a arithmetica progressiva de antonio trajano e a inserção

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66 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016 A Arithmetica Progressiva de Antonio Trajano e a inserção de elementos da história da matemática Ana Catarina Cantoni Roque 1 Instituto Federal de Minas Gerais IFMG Maria Laura Magalhães Gomes 2 Universidade Federal de Minas Gerais UFMG Resumo: Este artigo apresenta uma análise do livro Arithmetica Progressiva, de Antonio Trajano, quanto à presença de aspectos históricos da matemática. Foi usado um exemplar da 64ª edição, de 1929. Inicialmente, o texto focaliza o autor e sua produção didática, bem como a divulgação e o uso dessa produção no ensino brasileiro. Em relação à Arithmetica Progressiva, abordam-se os diferentes contextos históricos em que a obra circulou, do final do século XIX até a primeira metade do século XX. A análise da edição analisada contempla, além da presença da história da matemática, as características físicas e textuais mais gerais. Os excertos considerados históricos podem ser classificados, de modo geral em dois tipos: apresentação de informações históricas de forma direta e proposição de problemas históricos. Palavras-chave: Arithmetica Progressiva; Antonio Trajano; história da matemática. Antonio Trajano’s Arithmetica Progressiva and the insertion of elements of history of mathematics Abstract: This article presents an analysis of Arithmetica Progressiva, a book by Antonio Trajano, regarding the presence of historical aspects of mathematics. A copy of the 64 th edition of 1929 was used. Initially, the text focuses on the author and his didactic production, as well as the dissemination and use of this production in Brazilian education. The different historical contexts in which Arithmetica Progressiva circulated, from the end of the 19th century until the first half of the 20th century, are discussed, as well as the general physical and textual characteristics of the selected edition. Excerpts of the book concerning the presence of history of mathematics can be classified in two types: the presentation of direct historical information and the proposition of historical problems. Keywords: Arithmetica Progressiva; Antonio Trajano; History of Mathematics. Introdução De acordo com Miguel e Miorim (2004), oficialmente, as preocupações com a introdução de elementos históricos na Matemática escolar brasileira apareceram de maneira explícita, talvez pela 1 Mestre em Educação. Docente da área de Matemática do Instituto Federal de Minas Gerais campus de Governador Valadares. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UFMG. [email protected] 2 Doutora em Educação. Docente do Departamento de Matemática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMG. [email protected]

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66 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016

A Arithmetica Progressiva de Antonio Trajano e a inserção de elementos da história da matemática

Ana Catarina Cantoni Roque1

Instituto Federal de Minas Gerais – IFMG

Maria Laura Magalhães Gomes2

Universidade Federal de Minas Gerais –UFMG

Resumo: Este artigo apresenta uma análise do livro Arithmetica Progressiva, de Antonio Trajano,

quanto à presença de aspectos históricos da matemática. Foi usado um exemplar da 64ª edição, de

1929. Inicialmente, o texto focaliza o autor e sua produção didática, bem como a divulgação e o uso

dessa produção no ensino brasileiro. Em relação à Arithmetica Progressiva, abordam-se os

diferentes contextos históricos em que a obra circulou, do final do século XIX até a primeira metade

do século XX. A análise da edição analisada contempla, além da presença da história da

matemática, as características físicas e textuais mais gerais. Os excertos considerados históricos

podem ser classificados, de modo geral em dois tipos: apresentação de informações históricas de

forma direta e proposição de problemas históricos.

Palavras-chave: Arithmetica Progressiva; Antonio Trajano; história da matemática.

Antonio Trajano’s Arithmetica Progressiva and the insertion of elements of history of

mathematics

Abstract: This article presents an analysis of Arithmetica Progressiva, a book by Antonio Trajano,

regarding the presence of historical aspects of mathematics. A copy of the 64th

edition of 1929 was

used. Initially, the text focuses on the author and his didactic production, as well as the

dissemination and use of this production in Brazilian education. The different historical contexts in

which Arithmetica Progressiva circulated, from the end of the 19th century until the first half of the

20th century, are discussed, as well as the general physical and textual characteristics of the selected

edition. Excerpts of the book concerning the presence of history of mathematics can be classified in

two types: the presentation of direct historical information and the proposition of historical

problems.

Keywords: Arithmetica Progressiva; Antonio Trajano; History of Mathematics.

Introdução

De acordo com Miguel e Miorim (2004), oficialmente, as preocupações com a introdução de

elementos históricos na Matemática escolar brasileira apareceram de maneira explícita, talvez pela

1 Mestre em Educação. Docente da área de Matemática do Instituto Federal de Minas Gerais campus de Governador

Valadares. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UFMG. [email protected]

2 Doutora em Educação. Docente do Departamento de Matemática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da

UFMG. [email protected]

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primeira vez, na legislação da década de 1930, mais especificamente na Reforma Francisco

Campos, consolidada em 1932. No que diz respeito ao ensino secundário, essa reforma propunha,

por meio da Portaria Ministerial de 30 de junho de 1931, que o curso fosse entremeado de ligeiras

alusões a problemas clássicos e curiosos e aos fatos da história da matemática, bem como às

biografias de grandes vultos dessa ciência, com o objetivo de aumentar o interesse do aluno (Idem).

Nessa época, autores de livros didáticos, como Cecil Thiré, Melo e Souza e Euclides Roxo,

que assumiram as orientações dessa reforma, incorporaram, em suas obras, elementos de história da

matemática. No entanto, no Brasil, tais preocupações estiveram presentes antes disso, em livros

didáticos de matemática mais antigos, por meio de observações e comentários sobre temas ou

personagens da história da matemática, particularmente no final do século XIX e início do século

XX (MIGUEL; MIORIM, 2004).

Um desses livros é Arithmetica Progressiva, escrito por Antonio Trajano. Neste artigo,

apresentamos nossa análise quanto à presença de aspectos históricos da matemática nessa obra, da

qual estudamos a 64ª edição, publicada no Rio de Janeiro em 1929 pela Livraria Francisco Alves.

Acreditamos que essa análise pode trazer contribuições para compreensões acerca de aspectos da

educação matemática que se colocam no presente, pois, segundo Viñao Frago (2012), todos os

aspectos da história das disciplinas concernem, em maior ou menor medida, à dos livros-texto.

Ainda segundo esse autor, a história de uma disciplina não se reduz à dos manuais utilizados em seu

ensino, mas não é possível fazer a história de uma disciplina sem analisar a história de seus livros-

texto e de outros materiais didáticos.

Antes, porém, de passarmos a expor nossa análise acerca da presença da história da

matemática no livro-texto em foco, faremos uma discussão geral sobre ele. Como diz Darnton

(1995, p.112), “... as partes não adquirem seu significado completo enquanto não são relacionadas

com o todo...”. Para a elaboração de tal discussão, baseamo-nos nos estudos de Chartier (1990),

Darnton (1995), Batista (2004) e Galvão e Batista (2009).

Cabe observar que, segundo Batista (2004), até meados do século XX, os impressos

escolares foram denominados manuais escolares, compêndios, livros-texto, livros. O livro que

focalizamos é chamado por sua editora de compêndio, mas nós nos referiremos a ele como livro

didático ou simplesmente livro.

Antonio Trajano e sua produção didática

O livro Arithmetica Progressiva faz parte de uma trilogia sobre aritmética escrita por

Antonio Bandeira Trajano nas décadas finais do século XIX. Além dele, integram essa trilogia os

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livros Arithmetica Primaria e Arithmetica Elementar Illustrada. Dentre os três, o primeiro a ser

publicado – em 8 de fevereiro de 1879 – foi Arithmetica Progressiva, obra destinada aos alunos de

escolas de ensino secundário e superior. Naquele mesmo ano, também foi publicada a Arithmetica

Elementar Illustrada, produzida para as classes mais adiantadas das escolas primárias.

Posteriormente, por volta das décadas de 80 e 90 dos Oitocentos, a partir da composição dos dois

livros anteriores, foi produzida a Arithmetica Primaria, preparada para meninos e meninas que

começariam o estudo de aritmética nas escolas primárias (OLIVEIRA, 2013).

Seu autor, Antonio Bandeira Trajano, é português, nascido na Vila Pouca de Aguiar, em 30

de agosto de 1843. Em 1857, aos 14 anos de idade, mudou-se para o Brasil, naturalizando-se

brasileiro naquele mesmo ano. Faleceu aos 87 anos, no Rio de Janeiro, em 23 de dezembro de 1921.

Trajano era protestante e foi um dos membros fundadores da Igreja Presbiteriana de São Paulo,

organizada em 1865. No ano de 1867, ingressou no seminário, no Rio de Janeiro, para se tornar

pastor. Foi como seminarista que teve suas primeiras experiências como professor, ensinando

geografia e aritmética na escola paroquial anexa à igreja, entre 1867 e 1870 (MATOS, 2004). Após

ser ordenado, Trajano passou a dedicar-se ao pastorado, mas, em 1877, após o falecimento de sua

filha Guiomar, em agosto, foi lecionar aritmética em São Paulo, na Escola Americana3, até outubro

de 1880.

Na Escola Americana, Trajano foi orientado pela professora Mary Parker Dascomb, que foi

uma missionária enviada ao Brasil pela Junta de Missões Estrangeiras de Nova York, da Igreja

Presbiteriana do Norte dos Estados Unidos. Mary Parker, assim como outros professores,

missionários presbiterianos norte-americanos, já utilizava o método intuitivo4 de ensino trazido de

suas experiências nas escolas dos Estados Unidos (OLIVEIRA, 2013). Segundo Carvalho (2011),

esses docentes e missionários foram, em grande parte, responsáveis pela entrada do método

3 A Escola Americana foi fundada em 1870, pelo casal de missionários norte-americanos George Whitehill

Chamberlain e Mary Ann Annesley Chamberlain, e teve suas atividades iniciadas na residência do casal, onde Mary

Ann passou a dar aulas para meninas que não podiam frequentar as escolas públicas devido à intolerância religiosa. Em

1871, a escola foi transferida para as instalações da Igreja Presbiteriana de São Paulo, sob a direção da missionária

Mary P. Dascomb que, além de diretora, também lecionava matemática. Posteriormente, a Escola Americana passou a

contar também com um internato para meninas, um internato para meninos e um jardim de infância (MATOS, 2004).

4 Também conhecido como “lições de coisas”, em meados do século XIX, o método intuitivo foi concebido como

estratégia de combate ao ensino escolar então dominante, que se mostrava ineficiente e inadequado às necessidades da

sociedade após a revolução industrial operada a partir do final do Setecentos (SAVIANI, 2007), “principalmente pelo

fato de alicerçar a aprendizagem exclusivamente na memória, priorizar a abstração, valorizar a repetição em detrimento

da compreensão e impor conteúdos sem exame e discussão” (VALDEMARIN, 2006, p. 90). Em contraposição a tais

práticas, os defensores do método intuitivo argumentavam em favor da observação de fatos e objetos pelos estudantes,

envolvidos em situações de aprendizagem em que o conhecimento não seria simplesmente transmitido e guardado de

cor, mas surgiria no entendimento da criança a partir do instrumento proporcionado pela experiência dos sentidos.

O método intuitivo foi amplamente disseminado no Brasil no final do século XIX e início do XX, proposto como um

processo geral de ensino de todos os conteúdos a serem trabalhados com as crianças da escola primária.

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intuitivo no Brasil. Assim, foi a convivência com esses professores que propiciou a Antonio Trajano

seu primeiro contato com o método. E foi com base no método intuitivo e na grande necessidade de

livros didáticos, percebida em suas experiências na escola paroquial e na Escola Americana, que

Trajano produziu suas primeiras obras para o ensino de aritmética (OLIVEIRA, 2013).

Além da trilogia de aritmética, Trajano também é autor dos seguintes livros: Álgebra

Elementar, Álgebra Superior, Chave da Arithmetica Progressiva, Chave da Álgebra, Nova Chave

da Arithmetica Progressiva, Nova Chave da Álgebra, Estudos da Língua Vernácula, todos

publicados no Brasil entre as décadas de 1870 e 1960 .

A Arithmetica Progressiva de Trajano

O livro Arithmetica Progressiva atingiu a 91ª edição em 1961, quarenta anos após a morte

de seu autor. O exemplar que estudamos tem capa dura, 272 páginas, e as seguintes dimensões: 19,5

cm de comprimento, 14,5 cm de largura e 1,5 cm de espessura. Esse exemplar apresenta, na folha

em branco que se localiza entre a capa e a folha de rosto, a assinatura da proprietária anterior,

Eurydice V. Albertin, e um carimbo da Livraria Colombo, de Recife.

Figura 1 – Foto da capa do livro Arithmetica Progressiva

Fonte: Trajano, 1929.

Na capa do livro (Figura 1), nota-se imediatamente o uso de uma variedade de fontes:

sublinhado, negrito, caixa alta. Há, também, a imagem de uma locomotiva, em uma ferrovia, ao pôr

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do sol, que talvez possa ser associada à ideia de progresso e faça referência ao adjetivo

“progressiva”5.

As diferenciações tipográficas estão presentes ao longo de toda a obra, na qual observam-se

negritos, caixa alta, itálicos, letras de tamanho menor para notas, observações. O uso de negritos,

por exemplo, é feito no início das seções, mas também para destacar algum termo ou expressão no

meio do texto.

A capa do livro informa sua edição pela Livraria Francisco Alves. Segundo Moniz (2009),

trata-se da editora mais antiga em funcionamento no país, excetuando-se a Impressão Régia do Rio

de Janeiro, hoje Imprensa Nacional. Fundada pelo imigrante português Nicolau Antônio Alves, com

o nome de Livraria Clássica6 e inaugurada em 1854, suas edições começaram a aparecer em 1862.

A obra Expozição do systema métrico decimal, do Prof. J. R. F. Jordão (João Rodrigues da Fonseca

Jordão), foi a primeira, com uma tiragem inicial de 4.000 (quatro mil) exemplares.

Ainda de acordo com Moniz (2009), a editora, desde sua criação, era voltada especialmente

para o nascente público escolar da Corte e logo se tornou uma livraria-editora de livros didáticos.

“Começou modestamente e veio a tornar-se a maior livraria-editora do país – durante cerca de 50

anos – nas últimas décadas do século XIX” (Idem, p. VII).

Na primeira página do livro, além do título, do nome do autor e da editora, constam o

número da edição, o ano de publicação e a indicação: “Preparado para a mocidade brazileira por

Antonio Trajano”. A primeira página faz referência a outras cinco obras do mesmo autor7 e, logo a

seguir, são apresentadas as “Apreciações”, que são quatro notas de jornais sobre as duas primeiras

edições do livro. Três delas são datadas de 1880 e a quarta não inclui data nem o nome do jornal de

onde foi extraída. Ao final das “Apreciações”, é dito que, por falta de espaço, são omitidas muitas

outras “apreciações honrosas”. De fato, verificamos que o jornal Correio Paulistano, em 24 de abril

de 18808, trouxe uma nota com seis apreciações dessa obra publicadas em outros jornais

9. Duas

5 O uso do adjetivo parece remeter ao significado de “gradual” ou “gradativo”, do mais simples para o mais complexo.

Entretanto, o livro não apresenta uma justificativa para seu título.

6 Teve, posteriormente, o nome de Livraria Alves e, por fim, o de Livraria Francisco Alves.

7 Essas obras são: Arithmetica Primaria, Arithmetica Elementar, Algebra Elementar, Nova Chave da Arithmetica

Progressiva e Nova Chave da Algebra Elementar e estão anunciadas na contracapa do livro, inclusive com a

informação relativa a seu preço.

8 O jornal Correio Paulistano está disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em <

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=090972_04&pasta=ano%20188&pesq=trajano> Acesso em 11

out. 2016.

9 Esses jornais são: 1- Jornal do Commercio, de 20 de fevereiro; 2- O Apostolo, de 16 de Janeiro; 3- Correio

Commercial, de 21 de janeiro; 4- Cruzeiro, de 13 de janeiro; 5- Futuro, de 31 de janeiro; 6- Gazeta Popular, de 31 de

março, todos do ano de 1880.

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delas são as mesmas transcritas no livro. A nota do Correio Paulistano também aparece no Jornal

da Tarde de 8 de abril de 188010

.

Após as “Apreciações”, nas duas páginas seguintes figuram dois prefácios, o da segunda e o

da trigésima edições. No prefácio da segunda edição, o próprio Trajano tece comentários sobre

como se dava o ensino de aritmética no Brasil e sobre as mudanças que vinham ocorrendo nesse

ensino, chamando a atenção para a necessidade dele ser completo, isto é, simultaneamente teórico e

prático. Nesse contexto, apresenta sua obra, que diz atender a essa necessidade:

O nosso compendio de Arithmetica Progressiva apresenta a parte theorica de cada

ponto acompanhada de exercícios e problemas graduados para o ensino da

aplicação, e deste modo os alumnos poderão exercitar-se com grande vantagem na

theoria e na pratica, podendo depois resolver com destreza qualquer questão de

Arithmetica11

(TRAJANO, 1929, p. 4).

No prefácio da trigésima edição, que não tem autoria indicada, são comentadas as mudanças

pelas quais a obra passou para dar origem a essa edição. Desse prefácio, destacamos o seguinte

trecho:

Além dos melhoramentos no methodo e na exposição, este livro vem ainda

enriquecido de materia nova e importante, de problemas instructivos e de notas e

illustrações explicativas que não somente desenvolverão o gosto pelo estudo de

Arithmetica, tirando-lhe toda a agrura da fôrma sombria com que tem sido revestida,

mas simplificarão consideravelmente os diversos processos dos calculos, tornando-

os faceis e de prompta solução (TRAJANO, 1929, p. 5).

Como não há comentários sobre outra edição entre a segunda e a trigésima, e nem depois da

trigésima, é plausível que não tenha havido alterações na obra da primeira até a 29ª edição e

tampouco nas edições que sucederam a trigésima até a 64ª edição, a analisada por nós.12

Ainda na

quinta página, em que consta o prefácio da trigésima edição, há uma propaganda do livro Nova

Chave de Arithmetica Progressiva, que, conforme indicado nela, veio substituir o livro Chave de

Arithmetica Progressiva. De acordo com as informações da contracapa da 68ª edição de 1935

(TRAJANO, 1935), podemos depreender que o livro Nova Chave de Arithmetica Progressiva trazia

a solução completa de todos os problemas do livro Arithmetica Progressiva. Com esses livros

10

O Jornal da Tarde está disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em <

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=713120&pesq=antonio%20trajano&pasta=ano%20188>. Acesso

em 11 out. 2016.

11 A transcrição de todos os excertos da obra de Trajano aqui realizada reproduz sua ortografia original. O mesmo

procedimento foi adotado nas citações de publicações relacionadas à Arithmetica Progressiva.

12 Se compararmos as edições 64ª (TRAJANO, 1929) com a 68ª (TRAJANO, 1935), veremos que elas são idênticas. Tal

constatação nos mostra que várias edições da obra eram, na realidade, apenas reimpressões de edições anteriores.

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denominados “Chave”, Trajano foi considerado por Valente (1999) o introdutor, no ensino de

matemática no Brasil, do livro do professor.

Em relação à circulação da obra, observamos que, de 1879 até 1929, a média anual de

publicação das edições foi aproximadamente 1,25. Isso significa que, entre 1879 e 1929, em alguns

anos houve a publicação de mais de uma edição do livro, o que nos dá um indício de que a obra foi

bem aceita. Além disso, anúncios de venda dessa obra podem ser encontrados em jornais de

diferentes estados. Uma busca na Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional entre os anos de 1880

e 1890 atesta a presença de anúncios de vendas desse livro em jornais dos estados do Rio de

Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Maranhão e Piauí. A título de exemplo, citamos

uma nota localizada na página três do jornal Imprensa, publicado em Teresina, no dia 20 de março

de 1886.

Acha-se a venda em casa dos srs Manoel Raimundo da Paz & compª a

arithmetica progressiva, curso completo, thoerico e pratico, preparado para uzo da

mocidade brazileira por Antonio Trajano, 4$000 reis cada volume, assim como em

brochura a 1$000 reis a arithmetica elementar do mesmo autor para uzo das escolas

primárias.

Estas arithmeticas estão approvadas pela congregação do lyceo d’esta

capital; e tem tido muita acceitação na Corte e em quasi todas as outras provincias

do Imperio13

.

Na Hemeroteca, localizamos, ainda, artigos da década de 1930, que informam que o livro foi

adotado em escolas de Alagoas e Goiás14

.

Já no jornal A União, publicado na cidade de Ouro Preto-MG, em 27 de julho de 1887, sob o

título “Secretaria do Governo”, em uma lista de atos do governo provincial de Minas Gerais

intitulada “Extracto do Expediente de maio de 1887”, noticia-se ter se mandado adotar o livro

Arithmetica Progressiva nas escolas daquela província15

. Outra aparição interessante desse livro nos

jornais, agora na década de 1930, se deu no suplemento do jornal Correio da Manhã, de 19 de

junho de 1938, no qual ele é citado em uma crônica escrita por Antonio Maia Bulhões, intitulada

13

Disponível em: <

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=783765&pesq=antonio%20trajano&pasta=ano%20188 > .

Acesso em 11 de out. 2016.

14 Essas informações foram encontradas em artigos disponíveis nos jornais A Voz do Povo e Diário da Manhã, nos

seguintes endereços: <

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=763454&pesq=arithmetica%20progressiva&pasta=ano%20193>

e ,

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=572748&pesq=arithmetica%20progressiva&pasta=ano%20193>

15 Jornal A União. Disponível em <

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=714640&pesq=antonio%20trajano&pasta=ano%20188> Acesso

em 11 de out. 2016.

73 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016

“Sciencia e Nobreza”16

. No jornal Diário de Notícias, publicado no Rio de Janeiro em 18 de

novembro de 1931, localizamos um artigo no qual seu autor, ao tratar do pagamento de impostos

por vendedores de aguardente, usada no preparo de tintas, recomenda aos leitores que consultem a

página 124 do livro Arithmetica Progressiva para esclarecerem o valor da canada, que é uma

medida de volume. Examinando o livro, encontramos, na página indicada, a informação de que 1

canada vale 21,66 litros. Essas diferentes citações em jornais, em matérias de diferentes tipos, nos

possibilitam afirmar que o livro de Antonio Trajano teve uma ampla circulação no país, e de

maneira especial nos estados que hoje compõem a região sudeste. Essa afirmação está de acordo

com a observação de Valente (1999) segundo a qual os livros de Trajano foram verdadeiros best

sellers, e com os comentários de Botelho (2012) sobre o ensino secundário, nas décadas de 1930 e

1940, em São Paulo:

Um livro que pela sua praticidade começou a se impor foi o Aritmética

Progressiva, de Antonio Trajano. De um início de fogo que vira um incêndio

incontrolável, esse livro passou a ser a “bíblia” do profissional não doutor. Todas

as papelarias e as poucas livrarias de então o possuíam, as escolas de comércio e

cursos livres o adotam. [...]

Quem quisesse ou fosse obrigado a procurar emprego no comércio ou em bancos

tinha que ter e estudar no Aritmética Progressiva de Antonio Trajano, um livro

sagrado (BOTELHO, 2012, p. 122).

Corroborando nossas observações, Matos (2004) escreve que os livros de Trajano foram

utilizados por muitos anos em escolas de todo o Brasil. O autor acrescenta que, devido à sua grande

aceitação, os livros didáticos forneceram a seu autor amplos recursos de subsistência.

O livro é estruturado em 35 partes, algumas delas com subdivisões. Essas 35 partes são

assim denominadas: Algarismos, Definições, Numeração, Signaes arithmeticos, Operações

fundamentaes, Reducção á unidade, Igualdade e desigualdade, Complementos dos números,

Theoria dos números, Fracções ordinárias, Fracções decimaes, Sistema métrico, Números

complexos17

, Razão, Regra de três, Falsa posição, Porcentagem, Juros, Sociedade commercial,

Commissões, Desconto, Termo médio, Prazo médio, Mistura, Liga, Permutação, Cambio, Analyse,

Potencias, Extracção de raízes, Progressões, Logarithmos, Medição, Peso especifico, Quadrados

Magicos.

16

Jornal Correio da Manhã. Disponível em : <

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_04&pesq=arithmetica%20progressiva&pasta=ano%201

93> . Acesso em 21 de out. 2016.

17 O que o autor chama de números complexos são números expressos em unidades e subunidades, como, por exemplo,

6 anos e 4 meses.

74 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016

Percebemos que, embora o livro trate de aritmética, a parte denominada Medição traz

noções básicas de geometria plana. De acordo com Valente (1999, p. 165), a abordagem desse tema

pode estar relacionada ao uso do livro nas escolas normais, que propunham, no currículo de

formação dos professores primários, a inclusão de noções de geometria.

O livro traz ilustrações em número reduzido, que aparecem em maior quantidade na parte

denominada “Medição”, na qual são apresentados conceitos como linhas, ângulos, triângulos,

quadriláteros, polígonos, e focalizadas as grandezas geométricas comprimento, área e volume.

Assim, até a página 112, encontram-se apenas cinco imagens, todas elas com desenhos de maçãs,

associadas às ideias de divisão e de frações. As demais ilustrações representam objetos relacionados

ao conteúdo abordado, como moedas de diferentes países, termômetro, balança, régua, o globo,

entre outras. Na parte denominada “Medição” desenhos de diferentes tipos de linhas, ângulos,

polígonos e sólidos geométricos são utilizados na apresentação dos conceitos trabalhados.

Os exercícios estão distribuídos ao longo de toda a obra e são muito numerosos. A capa do

livro já destaca isso com as palavras: “... contendo mais de mil e seiscentos exercicios e problemas

intercalados no texto, não só para o tirocinio do calculo, mas também para a boa comprehensão do

ensino desta disciplina” (TRAJANO, 1929, capa).

Analisando toda a obra, é difícil descrever um modo único de apresentação dos conteúdos.

No entanto, na maioria dos casos, é adotada a seguinte sequência: são apresentadas definições, que

são seguidas de problemas, acompanhados de soluções e, em alguns casos, de trechos denominados

“Demonstração”, que consistem em explicações dessas soluções. Algumas vezes, ao invés de

problemas, as definições são seguidas de pequenos textos intitulados “Ilustração”, que expõem

exemplos de aplicação dessas definições, e que também, em alguns casos, são seguidas de

passagens nomeadas “Demonstração”. Finalmente, são apresentadas, em grande número, regras que

generalizam os procedimentos dos exemplos recém-discutidos. Problemas e exercícios são

intercalados às seções que abordam os diferentes temas. Os exercícios e problemas seguem, em

nossa visão, uma ordem gradativa, dos mais simples para os mais complexos.

A obra não contém partes específicas de orientação para seu uso, mas, ao longo de suas

páginas, encontram-se algumas notas que parecem ter o objetivo de guiar o trabalho do professor,

como exemplificado a seguir.

Nota. Não damos aqui os numeros para o exercicio de applicação, porque o

professor deve apresentar os números que forem adequados ao adiantamento e

capacidade de seus discipulos (TRAJANO, 1929, p.15).

75 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016

Não é nosso objetivo, neste artigo, analisar os fundamentos didático-pedagógicos para a

apresentação dos conteúdos. Entretanto, existem diversos trabalhos que discutem a presença do

método intuitivo nas obras de Trajano. Como exemplos, podemos citar: Oliveira (2013), Carneiro

(2014), Pinheiro e Valente (2013), Souza (2008). Os argumentos utilizados por esses autores para

justificar essa presença giram em torno da experiência de Antonio Trajano em suas interações com

os missionários protestantes que vieram dos Estados Unidos e foram, em parte, responsáveis pela

introdução do método no Brasil. Os autores se baseiam, ainda, na maneira como o autor organiza a

exposição dos conteúdos, partindo dos conceitos mais simples para os mais complexos, bem como

na prática proporcionada pelos inúmeros exercícios presentes em seus livros.

Como a Arithmetica Progressiva teve 91 edições, tendo circulado por um longo período,

esteve presente em diferentes contextos políticos, que incluem o período imperial, a República

Velha, a Era Vargas, e provavelmente também a ditadura militar, estabelecida a partir de 1964.

No âmbito educacional, a obra também participou de diversos contextos. Foi publicada no

momento em que o ensino secundário era feito, em sua maior parte, nos liceus ou em escolas

particulares, organizado em aulas avulsas. Em nossa pesquisa em jornais, localizamos indicações da

utilização do livro Arithmetica Progressiva nesses tipos de estabelecimentos. O objetivo do ensino

secundário, naquela época, era formar os filhos da elite brasileira para ingressar no ensino superior

ou para ocupar cargos de destaque na sociedade (MENEGHETI, 2012).

Apesar dos avanços no ensino primário que sucederam a Proclamação da República, no

ensino secundário a frequência não foi obrigatória até 1931. Havia a possibilidade de o aluno obter

o grau de bacharel em ciências e letras, ou ingressar em cursos superiores no Brasil sem

necessidade de ter passado pelo curso regular (VEIGA, 2007). Não existia um sistema nacional

para o ensino secundário, apenas sistemas estaduais, e assim não havia uma política nacional de

educação para esse nível do ensino (MENEGHETI, 2012). Nesse período, podemos destacar a

reforma instituída por Carlos Maximiliano, em 1915, que introduziu a obrigatoriedade do

certificado de ensino secundário para o ingresso no ensino superior e reduziu a duração do curso

integral do nível secundário de sete para cinco anos. Houve também a reforma introduzida por

Rocha Vaz.

No ano de 1925, Rocha Vaz oficializou o ensino secundário como curso regular

seriado em duas modalidades. Para seis anos de estudos, obtinha-se o grau de

bacharel, e no cumprimento de cinco anos de curso poder-se-ia prestar o exame

vestibular. Esse passou a ser classificatório, com definição prévia do número de

vagas dos cursos superiores. Contudo, não é certo que os exames preparatórios e os

parcelados tenham deixado de existir imediatamente. (VEIGA, 2007, p. 250).

76 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016

De acordo com Menegheti (2012), embora essas reformas tenham sido as primeiras

tentativas de organizar o ensino secundário no país, faltava imprimir um caráter nacional a essas leis

que, ao que parece, restringiam-se somente ao Distrito Federal.

Com o fim da Primeira República, motivado pela Revolução de 1930, e as mudanças

advindas dela, em especial no que diz respeito ao investimento na produção industrial, as indústrias

passaram a exigir mão de obra especializada, o que requereu investimentos na educação da

população. No início do governo de Getúlio Vargas iniciado então, com o objetivo de organizar

ações de um sistema educativo controlado oficialmente, foram sancionados vários decretos,

conhecidos como Reforma Francisco Campos. Essa reforma, no que diz respeito ao ensino

secundário, estabeleceu definitivamente o currículo seriado, a frequência obrigatória, dois ciclos,

um fundamental de cinco anos e outro complementar de dois anos, e a exigência de habilitação

neles para ingresso no ensino superior. Além disso, para ingresso no ensino secundário, foi criado o

Exame de Admissão, que perdurou oficialmente até 1971 e que foi extinto pela Lei 5692/71. Esse

exame era altamente seletivo e contava com inspeção bastante rigorosa, configurando um ensino de

caráter elitista (VEIGA, 2007). A matemática estava presente em todos os sete anos do ensino

secundário, com exceção dos dois anos complementares para a Faculdade de Direito.

Em 1942, foi realizada a Reforma Capanema (Decreto-lei nº 4244, de 9 de abril de 1942),

que determinou uma nova divisão para o ensino secundário, estabelecendo dois ciclos: o ginasial,

de quatro anos, e o colegial, de três anos. Foram instituídos dois tipos de estabelecimentos para o

ensino secundário: o ginásio, destinado a oferecer o primeiro ciclo, e o colégio, que, além do

ginásio, se responsabilizava por um ou dois cursos (científico e clássico) do segundo ciclo.

Para o ministro Capanema, o secundário era o nível de ensino por excelência,

destinado a formar os futuros cidadãos em sua consciência patriótica. Educar para a

sociedade foi interpretado como educar para a nação. Nesse sentido, tal objetivo

definia um currículo de acentuado conteúdo humanístico, necessário para a

preparação das individualidades condutoras do povo e da nação (VEIGA, 2007, p.

92).

Apesar do caráter humanístico do currículo, a matemática continuou sendo disciplina

obrigatória para todos os anos do curso.

Entre 1942 e a Lei de Diretrizes e Bases de 1961, houve um período fértil de novas

iniciativas para o desenvolvimento do ensino secundário, dentre as quais podemos citar a criação,

em 1946, da Diretoria de Ensino Secundário, e a instituição, em 1953, da Campanha de

Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES)18

(Idem, 2007).

18

De acordo com Garnica (2010, p. 566), a CADES foi implantada no Brasil no início da década de 1950 e tinha como

objetivo “formar” professores para dar conta da expansão do ensino secundário num momento em que começava a se

77 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016

Em 1961, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 4.024/61, que

alterou as leis orgânicas de 1942 e estabeleceu a educação de grau médio. Em 1971, as disposições

relativas ao ensino primário e médio previstas nessa lei foram revogadas e substituídas pela lei

5.692/71, que alterou as denominações anteriores das etapas escolares para ensino de 1º e 2º graus.

Entre outras modificações, essa lei aboliu o Exame de Admissão, estabelecendo a exigência, para

ingresso no ensino de 2º grau, apenas da conclusão do ensino de 1º grau ou equivalente

(MENEGHETI, 2012).

Elementos de história da matemática na Arithmetica Progressiva

No percurso pelas 272 páginas da 64ª edição do livro Arithmetica Progressiva, de Antonio Trajano,

consideramos que elementos da história da matemática são apresentados de modo explícito em 20

trechos. A maioria desses trechos, dezesseis, aparecem em destaque, pois vêm grafados em letra

menor do que o restante do texto e são precedidos dos títulos: Nota (11 ocorrências), Observação

(uma ocorrência), Ilustração (três ocorrências) e Noção Histórica (uma ocorrência). Os outros

quatro trechos se distribuem ao longo do texto, sem destaques desse tipo. A imagem a seguir mostra

um desses trechos:

Figura 2- Ilustração em que a história da matemática está presente. Fonte: Trajano (1929, p.20)

Não achamos no texto qualquer explicação sobre como esses excertos poderiam ser

utilizados pelo professor ou pelo aluno nem qualquer alusão ao papel atribuído pelo autor à história

da matemática em sua obra. No entanto, em uma das notas, que parece ser destinada ao professor,

há um indício que pode nos ajudar a entender qual seria o objetivo de sua inserção. Tal nota se

encontra na última parte do livro, chamada “Quadrados Magicos”, e figura logo após um trecho em

que Trajano discorre sobre os quadrados mágicos na antiguidade:

Nota. Achamos muito conveniente dar aqui esta breve noticia dos quadrados

magicos, não somente para os discípulos terem conhecimento desta reliquia da

antiguidade, mas também para saberem calcular a sua formação (Idem, p. 266).

insinuar, no Brasil, um sistema nacional de educação. Nessa campanha, professores normalistas e profissionais de

diversas áreas se submetiam a cursos específicos durante o período de férias escolares e, se obtivessem a aprovação em

exames denominados “de suficiência”, recebiam o direito de lecionar em escolas secundárias, enquanto não surgissem,

em sua região, cursos superiores de licenciatura.

78 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016

Parece-nos, por esse excerto, que o autor via a história como um veículo de informação

cultural, que poderia enriquecer o ensino e também como uma fonte de problemas que permitiriam

o exercício do cálculo. Essa observação também pode ser justificada com base no prefácio da

trigésima edição, que citamos anteriormente. Nesse prefácio, é dito que a edição foi enriquecida de

notas e ilustrações explicativas, que, além de desenvolver o gosto pelo estudo de aritmética,

também simplificariam consideravelmente os diversos processos de cálculo. Conforme dissemos,

acreditamos que a edição analisada por nós é uma reprodução da trigésima edição. Assim, pelo fato

de a maioria dos trechos em que estão inseridos elementos históricos se localizar exatamente em

pequenas seções denominadas “Nota” e “Ilustração”, consideramos que os objetivos dessa inserção

poderiam ser exatamente esses.

Os trechos aos quais atribuímos a qualificação de históricos estão bem distribuídos ao longo

da obra; o primeiro deles encontra-se na página cinco e o último na página 268. Todos se

relacionam diretamente ao conteúdo abordado nessas páginas e não são localizados à parte, isto é,

são apresentados em meio ao texto. Não encontramos nenhuma referência às fontes utilizadas pelo

autor para compor tais partes. Os temas nelas abordados são: a origem da palavra dígitos,

relacionada ao uso dos dedos como técnica de contagem; a antiga forma de representação no

sistema de numeração romana; a existência de outras bases de numeração e a origem da base dez,

ligada ao uso dos dez dedos das mãos; o desenvolvimento do sistema decimal de numeração; a

indicação dos inventores dos sinais +, -, x, e ÷; a origem da palavra cálculo, associada ao uso de

pedras para contagem; a tabuada de Pitágoras; o crivo de Eratóstenes, em dois momentos; a origem

da palavras “avos” na nomenclatura de frações; a história do sistema métrico decimal; a divisão do

tempo em anos e a relação dos nomes dos meses setembro, outubro, novembro e dezembro ao fato

de em tempos passados o ano começar em março; a adoção do meridiano de Greenwich como

marco zero da longitude; as medidas e moedas em circulação na Judéia no tempo de Jesus; a origem

da palavra porcentagem; o problema da coroa de ouro de Hierão, no ano 217 antes de Cristo; a

invenção dos logaritmos por Napier; a relação entre as medidas do diâmetro e do comprimento da

circunferência; os quadrados mágicos na antiguidade; um problema grego da época de Pitágoras19

.

Esses excertos podem ser classificados em dois tipos, de acordo com as ideias e exemplos de

implementação da história da matemática em sala de aula propostos por Tzanakis e Arcavi, (2000):

19

Esse problema está assim formulado: Traducção de um problema grego: “O gloria de Helicon, Pythagoras, querido

das musas! dize-se quantos discipulos frequentaram a tua escola; quantos, perto de ti, escutam anciosos a palavra do

mestre falando da sabedoria. – Polycrato, grava no teu espírito o que vou te dizer: A metade dos discipulos estuda

mathematicas, sciencia da luz e da verdade; a quarta parte trabalha para descobrir as leis immortaes que regem a

natureza; a setima parte reflecte sobre tudo o que ouve, e assiste em silencio; ha ainda tres mulheres.” Quantos

discípulos tinha Pythagoras? (TRAJANO, 1929, p. 268).

79 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016

a apresentação de recortes com informações históricas de forma direta e a proposição de problemas

históricos.

Uma situação interessante e que talvez se relacione à confissão presbiteriana de Trajano e a

suas experiências em escolas protestantes é que ele dedica uma seção inteira, composta de três

páginas, à abordagem de medidas e moedas em circulação na Judéia no tempo de Jesus Cristo.

Nesse contexto, o autor afirma que as traduções da Bíblia para o Português existentes até então

tinham sido infelizes na escolha de vários termos, acrescentando que as tabelas por ele propostas

são mais confiáveis. Destacamos que, nessa seção, todos os problemas propostos pelo autor dizem

respeito a contextos bíblicos20

.

Observamos, ainda, que em cinco das notas o autor procura esclarecer a origem de algumas

palavras comuns na linguagem matemática. Entendemos que essas explicações visariam a responder

a alguns porquês cronológicos, ou seja, “aquelas explicações cuja legitimidade não poderia ser

caracterizada como uma necessidade lógica” e que, diferentemente, “são razões de natureza

histórica, cultural, casual, convencional que estariam na base de sua aceitação” (MIGUEL;

MIORIM, 2004, p. 46). Reproduzimos parte de uma das notas desse tipo:

Nota. A palavra ávos não significa cousa alguma, é apenas a terminação da

palavra oitavos. Os arithmeticos antigos usavam dos nomes ordinaes até oitavos, e

dahi por diante, por ser difficil enunciar os denominadores com adjectivos

numeraes ordinaes, usavam dos numeros cardinaes, accrescentando a palavra ávos;

assim, em logar de lerem um trigesimo quarto, liam um trinta e quatro ávos.

(TRAJANO, 1929, p. 68)

Alguns excertos nos permitem perceber que a ideia de história transmitida pelo autor é a de

uma história evolutiva, na qual os conhecimentos vão avançando e se tornando melhores, mais

desenvolvidos e que, portanto, o conhecimento de hoje é melhor do que o do passado. O trecho

seguinte, reprodução parcial de uma observação do livro é ilustrativo.

Observação. Vamos dar o seguinte esclarecimento para completar o estudo

da numeração:

Acabamos de ver como o systema decimal de numeração é engenhoso,

perfeito, sabiamente organizado, pois unicamente com dez algarismos podemos

sem difficuldade representar na escripta todos os numeros precisos; e com um

pequeno vocabulario de termos simples,podemos dar um nome distincto a cada

numero.

Não devemos, porém, aqui concluir que este systema assim tão aperfeiçoado

e completo fosse usado pelo homem nos seus primeiros ensaios rudimentares de

Arithmetica, quando elle resolvia os seus calculos contando pelos dedos. Nesse

20

A título de ilustração, transcrevemos um desses problemas: “Os Apostolos calcularam que com 200 denários de pão

poderiam dar uma parca merenda á multidão de quasi cinco mil pessoas que acompanhou Jesus pelo deserto, para ouvir

sua doutrina. Quanto é esta quantia em nossa moeda?” (TRAJANO, 1929, p. 146)

80 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016

tempo, a numeração estava em seu estado embryonario; cada numero differente

que se ia formando, recebia um nome particular para distinguil-o de todos os

outros, e depois inventava-se um novo signal para o representar na escripta.

[...]

O homem, desconhecendo ainda os processos que abreviam e simplificam as

operações sobre numeros, seguia espontaneamente o methodo que lhe parecia mais

natural e lógico, quando, na verdade, enveredava pelo caminho mais longo e

enfadonho para chegar ao fim desejado.

Dá-se a esse methodo imperfeito de calcular o nome de methodo

espontâneo para distinguil-o do modo aperfeiçoado e completo hoje ensinado na

Arithmetica, e que se denomina methodo systematico ou systematizado, porque

tem todas as suas partes coordenadas, formando um conjuncto harmonico e

completo (Idem, p. 15 e 16 - grifos nossos).

Nota-se que o autor compara um processo de cálculo do passado ao que acabou de ser

trabalhado no texto e mostra a matemática como um empreendimento humano de progresso

contínuo. Assim, de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN - (BRASIL, 1998,

2000), essa passagem poderia contribuir para que o aluno desenvolvesse atitudes e valores mais

favoráveis diante do conhecimento da aritmética, o que nos remete ao prefácio da trigésima edição.

Acreditamos que a inserção de alusões à história da matemática esteja vinculada à própria

experiência de Trajano, que, segundo Matos (2004, p. 318), “foi nomeado o primeiro historiador da

Igreja Presbiteriana no Brasil, registrando dados preciosos sobre os primórdios do presbiterianismo

no Brasil”. Essa informação sugere que o autor conferia importância aos conhecimentos históricos,

o que poderia ser uma das razões para contemplá-los em sua obra para o ensino.

Considerações finais

Ao finalizar este texto, em que apresentamos os resultados de nosso estudo sobre o manual

escolar Arithmetica Progressiva, de Antonio Bandeira Trajano, retomamos alguns aspectos

referidos anteriormente. Esse livro, elaborado a partir da experiência do autor em escolas de cunho

protestante e de sua convivência com professores missionários norte-americanos, no final do século

XIX, teve uma ampla aceitação e circulação no Brasil até o início da segunda metade do século XX.

Tendo sido produzido com o método intuitivo como referência, continuou a ser usado mesmo com

as propostas de mudanças advindas com o movimento da escola nova, e teve sua última edição

publicada em 1961, momento em que começavam a circular os ideais do movimento da matemática

moderna.

Embora, na legislação escolar brasileira, as preocupações com a introdução de elementos

históricos no ensino de matemática tenham aparecido de maneira explícita apenas na Reforma

Francisco Campos, a obra focalizada é uma daquelas publicadas antes dela em que se observa a

81 Boletim do LABEM, v. 7, n.13, ago. /dez. de 2016

presença de tais elementos. A edição que utilizamos foi publicada dois anos antes da Reforma

Francisco Campos, mas já contempla, em suas páginas, recomendações que seriam explicitadas na

Portaria Ministerial de 30 de junho de 1931, a saber, a apresentação de problemas clássicos e

curiosos e acontecimentos relacionados à história da matemática.

Reiteramos nossa convicção de que a versão que analisamos, a 64ª edição de 1929, é uma

reprodução da trigésima edição. Gostaríamos de ter analisado uma versão anterior à trigésima para

verificar se as inserções históricas já estavam presentes desde as primeiras edições de Arithmetica

Progressiva. Contudo, apesar de todas as buscas que fizemos em bibliotecas e repositórios digitais,

como o da Universidade Federal de Santa Catarina, não conseguimos ter acesso a essas publicações.

De qualquer modo, parece-nos que a obra de Trajano foi uma das pioneiras no Brasil, no que diz

respeito a livros didáticos escritos por cidadãos brasileiros e publicados no país, que contemplam a

história da matemática. E a maneira como os elementos históricos se fazem presentes no livro

analisado parece estar, ainda hoje, sintonizada com as propostas de documentos como os PCN, que

qualificam esses elementos como enriquecedores para o ensino da matemática.

Por fim, registramos que algumas indagações nos foram suscitadas pelo estudo que

realizamos. Como esse livro influenciou a escrita de outros livros publicados depois dele? Como ele

se relaciona com outros manuais escolares publicados no mesmo período de suas várias edições, no

que diz respeito à presença da história da matemática? Como a história da matemática se apresenta

nos outros livros escritos por Trajano? Essas e outras questões poderiam ser estudadas em futuros

trabalhos.

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