a ararinha do bico torto

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1 A ararinha do bico torto guia para pais série TOdos JUntoS A ar arinha do bic o t ort o Walcyr Carrasco A deficiência física de Nina, a ararinha do bico torto, não a impede de crescer. Em sua trajetória, a ave conta com o apoio do garoto Mário, que acredita no potencial dela e fica ao seu lado enquanto nina aprende a garantir sua sobrevivência e a alçar seus próprios voos. Neste guia, Marcela Cálamo responde a perguntas destinadas a ajudar os pais a lidar com a questão da deficiência física. Marcela é professora particular e autora de Rodas, pra que te quero!, publicado pela editora Ática. Paraplégica desde os 8 anos devido a uma infecção na medula, ela é mãe de dois filhos e luta pelos direitos das pessoas com deficiência. Com exce- ção dos dois anos em que passou pelo tratamento de reabilitação, Marcela sempre estudou em escolas regulares. A seguir, ela aborda a superação das limitações, a luta contra o precon- ceito e a promoção da inclusão. A inclusão não pode existir se aqueles que fo- ram excluídos, como as pessoas com deficiência, continuarem a ser separados em escolas especiais. Quando uma criança com deficiência estuda em uma escola regular, aprende, pela convivência com outras crianças, a contornar suas limitações, crescen- do diante das adversidades. Dessa forma, pode se tor- nar uma pessoa mais segura e confiante. Quando crianças sem deficiência convivem com as que têm deficiência, aprendem que todas as pessoas são diferentes, e que é preciso respeitar as características e limitações alheias. Aprendem tam- bém o valor da solidariedade e do companheirismo, percebendo que, quando se importam com os ou- tros, todos saem ganhando. Para a criança com deficiência que tem irmãos, estar na mesma escola deles é essencial para que não se sinta excluída em sua própria família. Con- viver na mesma escola também é importante para os irmãos sem deficiência, que crescem sabendo que quem tem deficiência não deve ficar isolado em um mundo à parte. Uma boa escola ajuda a preparar os alunos para a convivência em uma sociedade mais abrangente. É nesse ambiente que a criança percebe que existem pessoas de etnias, tamanhos, famílias e jeitos dife- rentes. É o lugar ideal para que elas aprendam que são as diferenças que nos tornam únicos. Estudei na AACD (Associação de Assistência à Criança com Deficiência) apenas durante os dois anos em que fiz reabilitação, pois tinha de passar o dia inteiro na clínica. Quando soube que iria para a mesma escola de meus irmãos, fiquei radiante! Estar entre crianças sem deficiência me en- sinou a conviver sem medo com a curiosidade, os olhares e as perguntas dos outros. E também me ensinou que, quando se convive com as outras pes- soas e se responde às perguntas delas, os olhares de estranhamento deixam de existir, a verdade apare- ce, e o preconceito morre. A lei gar ante que todos tenham acesso à escola regular. Mesmo assim, qual é o melhor tipo de escola par a uma criança com deficiência: a especial ou a regular? Guia par a pais i l u s t r a ç õ e s A l S t e f a n o

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Page 1: A ararinha do bico torto

1A ararinha do bico torto guia para pais

sérietodos

juntos

A ararinha do bico tortoWalcyr Carrasco

A deficiência física de Nina, a ararinha do bico torto, não a impede de crescer. Em sua trajetória, a ave conta com o apoio do garoto Mário, que acredita no potencial dela e fica ao seu lado enquanto nina aprende a garantir sua sobrevivência e a alçar seus próprios voos.

Neste guia, Marcela Cálamo responde a perguntas destinadas a ajudar os pais a lidar com a questão da deficiência física. Marcela é professora particular e autora de Rodas, pra que te quero!, publicado pela editora Ática. Paraplégica desde os 8 anos devido a uma infecção na medula, ela é mãe de dois filhos e luta pelos direitos das pessoas com deficiência. Com exce-ção dos dois anos em que passou pelo tratamento de reabilitação, Marcela sempre estudou em escolas regulares. A seguir, ela aborda a superação das limitações, a luta contra o precon-ceito e a promoção da inclusão.

A inclusão não pode existir se aqueles que fo-ram excluídos, como as pessoas com deficiência, continuarem a ser separados em escolas especiais.

Quando uma criança com deficiência estuda em uma escola regular, aprende, pela convivência com outras crianças, a contornar suas limitações, crescen-do diante das adversidades. Dessa forma, pode se tor-nar uma pessoa mais segura e confiante.

Quando crianças sem deficiência convivem com as que têm deficiência, aprendem que todas as pessoas são diferentes, e que é preciso respeitar as características e limitações alheias. Aprendem tam-bém o valor da solidariedade e do companheirismo, percebendo que, quando se importam com os ou-tros, todos saem ganhando.

Para a criança com deficiência que tem irmãos, estar na mesma escola deles é essencial para que não se sinta excluída em sua própria família. Con-viver na mesma escola também é importante para os irmãos sem deficiência, que crescem sabendo

que quem tem deficiência não deve ficar isolado em um mundo à parte.

uma boa escola ajuda a preparar os alunos para a convivência em uma sociedade mais abrangente. É nesse ambiente que a criança percebe que existem pessoas de etnias, tamanhos, famílias e jeitos dife-rentes. É o lugar ideal para que elas aprendam que são as diferenças que nos tornam únicos.

Estudei na AACD (Associação de Assistência à Criança com Deficiência) apenas durante os dois anos em que fiz reabilitação, pois tinha de passar o dia inteiro na clínica. Quando soube que iria para a mesma escola de meus irmãos, fiquei radiante!

Estar entre crianças sem deficiência me en-sinou a conviver sem medo com a curiosidade, os olhares e as perguntas dos outros. E também me ensinou que, quando se convive com as outras pes-soas e se responde às perguntas delas, os olhares de estranhamento deixam de existir, a verdade apare-ce, e o preconceito morre.

A lei garante que todos tenham acesso à escola regular. Mesmo assim, qual é o melhor tipo de escola para uma criança com deficiência: a especial ou a regular?

Guia para pais ilustrações Al Stefano

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Devo dar mais atenção para um filho com deficiên-cia do que para os demais?

Dependendo da deficiência, o filho pode necessitar de mais cuidados e tempo dos pais, mas isso não pode significar mimo, superproteção ou preferência. Para o irmão sem deficiência, é como quando nasce um bebê novo, e a mãe precisa dedicar-se mais ao bebê do que ao outro filho. É uma situação delicada, e os pais preci-sam explicar ao filho que o irmão necessita de mais cui-dados e achar um momento para dar atenção exclusiva a ele também, para que não se sinta abandonado.

A criança com deficiência não deve ter vantagens sobre o outro filho. À medida do possível, deve ter as mesmas obrigações e responsabilidades e cumprir as mesmas regras.

Inclusão começa em casa, mostrando à criança que sua deficiência não a faz melhor nem mais especial do que seus irmãos e que ela não deve esperar obter vantagens por causa de sua condição.

Desde pequena, eu ajudava a minha mãe nas tare-fas de casa. Passado o período de reabilitação, voltei a ajudá-la. Eu varria a casa, tirava o pó, arrumava. Minha mãe jamais me impediu, ao contrário, eu levava a maior bronca se fizesse bagunça, assim como meus irmãos.

uma criança com deficiência precisa de exemplos de superação vindos de outras pessoas com deficiência?

As crianças precisam de exemplos de força, inde-pendência, autoconfiança e outras características po-sitivas tendo elas deficiência ou não. tais exemplos devem vir, primeiro, da família. A conduta da família, sobretudo a dos pais, em relação a essa criança será de-terminante de seu futuro.

Mostrar exemplos de outras pessoas com deficiên-cia pode ser válido se isso fizer parte da vida da criança. Não adianta mostrar, por exemplo, um atleta paraolím-pico medalhista se a criança não pratica esporte algum. toda criança deve ser incentivada a desenvolver o seu potencial, mas não se deve mostrar a pessoa com de-ficiência como um herói. O ideal é apontar que o defi-ciente é alguém capaz de lutar e realizar seus objetivos como qualquer outra pessoa.

Fui criança nos anos 1970, um tempo em que mui-tos pais isolavam seus filhos com deficiência do mundo. sempre fui a única cadeirante da escola, da faculdade, do meu grupo de amigos. Isso não me impediu de crescer independente e segura. Já adulta, passei a ter contato com outros cadeirantes pela internet. Foi algo impor-tante para mim, pois pude perceber que a deficiência não generaliza as pessoas, pois cada um tem a sua for-ma de se adaptar e progredir, e a troca de experiências é sempre enriquecedora.

A ararinha do bico torto guia para pais2

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Como agir diante de uma pessoa com deficiência?

Cada deficiência tem suas particularidades, mas existem algumas regras básicas:• Não faça de conta que a deficiência não existe. A de-ficiência é parte daquela pessoa e, portanto, não pode ser ignorada;• Quando quiser alguma informação de uma pessoa com deficiência, fale diretamente com ela e não com seus acompanhantes;• sempre que quiser ajudar, ofereça ajuda, mas espere a resposta e não se ofenda se a pessoa recusar, pois nem sempre as pessoas com deficiência precisam de auxílio;• Quando estiver diante de cadeirantes como eu, aten-ção! A cadeira de rodas é o que nos dá liberdade, res-peite-a: não se apoie nela nem a use como cabide. Se a conversa for mais longa, abaixe-se ou sente-se. Uma boa conversa precisa de olhos nos olhos, e não é muito confortável ficar olhando para cima; • uma pessoa com deficiência não é um ser de outro mundo, é uma pessoa comum. Você não deve ter re-ceio de fazer ou dizer alguma coisa errada. se tiver dú-vidas, pergunte. A informação é a grande arma contra o preconceito; • Aja com naturalidade e respeito, e tudo dará certo.

o que fazer se meu filho com deficiência for vítima de preconceito ou sofrer discriminação na escola?

o preconceito faz parte da natureza humana, des-confiamos de tudo que não conhecemos e temos resis-tência a aceitar o novo.

Meus filhos não têm deficiência, mas estão expos-tos ao preconceito e à discriminação da mesma forma. um aluno pode sofrer por ser magro, gordo, alto, baixi-nho, por ser muito inteligente ou ter um ritmo mais len-to para aprender... Qualquer coisa pode ser motivo para que as crianças coloquem apelidos ou excluam outras.

Muitas vezes, elas reproduzem atitudes que obser-vam em casa. Por isso, a maneira como os pais e a esco-la interferem nessa questão é fundamental. os pais devem orientar o filho a se defender e a não se dei-xar abalar por atitudes preconceituosas. se acharem necessário, devem procurar a escola e falar com os professores sobre a questão.

A escola deve estar atenta à forma como os alu-nos interagem e a qualquer atitude hostil, interferindo quando preciso.

É importante cobrar da escola uma postura de orien-tação e respeito às diferenças. Por outro lado, é preciso mostrar à criança que o preconceito e a discriminação acontecem com todo mundo, porque as pessoas ainda estão aprendendo a conviver com pessoas diferentes.

Por isso é tão importante para a criança com defi-ciência frequentar uma escola regular: esse aprendiza-do fica muito mais rico e rápido.

Quando apareci pela primeira vez na escola do meu filho mais velho, um colega disse-lhe, debochando, que eu era “aleijada”. Meu filho me defendeu, dizendo que o nome certo é “cadeirante”. Ele não conhecia a palavra “aleijada”, mas entendeu que não era um elogio. Expli-quei a ele que “aleijado” ainda é usado como sinônimo de incapaz, e essa é a forma como as pessoas com defici-ência ainda são vistas, infelizmente, por muitas pessoas.

Em seguida, entrei em contato com a coordenado-ra da escola, contando o ocorrido e mostrando minha decepção, uma vez que a escola tem entre seus alunos crianças com deficiência. Ela se desculpou e disse que conversaria com a turma sobre o ocorrido.

o que meu filho com deficiência vai ser quando crescer?

toda criança necessita que seus pais acreditem em sua capacidade de desenvolvimento. A criança com de-ficiência não é diferente: se os seus pais acharem que o seu filho é um coitado, que precisa ser protegido de tudo e de todos para não sofrer, esse poderá mesmo ser seu destino. Mas, quando os pais acreditam que esse filho é capaz de assumir responsabilidades, cres-cer como toda criança, sofrer sim, mas superar e seguir adiante mais forte, provavelmente o futuro dele será muito melhor.