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Quando a identidade e questionada pelas incessantes e velozes mudanc;as nos recursos de identificac;ao que marcam a epoca contempor.'mea, quando a temporalidade se define pel a fugacidade, quando os outros parecem diluir-se sucessivamente e/ou se tornam menos presentes, 0 corpo permanece como certeza perene, ainda que igualmente precaria, topos disponivel a ser simbolicamente investido e socialrnente agenciado no senti do das mais diversas utopias fisicas
- que oscilam entre 0 culto das suas potencialidades ou a superac;ao da sua 0 bsolescencia.
Amplamente apropriado pelas forc;as do capitalismo e mercantilizado enquanto acessorio privilegiado na apresentac;ao e representac;ao do sujeito no mundo, 0 corpo contemporaneo tende a ser socialmente entendido e mobilizado como urn recurso volatil quer na sua expressao, quer no seu desempenho, urn suporte vivo e vivido sempre aberto a novas experiencias. Quando 0 e relativamente a projedos, existem exigencias normativas, forc;as sociais e mecanismos tecnicos que impelem agestao e manutenc;ao da sua exigida maleabilidade, considerando a plasticidade exigida aidentidade pessoal contemporanea.
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Apesar da ampla visibilidade mediatica e social a que estao sujeitos, os projedos de marcac;ao corporal tendem, por isso, a ser raros. A sua versao mais difwldida configura sobretudo pequenos apontamentos ou adornos, experiencias de pequena dimensao e extensao, discretas, colocadas, muitas vezes, longe do olhar quotidiano do portador. Quando se acumulam, as v<irias experiencias comec;am a configurar urn projedo de corpo, urna opc;ao «radical» e com pouca disseminac;ao social exadamente porque, embora configure urn regime que exige urna elevada maleabilidade do corpo, a dado momento nao se conforma com a provisoriedade adualrnente exigida aincarnac;ao da identidade pessoal.
Os apelos aplasticidade da identidade contemporanea, amaleabilidade do corpo e adescartabilidade dos regimes que 0 mobilizam, sao contrariados pela propria condic;ao fixa e irrevogavel de praticas como a tatuagem ou os piercings mais radicais. Apesar de os projedos de marcac;ao corporal tambem serem sustentados pela etica construtivista que tende a orientar as mais recentes atitudes sociais perante 0 corpo, os seus aspedos formais acabam por entrar em tensao com a premissa da maleabilidade que !he e adualrnente exigida,
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Imagens cedidas gentilmente pela edltora Tasche n, in · 1000 TaUoos"
sendo justamente valorizados por parte dos seus usuarios pela natureza irreversivel que os caraderiza ao longo da vida. 0 corpo marc ado, na sua forma projedual, e-o de uma vez por todas, a.inda que alguns sedores da industria de design corporal (como os saloes de estetica ou a cirurgia estetica, por exemplo), ao conceder esta possibilidade, concedam igualmente 0 seu antidoto, sob a forma de milltiplas tecrucas de simula~ao (tatuagem temporaria), de gestao (escolha de 10cais do corpo de dificil acesso visual) ou de remoc;ao (conjunto de tecnicas cinirgicas que promovem o seu desaparecimento).
o corpo extensivamente ta
sivamente marc ada apresenta-se assim como reacc;ao as estruturas e processos prescritivos que tent am conformar, normativizar e homogeneizar 0 corpo contemporaneo, resposta estrategica de recusa it condic;ao de anonimato e indiferenc;a para que tendem a ser remetidos os sujeitos que incarnam corpos indiferenciados.
Nao obstante as suas pretensoes de solidez e durabilidade identitaria, os sujeitos extensivamente marc ados na~ deixam, contudo, de
entender 0 seu proprio corpo como urn projedo aberto, enquanto expressao de uma individualidade que, ela propria,
tuado surge assim como res inevitavelmente se transforma posta individual it fugacida de forma gradual, porem semde do mundo contemporaneo, pre dentro de urna margem de potencialmente produtora de consistencia identitaria que se subjedividades em\ticas, fra pretende auto-determinada. geis, descontinuas, efemeras, Enquanto incarnaC;ao de urn difusas, estilhac;adas, porosas, sistema mnemonico ao servicorrompidas. 0 sujeito que ta C;O de uma identidade pessoal, tua extensivamente 0 respedi os projedos de marcac;ao corvo corpo ve neste regime urna poral extensiva, sobretudo na oportunidade ancestralmente forma de tatuagem, tendem a validada de se construir para ser desenvolvidos como forma
de expressao auto-bio-grafica.si e de se dar aver aos outros como individuo coeso, uno, in Quer isto dizer que refledem divisivel ao longo do tempo e iconograficamente sobre a
pele aspedos subjedivamendo espac;o. Apropria-se desse modelo de corporeidade com te importantes na biografia do
seu portador. Fazem recordar o fim de chegar a uma harmoe manter vivos momentos e finia existencial definitiva entre guras chave na vida deste, reo seu espac;o de subjedividade lac;oes sociais e afedivas que eo corpo que ve e e observado tiveram, mantiveram ou perpelos outros.
A mascara, a fachada que se constroi, algo que e da ordem do artificio, surge assim, paradoxalmente, como suporte do valor de autenticidade, elegendo 0 corpo como recurso para alcanc;ar e dar aver uma identidade supostamente emancipada das convenc;oes e expedativas sociais que sobre si recaem e que potencialmente 0 coagiriam. Quando toma a forma de projedo, a marcac;ao do corpo configura urn regime disruptivo em term os identitarios, que implica urn profundo processo de reconfigurac;ao e ajustamento entre uma identidade adual que se recusa e uma identidade ide al apetecida, desejada para 0 futuro, individualmente valorizada e publicamente afirmada e reconhecida «pelo que se e», na sua suposta singularidade (<< ser diferente »), autenticidade «<ser eu proprio» ) e liberdade (<< ser 0 que quero» ).
A raridade social desse projedo, pela excessividade corporal que apresenta, acaba por reforc;ar 0 papel distintivo e singularizante conferido aos seus protagonist as, que atraves dele se constroem e dao a (re )conhecer como individualidades. No mesmo sentido opera 0 facto de serem projedos cuja produc;ao, orient ada por val ores esteticos de originalidade e, como tal, investida de uma aura de artisticidade, oferece aos seus usuarios urn campo de oportunidades criativas no sentido da radicalizac;ao da sua diferen~a individual que outras praticas corporais, mais convencionais, industrializadas e massificadas, na~ lhes proporcionam tao facilmente. A corporeidade exten
deram, praticas desenvolvidas com maior gosto pessoal, valores em que acreditam mais profundamente, temas que restauram metaforicamente um
sentido de unidade e continuidade temporal de uma identidade que tende a fragmentar-se no tempo e no espac;o.
Na evoca~ao auto-bio-grafica que e instaurada sobre a pele, 0 corpo e mobilizado como suporte plastico, como tela sobre a qual 0 sentido auto-reflexivo do sujeito e esteticamente projedado e iconograficamente narrado, na tentativa de, atraves da permanencia que caraderiza os recursos incarnados, emprestar solidez as narrativas biograficas que expressa. A corporeidade extensivamente marcada manifesta, assim, uma maneira de ser duradoura, graficamente transposta para urn corpo duradouramente modificado, um corpo que simultaneamente se engendra e se perpetua, urn corpo que, transformando-se, se man tern continuadamente 0 mesmo. Nurn constante jogo dialedico entre permanencia e mudanc;a, cada ado de modificac;ao atraves da incarna~ao de uma nova tatuagem, e urn gesto de confirmac;ao e celebrac; ao da coerencia e continuidade de «si proprio» na sua «diferenc;a». - Vitor Sergio Ferreira
*Exce rto da tese de Dout orame nto do auto r, ~ MJ r( Js que demar( am: (orpa, tatuagem e body piercing em contex t os ju\'e nis ." Vito r Serg1 0 Ferre ira e sociologo c invcstigador no Inst ituto de Cie ncias Sod;) is da Un ivcrsidade de Li!iboa.
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