a armadilha da proteção emma

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A armadilha da proteção Emma Goldman O matrimônio e o amor não tem nada em comum; estão tão distantes entre si como os dois pólos e são, inclusive, antagônicos. O matrimônio é antes de tudo, um acordo econômico, um seguro que só se diferencia dos seguros de vida comuns em que é mais vinculativo e mais rigoroso. Os benefícios que se obtêm dele são insignificantes em comparação com o que se paga por ele. Quando se assina uma apólice de seguro, paga-se em dinheiro e tem-se sempre a liberdade de interromper os pagamentos. Entretanto, o prêmio de uma mulher é um marido, tem que pagar por ele com seu nome, sua vida privada, o respeito a si mesma e sua própria vida “até a a morte os separe”. Além disso, o seguro do matrimônio a condena a depender do marido por toda a vida, ao parasitismo, à completa inutilidade, tanto do ponto de vista individual quanto social. O homem também paga seu tributo, mas como sua esfera de vida é muito mais ampla, o matrimônio não o limita tanto como à mulher. As correntes do marido são muito mais econômicas. Vivemos em uma época de pragmatismos. Já não estamos nos tempos em que Romeu e Julieta se arriscavam a desafiar a ira de seus pais por amor, ou em que Margarida se expunha às fofocas de seus vizinhos também por amor. A norma moral que se inculca na jovem não é de se perguntar se o homem despertou seu amor, mas “quanto ganha”. O único deus e a única coisa importante da vida pragmática norte-america são: O homem pode ganhar a vida? Isso é a única coisa que justifica o matrimônio. Pouco a pouco se saturam com ele os pensamentos da moça, que já não sonha com beijos e com a luz da lua, ou com risos e lágrimas, mas com ir às compras e conseguir descontos no mercado. Essa pobreza de alma e essa sordidez são elementos inerentes à instituição matrimônio. Essa instituição converte a mulher em uma parasita e obriga-a a depender completamente de outra pessoa. Incapacita-a para a luta pela vida, aniquila sua cosciência social, paralisa sua imaginação e impõe-lhe depois graciosamente sua proteção, que é em realidade uma armadilha, uma piada do caráter humano. Se a maternidade é a maior realização da mulher, que outra proteção ela necessita a não ser o amor e a liberdade? O matrimônio profana, ultraja e corrompe essa realização. Por acaso não dizem à mulher que só sob sua proteção poderá dar a vida? Não põem a mulher no pelourinho e a degrada e a envergonha se se nega a comprar seu direito à maternidade com sua própria pessoa? Por acaso o matrimônio não sanciona a maternidade, ainda que tenha concebido com ódio ou obrigação? E quando a maternidade foi elegida, produto do amor, do êxtase, da paixão desafiante, não se coloca uma coroa de espinhos em uma cabeça inocente, gravando em letras de sangue o odioso epíteto de “bastardo”? Ainda no caso de que o matrimônio tivesse todas as virtudes que dele se afirmam, seus crimes contra a maternidade o excluiriam para sempre do reino do amor. O amor, o elemento mais forte e profundo de toda a vida, presságio de esperanças, de alegria, de êxtase; o amor que desafia todas as leis, todas as convenções; o amor, o mais livre, o mais poderoso modelador do destino humano, como pode essa força toda-poderosa ser sinônimo do pobre engendro do Estado e da Igreja que é o matrimônio? Amor livre? Por acaso o amor pode ser considerado outra coisa que não livre? O homem comprou cérebros, mas todos os milhões do mundo não conseguiram comprar o amor. O homem sobmeteu os corpos, mas todo o poder da terra não foi capaz de submeter o amor. O homem conquistou nações inteiras, mas todos os seus exércitos não poderiam conquistar o amor. O homem encarcerou e aprisionou o espírito, mas não pode fazer nada contra o amor. Elevado em um trono, com todo o esplendor e pompa que que seu ouro pode proporcionar, o homem se sente pobre e desolado se o amor não pára à sua porta. Quando existe o amor, a cabana mais pobre se enche de calor, de vida e de alegria; o amor tem o poder mágico de converter um mendigo em um rei. Sim, o amor é livre e

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Emma Goldman: A armadilha da proteção

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  • A armadilha da proteoEmma Goldman

    O matrimnio e o amor no tem nada em comum; esto to distantes entre si como os dois plos e so, inclusive, antagnicos. O matrimnio antes de tudo, um acordo econmico, um seguro que s se diferencia dos seguros de vida comuns em que mais vinculativo e mais rigoroso. Os benefcios que se obtm dele so insignificantes em comparao com o que se paga por ele. Quando se assina uma aplice de seguro, paga-se em dinheiro e tem-se sempre a liberdade de interromper os pagamentos. Entretanto, o prmio de uma mulher um marido, tem que pagar por ele com seu nome, sua vida privada, o respeito a si mesma e sua prpria vida at a a morte os separe. Alm disso, o seguro do matrimnio a condena a depender do marido por toda a vida, ao parasitismo, completa inutilidade, tanto do ponto de vista individual quanto social. O homem tambm paga seu tributo, mas como sua esfera de vida muito mais ampla, o matrimnio no o limita tanto como mulher. As correntes do marido so muito mais econmicas.

    Vivemos em uma poca de pragmatismos. J no estamos nos tempos em que Romeu e Julieta se arriscavam a desafiar a ira de seus pais por amor, ou em que Margarida se expunha s fofocas de seus vizinhos tambm por amor. A norma moral que se inculca na jovem no de se perguntar se o homem despertou seu amor, mas quanto ganha. O nico deus e a nica coisa importante da vida pragmtica norte-america so: O homem pode ganhar a vida? Isso a nica coisa que justifica o matrimnio. Pouco a pouco se saturam com ele os pensamentos da moa, que j no sonha com beijos e com a luz da lua, ou com risos e lgrimas, mas com ir s compras e conseguir descontos no mercado. Essa pobreza de alma e essa sordidez so elementos inerentes instituio matrimnio.

    Essa instituio converte a mulher em uma parasita e obriga-a a depender completamente de outra pessoa. Incapacita-a para a luta pela vida, aniquila sua coscincia social, paralisa sua imaginao e impe-lhe depois graciosamente sua proteo, que em realidade uma armadilha, uma piada do carter humano. Se a maternidade a maior realizao da mulher, que outra proteo ela necessita a no ser o amor e a liberdade? O matrimnio profana, ultraja e corrompe essa realizao. Por acaso no dizem mulher que s sob sua proteo poder dar a vida? No pem a mulher no pelourinho e a degrada e a envergonha se se nega a comprar seu direito maternidade com sua prpria pessoa? Por acaso o matrimnio no sanciona a maternidade, ainda que tenha concebido com dio ou obrigao? E quando a maternidade foi elegida, produto do amor, do xtase, da paixo desafiante, no se coloca uma coroa de espinhos em uma cabea inocente, gravando em letras de sangue o odioso epteto de bastardo?

    Ainda no caso de que o matrimnio tivesse todas as virtudes que dele se afirmam, seus crimes contra a maternidade o excluiriam para sempre do reino do amor. O amor, o elemento mais forte e profundo de toda a vida, pressgio de esperanas, de alegria, de xtase; o amor que desafia todas as leis, todas as convenes; o amor, o mais livre, o mais poderoso modelador do destino humano, como pode essa fora toda-poderosa ser sinnimo do pobre engendro do Estado e da Igreja que o matrimnio?

    Amor livre? Por acaso o amor pode ser considerado outra coisa que no livre? O homem comprou crebros, mas todos os milhes do mundo no conseguiram comprar o amor. O homem sobmeteu os corpos, mas todo o poder da terra no foi capaz de submeter o amor. O homem conquistou naes inteiras, mas todos os seus exrcitos no poderiam conquistar o amor. O homem encarcerou e aprisionou o esprito, mas no pode fazer nada contra o amor. Elevado em um trono, com todo o esplendor e pompa que que seu ouro pode proporcionar, o homem se sente pobre e desolado se o amor no pra sua porta. Quando existe o amor, a cabana mais pobre se enche de calor, de vida e de alegria; o amor tem o poder mgico de converter um mendigo em um rei. Sim, o amor livre e

  • no pode crescer em nenhum outro ambiente. Em liberdade, entrega-se sem reservas, com abundncia, completamente. Todas as leis e decretos, todos os tribunais do mundo no podero arrancar-lhe do solo em que formou razes. O amor no necessita de proteo porque ele se protege a si mesmo.

    Enquanto o amor o que engendra os filhos, no h crianas abandonadas, com fome ou carentes de afeto. Conheo mulheres que foram mes em liberdade com o homem que amavam. Poucos filhos disfrutam dentro do matrimnio o cuidado, a proteo e a devoo que a maternidade livre capaz de lhes proporcionar. Os defensores da autoridade temem a maternidade livre por medo que lhes expropriem sua presa. Quem lutaria, ento, nas guerras? Quem sera carcereiro ou polcia, se as mulheres se negam a dar a luz indiscrimidamente? A raa! A raa! Gritam o rei, o presidente, o capitalista, o sacerdote. H que salvar a raa, embora a mulher seja degradada ao papel de pura mquina e a instituio do matrimnio a nica vlvula de segurana contra o perigoso despertar sexual da mulher.

    Mas so inteis esses esforos desesperados por manter um estado de escravido. So inteis tambm os editos da Igreja, os ferozes ataques dos ditadores e inclusive o brao da lei. A mulher no quer continuar sendo a produtora de uma raa de seres humanos doentes, dbeis, decrpitos e miserveis, que no tem nem a fora nem o valor moral de se sacudir do jugo de sua pobreza e escravido. Em lugar disso, deseja menos filhos e melhores, gerados e criados com amor e por livre eleio e no por obrigao como no matrimnio.

    Nossos pseudo-moralistas tem que aprender o profundo sentido de responsabiblidade para com a criana, que o amor em liberdade desperta no seio da mulher. Esta preferira renunciar para sempre maternidade antes que dar a vida um uma atmosfera onde s se respira a destruio e a morte. E, se se converte em me, para dar criana o melhor e o mais profundo de seu ser. Seu lema se desenvolver com a criana e sabe que s dessa maneira podero se formar os verdadeiros homens e as verdadeiras mulheres.

    Na realidade, no nosso atual estado de pigmeus, o amor algo desconhecido para a maioria das pessoas. No o compreendem, se esquivam dele e raras vezes arraiga; e quando arraiga, logo se murcha e morre. Sua fibra delicada no pode suportar a tenso e os esforos do viver cotidiano. Sua alma demasiado complexa para se ajustar viscosa textura da nossa trama social. Chora, lamenta-se e sofre com os que o necessitam e, entretanto, carecem de capacidade para se elevar a sua altura.

    Algum dia, os homens e as mulheres se elevaro e alcanaro o pico das montanhas; se encontraro grandes e fortes e livres, dispostos a receber, a compartilhar e a se esquentar nos dourados raios do amor. Que imaginao, que fantasa, que gnio potico pode prever, ainda que seja aproximadamente, as possibilidades dessa fora nas vidas dos homens e das mulheres? Se no mundo h que existir alguma vez a verdadeira companhia e a unidade, o pai ser o amor e no o matrimnio.

    Emma Goldman (1869-1940), nasceu na Rssia e aos 17 anos emigrou aos E.U.A., onde militou pelos direitos da mulher e iniciou o movimento pelo livre acesso aos contraceptivos. De Anarchism and Other Essays (publicado em 1917) foram extrados esses fragmentos que, com traduo de Joaquina Aguilar Lpez (para o espanhol) e sob o ttulo O amor entre as pessoas livres, apareceram em castelhano na antologia de Irving Horowitz, Los anarquistas, 1. La teora, Alianza, Madrid, 1964.