9 - certo ou errado

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mRNA | Maio 20142

RNA MENSAGEIRO Departamento de Ciências da Vida - FCTUC Apartado 3046 3001- 401 Coimbra

Telefone 239 853 600 Fax 239 853 607 E-mail [email protected]

9ª edição Maio 2014 Distribuição Gratuita

Tiragem 250 exemplares

Impressão Tipografia Nocamil

Propriedade Núcleo de Estudantes de Bioquímica da Associação Académica de Coimbra

Direção Carla SantosMariana Alves

Revisão Ana PratasAndré MartinsCarla SantosJoão RodriguesMariana AlvesNuno MendesPedro Cunha Tiago Santos

Redação Bruna SantosCarlos PaulaCláudio CostaCláudio Valério OliveiraGonçalo Pires CristóvãoJosé Guilherme AlmeidaJoão Santiago JesusMariana MarquesNuno MendesRita Almeida Neves

Capa João Santiago

Design Gráfico Carla SantosBeatriz Beato

mRNA Ficha Técnica

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Sumário

Ficha Técnica -----------------------------

Sumário ------------------------------------- Editorial --------------------------------------

Oligonotícias ------------------------------

Certo ou Errado? ------------------------ “Nós somos o que comemos!” --------- O regresso do Demónio de Laplace? ------------------------------------- E Quando Não Acerta, Erra! ------------

Dixit ------------------------------------------ O Fim do “Mercado Bolsista”-----------Da ciência falada a falar sobre Ciência -------------------------------------- Maquiavel revisitado ---------------------

Meio de Cultura -------------------------- Música, Cinema e Literatura -----------Gene2Music, a criatividade ao serviço da ciência -------------------------

Cartoon -------------------------------------

Sai mais uma revista das mentes bio-químicas da Universidade de Coimbra (UC)!!

É graças à vontade e generosidade de to-dos os intervenientes que aparecemos mais uma vez com uma equipa renovada e, com ela, novas ideias e iniciativas. Com um am-biente de sufoco na ciência nacional, é cada vez mais importante divulgar e falar ciência, explicar à comunidade como é fascinante e essencial para a vida que vivemos hoje e para o que ambicionamos para o amanhã.

Comunicar ciência é um conceito em crescimento mas mesmo assim é preciso insistir. Se a muitos assusta a ideia de que trabalhar num laboratório pode ser solitário, uma novidade: a nossa missão só está mes-mo completa quando levarmos às pessoas aquilo que fazemos. Afinal, a ciência é para as pessoas!

E o sufoco chega-nos também na licen-ciatura, sem sabermos bem como ter tempo livre... é importante fomentar algo diferente.

Certo ou errado!? é a questão que surgiu com as inúmeras opções que tomamos to-dos os dias, tanto como indivíduos como ao nível molecular.

E tu que lês a revista, aparece no próximo ano, participa! Não tenhas medo!

Um bem-haja a todos os mensageiros e que a RNAm continue a cativar bioquímicos e curiosos por esse mundo fora!

A Direcção,Carla Santos e Mariana Alves

Editorial

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Indíce

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OligonotíciasNotícias compiladas por José Almeida

Músculos enlatados

Com a descoberta da possibilidade de cresci-mento de células estaminais em cultura, acções como a regeneração de tecidos passaram a ser consideradas após se acharem praticamente im-possíveis de realizar. Recentemente, uma equipa de investigadores da Duke University conseguiu a partir das “células-maravilha” regenerar um pedaço de tecido muscular em ratinhos. O procedimen-to baseia-se na extracção de células estaminais adultas de um tipo de tecido muscular – músculo esquelético – com capacidade regenerativa dev-ido a essas mesmas células. Após o isolamento, procederam ao seu cultivo, com adição de fibrin-ogénio ao meio de cultura, uma substância que confere coesão às células musculares. Como sem estrutura a função é inexistente, existe a necessi-dade de mimetizar a forma das células do múscu-lo esquelético – alongadas, que confere ao tecido um aspecto estriado – o que é conseguido com o crescimento das mesmas num molde cilíndrico.

Resta apenas testar a capacidade regenerati-va deste tecido que, com doenças como distrofia muscular, ou até mesmo o pesar da idade, se vai perdendo. O grupo de cientistas submeteu então o músculo a toxinas que o destroem, observando a sua regeneração em dois ambientes: in vitro, num prato de cultura; ou in vivo, com a criação de uma “janela” com as células transplantadas no dorso de ratinhos. Os resultados foram conclusivos e positivos: a regeneração do tecido confirmava-se. Foram também efectuadas experiências com a regeneração de tecido humano (proveniente de biopsias) em ratos com resultados positivos (num estudo cooperativo entre a Brown University e a Harvard University).

As leveduras desde a antiguidade ajudaram o Homem com a fermentação de vários tipos de vinho e, mais recentemente, através da engenha-ria genética, na produção de fármacos para curar doenças como a malária. Num estudo publicado recentemente, contudo, serviu de recetáculo a um propósito megalómano: a produção de um cro-mossoma inteiramente sintético. Esta técnica con-siste no fabrico de pequenos pedaços de ADN e inserção destes na célula.

O recém-sintetizado cromossoma usou como molde o cromossoma III da levedura, contudo, não foram sintetizadas as zonas não codificantes do ADN e foram introduzidos alguns marcadores, bem como alguns “brinquedos” que permitem a manip-ulação genética mais fácil no futuro e um controlo para apaziguar as preocupações deste “monstro” genético: foram-lhe retiradas capacidades de so-brevivência fora do laboratório e sem supervisão de um especialista.

Esta área, apesar de não ser nova (já haviam sido sintetizados genes em bactérias), nunca foi le-vada tão longe, visto que este novo SynIII, como foi batizado, faz parte de um projeto ainda maior e am-bicioso: a síntese de todo o genoma da levedura, sendo que uma outra equipa já fabricou um terço de um outro cromossoma, o XI, que conta com mais de seiscentos mil pares de bases.

A Neogénese do Genoma

Há, contudo, dois entraves (certamente su-peráveis): O tamanho do músculo a crescer – en-quanto que num rato eram necessários milímet-ros de tecido regenerado, num ser humano são necessários vários centímetros ou até mesmo decímetros de comprimento e largura; a vascular-ização – que graças a uma equipa da Washington University, se está a tornar pouco a pouco numa questão resolvida, com a introdução de pequenos “buracos” no tecido que permitem a vascularização e abrem boas perspectivas para o desenvolvimen-to e uso desta técnica no futuro.

http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424052702303456104579487470812944310

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Para o futuro, Dr. Boeke afirma que, apesar do longo caminho a percorrer para serem sintetiza-dos cromossomas de eucariotas mais desenvolvi-dos, como animais e plantas, pequenos pedaços genéticos chamados “mini-cromossomas” poderão estar ao nosso alcance.

http://www.bbc.co.uk/news/science-environ-ment-26768445

Os telómeros, desde a sua descoberta, influ-enciaram a forma como se olha para o ADN: são regiões não codificantes nos terminais dos cromos-somas (aparentemente inúteis!), que com sucessi-vas replicações (requeridas por um organismo em constante mudança como o nosso) se vão “apa-gando” lentamente. Eles são chamados de relógios da célula, contudo uma analogia mais tangível seria um simples pneu: o seu uso consecutivo, galgando vários quilómetros, leva ao seu desgaste, sendo que, quando fica “careca”, apesar de ser utilizável, é conveniente que se livrem dele e o substituam.

Pois bem, os telómeros seguem muito esta linha de pensamento: servem para “amparar” a inevitável perda de informação nos terminais cro-mossómicos associada a cada replicação. Os telómeros, mais que relógios celulares, são os nos-sos próprios “guarda costas presidenciais”, levan-do uma bala por nós sempre que uma das nossas células se replica.

Não me stresses que me cansas os telómeros

Contudo, como seria de esperar, os telómeros eventualmente esgotam, podendo levar à morte da célula. Esta é uma temática merecedora de discussão e extensa investigação – o que leva ao desgaste dos telómeros?

Em 2011 foi descoberto, por exemplo, que os telómeros de um indivíduo sujeito a condições de stress, sofrem um desgaste mais rápido.

Contudo, apenas recentemente foi descoberto um componente hereditário que influencia direta-mente este desgaste. Dois genes, o TPH2 (tryp-tophan hydroxylase 2), associado a depressões e desordens bipolares e o 5-HTT (serotonin trans-porter protein) têm alelos que tornam o indivíduo mais propenso aos efeitos prejudiciais do stress ou de um ambiente mais relaxado. Chamemos a estes alelos “sensíveis”.

Os alelos “sensíveis” são responsáveis por um efeito curioso: em ambientes considerados de stress e desgaste – famílias instáveis, pobre ed-ucação dos pais – os telómeros apresentam-se mais curtos. Em ambientes considerados mais “nu-tritivos” – família estável, pais com educação su-perior – os telómeros encontra-se mais alongados. Ou seja, esta característica depende fortemente do ambiente que rodeia o indivíduo, tornando es-tas crianças verdadeiros peixes no deserto quando confrontadas com a árdua tarefa de lidar com maus tratos, falta de estabilidade e até mesmo a negação de certas necessidades

http://www.nature.com/news/stress-alters-chil-dren-s-genomes-1.14997?WT.mc_id=FBK_Na-tureNews

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Tema de CapaCerto ou Errado?

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“Nós somos o que comemos!”Mariana Marques

A frase que dá o mote a este texto é bem popu-lar e tem a sua razão de ser, na medida em que so-mos a consequência das nossas decisões e estas podem ser consequência da nossa alimentação!

Tens decisões importantes a tomar e queres fazê-lo da melhor forma? Ora, há algumas estraté-gias que podes adotar que te permitem controlar o teu organismo a nível fisiológico e que podem ter influência na tomada de uma decisão importante. Por exemplo, em situações de fadiga, raiva ou dor todos temos tendência a tomar decisões impulsiva-mente, acabando por agir de forma diferente à que sabemos conscientemente ser a correta. Decerto já te deparaste com esta faceta impulsiva quando estás de mau humor, ou quando acabas por trazer para casa mais do que realmente precisas quando vais às compras fatigado.

Os neurónios, unidade celular básica do nos-so cérebro responsável pela biossinalização, têm a capacidade de comunicar entre si através de substâncias químicas específicas – os neurotrans-missores. A libertação destes pelos neurónios per-mite a transmissão de informação crucial à reação final num determinado órgão (ou músculo) alvo. Deste modo, estas células nervosas podem ser responsáveis pelo controlo de algumas alterações que ocorrem no nosso organismo, traduzidas, por exemplo, em ansiedade, fome ou sono.

O neurotransmissor que liga o estado fisiológi-co do nosso organismo ao nosso comportamen-to no momento da decisão é a serotonina. Esta

Certo ou Errado?

molécula está diretamente envolvida em reações de controlo da impulsividade, controlo cognitivo e até agressividade. Então, entende-se que em situ-ações de altas dosagens no organismo, a serotoni-na aumenta essa capacidade de controlo e diminui a impulsividade e que, em contrapartida, baixas dosagens aumentam comportamento impulsivo e a incapacidade de controlar algumas decisões.

A serotonina é sintetizada a partir do triptofano, um aminoácido essencial (não é produzido pelo organismo) que tem de ser ingerido diariamente. Este pode ser encontrado principalmente no que-ijo, no leite, em frutas como abacaxi, banana e maçã, em amêndoas e nozes e em leguminosas como a ervilha. É assim possível que pessoas com quadros de ansiedade, insónia ou princípio de depressão diminuam os sintomas se incluírem na sua dieta esses alimentos, de modo a aumentar a quantidade de serotonina disponível no organismo.

Fig.1 - serotonina

A impulsividade em si não é necessariamente um aspeto negativo do comportamento de uma pessoa e dever ser, portanto, julgada dependendo da situação. Pode ser uma má forma de agir se nos levar a comprar alguma coisa sem termos a certeza que a conseguiremos pagar na totalidade, ou quando falamos sem ter consciência do que dizemos e depois nos arrependemos. No entanto, pode ser algo positivo quando nos deparamos com situações no dia-a-dia que requerem agilidade e rapidez na resposta, um bom exemplo são as situ-ações inesperadas com as quais nos deparamos no trânsito.

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Certo ou Errado?“Nós somos o que comemos!”

Arul Mishra e Himanshu Mishra são dois inves-tigadores da Escola de Negócios da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, que se interessaram pelo efeito do consumo de alimentos ricos em trip-tofano em pessoas consideradas cronicamente im-pulsivas. Com esta investigação pretenderam rela-cionar a ingestão de triptofano e, indiretamente, a quantidade de serotonina disponível no organismo, com a inibição do comportamento impulsivo ness-es pacientes.

Para isso, organizaram os participantes da ex-periência em dois grupos: a um dos grupos foi dado para beber um líquido rico em triptofano, enquanto que aos participantes do outro grupo - controlo - foi dado um líquido sem o aminoácido (placebo). Após ingerirem os líquidos, foram propostas duas tarefas a cada um dos participantes: uma delas mediu a capacidade de controlar a resposta quando sujeitos a certos estímulos e outra mediu a capacidade de escolher entre duas opções, uma das quais clara-mente impulsiva. Nenhum dos participantes sabia o que estavam a ingerir nem sabiam o objetivo da experiência à qual se estavam a sujeitar.

Os resultados foram conclusivos. Os partici-pantes do primeiro grupo foram capazes de con-trolar o seu comportamento em ambas as tarefas, enquanto os do segundo demonstraram impul-sividade no desempenho das mesmas. Foi deste modo possível correlacionar a atividade do neuro-transmissor com o controlo da impulsividade.

Com isto ficámos a saber que o estado fisiológi-co do nosso organismo tem impacto direto nas nos-sas decisões e atitudes e que a nossa alimentação pode influenciar se tomamos a decisão certa ou a errada! ■

Fonte: Mishra, Arul, & Mishra, Himanshu (2010). We Are What We Consume: The Influence of Food Consumption on Impulsive Choice Journal of Marketing Research, XLVII, 1129-1137 Other: 1547-7193

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Certo ou Errado?

O regresso do Demónio de Laplace?João Santiago Jesus

Fazer o certo ou o errado!? Terá mesmo o Homem a capacidade de tomar decisões por conta própria?

Interessaste-te pelo título do artigo e por isso é que começaste a ler. Certo? Ou talvez eu esteja errado e um amigo mostrou-te o artigo, o que te condicionou a tomar a decisão de o ler.

Estamos perante uma discussão que nasceu com os grandes pensadores da Grécia Antiga, uma discussão que abrange não só questões filosófi-cas mas, principalmente, questões científicas. A controvérsia ganhou um carácter científico quando o físico Pierre Simon Laplace, em 1814, usou a matemática e a física de forma a “criar” um univer-so determinista. Esta teoria científica ficou então conhecida como o Demónio de Laplace: “Podem-os considerar o estado presente do universo como o efeito do seu passado e a causa do seu futuro. Um intelecto que em um determinado momento sa-beria todas as forças que definem a Natureza, e todas as posições de todos as moléculas de que a Natureza é composta, e se este intelecto também fosse abrangente o suficiente para submeter todos esses dados à análise, iria ter uma fórmula única dos movimentos dos maiores corpos do universo até ao menor átomo; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, o passado e o presente aparece-riam nos seus olhos.”

Com esta teoria Laplace põe fim a três ideias: à possibilidade, à escolha e à incerteza. Afirma ainda que se conseguíssemos saber tudo sobre o estado presente do universo, conseguiríamos determinar o passado e o futuro, uma vez que tudo já está de-terminado.

Mas a Natureza é mais inteligente e, com o apa-recimento de novas mentes, começaram a surgir teorias e equações que “mataram” o Demónio de Laplace. Entre estas encontram-se os Teoremas da Incompletude de Gödel, a Indeterminação Quântica de Einstein posteriormente corrigida por Bohr e Heisenberg e que até hoje continua a ser questionada e, por fim, a Teoria do Caos também conhecida por Efeito Borboleta. Praticamente no “funeral” do Demónio de Laplace, Einstein afir-mou que: “por detrás dos segredos da Natureza permanece algo subtil, intangível e inexplicável.

Veneração por essa força que está por detrás de tudo que nós conseguimos compreender é a minha religião.”

Mas não foi por este facto que a discussão so-bre o livre arbítrio acabou. De facto, mais recente-mente o problema tem sido intimamente ligado à questão da responsabilidade moral. É difícil pensar em justiça, política, religião, relações íntimas, bem como sentimentos de remorso ou de realização pessoal, sem primeiro imaginar que cada pessoa é a fonte de todos os seus pensamentos e ações e que sobre estas tem controlo. É por esta razão que a sociedade afirma que o Homem se torna responsável pelos seus atos, porque, quando lhe permitem, a sua vontade é livre de escolher entre um sem número de opções que lhe são possíveis.

Não há como negar este facto. Mas, o que nos faz escolher? Quais são as opções que nos são dadas? Este é o eixo em torno do qual gira toda a discussão neste momento.

O partido do livre-arbítrio afirma que pensar não é uma função automática, involuntária ou mesmo infalível.

Fig.1 - “Laplace’s Demon”, ilustração por Elle Willoughby

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Em qualquer instante da sua vida, o homem é livre para pensar ou para se escapar desse esforço. O homem tem que iniciar o processo de tomar uma decisão, sustentá-la e assumir a responsabilidade pelos seus resultados, pois a Natureza não lhe dá nenhuma garantia automática da eficácia do seu esforço mental.

Mas será mesmo este o caso?John-Dylan Haynes, neurocientista do Centro

de Neurociência Computacional em Berlim, publi-cou em 2007 na Nature um artigo uma experiên-cia que consistia em submeter as pessoas a uma ressonância magnética funcional durante o ato de tomar uma decisão, revelando assim a atividade do cérebro em tempo real. A experiência era simples: os participantes tinham de utilizar o indicador da mão direita ou da esquerda, sempre que era a sua intenção, e lembrar-se da imagem que se encon-trava no ecrã quando tomassem a decisão. Os re-sultados foram assaz surpreendentes.

A decisão consciente de apertar o botão foi feita, aproximadamente, um segundo antes do ato em si, mas a equipa de Haynes também encontrou um padrão de atividade cerebral que acontece sete segundos antes de o indivíduo estar conhecedor da sua decisão e que parece prever qual será essa mesma decisão, levando assim Haynes e a sua equipa, à conclusão que muito antes de os sujeitos estarem cientes da sua escolha, aparentemente os seus cérebros já tinha decidido.

Perante este facto, alguns neurocientistas argu-mentam que a consciência de uma decisão pode ser uma mera reflexão bioquímica tardia, que não

tem qualquer influência sobre as ações de uma pessoa. Se tomarmos em consideração esta lógi-ca, o livre arbítrio não será mais do que uma ilusão.

Podemos deste modo dizer que, se um homem fizer uma má escolha, quando esta é determinada por um certo padrão de atividade neural, o que por sua vez é o produto de outros fatores, tais como uma infeliz combinação de genes, uma infância in-feliz, perda de sono, ou possivelmente uma combi-nação de todos, quer isto dizer que a sua vontade é “livre”?

Embora seja uma experiência recente que irá necessitar de mais estudos e uma melhor análise dos resultados, não deixa de ser um passo na di-reção do determinismo e uma lembrança que o Demónio de Laplace poderá não estar completa-mente incorreto.

A nossa vida é uma soma de decisões e mui-tas vezes irás fazer a escolha certa mas por vezes poderás fazer a errada, e isso inevitavelmente irá influenciar pessoas (entre elas tu mesmo, a tua família, amigos, a pessoa de quem gostas). Ness-es momentos, um sim ou um não podem mudar completamente a nossa vida e é por isso que tomar uma decisão nunca é fácil, envolve coragem e de-terminação, quer a decisão seja deliberada num universo pré-determinado quer num contexto de livre arbítrio. ■

Dedicado a todas as pessoas influenciadas pelas minhas decisões,

João Pedro Santiago de Jesus

Certo ou Errado?O regresso do Demónio de Laplace?

Fig.2 - Gráfico representativo padrão de atividade cerebral das. De notar que entre 6 a 8 segundos antes de o indivíduo estar conhecedor da sua decisão já o seu cérebro antecipou a sua escolha. Retirado de Soon, C. S., Brass, M., Heinze, H.-J., & Haynes, J.-D. (2008). Unconscious determinants of free decisions in the human brain. Natu Neuroscience, 11(5), 543–5. doi:10.1038/nn.2112

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Certo ou Errado?

E Quando Não Acerta, Erra!Gonçalo Pires Cristovão

Falamos do sistema imunitário! Há um sem número de respostas imunitárias diferentes (106), pelo que o importante é criar uma estratégia muito afinada, quer seja no sentido de estimular quer seja no sentido de reprimir. Com esta enorme di-versidade de respostas o sistema imunitário pode errar. E erra! É aqui que surge o paradigma com-plexidade versus simplicidade. O nosso sistema imunitário é muito complexo, dando-nos por um lado mais plasticidade, mas ao mesmo tempo vários problemas, se não for bem regulado. Surge assim a autoimunidade que não é mais que uma agressão contra o nosso próprio organismo, ou seja, somos alvo da nossa resposta imunitária. Por outras palavras, é como estarmos no meio de uma dança com passos bem complicados e a cer-ta altura alguém nos dar uma pisadela!

Hoje em dia as doenças autoimunes ocupam o terceiro lugar entre os grandes processos pa-tológicos (logo a seguir às doenças neoplásicas e às doenças cardiovasculares), estando bem definidas mais de cem. Depois surge a questão: porque é que a prevalência e incidência das doenças autoimunes está a aumentar? Possivel-mente muito devido à falta de estímulos educati-vos! Nos dias de hoje vivemos numa sociedade onde o antibiótico passou a ser a primeira linha de defesa. Nos últimos 50 anos as doenças au-toimunes (e as doenças alérgicas) têm vindo a aumentar dramaticamente, e muitos têm sido os estudos no sentido de compreender a base genética para a suscetibilidade à autoimunidade (e/ou alergia). Contudo, os fatores genéticos não podem explicar estas mudanças bruscas de incidência da doença. Portanto, muito provavel-mente os fatores ambientais serão fundamentais para explicar o aumento da incidência de doenças autoimunes (e alergias).

Hoje estamos perante uma hipótese que, na verdade, já foi postulada há alguns anos atrás - a “hipótese higiénica”. Esta propõe que a redução de infeções, especialmente durante a infância, que predispõem respostas imunitárias aber-rantes contra antigénios estranhos inofensivos, provoca doenças alérgicas tais como a rinite e/ou asma alérgica, por exemplo. Os estímulos in-

feciosos podem perturbar o sistema imunitário e podem assim surgir doenças, nomeadamente as doenças autoimunes. Contudo não há nenhuma doença autoimune para a qual foi proposta uma origem literalmente infeciosa.

Esta união entre infeção e autoimunidade pode estar relacionada com o facto dos linfócitos poderem reconhecer tanto os antigénios micro-bianos como os antigénios do próprio indivíduo (reatividade cruzada). Ou seja, os linfócitos ativados pelo reconhecimento de um epítopo mi-crobiano (o local específico numa proteína que dá origem a uma resposta imunitária), que sub-sequentemente atacam os auto-antigénios (com sequências de aminoácidos semelhantes), levam à indução de doença autoimune. Contudo, esta reação cruzada entre um antigénio microbiano e um auto-antigénio não é suficiente para induzir a doença autoimune. Aqui surgem outros culpa-dos… Os patogénios possuem moléculas como o lipopolissacarídio (LPS) da parede celular bac-teriana ou dsRNA, denominados genericamente por PAMPs (pathogen-associated molecular patterns). Os PAMPs são reconhecidos por um conjunto de recetores do tipo PRRs (pattern rec-ognition receptors), de que são exemplo os TLRs (toll-like receptors) e que são expressos pelas células do sistema imunitário inato, incluindo as células dendríticas ou macrófagos (exemplos de APCs, antigen-presenting cells). E são estes re-cetores do tipo PRRs que possuem a capacidade de apresentar antigénios peptídicos aos linfócitos T do sistema imunitário.

Será esta apresentação sempre requerida? Não. Há situações em que não é precisa a apre-sentação de antigénios, apesar da estimulação direta dos linfócitos poder levar à perda de de-terminados mecanismos de segurança. Assim, as células com capacidade de apresentação de antigénios têm todo um trabalho molecular que leva a uma distinção mais correta. A sinalização através de TLRs ativa as células apresenta-doras de antigénios que, como consequência, passam a expressar uma variedade de citocinas pró-inflamatórias e moléculas de co-estimulação necessárias à ativação das células T.

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Certo ou Errado?E Quando Não Acerta, Erra!

No entanto, este processo de apresentação é algo complexo, podíamos até dizer que é um tra-balho muito elaborado pelas células profissionais em apresentação. Este processo pressupõe uma forte ligação entre quem apresenta e quem é apre-sentado, isto é:

- um sinal de apresentação do antigénio para o encaixar na célula apresentadora (MHC, complexo maior de histocompatibilidade); sempre existente no nosso organismo, pois o linfócito tem que per-ceber que as células APCs são células benéficas dentro do nosso organismo;

- uma molécula da APCs tem que se ligar a uma molécula do linfócito – é outro sinal de reconheci-mento – por exemplo, de CD80/CD28;

- uma citocina generalista, como por exemplo IL-2, ou outro tipo de citocinas mais específicas consoante o subtipo linfocitário.

Para que ocorra este processo de apresen-tação antigénica onde o antigénio é apresentado, é necessário um recetor com alguma especificidade. E para que haja reatividade com determinados componentes dos nosso organismo (tolerância), só pode funcionar se for bem regulado ou suprim-ido (supressão e regulação). Mas como já vimos o nosso sistema imunitário pode “falhar”! A autoi-munidade surge no processo de imunidade inata, porque em vez de pararmos a resposta há fal-has na regulação, na apoptose ou na supressão. Vocês devem estar a pensar: «- O problema é uma questão de tolerância! Porque não aumentar a tol-erância?». Pois, mas o que teríamos na outra face da moeda relativamente ao envelhecimento, a in-feções e ao cancro?

Por fim, um exemplo: a diabetes mellitus tipo 1 é uma disfunção metabólica e uma doença au-to-imune onde ocorre a produção inapropriada de anticorpos contra as células do pâncreas que produzem insulina. Entre 1989 e 1994, o aumento anual da incidência de diabetes tipo 1 em crianças europeias com menos de cinco anos de idade foi de 6,3%. Estudos na última década indicam que as infeções durante o(s) primeiro(s) ano(s) de vida diminuem o risco de desenvolvimento de diabetes tipo 1. Podem as infeções prevenir ou curar as doenças autoimunes? Será que o sistema imu-nitário pode beneficiar de determinados encontros com alguns microrganismos? São novas janelas que se abrem para a intervenção terapêutica em autoimunidade. ■

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Dixit

O Fim do “Mercado Bolsista”Carlos Tadeu Paula

Portugal atravessa uma das maiores crises de sua história. Este podia muito bem ser o início de mais um de milhares textos que já foram pub-licados sob o pretexto da crise. Conseguiria ser também um texto quase não datado, pois Portu-gal atravessa este período de crises “cíclicas” há demasiado tempo.

Mas, não é certamente disto que quero falar. Existe um sector que tem permanecido, pouco à semelhança dos irredutíveis gauleses, capaz de fazer sonhar toda uma nação com uma economia assente em desenvolvimento sustentável. E não, não é o Futebol. É de Ciência que vos falo.

O sector científico tem crescido em Portugal de forma continuada, desde o início da nossa curta história democrática, tendo esse caminho sido aux-iliado em grande medida pela apostada da União Europeia no sector da Investigação e Desenvolvi-mento.

Este crescimento, com especial enfoque nos últimos 10 anos, está relacionado em grande me-dida com o trabalho do então Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior: o Professor Mariano Gago. O seu trabalho foi amplamente reconhecido pela comunidade científica nacional, tendo lança-do as bases para aquele que é o sistema científico que conhecemos atualmente em Portugal. Quanto ao seu trabalho enquanto Ministro com a tutela do Ensino Superior…Bom, não podemos ser bons em tudo.

Mas vamos aos factos. Portugal apresenta um (re)investimento em percentagem do PIB de 1.5%. Apesar de ainda distante da meta definida para o próximo quadro comunitário “Europa 2020” (3%), é notório desde logo o desenvolvimento em relação a este campo, tendo sido realizada uma enorme aproximação à média europeia.

Todavia existem indicadores em que clara-mente nos destacamos, apresentado um desen-volvimento record que nos coloca na linha da frente em muitos deles. Um desses bons exemplos é o número de estudantes de doutoramento, em que superámos mesmo a média europeia.

De 1986 para 2012, passámos de 1,2% para 9,2% de Investigadores por cada mil ativos,

tendo mesmo ultrapassando países como a Ale-manha e a França neste campo.

Mas se tudo está assim tão perfeito, porque não continuar esta trajetória de crescimento?

Pois bem, a Ciência não podia escapar às leis de mercado, e um pouco à semelhança do país, também ela terá de passar por um processo de “ajustamento”.

Portugal continua a ser um dos países da Europa a 28 com maior dificuldade em fazer a translação da Ciência, que tão bem se produz nas Universidades portuguesas, para a economia real.

Tendo por base esta premissa, o Governo apli-cou um dos mais violentos cortes ao sector, não ao nível do financiamento para Ciência, pois esse tem vindo paradoxalmente a aumentar ao longo dos úl-timos anos, mas sim nas “bolsas” de doutoramento e pós-doutoramento.

Janeiro de 2014, sinaliza assim o início de um novo ciclo na Ciência em Portugal.

Vamos então às comparações. Comparemos então o nosso sistema científico com um grande e belo pomar, com muitas árvores de fruto diferentes.

Apesar das bases para a construção de um grande pomar, devidamente diversificado, e capaz de dar frutos em diversas áreas estar lançado, é necessário que o sistema de rega seja capaz de fazer chegar água a todas as diferentes locais, e de preferência de forma capaz de suprir as suas ne-cessidades. Havendo só um poço a fornecer água a toda a esta estrutura, urge definir se preferimos que todo o pomar se sacrifique, ou que algumas árvores sequem em detrimento de outras.

Simplificando a metáfora, é, a meu ver, funda-mental perceber qual o real papel da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), e esta será a única forma de financiar a “nossa” Ciência.

É no fundo isto que o país deve esclarecer, quais as áreas em que somos ou poderemos ser melhores e apostar sem medo nelas. Não quero com isto dizer que não devemos continuar a pro-mover uma diversidade e abrangência de áreas, apenas o devemos fazer na medida dos recursos disponíveis.

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É com esta ideia que o Governo pensa começar a “podar” este pomar, apostando em áreas que considera chave (daí a aposta em financiar pro-gramas de doutoramento, em prejuízo do concurso nacional), mas sobretudo passar a financiar proje-tos em vez de pessoas.

Se será o melhor modelo para garantir que so-bretudo a Ciência de excelência sobrevive? Não sabemos a resposta, e o resultado nunca será ime-diato.

A atual tutela apresentou aquela que pode vir a ser uma das reformas mais estruturantes que o sector conheceu na sua história. É importante per-ceber, que apesar de abrupto e injustificado, este corte apresenta em si uma mudança clara de es-tratégia, em que a ciência de excelência será valo-rizada, sendo também óbvia a aposta em sectores chave, em que o interesse estratégico nacional será tido em conta.

Porém a meu ver o problema que nós, enquan-to futuro da Ciência em Portugal devemos colocar é outro. Se faz sentido continuar a viver com este “Mercado Bolsista” em que o trabalho científico é tratado como facilmente descartável, pois haverá sempre outro “bolseiro” capaz de realizar aquelas funções. Em que o Estado poderá definir quem fica em quem sai a cada ano, por critérios muito pouco claros e pouco transparentes. No fundo, apesar da reforma, faltou coragem política para resolver situ-ações como a precariedade do emprego científico.

É por isso que nos devemos bater, pela valori-zação do trabalho científico. Pois, é impensável que aquela que é a “elite laboral” portuguesa continue a ser tratada por este governo como “emigrável”. Um país não se pode dizer preocupado com a fuga de cérebros, e permitir que a sua geração mais qualifi-cada seja sujeita a este tipo de instabilidade.

Porque por muito que nós gostemos do nosso país, também teremos sempre de gostar um pouco de nós.

Não espero com esta reflexão chegar a con-clusões estanques ou a uma visão final daquela que deve ser a política científica de um país da dimensão do nosso, mas espero pelo menos ter lançado uma visão diferente, e ter acrescentado algo à discussão. ■

DixitO Fim do “Mercado Bolsista”

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Dixit

Da ciência falada a falar sobre CiênciaRita de Almeida Neves

A Ciência nunca foi tão falada. Os cortes nas bolsas individuais de doutoramento e pós doutora-mento pagas através da FCT constituíram a gota de água necessária para que de repente a crise do sistema científico português saltasse para o espaço mediático. Páginas de jornais repletas de artigos sobre ciência, opiniões de cientistas, políticos e até economistas. Todos falam de ciência.

É bom que se fale de ciência, que se fale do que se faz nas universidades e nos centros de inves-tigação, que se fale das descobertas e caminhos a tomar. Mas não é bom que a ciência seja falada pelas piores razões. Não é bom que a Ciência seja falada como sem rumo, não é bom que a Ciência seja falada com base em equívocos e mal-enten-didos e sobretudo não é bom que seja falada uma crise na Ciência, que existe sim, sem se clarificar os seus contornos.

Todo este falatório parece pecar pela super-ficialidade e confusão. Falam os entendidos, e os não-entendidos que acreditam entender. Cada um usa os números que entende e como entende, de investimento a desinvestimento na Ciência, de prox-imidade a completo afastamento do mundo real. E no final de contas, é isso que conta, as contas.

Mas e se falar sobre contas… e Ciência. Na verdade, nenhum cientista (ou aspirante a) que se preze deve deixar conduzir o que vai fazer na ciência pela lógica do capital. Ainda assim, na so-ciedade em que vivemos sabemos que, para fazer a ciência que queremos fazer, precisamos desse capital. E aqui encontramos a barreira: a ligação da ciência ao mundo capital – as empresas.

Existe, sem dúvida, em Portugal um problema de ligação das empresas com a investigação. Mas essa ligação não se prende com a redução ou au-mento do rácio entre investigação fundamental e in-vestigação aplicada. Uma não existe sem a outra. A diferença crucial entre a fundamental e aplicada em nada tem que ver com a irrelevância ou utilidade de cada uma, mas sim com o facto de o conhecimento científico fundamental ser um bem público e o con-hecimento científico aplicado capaz de ser um bem privado. E por isso mesmo, a investigação científica pode ser produzida e financiada tanto pelo estado como pelo sector privado.

Contudo, as empresas baseiam a sua decisão de investir em produção de conhecimento numa análise custo-benefício. Mas apesar dos benefícios imensuráveis do conhecimento científico, estes não se revelam no curto-prazo e num mercado competitivo a luta pela sobrevivência depende mui-tas vezes de resultados no imediato. Eis o grande problema de ligação.

O que tem de acontecer, é percebermos que investimentos em ciência e educação rendem ju-ros, benefícios que por vezes os economistas não sabem que existem, mas são reais. No entanto, não são apenas os investigadores que “vivem no conforto de estar longe das empresas e da vida real” mas sim a maioria das empresas que não consegue viver com o risco de investir em inves-tigação e desenvolvimento (das cerca de 400 mil empresas do universo nacional, apenas cerca de 3 mil investe em I&D).

Para que esta interacção empresas-academia funcione, é preciso que os incentivos de ambas as partes estejam alinhados, que sejam compreendi-dos os ritmos de cada um e acima de tudo que o conhecimento científico seja valorizado em todas as suas vertentes.

Não há o certo e o errado, precisamos apenas de uma estratégia clara e sem demagogia. No fun-do, precisamos de mais ciência e passar da ciência falada a falar sobre Ciência. ■

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Dixit

Poderá um conjunto de berlindes subir uma co-lina só com um incentivo? A questão poderá pare-cer inusitada mas ajudará compreender que a ana-logia, embora no sentido descendente, foi usada por Conrad Hal Waddington para descrever o pro-cesso de diferenciação das células pluripotentes e a forma como a epigenética regula esse mesmo processo (embora, na altura, tivesse apenas ide-ias muito rudimentares destes conceitos). Segundo Waddington, um conjunto de berlindes (equipara-dos a células pluripotentes) que desça uma colina (processo de diferenciação) tem vários destinos possíveis (diversos tipos celulares) dependendo do relevo da paisagem e dos obstáculos que possa encontrar (maior ou menor expressão de determi-nados genes). Mas poderão os “berlindes” inverter o sentido e recuperar a pluripotência? Sabe-se, de alguns anos a esta parte, que a resposta é pos-itiva. Acreditou-se no entanto que era necessária manipulação artificial da porção nuclear ou a in-trodução de múltiplos factores de transcrição. Um trabalho realizado por uma equipa liderada por Haruko Obokata, no RIKEN Center for De-velopmental Biology (CDB), no Japão, investigou a possibilidade de, através de estímulos externos agressivos (“sub-letais”), se alterarem os padrões epigenéticos de células somáticas de mamíferos (o fenómeno já tinha sido observado em espécies vegetais) e assim despoletar uma reprogramação nuclear capaz de reconverter as células a um es-tado pluripotente – processo denominado de STAP (stimulus-triggered acquisition of pluripotency).

Para testar a hipótese apresentada, os investi-gadores recolheram células com diferentes graus de diferenciação de murganhos transgénicos (em que uma “tag” de Green Fluorescent Protein: GFP, foi acoplada ao gene Oct4 – um dos genes marca-dores de pluripotência) com 1 semana de idade e, de entre os diversos tipos estudados, o tipo celu-lar com maior taxa de sobrevivência e posterior reprogramação foram as células hematopoiéticas do baço. As referidas células foram: sujeitas a dif-erentes perturbações, colocadas em meio de cul-tura suplementado com alguns factores inibitórios da diferenciação e analisadas para verificar a ac-tivação do promotor de Oct4.

O trabalho focou-se em tratamentos muito sim-ples como incubação em pH baixo (entre 5,4 e 5,8) ou a aplicação de grandes pressões sobre a membrana celular, tendo o primeiro revelado maior eficácia na indução da expressão de Oct4.

Em meio de cultura, as células tratadas au-mentaram gradualmente a expressão de GFP e, ao 7º dia, mostraram: 1) distinta estrutura nucle-ar, 2) menor tamanho celular do que as células que lhes tinham dado origem e 3) a expressão de proteínas e genes marcadores de pluripotência em proporções comparáveis às de células estaminais embrionárias.

Para confirmar a indução de pluripotência nestas células, impunha-se a realização de en-saios de diferenciação, tanto in vitro como in vivo. O sucesso destes ensaios e ainda a geração de um embrião em que todas as células eram GFP+ (demonstrando a capacidade das células STAP se diferenciarem em todas as linhagens celulares in vivo) provaram possível a STAP em células de mamíferos.

Tendo em conta a rapidez e simplicidade deste processo quando comparado com as técnicas exis-tentes (transferência nuclear somática, células iPS, …), a investigação foi imediatamente catalogada como “revolucionária” e apontada como o camin-ho a seguir na medicina regenerativa. No entanto, o tempo e a controvérsia gerada, no seguimento

Maquiavel RevisitadoNuno Mendes

Fig.1 - Embrião em que todas as células são GFP+

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das publicações deste grupo, por investigadores incapazes de reproduzir os resultados (mesmo aquando do seguimento integral do protocolo apre-sentado) vieram dar razão aos mais cépticos que acreditavam ser prudente aplicar o princípio “de-masiado bom para ser verdade” sem maior volume de provas concludentes.

Eis os factos que nos foram dados a conhecer: i) 14 dias após a publicação do artigo pela revis-

ta Nature (30 de Janeiro de 2014), uma denúncia de um investigador da própria instituição deu ori-gem à elaboração de um inquérito preliminar pela administração do RIKEN CDB, cujos resultados justificaram a instauração de uma comissão de in-quérito para aferir se existiu ou não má conduta por parte dos autores da investigação.

ii) No dia 1 de Abril de 2014, a referida comissão anunciou que dois conjuntos de imagens utilizados nos artigos científicos foram manipulados ou mod-ificados pela Dra. Haruko Obokata e que, tendo sido considerada culpada de má conduta, seria punida de acordo com o regulamento interno da instituição após um período em que a visada pode-ria recorrer da decisão. Foi ainda divulgado que, não tendo tido participação activa na alteração dos resultados, também os co-autores do estudo eram responsáveis por verificar o rigor e a precisão dos resultados antes da submissão do trabalho para a referida revista, o que não aconteceu.

iii) A comissão investigou o fenómeno das célu-las STAP, estimando necessitar-se de um período de 9 meses a 1 ano para apresentar resultados suficientes que excluam ou verifiquem a possibili-dade de reprogramar células de mamíferos pelas vias apresentadas.

Fazendo uma análise introspectiva às infor-mações disponíveis e depois de muita especulação sobre as razões que condicionaram e conduziram a Dra. Obokata a falsear os resultados, ocorre-me dizer que a geração de conhecimento só pode ser legitimada pelo método, em particular o validado cientificamente. Sem método, a ciência seria um conjunto de opiniões. Sem método, a ciência não seria mais que uma religião, assente em dogmas, questões inquestionáveis e sobre as quais é impos-sível estabelecer debate. Uma violação do método

DixitMaquiavel revisitado

Fig.2 - Dra. Haruko Obokata, na conferência de imprensa em que nega ter agido deliberadamente, atribuindo os er-ros à falta de experiência

levará, inevitavelmente à deformação da essência da ciência e à destruição da sua credibilidade, não só junto da comunidade científica mas também, e principalmente, junto do público em geral.

Aguardemos o desenrolar deste episódio tão Vicentino. Talvez a hipótese inicial desta jovem investigadora seja um dia aceite cientificamente como “correcta”, mas o caminho que percorreu será sempre (espero) o mais inesperado e con-traproducente.

Em ciência, a busca pela “verdade” não pactua com maquiavelismos em que certos “fins justificam os meios”. A progressão científica deve ser inspira-da pela ética na inovação de base.

“O mundo salta e avança como uma bola colorida nas mãos de uma criança”. ■

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O mais consagrado coletivo de hip-hop no ativo vai lançar, em breve, um novo trabalho que tem vindo a ser produzido em segredo nos últimos anos. Será editada apenas uma cópia que percor-rerá museus e galerias mundiais para, no fim, ser leiloada a alguém que escolherá se partilha a obra com o mundo… ou fica com ela só para si.

Depois de terem brilhado em vários projectos, nos quais se destacam os At the Drive-In e The Mars Volta, Omar e Cedric estão de novo a tra-balhar juntos e, desta vez, com Flea (Red Hot Chili Peppers) sob o nome ANTEMASQUE. Sabe-se ainda pouco sobre esta nova banda, mas já há sin-gles online. Significará também isto um futuro res-suscitar dos The Mars Volta, que acabaram logo a seguir à edição do consagrado Noctourniquet (2012)?

Meio de Cultura

Música - clássicos! Música - novidades!Claúdio Valério Oliveira Claúdio Valério Oliveira

Novo albúm dos Wu-tang Clan

Omar Rodríguez-López e Cedric Bixler-Zavala voltam a trabalhar em conjunto.

Activa principalmente durante a década de 70, esta banda britânica foi percursora na globalização do reggae e de outros sons jamaicanos... Teve também um papel importante na luta pela igual-dade social, numa altura em que esta estava tudo menos assegurada.

Greyhound

Activo durante 30 anos (1965-1995), este pro-jecto californiano foi das maiores provas de que fusões de géneros funcionam. Pincelaram sem-pre o seu rock psicadélico com géneros tão distin-tos como a típica música americana (country, blues e folk) ou negra (jazz, reggae), tudo com uma forte componente de improvisação verificada até em apresentações ao vivo.

No fim? 35 milhões de discos vendidos e um legado que perdurará.

The Grateful Dead

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A 24 de Maio, ficou disponível para compra o primeiro trabalho deste projecto de Oliveira de Azeméis. “Linhas”

Este álbum de O Corvo Mudo foi produzido nos Estúdios Sá da Bandeira e é uma ode ao experi-mentalismo, centrando-se no rock progressivo mas contendo elementos de jazz e folk, tudo isto com um vinco claramente português.

Álbum de estreia de O Corvo Mudo lançado

LiteraturaClaúdio Valério Oliveira

Este livro de 2013 da autoria de Christina Baker Kline segue as vivências de Vivian Daly, uma órfã que, como outros 250 mil, foi “deslocada” para o, na altura pouco explorado, Midwest Americano. Uma história de amizade e segundas-oportuni-dades.

Comboio de Órfãos

TelevisãoClaúdio Valério Oliveira

Sob a liderança do produtor Ronald D. Moore, conhecido pelo seu trabalho nas séries de ficção científica Battlestar Galactica e Star Trek, estreou (na Syfy americana), em Janeiro, uma série que segue o trabalho de um grupo de cientistas do CDC (Centers for Disease Control and Prevention) numa unidade farmacêutica situada em pleno Ártico, onde a falta de jurisdição impede que muitas leis que temos como consagradas, no que diz respeito à investigação em engenharia genética, sejam se-quer levadas em conta.

Para além de um vírus com potencial para, rapi-damente, causar uma calamidade de ordem global, esta equipa do CDC tem de lidar com a desinfor-mação e a oposição por parte das mesmas enti-dades que criaram algo tão perigoso.

A aposta em Helix tem sido forte, com uma re-alização ousada que não é feita com meia dúzia de tostões (não nos esqueçamos que uma série de televisão tem muito mais dificuldades em ser rentabilizada face a um filme); mas parece estar a resultar, pois conseguiu em média 2.1 milhões de espectadores por episódio; o que levou a que fosse renovada para uma segunda temporada a estrear, provavelmente, no próximo Inverno. Entretanto, a primeira já chegou ao fim, após 13 episódios.

“Helix” - a luta contra um vírus

Meio de Cultura

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CinemaClaúdio Valério Oliveira

Já quase a fazer um quarto de século, mas com uma aura que lhe dá um ar ainda mais antigo; este filme segue uma relação improvável entre um gé-nio caído em desgraça e uma menor libertina, já grávida quando se conhecem.

Pelo meio, um bebé (outro) é raptado.

Trust (1990)

Este filme de Lars von Trier é polémico, não há como negar. O próprio título não deixa margem para dúvidas. Contudo, é muito mais do que sexo. É uma abordagem pouco comum às relações in-terpessoais e à condição humana, desde os seus instintos primários até à racionalidade máxima. Conta também com actores consagrados como Charlotte Gainsbourg, Shia LaBeouf, Uma Thur-man e até Willem Dafoe, a tutelar outros menos experientes, mas que deixaram uma boa marca.

Ninfomaníaca (2013)

Meio de Cultura

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Albert Einstein afirmou que “só duas coisas são infinitas, o universo e a estupidez humana”. Eu sou da opinião que há outra coisa infinita. Trata-se da criatividade humana. Eu diria que essa não tem limites.

Rie Takahashi é uma jovem cientista norte americana, licenciada em Microbiologia, Imunolo-gia e Genética Molecular pela Universidade da Cal-ifórnia (UCLA). No seu terceiro ano de faculdade, aquando da participação num seminário intitulado Ciência e Sociedade, Rie decidiu abraçar o de-safio de tornar a linguagem científica acessível a qualquer pessoa, tendo o professor orientador do seminário, Jeffrey Miller, como parceiro neste de-safio.

E que melhor maneira de fazê-lo senão utilizar algo tão universal como a música? Segundo Rie, “não há barreiras linguísticas quando o assunto é música”. Apesar de haver registos anteriores de diversas tentativas de aliar a genética à música, nenhuma teve sucesso… Rie e Miller tentam ser a excepção.

Rie criou um programa de computador, o qual designou Gene2Music, que utiliza os aminoácidos para desencadear acordes, sendo que a cada ami-noácido atribuiu um acorde. A aminoácidos semel-hantes, como por exemplo, a tirosina e a fenilala-nina, atribuiu o mesmo acorde, mas invertido para uma das moléculas. Neste exemplo em concreto, à tirosina corresponde o acorde de sol no estado fundamental (a nota sol é a nota mais grave do acorde cuja sequência é sol-si-ré) e à fenilalanina corresponde o mesmo acorde na primeira inversão (si-ré-sol). O programa atribui ainda ritmos de acor-do com a frequência de codões.

Aquilo que aparentemente seria apenas uma pequena brincadeira que unia a ciência e a música tornou-se, segundo Rie Takahashi, uma ferramenta de ensino para estudantes de Medicina. “Algumas vezes é mais fácil ouvir padrões que vê-los”. A ci-entista deu o exemplo da doença de Huntington, um problema neurológico hereditário que causa falta de coordenação e distúrbios de personali-dade. Esta doença é causada por uma repetição de determinados aminoácidos. Escutando a músi-ca gerada pela sequência de aminoácidos do gene

Meio de Cultura

Gene2Music, a criatividade ao serviço da ciênciaClaúdio Santos

Huntingtin, torna-se evidente essa repetição de um mesmo padrão, o que indicia algo errado (1).

Rie acredita que, no futuro, a análise de se-quências de aminoácidos por meio da música pode levar a avanços científicos. “Conseguir ouvir as se-quências pode-nos ajudar a encontrar padrões que não percebemos antes.”

Também é possível criar música muito agradável de se ouvir a partir da música gerada pelo Gene2Music. Exemplo disso é uma variação criada pela autora do projecto, a partir da sequên-cia de aminoácidos da enzima ThyA.

Esperemos não só que Rie esteja certa na sua intuição, como também que mais ideias criativas deste género surjam. O mundo para evoluir precisa de ideias, e as ideias advêm da criatividade. Que o exemplo de Rie sirva de modelo para todos nós.

http://www.mimg.ucla.edu/faculty/miller_jh/gen-e2music/AUDIO/Huntingtin.mp3 , ou, de forma abreviada, http://tinyurl.com/huntingtin .

http://www.mimg.ucla.edu/faculty/miller_jh/gen-e2music/AUDIO/ThyA_variation.mp3 , ou, de forma abreviada, http://tinyurl.com/variacao .

Fig.1 - Pauta de música criada através do Gene2Music

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CartoonBruna Santos

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mRNA | Maio 201423

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