
instituram o sistema representativo de democracia. Neste sistema, todos aqueles que possuem
direitos polticos so chamados a escolher representantes para tomarem decises polticas em
seu nome. Essa forma de democracia ficou consolidada, sobretudo, com o estado parlamentar.
O que caracteriza especificamente a democracia representativa? Bobbio nos oferece uma
resposta:
A expresso democracia representativa significa genericamente que as deliberaes coletivas, isto , as deliberaes que dizem respeito coletividade inteira, so tomadas no diretamente por aquele que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade. [...]. Em outras palavras, um Estado representativo um Estado no qual as principais deliberaes polticas so tomadas por representantes eleitos, importando pouco se os rgos de deciso so o parlamento, o presidente da repblica, o parlamento mais os conselhos regionais, etc. (BOBBIO, 2009, p. 56-57).
1 Nesta obra o autor aborda o tema da democracia dos modernos, contrapondo esta forma democrtica idealizada pelos pensadores clssicos da Grcia Antiga, principalmente, as estabelecidas por Plato e Aristteles.
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Porm, o tema da representao no se esgota a, visto que existem alguns fatores que
tornam a democracia representativa um sistema bastante complexo. Segundo o autor, dois pontos
devem ser levados em conta quando se fala do instituto da representao poltica: o primeiro diz
respeito aos poderes do representante (como este representa); o segundo trata do contedo da
representao (que coisa este representa).
Tal debate gira em torno da ideia de que se pode ter representantes gerais, ou seja,
aqueles que representam a coletividade de uma forma geral, e tambm representantes que atuam
em nome de uma classe especfica, seja ela social, profissional, religiosa, etc. Para Bobbio,
justamente, aqui, que residem as grandes dificuldades do sistema representativo, e o motivo pelo
qual ele bastante criticado. Algumas correntes, sobretudo as de esquerda2, apontam que a
democracia representativa no estabelece um vnculo real entre representantes e representados,
onde as principais decises polticas, muitas vezes, no condizem com a vontade daqueles que
elegeram tais representantes. com base nessas crticas, e nas reais dificuldades do sistema
representativo, que se inicia um processo que busca uma democracia mais larga e mais completa,
em suma: uma ampliao da democracia atravs de novos mecanismos de participao e deciso.
Bobbio ento se pergunta: seria esse alargamento da democracia um retorno sua
forma direta? Ele nos diz que, mesmo com a consolidao da democracia representativa, o
desejo por uma efetiva participao nunca desapareceu dos programas polticos de muitos
grupos, que visavam um governo em que o poder fosse exercido por e para o povo. (BOBBIO,
2011, p. 154). Mas o que uma democracia direta?
Para que exista democracia direta no sentido prprio da palavra, isto , no sentido em que direto quer dizer que o indivduo participa ele mesmo nas deliberaes que lhe dizem respeito, preciso que entre os indivduos deliberantes e as deliberaes que lhes dizem respeito no exista nenhum intermedirio. (BOBBIO, 2009, p. 63).
Seria a democracia direta possvel nos atuais estados democrticos? Bobbio responde
que no. O principal argumento para isso a extenso territorial, o grande nmero de habitantes,
as especificidades de cada regio, a complexidade e a heterogeneidade das sociedades modernas
etc. Desse modo, o que nos resta descartar os mtodos da representao direta? Bobbio
tambm afirma que no. Para ele, a busca de uma ampliao da democracia, com o objetivo de
estabelecer novos mecanismos de participao e deciso, no resulta na volta ao modelo de
regime democrtico da Grcia Antiga o que seria impossvel! , mas sim, na implementao de
alguns elementos da democracia direta na democracia representativa.
2 Trataremos deste tema mais adiante no tpico Liberdade e Igualdade.
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Os significados histricos de democracia representativa e de democracia direta so tantos e de tal ordem que no se pode pr os problemas em termos de ou-ou, de escolha forada entre duas alternativas excludentes, como se existisse apenas uma nica democracia representativa possvel e apenas uma nica democracia direta possvel. (BOBBIO, 2009, p. 64).
Ciente da possibilidade de se conjugar elementos de democracia direta nos atuais regimes
representativos, o autor ressalta que, em alguns pases, j existem mecanismos previstos em lei
para a tomada de decises polticas diretamente pelo povo, isto , sem a interveno de
representantes. O referendum e as assembleias populares de carter regional so timos exemplos
disto. Para Bobbio, os cidados no mais se contentam em apenas participar de eleies para a
escolha de representantes, mas procuram ampliar o espao para a tomada de decises polticas
que dizem respeito diretamente s suas vidas.
4 LIBERDADE E IGUALDADE
Presente na teoria clssica e contempornea da poltica, o debate entre liberdade e
igualdade um dos principais temas quando se discute a democracia. A partir do advento das
ideias liberais e, logo aps, com o surgimento das ideologias socialistas, o debate acirrou-se em
torno de algumas questes fundamentais como, por exemplo, a liberdade do cidado frente ao
Estado, pelo lado dos liberais, e a busca por uma igualdade ao nvel poltico e econmico, ponto
central para os socialistas. Como fica ento a democracia em meio a esse embate de diferentes
ideias? Norberto Bobbio nos fornece algumas respostas.
inegvel que existe uma estreita relao entre liberalismo e democracia. Os ideais
liberais influenciaram fortemente vrias mudanas na busca por uma ampliao dos direitos
polticos e, a maior prova disso, foi a derrubada de regimes autocrticos. O Estado liberal o
responsvel direto pela conquista dos chamados direitos fundamentais do homem, que tinham
como pressuposto bsico a proteo do prprio indivduo contra o poder estatal e,
principalmente, o reconhecimento formal perante a lei da igualdade entre todos os cidados,
independente de classe, raa, religio, etc.
Em que sentido, ento, podemos relacionar a democracia com o advento do Estado
liberal? Bobbio coloca que:
Ideias liberais e mtodo democrtico vieram gradualmente se combinando num modo tal que, se verdade que os direitos de liberdade foram desde o incio a condio necessria para a direta aplicao das regras do jogo democrtico, igualmente
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verdadeiro que, em seguida, o desenvolvimento da democracia se tornou o principal instrumento para a defesa dos direitos de liberdade. (BOBBIO, 1990, p. 44).
O Estado liberal o pressuposto histrico e jurdico do Estado democrtico, e isto pode
ser comprovado quando observamos que as conquistas liberais - que passaram a ser garantidas
em lei -, tais como, o direito de voto, o direito liberdade de opinio e de imprensa, de reunio,
de associao, dentre outros, serviram de base para o Estado democrtico e tornaram possvel a
ampliao da participao poltica por diferentes setores da sociedade.
Esse Estado Democrtico de Direito, como ficou conhecido, estabelece que todos so
livres e iguais na forma da lei. (BOBBIO, 2004, p. 137). Diante disso, podemos nos perguntar,
que igualdade essa? Ser que, numa sociedade marcada por desigualdades econmicas e sociais,
todos so realmente iguais? Essa pergunta caracteriza o cerne da crtica socialista ideologia
liberal. Vejamos ento como as correntes de esquerda entendiam a democracia e como
pretendiam superar os impasses do regime democrtico representativo dos liberais.
sabido que a doutrina socialista afirma que no basta apenas se ter uma igualdade
formal expressa no texto de uma lei, visto que a sociedade marcada por contradies
econmicas e sociais que impossibilitam uma real participao de todos na tomada de decises
polticas. A democracia representativa no contempla os anseios das classes populares, uma vez
que o poder poltico dominado pelas elites que usam o artifcio da representao para se
perpetuarem no comando do Estado.
Qual ento a proposta dessas correntes para modificar esse quadro? Bobbio observa
que elas buscam ampliar o significado de democracia, na perspectiva de obter uma democracia
substancial, ou seja, uma democracia que permita uma igualdade real entre todos os cidados e
que resulte na igualdade de condies econmicas e sociais. Para os socialistas, a ampliao dos
princpios democrticos serviria como um meio para se chegar ao socialismo. (BOBBIO, 2001,
p. 107). Tal ampliao consiste na rejeio da democracia apenas na sua forma representativa,
buscando retomar alguns temas da democracia direta, atravs da solicitao de que a participao
popular e tambm o controle do poder, a partir de baixo, se estenda dos rgos de deciso
poltica aos de deciso econmica, de alguns centros do aparelho estatal at a empresa, da
sociedade poltica at a sociedade civil.
A questo democrtica ficou ento permeada por essas diferentes ideologias ao longo dos
ltimos sculos, e o centro do debate foi, sem dvida, a necessidade de se alargar o espao de
atuao dos agentes para a tomada de decises polticas. Isto resultou numa srie de modificaes
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na forma de se exercer a democracia em vrios pases, nos quais a forma representativa passou a
ser questionada.
Como explicar essas mudanas? Conforme explicitado acima, com o decurso dos anos, o
processo de democratizao no mais se limita esfera do Estado, mas passa, tambm, a fazer
parte da sociedade como um todo. Bobbio afirma que esse processo favoreceu uma extenso da
democracia, o que permitiu uma participao mais ampla da sociedade civil e, com isso, a
poltica no mais uma esfera exclusiva dos polticos eleitos por eleies formais.
Em termos sintticos, pode-se dizer que, se hoje se deve falar de um desenvolvimento da democracia, ele consiste no tanto, como erroneamente muitas vezes se diz, na substituio da democracia representativa pela democracia direta (substituio que de fato, nas grandes organizaes, impossvel), mas na passagem da democracia na esfera poltica, isto , na esfera em que o indivduo considerado como cidado, para a democracia na esfera social, onde o indivduo considerado na multiplicidade de seu status, por exemplo, o de pai e filho, o de cnjuge, o de trabalhador, etc. (BOBBIO, 2011, p. 155).
Essa mudana, de uma democracia poltica para uma democracia social consiste, segundo
o autor, numa busca por reais princpios e valores democrticos. Para ele, uma verdadeira
democracia deve conjugar tanto a liberdade, que algo inerente a essa forma de governo, quanto
a igualdade, que deve ser o seu fim. Nesse sentido, vejamos as suas palavras:
Desse modo o regime democrtico caracterizado no tanto pelas instituies de que se vale quanto pelos valores fundamentais que o inspiram e aos quais tende. As instituies so apenas meios para alcanar certos fins. Mas por que preferimos certos meios a outros? Por que, por exemplo, preferimos o sistema eletivo ao hereditrio? Evidentemente, porque acreditamos que certos meios so mais aptos para alcanar o fim desejado. [...] O fim que nos move quando queremos um regime organizado democraticamente , numa nica palavra, a igualdade. Assim, podemos definir a democracia, no mais com relao aos meios, mas relativamente ao fim, como o regime que visa realizar, tanto quanto possvel, a igualdade entre os homens. (BOBBIO, 2010, p. 38).
5 O FUTURO DA DEMOCRACIA
O ttulo deste tpico refere-se, diretamente, a um texto escrito por Bobbio em 1984,
citado anteriormente neste ensaio.3 Nele, o autor refuta categoricamente qualquer pretenso de
prever um futuro ou um porvir da democracia; no se trata de uma anlise de futurologia.
O que se pretende investigar concretamente a situao dos regimes democrticos
3 Trata-se do texto O futuro da democracia, que consiste no primeiro captulo do livro que leva o mesmo ttulo do artigo. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
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contemporneos, para, quem sabe, a partir da constatao de algumas tendncias, tentar um
cuidadoso prognstico sobre o seu futuro. (BOBBIO, 2009, p. 30).
O autor inicia ento uma complexa anlise que tem por objetivo realizar um contraponto
entre os ideais democrticos, ou seja, os princpios e valores inerentes democracia, e os atuais
regimes que se dizem democrticos, que ele chamar de democracias reais.4 A inteno
examinar o contraste entre o que foi prometido e o que foi realizado. Para isso, Bobbio
sistematiza seu estudo naquilo que ele chamou de promessas no cumpridas da democracia. Ao
todo, ele enumera seis. Observemos, ento, cada uma delas.
A primeira promessa no cumprida diz respeito ao nascimento da sociedade pluralista.
A democracia nasceu de uma concepo individualista da sociedade, ou seja, nasceu de uma
concepo segundo a qual qualquer forma de organizao coletiva um produto da vontade dos
indivduos. O que diferenciava uma sociedade democrtica das demais era o seu carter
centrpeto, isto , as decises polticas eram tomadas pelos deliberantes num nico centro de
poder. O que temos nas democracias atuais uma realidade bem distinta, onde podemos notar
uma sociedade centrfuga, que no possui apenas um centro de poder definido, mas vrios. O
modelo do Estado democrtico fundado na soberania popular era o modelo de uma sociedade
monstica. A sociedade real, subjacente aos governos democrticos pluralista. (BOBBIO, 2009,
p. 36).
Bobbio nomeou aquela que chamou de segunda promessa no cumprida de revanche de
interesses. Aqui, o tema principal o da representao.
A democracia moderna, nascida como democracia representativa em contraposio democracia dos antigos, deveria ser caracterizada pela representao poltica, isto , por uma forma de representao na qual o representante, sendo chamado a perseguir os interesses da nao, no pode estar sujeito a um mandato vinculado. (BOBBIO, 2009, p. 36).
Segundo o autor, o que se pode notar nas democracias atuais a existncia de mandatos
vinculativos com o objetivo de defender interesses privados, na contramo de um mandato
livre, em prol dos interesses gerais. Para ele, a confirmao dessa revanche est no fato de que
os interesses de grandes grupos particulares (o exemplo das grandes corporaes financeiras
marcante) esto se sobressaindo em relao aos interesses gerais da sociedade. Nesse ponto,
podemos ver claramente o contraste entre os ideais democrticos e a realidade do funcionamento
da democracia em nossos dias.
4 Aqui vale um esclarecimento. Bobbio usa o termo democracia real no mesmo sentido de socialismo real.
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A terceira promessa no cumprida consiste na persistncia das oligarquias. A
permanncia de verdadeiras oligarquias no poder , claramente, uma contradio aos princpios
democrticos. possvel observar na maioria dos Estados que se dizem democrticos a presena
de grandes corporaes privadas bancos, instituies financeiras, empresas multinacionais,
dentre outras que influenciam fortemente as decises governamentais, comprometendo assim
os ideais da representao democrtica, pois os cidados comuns ficam fora do processo de
tomada das grandes decises polticas. Mas, no s isso. Ainda persistem, em muitos lugares,
verdadeiros chefes polticos que manipulam a representao e enfraquecem a democracia.
Neste ponto Bobbio taxativo: a presena de elites oligrquicas no poder no elimina a
diferena entre regimes democrticos e regimes autocrticos. (BOBBIO, 2009, p. 39).
O espao limitado a quarta promessa no cumprida da democracia. De incio, o autor
coloca:
Se a democracia no consegue derrotar por completo o poder oligrquico, ainda menos capaz de ocupar todos os espaos nos quais se exerce um poder que toma decises vinculatrias para um inteiro grupo social. Neste ponto, a distino que entra em jogo no mais aquela entre poder de pouco e de muitos, mas aquela entre poder ascendente e poder descendente. (BOBBIO, 2009, p. 40).
O que est implcito nesta observao o fato de que, nas democracias atuais, o espao
de decises polticas ainda continua restrito a certa parte da populao. Bobbio chama de poder
ascendente aquele que vem de baixo, ou seja, so aquelas foras polticas que nascem com os
mais diferentes setores da sociedade, seja dos sindicatos, da igreja, dos estudantes, etc. J o
poder descendente diz respeito aos interesses dos grandes grupos privados, da burocracia de
Estado, dentre outros.
O espao limitado para a tomada de decises no condiz com a prpria democracia, visto
que esta no pode ser resumida a um simples voto numa urna a cada perodo eleitoral. A
preocupao principal de Bobbio gira em torno dos espaos onde se podem exercer os reais
direitos de cidado, ou seja, lugares nos quais se pode participar ativamente dos mais diversos
assuntos coletivos e pblicos. Para ele, quando se deseja saber se houve um desenvolvimento da
democracia em alguma sociedade, o certo procurar perceber se aumentou no o nmero dos
que tm direito de participar nas decises que lhe diz respeito, mas nos espaos nos quais se pode
exercer este direito. (BOBBIO, 2009, p. 40). Infelizmente, isso no pode ser constatado, em
muitos estados, classificados como democrticos.
A quinta promessa no cumprida diz respeito a um assunto de extrema importncia para
o bom funcionamento de um governo democrtico. Trata-se do que Bobbio chamou de poder
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invisvel. A democracia , por excelncia, o regime das decises pblicas, transparentes, visveis
[...] Nenhuma deciso pode ser tomada sem o conhecimento anterior e posterior de todos, no
podendo o governo agir secretamente, sem divulgar os seus atos.
Desta delimitao do problema resulta que a exigncia de publicidade dos atos de governo importante no apenas, como se costuma dizer, para permitir ao cidado conhecer os atos de quem detm o poder e assim control-los, mas tambm porque a publicidade por si mesma uma forma de controle, um expediente que permite distinguir o que lcito do que no . (BOBBIO, 2009, p. 42).
Bobbio destaca a existncia, hoje em dia, de um duplo estado, ou seja, ao lado do
estado visvel existiria sempre um estado invisvel. Sabemos que, atualmente, vrias decises
so tomadas sem o pleno conhecimento da grande maioria dos cidados, nas muitas instituies
que compem o Estado. Esse poder invisvel mais do que uma promessa no cumprida;
uma afronta s premissas da democracia, que estabelecem o controle do poder por parte de
todos.
Por fim, temos a sexta promessa no cumprida, que trata do cidado no educado.
Nesta perspectiva, Bobbio realiza uma discusso sobre a relao entre educao e cidadania. A
ideia de que a democracia se aperfeioaria ao longo do tempo atravs da existncia de uma
constante prtica democrtica no se sustenta mais hoje em dia. O autor nos mostra que,
mesmo nas democracias mais consolidadas, possvel encontrar uma srie de elementos que no
condiz com o verdadeiro ideal democrtico.
A apatia poltica um deles. O desinteresse pelos assuntos pblicos chega a atingir
mais da metade da populao em alguns Estados, vide o pequeno nmero de pessoas que
comparece para votar nas eleies quando o voto no algo obrigatrio. Outra caracterstica que
vai de encontro premissa democrtica a prevalncia do interesse privado frente ao interesse
pblico, algo que a educao democrtica tambm no resolveu. Portanto, este mais um
contraste entre a democracia ideal e a democracia real.
Nesse instante, podemos nos perguntar: por que essas promessas no foram cumpridas?
Elas poderiam ter sido cumpridas? Bobbio responde que no. Ele explica que tais promessas no
foram cumpridas, pois os ideais democrticos que as conceberam foram imaginados para uma
sociedade muito menos complexa que a nossa. No foi possvel realiz-las, na prtica, por causa
de alguns obstculos que no estavam previstos ao longo do percurso democrtico e que
surgiram a partir das vrias transformaes ocorridas na sociedade civil. O autor destaca trs
obstculos que impediram a plena realizao dos princpios democrticos nos regimes
contemporneos.
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O primeiro obstculo o governo dos tcnicos. Com o desenvolvimento nas mais
variadas reas da sociedade, industrial, cientfica, comercial etc., surge um novo e importante
papel: o do especialista. Os Estados passam a exercer vrias funes que necessitam de
conhecimentos tcnicos para serem executadas, o que, necessariamente, exclui a participao do
chamado homem comum.
Tecnocracia e democracia so antitticas: se o protagonista da sociedade industrial o especialista, impossvel que venha a ser o cidado qualquer. A democracia sustenta-se sobre a hiptese de que todos podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrrio, pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detm conhecimentos especficos. (BOBBIO, 2009, p. 46).
Dessa forma, a questo da participao de todos na tomada de decises polticas passa a
ser questionada. No atual estgio da nossa sociedade, marcada por uma profunda desigualdade
social e tambm caracterizada por sua heterogeneidade, como realizar o verdadeiro ideal
democrtico? Esta a questo levantada por Bobbio.
O segundo obstculo no previsto foi o aumento do aparato. Aqui o autor faz aluso
ao crescimento do poder da burocracia, que um aparato de poder ordenado hierarquicamente
do vrtice base e, portanto, diametralmente oposto ao sistema de poder democrtico.
(BOBBIO, 2009, p. 47). O interessante perceber que o processo de burocratizao foi, em boa
parte, consequncia do processo de democratizao, onde se criou uma classe de administradores
que detm uma enorme fora poltica no Estado. Com isso, tornou-se difcil uma maior
participao de todos no que tange aos assuntos pblicos.
Finalmente, o terceiro obstculo diz respeito ao que o autor denominou de baixo
rendimento. Em outras palavras, esse obstculo consiste na ingovernabilidade da democracia.
Bobbio aponta as grandes dificuldades dos governos democrticos em atender as demandas da
populao. Com o alargamento da sociedade civil, surgem grandes reivindicaes para uma
melhor administrao dos negcios pblicos e, principalmente, por uma ampliao dos espaos
de deciso. As demandas por melhores salrios, por sistemas pblicos de educao e sade etc.,
exemplificam os anseios por uma maior e por uma melhor distribuio dos recursos em benefcio
da populao. Porm, a maioria dos governos democrticos no tem conseguido isto na prtica.
Nesta perspectiva, a partir de tudo o que foi analisado acima, que futuro ns podemos
esperar para a democracia? Tendo em vista todos os obstculos que ocasionaram uma srie de
promessas no cumpridas, ainda vale a pena exaltar a forma democrtica de governo? A reposta
sim. O que deve ser feito um resgate dos princpios e valores democrticos para mudar o
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Antnio Kevan Brando Pereira
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quadro atual. No devemos nos desanimar com as dificuldades encontradas ao longo do processo
democrtico, pois elas so intrnsecas ao prprio regime. Como bem lembrou Celso Lafer, no
plano do dever-ser, a democracia , para Bobbio, a mais perfeita das formas de governo, mas
justamente porque a mais perfeita tambm a mais difcil (LAFER, 2010, p. 35). Por fim,
corroborando com toda a discusso, vale a pena citar uma passagem na qual o autor refora o seu
argumento a favor da forma democrtica de governo.
A minha concluso que as promessas no cumpridas e os obstculos no previstos de que me ocupei no foram suficientes para transformar os regimes democrticos em regimes autocrticos. A diferena substancial entre uns e outros permaneceu. O contedo mnimo do Estado democrtico no encolheu: garantia dos principais direitos de liberdade, existncia de vrios partidos em concorrncia entre si, decises coletivas ou concordadas ou tomadas com base no princpio da maioria, etc. Existem democracias mais slidas e menos slidas, mais invulnerveis e mais vulnerveis; existem diversos graus de aproximao com o modelo ideal, mas mesmo a democracia mais distante do modelo no pode ser de modo algum confundida com um Estado autocrtico e menos ainda com um totalitrio. (BOBBIO, 2009, p. 50).
Recebido para publicao em 11/03/2012
Aprovado para publicao em 19/07/2012
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A Concepo Democrtica de Bobbio: uma Defesa das Regras do Jogo Pginas: 53-67.
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REFERNCIAS
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Janeiro: Paz e Terra, 2011.
_______________. Qual democracia? So Paulo: Edies Loyola, 2010.
_______________. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
BOBBIO, Norberto; Matteucci, Nicola; Pasquino, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. Braslia:
Editora UNB, 2007.
_______________. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
_______________. Qual socialismo? Discusso de uma alternativa. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2001.
_______________. Teoria geral da poltica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
_______________. Liberalismo e democracia. So Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
BOVERO, Michelangelo. Observar a democracia com as lentes de Bobbio. Revista Cult, ano
12. N 137, julho de 2009.
LAFER, Celso. Prefcio. In: BOBBIO, Norberto. Qual democracia? So Paulo: Edies
Loyola, 2010.
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Antnio Kevan Brando Pereira
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A Concepo Democrtica de Bobbio: uma Defesa das Regras do Jogo. Resumo Este estudo analisa a teoria democrtica desenvolvida por Norberto Bobbio. A concepo processual ou "teoria das regras constitutivas" da democracia o cerne da discusso. Os debates entre democracia representativa e democracia direta sero abordados no intuito de compreender como o referido autor entende as diferenas entre ambas as formas. O antigo e clebre embate entre liberdade e igualdade, bem como as diferenas entre as concepes liberais e socialistas em torno da democracia faro parte desta anlise. Neste ensaio, investiga-se, tambm, o pensamento bobbiano acerca das dificuldades dos regimes democrticos contemporneos, apontando os obstculos para a sua realizao atravs de um contraste com o modelo ideal de democracia. Palavras-chave: Democracia; Norberto Bobbio; Regras do Jogo. The Democratic Conception of Norberto Bobbio: a Defense of the Rules of the Game Abstract This study examines democratic theory developed by Norberto Bobbio. The conception procedural or "theory of constitutive rules" of democracy constitute the core of the discussion. The debates between representative democracy and direct democracy will be addressed in order to understand how the author understands that the differences between both forms. The old and famous clash between freedom and equality, as well as the differences between liberal and socialist conceptions about democracy will be part of this analysis. It also investigates bobbiano thought about the difficulties of contemporary democratic regimes, pointing out the obstacles to its realization through a contrast with the 'ideal model of democracy. " Keywords: Democracy; Norberto Bobbio; Rules of the game.