a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

120
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS A BAHIA DE HILDEGARDES VIANNA: UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE MULHERES NEGRAS por CONSUELO ALMEIDA MATOS SALVADOR 2008

Upload: dokhue

Post on 08-Jan-2017

245 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

Page 1: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

A BAHIA DE HILDEGARDES VIANNA:

UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE MULHERES NEGRAS

por

CONSUELO ALMEIDA MATOS

SALVADOR 2008

Page 2: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

CONSUELO ALMEIDA MATOS

A BAHIA DE HILDEGARDES VIANNA:

UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE MULHERES NEGRAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens do Departamento de Ciências Humanas da UNEB – Campus I, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudo de Linguagens. Orientadora: Profª. Drª. Márcia Rios da Silva.

SALVADOR 2008

Page 3: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

FICHA CATALOGRÁFICA Elaboração: Biblioteca Central da UNEB

Bibliotecária: Helena Andrade Pitangueiras– CRB: 5/536

Matos, Consuelo Almeida. A Bahia de Hildegardes Vianna: um estudo sobre a representação de mulheres negras. Salvador. / Consuelo Almeida Matos. – Salvador, 2008. 118f. Orientadora: Profª Drª Márcia Rios da Silva. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. Campus I. 2008. Contém referências.

1. Negras na literatura. 2. Negras. 3. Folclore. 4. Hildegardes Vianna. I. Matos, Consuelo Almeida. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 809.801

Page 4: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

A todas aquelas que são guerreiras na vida.

A todas as almas dos negros e negras das diversas nações africanas, que vieram nos porões

fétidos dos navios,

que nos deixaram tanta herança e nos fizeram ser Brasil,

país lindo e plural, mas que esquece daqueles que deram o suor, o sangue e a própria vida

para construir essa nação.

Deixo minha pequena contribuição à sua memória...

A todas aquelas mulheres negras que não têm vergonha de assumir sua etnia,

deixo minha admiração.

Page 5: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

AGRADECIMENTOS

À Maria Helena, minha mãe e amiga, que me faz seguir em frente, ajudando-me a realizar

sonhos.

A João Martins, meu pai, amigo e exímio incentivador do meu crescimento intelectual, que

mesmo ausente fisicamente esteve sempre me inspirando nas minhas escritas.

A Luís Paulo, meu esposo e meu amor, pela eterna curiosidade pelo meu tema, pelo incentivo

e primeiras leituras, sempre críticas e pontuais, obrigada pela co-autoria desta dissertação, em

energia, tempo, conselhos e conhecimento.

A Alexandre, meu irmão, por acreditar em mim.

À vovó Alcina, que seguiu a triste sina de muitas mulheres negras, “o fogão do branco”, mas

que nunca deixou de sorrir e encher de carinhos os netos queridos.

À Maria das Neves, minha querida sogra, que com seu conhecimento viabilizou o

empréstimos de livros na biblioteca da UFBA.

À Profª. Drª. Yeda Pessoa de Castro, pelo estímulo a tentar na época da seleção e que sem

saber deu-me a idéia, levando-me ao tema.

À minha turma de Mestrado, pelas discussões sem fim, inesquecíveis.

Aos amigos, pela torcida.

Aos profissionais do arquivo e biblioteca da Academia de Letras da Bahia que, muito

acessíveis, permitiram-me ter acesso ao material que me ajudou nesse trabalho.

A Profª. Drª. Márcia Rios, minha orientadora, pela confiança, paciência, carinho e, sobretudo,

pela acessibilidade, assessoria e maneira tranqüila e risonha de me ajudar a ver as coisas.

A essa ilustre banca por ter disponibilizado tempo na leitura desse texto.

Ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da UNEB, meu berço acadêmico.

À Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Salvador por tornar possível a redução da

minha carga horária de trabalho.

A todos aqueles que, por desejo ou compromisso, se arrisquem a ler essa grafia.

Ao silêncio e ao canto dos passarinhos, que durante a minha escrita se fizeram presente.

Page 6: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

RESUMO

Neste estudo propõe-se analisar as crônicas produzidas pela escritora e folclorista Hildegardes

Vianna, publicadas no jornal A Tarde, no período de 1955 a 1999, com vistas a entender as

representações produzidas sobre as mulheres negras na Bahia no início do século XX. Nesse

sentido, faz-se um esboço da formação intelectual dessa folclorista, traça-se um panorama

histórico e cultural da cidade de Salvador, no período tratado nas crônicas, bem como se

considera os contextos de produção das crônicas de Hildegardes Vianna. Por fim, interpretam-

se criticamente as produções textuais da cronista que trazem representações da mulher negra,

marcadas por uma visão racista e sexista.

PALAVRAS-CHAVE: Mulher negra, Hildegardes Vianna, Salvador, representação, estereótipo.

Page 7: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

ABSTRACT

In this study it is proposed to analyse chronicles produced by the writer and folklorist Hildegardes Vianna published in the newspaper A Tarde, in the period from 1955 to 1999, with sights to understand the representations produced on the black women in the Bahia in the beginning of the century XX. In this sense, do to him a sketch of the intellectual formation of this folklorist, draw a historical and cultural view of Salvador's city, in the period treated in chronicles, as well as one considers the contexts of production of the chronicles of Hildegardes Vianna. Finally, there are interpreted critically the textual productions of the columnist that bring representations of the black woman, marked by a racist vision and sexista.

KEY-WORDS: Black woman, Hildegardes Vianna, Salvador, representation, stereotype.

Page 8: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Negra mercando, fotografia de Guilherme Ballalai de Carvalho. 10

Figura 2 - Pelourinho em 1900, fotografia retirada de http://www.wikipedia.org. 40

Figura 3 - Vendedoras do século XVII, gravura Cristiano Jr., www.unb.br. 74

Figura 4 - Tabuleiro completo. Itapuã, fotografia de Noeme Maria Passos Xavier. 87

Figura 5 - Negra baiana do XVII (Acervo da Livraria Kosmos). 89

Figura 6 - Mulher negra baiana (1912), cartão postal. 91

Figura 7 – Negra doméstica (Acervo da Livraria Kosmos). 102

Page 9: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I

NAS SACADAS DOS SOBRADOS DA VELHA BAHIA NASCE UMA CRONISTA 14

CAPÍTULO II

A BAHIA JÁ FOI ASSIM: UM RETRATO EM “PRETO E BRANCO” 38

CAPÍTULO III

MULHERES NEGRAS NA BAHIA DE HILDEGARDES VIANNA: DA COZINHA DO

BRANCO ÀS RUAS E LADEIRAS DA CIDADE 69

“MULHERES DE SAIA”: A ARTE DE MERCAR NAS RUAS DA CIDADE 74

AS NEGRAS DOMÉSTICAS 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS 109

REFERÊNCIAS 112

Page 10: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

INTRODUÇÃO ___________________________________________________________________________

Até chegar o dia em que a cor da pele de

um homem não tenha mais importância do que a cor de seus olhos, haverá guerra.

Bob Marley1

As representações sobre a mulher negra na sociedade brasileira provêm de um

processo histórico da colonização que permanece até os tempos atuais em outros moldes. No

Brasil Colônia, a função da “mulher de cor” se restringia ao trabalho da lavoura, aos afazeres

domésticos, à manutenção da cozinha e bem-estar da “sinhá”, como ama ou mãe preta, além

de objeto sexual dos senhores de escravo, salvo algumas exceções de escravas libertas e

vendedoras. Porém, passados séculos do escravismo no Brasil, é comum presenciar nos dias

de hoje a semelhança entre as atividades da mulher negra daquela época e a mulher negra

inserida na economia do mercado de trabalho atual. Sendo assim, torna-se ainda comum

reproduzir a idéia de que a cozinha e o trabalho doméstico são espaços sociais da mulher

negra.

Nesse sentido, o esboço de um projeto de estudo das crônicas de Hildegardes Vianna

começou a ser gerado quando da leitura do livro de crônicas A Bahia já foi assim. A análise

de cada texto passou a fazer parte de um trabalho noturno, sempre que retornava da aula

ministrada em uma escola pública. Parecia instigante o fato de uma folclorista escrever uma

obra que contemplava a presença da africanidade na cidade de Salvador, seja através do povo,

da gastronomia e do cotidiano. No entanto, surpreendentemente diversos questionamentos

passaram a atormentar as noites antes tão sossegadas. O primeiro deles era entender a

necessidade dessa autora em produzir um texto voltado para o início do século XX. E o

segundo, bem mais angustiante, refere-se à maneira como a cronista representa em seus

escritos a população afro-descendente da cidade soteropolitana.

Então, depois da primeira leitura do livro, optei por retomar a obra com um olhar mais

apurado, concentrando a atenção nas crônicas que apresentavam a população negra. A

suspeita de que os textos faziam referência a uma fase em que os negros eram responsáveis

pelos serviços subalternos e considerados, pela elite branca, cidadãos de segunda categoria se

confirmou.

1 Da canção War, de Bob Marley.

Page 11: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Negras, “mulatas”, vendedoras de iguarias culinárias como cuscuz, mingau, acaçá e

abará, “baianas” mercadoras de acarajé, amas-de-leite, lavadeiras, cozinheiras, costureiras,

etc. Todas, mulheres sofridas, personagens das crônicas de costume de Hildegardes Vianna.

Ao abrir o livro A Bahia já foi assim, vislumbra-se um panorama de onde se podem ver essas

mulheres desfilando pelas ladeiras e becos da antiga cidade de Salvador, mercando vísceras

de animais, iguaria alimentícias, frutas, verduras, caldo de cana e tudo mais que coubesse na

sua gamela.2 No passar das páginas, muda-se o cenário e ancora-se na cozinha do branco,

negras lavando, passando, cozinhando, amamentando e cuidando de crianças alvas. Esse é o

lugar que Hildegardes Vianna destina às mulheres negras em suas crônicas.

Conhecida como folclorista pela sociedade baiana, por escrever sobre os aspectos

culturais da Bahia, Hildegardes Cantolino Vianna era membro da Academia de Letras da

Bahia, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e colunista do jornal A Tarde3, com

publicações de crônicas e artigos, no transcurso de 44 anos ininterruptos. O sucesso com a

coluna semanal em que apresentava as crônicas foi tamanho, que impulsionou a cronista a

selecionar vários textos e publicar dois livros, A Bahia já foi assim (1973) e Antigamente era

assim (1979).

Publicar crônicas de costume durante um periódico de 44 anos (1955 – 1999) acaba

por gerar uma produção vasta e multifacetada, logo, é necessário fazer escolhas. Sempre é. E

fiz. Pelo desejo, pela falta e até pelo acaso escolhi as crônicas que representam as mulheres

negras para analisar no meu projeto de pesquisa para o curso de mestrado. A mulher negra,

por olhar ao espelho e enxergar meus ancestrais maternos, minha mãe impossibilitada de

estudar por ter que cuidar dos irmãos, enquanto minha avó, neta de escravos, seguia a sina que

Hildegardes Vianna apresenta em suas crônicas, trabalhar na cozinha do branco. O certo é que

consegui interromper o ciclo. E devo a elas, minhas senhoras negras, estar aqui me

debruçando sobre essas linhas e tentando entender o que leva uma mulher formadora de

opinião recordar com saudosismos tempos de tanto sofrimento e poucas oportunidades aos

não-brancos.

As crônicas também foram escolhidas como objeto de estudo, tendo em vista o seu

longo período de circulação continuada, aliada ao fato de serem vinculadas na terceira página

do caderno principal de um periódico de grande circulação na capital baiana. Logo, o que se

encontra aqui são as pegadas de um longo percurso que teve início quando da leitura de uma

2 De acordo com o dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), a gamela é uma vasilha rasa de madeira ou de barro. 3 Fundado por Simões Filho em 15/10/1912, desde 1930, o jornal A Tarde tem sido o periódico baiano de maior circulação no estado.

Page 12: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

das obras de Hildegardes Vianna, A Bahia já foi assim. A pesquisa que resultou nessa

dissertação tem por objetivo examinar o processo de representação e de produção de

identidades das mulheres negras presentes nas crônicas.

Extrapolando o universo da obra A Bahia já foi assim, o objeto de análise foi

construído tomando como fontes primárias uma média de 1.500 (mil e quinhentas) crônicas

publicadas no jornal A Tarde, no período de 1955 a 1999. Foram selecionadas, então, 29

(vinte e nove) crônicas que descrevem especificamente as práticas culturais das mulheres

negras na cidade do Salvador, no início do século XX. A maioria delas foi publicada em dois

livros, A Bahia já foi assim e Antigamente era assim. O primeiro, o mais importante deles, por

apresentar maior número de textos com o recorte da pesquisa, a autora utiliza, na 3ª edição,

uma fotografia de 1930 que retrata o labor da mulher negra no Dique do Tororó, já denotando

o interesse pela temática.4

Figura 1 – Negra mercando5

4 Segundo Risério (2004), Dique do Tororó, comumente reduzido para Dique, é uma lagoa artificial localizada em Salvador, no estado da Bahia, no Brasil. É delimitada atualmente pelo bairro do Tororó em sua margem esquerda, pelo do Engenho Velho de Brotas em sua margem direita, ao Norte, pelo Estádio Octávio Mangabeira, conhecido por Fonte Nova, e, ao Sul, pelo bairro do Garcia. É margeada pelas avenidas Presidente Costa e Silva e Vasco da Gama que ao Sul convergem para Avenida Centenário e o Vale dos Barris. 5 Fotografia de Guilherme Ballalai de Carvalho, retirada da capa do livro A Bahia já foi assim (2000), de Hildegardes Vianna.

Page 13: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

No que toca à fotografia escolhida pela cronista para ilustrar a capa do seu livro,

observa-se uma mulher negra com o tabuleiro, sobre a cabeça, andando pela rua da cidade

para vender o produto que irá garantir o seu sustento.6 A vestimenta, amplamente analisada

pela folclorista em diferentes crônicas, demonstra a maneira de trajar das negras no período

evocado por Hildegardes Vianna, primeiras décadas do século XX.

Tendo como objeto empírico deste estudo as crônicas escritas de Hildegardes Vianna,

deu-se início à pesquisa a partir de uma visita à Academia de Letras da Bahia, para conhecer o

arquivo da acadêmica. Para felicidade do trabalho, foram identificadas crônicas sobre as

mulheres negras que não haviam sido publicadas nos livros. A partir dessa visita, decidi

catalogar todas as crônicas de Hildegardes Vianna que seriam objeto de estudo, tendo como

referência a data de publicação no jornal A Tarde. Após a identificação das datas de

publicação, fez-se uma leitura minuciosa para analisar o modo pelo qual as mulheres negras

estão representadas.

Nesse sentido, vale ressaltar que o interesse dessa pesquisa é entender como a

continuidade do pensamento tradicional, ancorado em um passado em que as relações entre

brancos e negros eram demarcadas por posições e lugares pré-estabelecidos, permanece se

inscrevendo nos anos 1950, fase em que a Bahia já avançava significativamente nas relações

inter-raciais. Tal interesse funda-se no fato de as produções textuais em foco começarem a ser

publicadas na metade da década de 1950 e apresentarem uma época em que o negro é

identificado somente por sua força do trabalho e destituído de qualquer cidadania.

Na Academia de Letras da Bahia também foram encontrados o diário íntimo de

Hildegardes Vianna, cartas e entrevistas a periódicos em que a cronista relata sobre a infância

e a vida profissional. A partir desses, apoiadas nas contribuições dos pressupostos teóricos

sobre memória apresentados por Le Golf (2003) e Eclea Bosi (2007), leu-se e redesenhou-se,

no primeiro capítulo intitulado Nas sacadas do sobrado de uma velha Bahia nasce uma

cronista, um panorama sucinto do percurso intelectual de Hildegardes Vianna. Como está se

tratando de uma folclorista, o capítulo também se destina a analisar os princípios que norteiam

os estudos folcloristas e a concepção que os pesquisadores dessa área têm sobre cultura

popular. Para tanto, alicerçou-se nos estudos de Jesús Martín-Barbero (2003), Nestór García

Canclini (2003) e Renato Ortiz (2006), teóricos que apresentam contribuições sobre a cultura

popular e suas transformações ao longo dos anos.

6 O tabuleiro é um utensílio em que são depositados os alimentos a serem comercializados pelas ruas de Salvador.

Page 14: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Após a leitura e interpretação das crônicas publicadas no jornal A Tarde, fez-se no

capítulo II, A Bahia já foi assim: um retrato em “preto e branco”, um panorama do contexto

histórico e econômico da Bahia das primeiras décadas do século XX, especificamente até

1990, tomando como base os estudos sobre a Bahia do antropólogo Antônio Risério (2004),

dos historiadores Walter Fraga (2006) e Kátia Matoso (1978, 1988 e 1992) e do sociólogo

Donald Pierson (1945), para entendimento do contexto político, cultural e social ao qual a

cronista se refere até o período em que as crônicas são publicadas.7

Os estudos realizados pelas pesquisadoras Florentina de Souza (2005) e Patrícia Pinho

(2004) também foram bastante relevantes para compreender as conquistas obtidas pela

população, tomando como ponto de vista o negro como protagonista desse processo.

As questões da construção identitária apresentadas nas crônicas sobre as relações inter-

raciais foram abarcadas nesse segundo capítulo, ao se discutir a cultura popular negra na

perspectiva da diáspora dos povos africanos, por meio das reflexões de Paul Gilroy (2001) e

Stuart Hall (2005).

No Capítulo III, Mulheres negras na Bahia de Hildegardes Vianna: da cozinha do

branco às ladeiras da cidade de Salvador, procedeu-se à análise das crônicas, tomadas como

documento de história cultural e interpretadas pelas contribuições da teoria das representações

sociais de Moscovicci (1961). Nesse sentido, é importante demarcar que, mesmo se tratando

de um estudo sobre mulheres, o interesse dessa pesquisa é compreender as representações e

apoiar-se em algumas questões sobre gênero a partir dos estudos das ativistas Lélia Gonzalez

(1983) e Bell Hooks (1995, 1996 e 2005).

A teoria das representações sociais é proposta em 1961, por Serge Moscovici que, ao

modernizar a ciência social, remodela o conceito de representações coletivas durkheimiano

para representações sociais, a fim de atualizar o conceito e trazê-lo para as condições de hoje,

de sociedades contemporâneas imersas na intensa divisão do trabalho. Para defender a tese de

que o indivíduo muda a sociedade, Moscovici apoiou-se nos fundadores dessa corrente na

França e na Alemanha, especialmente, Durkheim e Weber.8

7 Apesar de não concordar com teórico norte-americano Donald Pierson no que tange à discriminação como um fato social e não racial, o capítulo II se apóia na pesquisa realizada pelo sociólogo sobre a distribuição espacial das classes e grupos étnicos na cidade de Salvador até a primeira metade do século XX, fase em que esteve em Salvador para escrever seu livro Brancos e pretos na Bahia (1945). Para entender as representações elaboradas por Hildegardes Vianna, nas crônicas de costumes, foram observados os aspectos sociais do povo negro descritos por Donald Pierson. 8 Segundo Farr (2003), a teoria das representações sociais é uma forma sociológica de psicologia social, originada na Europa com a publicação, feita por Moscovici (1961), de seu estudo La Psychanalyse: Son image et son public.

Page 15: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Por serem ao mesmo tempo ilusórias, contraditórias e “verdadeiras”, as representações

podem ser consideradas matéria-prima para análise do social, pois retratam e refratam a

realidade, segundo determinado segmento da sociedade. Porém, é importante observar que as

representações sociais não conformam à realidade e seria outra ilusão tomá-las como verdade

científica, reduzindo a realidade à concepção que o ser humano faz dela. As representações

estão presentes tanto no mundo como na mente. Logo, somente vale a pena estudar uma

representação social se ela estiver relativamente espalhada dentro da cultura em que o estudo

é feito, pois cada grupo social faz da visão macro uma representação particular, de acordo

com a sua posição no conjunto da sociedade. Essa caricatura é portadora também dos

interesses específicos desses grupos e classes sociais.

A partir da perspectiva da representação social, esse estudo tenciona questionar se as

representações de mulheres negras identificadas nas crônicas de Hildegardes Vianna são o

retrato de uma sociedade do período pós-abolição, como também alertar para a importância de

se pesquisar as idéias como parte da realidade, ou seja, para a necessidade de se compreender

a que instância do social a autora está subordinada, tendo em vista que a ação humana é

significativa nas representações sociais. Assim, esse campo teórico possibilitou compreender

a autoridade que o contexto social e ideológico exerce sobre a obra.

Dessa forma, nesse terceiro capítulo, faz-se uma análise e interpretação das crônicas que

representam as mulheres negras no mercado de trabalho. Para tanto tais textos foram

separados em duas categorias profissionais. Na primeira, estão as vendedoras, mulheres que

mercavam pelas ruas de Salvador. Na segunda, as domésticas, negras que trabalhavam nas

residências da elite branca.

Nessa dissertação procurei examinar criteriosamente as crônicas de Hildegardes Vianna,

textos recheados de um pensar distorcido, de impressões inadequadas sobre o outro e

percepções incompletas e defeituosas que ignoram as diferenças internas. Um pensar que tem

a convicção de que, como afirma, questionando, Gilberto Gil (1984), “mesmo depois de

abolida a escravidão, negra é a mão de quem faz a limpeza, lavando a roupa encardida,

esfregando o chão [...]” e que essas atividades devem continuar sendo exercidas pelas mãos

negras.9

9 Trecho da música A mão da limpeza de Gilberto Gil, (http://www.letras.mus.br), em 13 de outubro de 2008. .

Page 16: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

CAPÍTULO I NAS SACADAS DOS SOBRADOS DA VELHA BAHIA NASCE UMA CRONISTA ___________________________________________________________________________

Não tive filhos e não gosto dos afazeres

domésticos, o que realmente me agrada são as escritas dos meus textos.

Hildegardes Vianna10

Hildegardes Cantolino Vianna nasceu em Salvador a 31 de março de 1919, filha do

acadêmico Antônio Vianna11, é conhecida no eixo nordestino como folclorista, por ter

dedicado toda a vida intelectual, assim como seu pai, aos estudos sobre a chamada cultura

popular da Bahia, chegando a se tornar membro da Academia de Letras da Bahia. Segundo os

registros encontrados em seu diário, Hildegardes Vianna fez o curso primário e ginasial no

extinto Instituto Baiano de Ensino, no Campo da Pólvora12. Bacharel em Ciências Jurídicas e

Sociais pela Faculdade Livre de Direito (depois incorporada à UFBA), formou-se em Direito

com 21 anos, chegou a exercer a profissão, mas dedicou-se à música, diplomando-se,

posteriormente, em piano pela Escola de Música de Pedro Jatobá.

Quando questionada em uma entrevista ao jornal A Tarde (19/08/1975) sobre a origem

do interesse pelo folclore, Hildegardes Vianna respondeu: “O folclore está no meu sangue, foi

geneticamente herdado.” Essa declaração demarca a influência que o pai exerceu na escolha

de sua carreira.

Para a cronista, uma das maiores influências para o ingresso nesse campo foi ter

“saboreado” histórias de contos de fadas e ouvir os mais velhos lembrarem, com saudades,

dos tempos passados e criticar a modernidade. Essas pessoas foram responsáveis por

preencherem a infância de Hildegardes Vianna com a presença de um mundo mágico de

fantasias e mistérios e despertarem a observação dos acontecimentos.

Tal afirmação torna-se possível porque, segundo a pesquisadora Eclea Bosi:

10 Extraído de uma entrevista concedida pela cronista ao jornal A Tarde de 19/08/1975. 11 Antônio Vianna nasceu no dia 27 de julho de 1884, na cidade de Salvador, BA. Poeta, jornalista, cronista, membro da Academia de Letras da Bahia, folclorista, publicou na área do Folclore Casos e coisas da Bahia (1950) e A festa das Escadas (1968), além de ensaios e artigos em revistas e jornais. Faleceu no dia 30 de dezembro de 1952, na cidade de Salvador, BA. 12 O Campo da Pólvora é um logradouro localizado no centro da cidade de Salvador.

Page 17: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

A criança recebe do passado não só os dados da história escrita; mergulha suas raízes na história vivida, ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade que tomaram parte da socialização. Sem estas haveria apenas uma competência abstrata para lidar com os dados do passado, mas não a memória. Enquanto os pais se entregam às atividades da idade madura, a criança recebe inúmeras noções dos avós e dos empregados. Estes não têm, em geral, a preocupação do que é ‘próprio’ para crianças, mas conversam com elas de igual para igual, refletindo sobre acontecimentos políticos, históricos, tal como chegam a eles através das deformações do imaginário popular. (BOSI, 2007, p. 73).

As idéias de Bosi se confirmam nos escritos de Hildegardes Vianna encontrados nos

arquivos da Academia de Letras da Bahia, em que a autora afirma que o fato de ter morado

em uma casa muito grande, repleta de quartos, habitados por parentes solteiros e, um porão

ocupado pela “ama-de-leite de sua mãe e uma moça que carregava o balaio de pão”,

possibilitou o contato com histórias de outrora. Essas pessoas tiveram a função de memória da

família, do grupo e da sociedade.

As lembranças descritas nas crônicas representam o modo de pensar do núcleo

familiar ao qual Hildegardes Vianna estava agregada. Lembranças de um grupo doméstico

que persistem matizadas em cada um dos seus membros e constituem uma memória ao

mesmo tempo una e diferenciada, construída a partir de opiniões e diálogos que guardam

vínculos difíceis de separar.

A partir destas informações, pode-se deduzir, inicialmente, que o interesse da autora

pelo dia-a-dia do povo baiano, reportando-se ao passado, deu-se pelo contato com pessoas que

vivenciaram o cotidiano da cidade de Salvador até mais ou menos 1940. “Minhas crônicas são

baseadas em muitas coisas que ainda alcancei, e também em informes preciosos de amigos

prestimosos [...]” (VIANNA, 1973, p. 10).

Para o entendimento das crônicas de Hildegardes Vianna, memórias de pessoas

conhecidas, como afirma a própria, faz-se necessária a compreensão do conceito de memória

segundo Le Golf (2003). A memória caracteriza-se não só pela ordenação de vestígios ou

lembranças, mas por uma releitura destes vestígios com base no meio, no tempo e nas

condições psíquicas em que o indivíduo ou grupo está localizado.

Quando da leitura dos escritos de Hildegardes Vianna, pode-se imaginar claramente

que a transcrição dessas memórias são como uma operação coletiva dos acontecimentos e das

interpretações do passado que a elite soteropolitana quer salvaguardar. Esses registros se

integram, de certa forma, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar

sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre as diferentes coletividades

Page 18: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

apresentadas: os trabalhadores de rua, as domésticas, as famílias, etc. Dessa forma, a

referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem

uma sociedade, para definir seu lugar respectivo e suas oposições irredutíveis.

Assim, Bosi (2007) afirma que à memória é atribuida uma função decisiva no processo

psicológico total, posto que a memória permite a relação do corpo presente com o passado e,

ao mesmo tempo, interfere no processo de representações. Pela memória, o passado não só

vem à tona, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, desloca

estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. “A memória aparece como uma força

subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora.” (BOSI,

2007, p. 47).

No entanto, Halbwachs (apud Bosi, 2007, p. 63) adverte sobre o processo de

“desfiguração” que o passado sofre ao ser remanejado pelas idéias e pelos ideais presentes,

pois a “pressão dos preconceitos” e as preferências podem modelar o passado e recompor um

história seguindo padrões e valores ideológicos. A partir dessa premissa, pode-se afirmar que

Hildegardes Vianna, membro da elite branca soteropolitana, apresenta em suas crônicas mais

do que memórias saudosistas, mas sim um lamento da elite pela perda do status.

A escrita saudosista de memórias não é prerrogativa somente de Hildegardes Vianna.

Segundo Albuquerque Júnior (1990), a falência da antiga sociedade agrária nordestina e a

crise dos códigos culturais da região, na segunda metade século XIX, levaram os intelectuais

e artistas locais a elaborarem uma idéia de Nordeste permeada de lirismo e saudade,

idealizando um lugar que já não mais existia (se é que existiu e para quem). É por essa razão

que as supostas tradições da região foram sempre procuradas em fragmentos de um passado

rural e pré-capitalista. Essas tradições foram buscadas em padrões de sociabilidade e

sensibilidade patriarcais, muitas vezes recheadas de heranças escravistas. Tal busca

desencadeou “uma verdadeira idealização do popular, da experiência folclórica, da produção

artesanal, tidas sempre como mais próximas da verdade da terra” (ALBUQUERQUE

JÚNIOR, 1990, p. 48). Para esses intelectuais, como Rachel de Queiroz e José Lins do Rego,

o folclore era o inventário do inconsciente regional, uma espécie de estrutura ancestral que

permitia o conhecimento espectral da cultura nordestina.

A visão de Hildegardes Vianna sobre cultura e a escolha da modalidade escrita,

crônica, definida como um gênero híbrido que transita entre a literatura e o jornalismo e

Page 19: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

acompanha a sucessão de fatos no tempo, ora acompanhando os fatos no tempo presente, ora

resgatando-os do passado, denunciam o espírito nostálgico da cronista.13

Assim, Hildegardes Vianna produziu as crônicas para apresentar à sociedade

soteropolitana as histórias de que tinha conhecimento, deslocando a memória coletiva do

campo meramente auditivo para o campo visual, o que possibilitou uma releitura dos

acontecimentos, ou seja, após passar pelo crivo das suas próprias interpretações, a cronista

registra as cenas de uma Bahia de “outrora”, testemunhada por amigos.14 Logo, através de sua

ótica, reforçou a visão de inúmeros leitores de periódicos e, posteriormente, de seus livros.

Essa influência só foi possível porque a crônica dos jornais impressos, mesmo

apresentando uma visão recortada da realidade, é um documento de valor histórico para a

sociedade. A memória jornalística, ainda fazendo uso das idéias de Le Goff, surge como “a

entrada em cena da opinião pública [...] que constrói também a sua própria história” (LE

GOFF, 2003, p. 261). Assim é que as crônicas jornalísticas configuram-se como um lugar de

memória diretamente relacionada ao meio social onde o indivíduo se encontra. Mais do que

isso, a cultura hegemônica escolhe para si um modelo de produção textual, que deve veicular

as crenças, os símbolos, os significados que ela lhes atribui e que compõem seu imaginário.

Quando um grupo precisa constituir seu discurso identitário, recorre à memória

histórica para fixar os elementos que, no passado, constituíram a vida grupal e foram

utilizados para caracterizá-los. Castoriadis, ao definir a sociedade, afirma:

A imagem de si mesma que se dá a sociedade comporta como momento essencial a escolha dos objetos, atos, etc., onde se encarna o que para ela tem sentido e valor. A sociedade se define como aquilo cuja existência pode ser questionada pela ausência ou escassez de tais coisas e, correlativamente, como atividade que visa a fazer existir essas coisas em quantidade suficiente e segundo as modalidades adequadas [...] Essa escolha é feita por um sistema de significações imaginárias que valorizam e desvalorizam, estruturam e hierarquizam um conjunto cruzado de objetos e

13 Segundo Massaud Moisés (1998, p. 131), no início da era cristã, a crônica se limitava aos anais, registro dos eventos, sem caráter interpretativo. Na Idade Média, adquiriu o cunho de documento, mas, a partir do Renascimento, os assuntos nela tratados passaram da mera descrição, ou da narração objetiva, para a reflexão que o cronista, com sua análise e julgamento, faz sobre o fato, o que fez também com que a crônica ganhasse foros de história. A significação moderna do termo surgiu no século XIX e deu o estatuto de literatura aos textos que “só longinqüamente se vinculam à primitiva crônica”. O professor de Teoria da Literatura da USP Davi Arrigucci (1987, p. 64) declara que “a crônica é a forma complexa e única de uma relação do eu com o mundo (...) uma arte narrativa, cotidiana e simples, enroscada em torno do fato fugaz, mas liberta no ar, para dizer a poesia do perecível”. E nessa possibilidade de perecimento, a crônica se aproxima do gênero jornalístico. Todavia, há que observar que as narrativas que o sujeito faz das experiências do cotidiano, embora as elabore da forma mais conveniente a si próprio, são representações da memória social. 14 Segundo o historiador francês Le Goff (2003), a memória coletiva se apresenta em uma sociedade e é composta por várias memórias individuais.

Page 20: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

de faltas correspondentes, e no qual pode-se ler, mais facilmente que em qualquer outro, essa coisa tão incerta como incontestável que é a orientação de uma sociedade. (CASTORIADIS, 1982, p. 182-181).

Nessa perspectiva, constantemente adaptadas e atualizadas, as crônicas de Hildegardes

Vianna, com o objetivo de atender aos interesses e necessidades da elite soteropolitana, são o

desenho identitário da sociedade que as consome.

Considerado como espaço privilegiado para emergência e expressão das

“significações imaginárias”, o jornal, onde são veiculadas as crônicas, é uma instituição

social, aqui compreendido a partir de Castoriadis (1982, p. 159), como uma “rede simbólica

socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações variáveis um

componente funcional e um componente imaginário”, haja vista que, segundo o autor, cada

sociedade constitui o conjunto de seu universo simbólico. Assim, cada grupo social, em cada

época, seleciona um conjunto de textos que serão apresentados e institucionalizados como

expressões do seu simbolismo e do seu imaginário. No conjunto de significações escolhidas

por Salvador, para compor os textos dos periódicos, marcado pelos preconceitos dos grupos

hegemônicos, não cabem discursos que não compactuem com seus ideais sexistas e racistas.

No que toca ao início da carreira de Hildegardes Vianna, em entrevista ao jornal A

Tarde (19/08/1975), a cronista confessa que, aos doze anos, iniciou a produção de seus

escritos, que ficaram restritos ao âmbito familiar, vindo, aos quinze anos, publicar o primeiro

trabalho no jornal Imparcial. A recepção desses textos por parte da população soteropolitana

não foi positiva, pois supunha-se que a narrativa seria de autoria do pai, Antônio Vianna,

folclorista conhecido na cidade por suas publicações de poesias e crônicas. Constrangida, a

ainda menina recolheu o interesse pelas produções das crônicas, só retornando para os estudos

do folclore em 1948, quando Renato Almeida pediu a Pedro Calmon, na época presidente da

Academia de Letras da Bahia, um nome para coordenar a Comissão Baiana de Folclore,

instituição ligada ao IBEC, órgão da Unesco. Nessa época, o pai é indicado ao cargo e confere

à filha o título de colaboradora da Comissão.

De acordo com o Art 1º do Regimento Interno da Comissão Baiana de Folclore

(28/12/1978), a Comissão foi fundada em 22/08//1948, como uma entidade cultural, sem fins

lucrativos, no Salão Ruy Barbosa do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, com o

objetivo de incentivar e coordenar as pesquisas, os estudos, a promoção, a defesa e a

divulgação do folclore no Estado da Bahia. Inicialmente, os encontros dos associados à

Comissão se davam de modo informal, sem registros em atas, em um espaço da Academia de

Letras da Bahia, até que em 28/12/1978 é aprovado o primeiro regimento interno, que

Page 21: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

posteriormente é publicado no Diário Oficial do Estado em 15/02/1979. O certo é que a

Comissão só adquiriu visibilidade através das publicações das crônicas de Hildegardes Vianna

no Jornal A Tarde.

A atual presidente da Comissão, Profª Drª. Edil Silva Costa, afirma que “a vida de

Hildegardes Vianna se confunde muito com a vida da Comissão Baiana de Folclore”.15

Atuando como presidente desde a morte de seu pai Antônio Vianna, em 1952, até

praticamente o final de sua vida, a cronista só transfere o cargo, em 13/07/2004, para a Profª.

Drª. Doralice Fernandes Xavier Alcoforado, quando se encontra com a saúde muito

debilitada, vindo a falecer em 13 de junho de 2005.

Na Comissão Baiana de Folclore, Hildegardes Vianna deu seus primeiros passos

realizando trabalhos com perspectiva de registro e conservação das tradições, que eram

posteriormente enviados à Comissão Nacional de Folclore. Em seguida, fez uma pesquisa

intitulada Contribuição ao estudo da cozinha baiana. Sem intencionar, a autora deu novos

rumos ao estudo da cozinha, extrapolando os mistérios das receitas e descrevendo os

costumes, os usos da arte de cozinhar. A repercussão da obra fez com que o trabalho fosse

aproveitado, posteriormente, por Câmara Cascudo no livro A História da alimentação no

Brasil, o que gerou muito orgulho para a cronista, pois os estudos folclóricos de Câmara

Cascudo, que são referência no Brasil, foram seguidos por ela ao “pé da letra”.16

Antes de lançar-se no mercado editorial, Hildegardes Vianna, nos anos 1940, publicou

várias crônicas referentes à Bahia, no jornal A Tarde, nas páginas literárias, editada na época

por Heron de Alencar. Nos anos 1950, também nas páginas literárias, que passara a ser

editada por Junot Silveira, assinava uma seção quinzenal intitulada Notas Folclóricas. A

partir de janeiro de 1955, estréia um ciclo que só se interrompeu em 1999: a publicação

semanal, na terceira página do mesmo periódico, das crônicas de “costumes”. Sobre o tema,

Jorge Calmon, no jornal A Tarde de maio de 1991, escreveu uma nota intitulada Nossos

Colaboradores:

No jornal A Tarde de 1955, na 3ª página (que era, então, a página editorial, correspondente à 6ª página de hoje) apareceu a primeira crônica sobre festas populares, Festa do Bonfim, de autoria de Hildegardes Vianna. Não era um

15 A Profª. Drª. Edil Silva Costa, presidente da Comissão Baiana de Folclore, concedeu essas informações em entrevista realizada no dia 27/10//2008 no 2º andar do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, sala onde funciona provisoriamente a Comissão. 16 Luís Câmara Cascudo foi historiador, antropólogo, folclorista e jornalista, dedicou sua vida aos estudos das atividades culturais brasileiras. O folclorista fez um inventário das tradições brasileiras.

Page 22: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

nome novo, pois nos anos 40 tivera publicado, nas páginas literárias, editada por Heron de Alencar, vários textos sobre a Bahia. (CALMON, A Tarde, 1991, p. 7).

As crônicas tornaram-se um sucesso de leitura em todo estado baiano, impulsionando

a carreira de Hildegardes Vianna, como era conhecida intelectualmente. Em uma entrevista ao

jornal A Tarde, 19/08/1979, a autora declara que no ano de 1956, e posteriormente em 1959,

esteve fora da Bahia, trabalhando como free-lance com adaptações para a televisão,

escrevendo para diversos jornais brasileiros e publicando crônicas na revista O Cruzeiro.17

Assim, através de seus escritos, tornou-se membro do Instituto Geográfico e Histórico da

Bahia e veio a ser a segunda mulher a ingressar na Academia de Letras da Bahia, ocupando a

cadeira de nº. 36, no dia 31 de março de 1981.

Hildegardes Vianna ainda organizou e dirigiu, por algum tempo, o Museu da

Associação Baiana da Imprensa. Em 1948, ingressou, quando da sua instalação, na Comissão

Baiana de Folclore – IBEEC, órgão brasileiro da UNESCO, organizado e dirigido pelo pai

Antônio Vianna. Foi membro correspondente da Academia Goiana de Letras, da Academia

Norte Rio-Grandense de Letras, Academia Sorocabana de Letras, do Instituto Histórico e

Geográfico de Goiás e da Sociedade Tucumana de Folklore na Argentina. Thales de Azevedo

tece alguns elogios sobre a cronista no jornal A Tarde:

Os trabalhos da Profª. Hildegardes, que é mestra porque ensina na Universidade e porque é uma autoridade em seu campo, dispersam-se por muitas dezenas, quiçá centenas de artigos que, há quinze anos, publica na imprensa diária desta capital e noutros órgãos da imprensa diária e especializada. [...] a sua produção ultrapassa a de simples registro ou narrativa de folguedos, de festejos, de refrões e ditados, de canções e quadras, mas alarga-se à memória de costumes tradicionais e populares em síntese, ao mesmo tempo de cronista e de historiadora social. (AZEVEDO, A Tarde, 11/10/1969).

Esse artigo de Thales de Azevedo foi escolhido pela cronista como prefácio do livro A

Bahia já foi assim, em 1973. A obra constitui-se de crônicas que retratam a Bahia até 1940, os

textos descrevem a forma como as famílias da elite soteropolitana dividiam os aposentos da

casa da elite, as reações das pessoas frente à morte, a relação entre compradores e vendedores

de produtos comercializados nas ruas da capital baiana, explicações sobre as comidas e as

relações entre negros e brancos, em Salvador, nos primeiros anos da República. Com

repercussão positiva na sociedade letrada baiana, o livro teve mais duas edições. Em 1979, a

17 Periódico de prestígio nacional na década de 1950.

Page 23: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

2ª edição, com o acréscimo de algumas crônicas, e em 2000, a 3ª, idêntica à anterior. Segundo

a autora, em entrevista ao jornal A Tarde (19/12/2000), a publicação da obra deu-se pelo fato

de a edição anterior ter se esgotado e os leitores terem solicitado uma reedição.

Em 1994, a cronista também publicou outro livro de crônicas intitulado Antigamente

era assim. Pode-se deduzir, inicialmente, que os textos selecionados para compor a obra não

tiveram a mesma aceitação do público como aqueles de A Bahia já foi assim. Tal afirmativa

torna-se possível porque a obra só teve uma edição e, durante a pesquisa realizada em jornais

e revistas encontrados na Academia de Letras da Bahia, só se identificou uma nota da

jornalista Myriam Fraga, ao jornal A Tarde de março de 1994.18 Na nota, a jornalista assevera

que tanto o livro quanto as crônicas publicadas semanalmente são sucesso garantido, com o

“público sempre fiel e interessado”.

Apesar do sucesso do livro A Bahia já foi assim, vale destacar que esse não foi o

primeiro livro de Hildegardes Vianna. Em 1955, a autora publicou sua primeira obra pela

UFBA, A Proclamação da República na Bahia, todavia não teve repercussão no mercado

editorial. Obstinada nos assuntos relacionados ao folclore baiano, em 1956 a autora reelabora

a pesquisa sobre “Contribuição ao estudo da cozinha baiana” e lança o livro A cozinha

baiana: seus folclores, suas receitas, marcando assim o seu ingresso no universo nacional dos

folcloristas, posto que a obra é definida pelos críticos como inovadora. 19

A repercussão de A cozinha baiana: seu folclore, suas receitas deu visibilidade aos

trabalhos de Hildegardes Vianna no âmbito dos estudos folclóricos. Atuou como professora

de música, pela antiga Escola de Música, dirigida pelo maestro Pedro Jatobá, especializou-se

em Etnologia, no Centro de Estudos de Etnologia em Lisboa, foi orientadora de pesquisas

folclóricas da Secretaria Municipal de Educação de Salvador, assessora de folclore na

Superintendência de Turismo de Salvador. Fez inúmeras pesquisas pelo Arquivo Público do

Estado da Bahia, professora do Instituto de Música da Universidade Católica do Salvador.

18 A baiana Myriam Fraga é poetisa e contista. Em 1985, tornou-se membro da Academia de Letras da Bahia e, desde 1986, dirige a Fundação Casa de Jorge Amado. 19 Fernando Sales, na revista A Cigarra, de maio de 1956, ressaltou que a edição da autora era uma das obras mais completas já realizadas sobre a arte culinária da “Boa Terra”. Otto Schneider, em 28 de abril de 1956, em um artigo publicado em O Jornal, exaltou o livro, destacando que a obra é uma contribuição preciosíssima para o estudo do folclore baiano, que abarca tanto o interesse gastronômico como o da pesquisa. Eneida de Moraes, em 1/07/1956, escreveu em sua coluna Encontro Matinal, jornal A Tarde, sobre o lançamento do livro A cozinha baiana: seu folclore, suas receitas, ressaltando a importância da obra, que apresenta histórias e crendices e ensina o valor de cada utensílio culinário. A jornalista conclui o artigo aconselhando aos leitores a aquisição de um exemplar. Astério Campos, em um jornal carioca, adjetivou o livro de metódico, homogêneo, documentado e suculento, considerando como uma excelente contribuição aos estudos da culinária baiana. O jornalista destacou em seu artigo que, ao ser apresentada no 1º Congresso Brasileiro de Folclore, a obra foi elogiada e considerada por Mariza Lira um trabalho de real valor folclórico e patriótico.

Page 24: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Aposentou-se como professora adjunta da Universidade Federal da Bahia e técnica em

assuntos culturais da Secretaria de Cultura do estado.

Em sua trajetória acadêmica, ministrou cursos de Introdução às Ciências do Folclore e

Folclore Brasileiro, com o apoio financeiro da Companhia de Defesa do Folclore (MEC) em

várias universidades do Brasil. Participou ativamente, com trabalhos aprovados em plenário,

de Congressos de Folclore, Etnografia, História e Literatura Oral no Brasil, Portugal e

Uruguai.

Hildegardes Vianna ainda lançou em 1960 Festas de Santos e Santos Festejados,

pouco divulgado e desconhecido pelo povo da cidade de Salvador, e Calendário de festas

populares da Bahia, livro em que descreve 16 (dezesseis) festas populares de Salvador,

partindo de um panorama histórico para acompanhar as evoluções e transformações do evento

popular. O ineditismo de escrever um livro sobre as festas baianas rendeu algumas críticas

positivas à cronista. Foi encontrada uma nota ao jornal A Tarde, em que um leitor anônimo

define seu livro como “muito bom pelo ineditismo em abordar as manifestações populares da

Bahia mês após mês.”

Pela Universidade Federal da Bahia, ainda publicou os livros Breve notícia sobre

acontecimentos da Bahia do início do século XX (1983) e As aparadeiras, as sendeironas, seu

folclore (1984). Sem dúvida, de todos os títulos citados, pode-se deduzir que das produções

que tiveram maior êxito e receptividade do público foram as crônicas publicadas no jornal A

Tarde, graças à diversidade de temas, desde a vida do “povo” com seus hábitos

gastronômicos, vestuário, festas populares até a arquitetura e decoração dos casarões

tradicionais. Tal afirmação torna-se possível, tendo em vista a permanência da publicação da

coluna ao longo de 44 anos e o manancial de cartas de leitores que se dizem “assíduos e fiéis”,

as quais podem ser encontradas nos arquivos da Academia de Letras da Bahia, quase todas

solicitando a continuidade das temáticas abordadas nas crônicas.

Nessa diversidade de crônicas, Adroaldo Ribeiro Costa (24/02/1973), em um artigo

intitulado Bonde e Avião, explicita sobre a receptividade de um texto de Hildegardes Vianna

que trata dos bondes que circulavam em Salvador. Segundo o jornalista, a cronista recebeu

inúmeras cartas de leitores da geração de “antigamente”, louvando-a e pedindo mais. No

entanto, com a prudência dos cronistas “tarimbados”, Hildegardes Vianna teve o cuidado de

evitar a saturação do assunto e preferiu interromper a série daquelas reminiscências,

enveredando para o aparecimento dos aviões, tema que causou mais sucesso ainda.

Nota-se nesse artigo de Adroaldo Ribeiro Costa que os leitores de Hildegardes Vianna

também são movidos pelo sentimento de nostalgia, saudade do passado, fato que poderia

Page 25: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

justificar a perpetuação da publicação de suas crônicas, durante um longo tempo no jornal A

Tarde.

A partir dessas tessituras que objetivam delinear uma biografia intelectual da vida de

Hildegardes Vianna, observa-se que a cronista e folclorista foi enveredando para o universo

dos estudos folclóricos à medida que ia escrevendo sobre as peculiaridades do cotidiano da

população soteropolitana, tomando como referência as escutas de amigos e colaboradores que

sofrem do mesmo mal: saudades de uma Bahia tradicional.

A negação do presente e a evocação do tempo de “outrora”, como se a vida boa

estivesse cristalizada no que já aconteceu, é uma perspectiva marcante dos folcloristas. Ortiz

(2006) afirma que, quando pesquisadores que estudavam tradições populares aceitaram, no

século XIX, a palavra folk-lore para denominar a sua área de estudos, pensavam que a palavra

criada artificialmente por William John Thoms, em 1846, sintetizava o seu conceito e,

portanto, estaria isenta de controvérsias. A palavra folclore, grafada inicialmente folk-lore,

fora formada a partir das velhas raízes saxônicas em que folk significa “povo” e lore “saber”.

Assim, segundo o seu criador, a palavra significaria sabedoria do povo.20

No entanto, logo começaram as discussões. Primeiro, questionava-se o sentido do

vocábulo saber e os seus limites. Para alguns folcloristas, a cultura material estava excluída -

artesanato, técnicas populares como a culinária, a arquitetura e a confecção de instrumentos

musicais estariam fora do conceito e do campo de estudo. Para outros, a cultura material

somente estaria integrada ao folclore quando estivesse ligada à cultura não-material - estudos

da música folclórica incluiriam os instrumentos musicais e o estudo das festas tradicionais

incluiria a sua culinária etc. Nessa segunda perspectiva, as técnicas populares só fariam parte

dos estudos folclóricos se estivessem atreladas às manifestações da cultura popular.

No Brasil, em uma tentativa de sistematizar o conceito de folclore, Renato Almeida21

apresentou no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado em 1951, uma carta intitulada

Carta do Folclore Brasileiro. Em 1995, durante o VIII Congresso Brasileiro de Folclore,

houve uma releitura desse texto epistolar, objetivando sua atualização, considerando a

20 O historiador James Clifford (1994) assume uma atitude irônica frente ao folclore, pois, segundo o teórico, os estudos etnográficos na pós-modernidade são mais específicos, pois é pensado a partir das ambigüidades, indeterminações e complexidades da vida humana, abarcando toda a sua diversidade, enquanto o folclore gera um mal-estar aos pesquisadores, pois ainda apregoa a tradição e a cristalização dos fatos. Para Clifford, a etnografia é uma atividade interpretativa, uma “descrição densa”, voltada para busca de significações. Boaventura Sousa Santos (2005, p. 241) também acredita que as práticas sociais são práticas de conhecimento, mas só podem ser reconhecidas como tal na medida em que são o espelho do conhecimento científico. “Seja qual for o conhecimento que não se adéqüe à imagem refletida no espelho, é rejeitado como uma forma de ignorância.”. 21 O baiano Renato Almeida dedicou grande parte de sua vida a incentivar os estudos sobre folclore. Organizou em 1948 a Comissão Nacional de Folclore, com sede no Itamarati, e outras comissões em várias partes do país.

Page 26: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

incorporação das contribuições de estudos das ciências humanas e de letras, bem como a

adoção de novas tecnologias, especialmente na comunicação, e das transformações da

sociedade brasileira. Decidiu-se então re-conceituar, considerando que:

Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social. Constituem-se fatores de identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade. (COMISSÃO NACIONAL DE FOLCLORE. 1995).

Vale ressaltar que, apesar da iniciativa da Comissão Nacional de Folclore, a

atualização do conceito dos estudos folclórico surtiu pouco efeito na sociedade, pois já estava

sedimentada e assimilada pelo senso comum a noção de cultura popular como tradicional e

atrasada.

A carta também estabelece o seguinte:

[...] reconhece o estudo do Folclore como integrante das ciências antropológicas e culturais, condena o preconceito de só considerar como folclórico o fato espiritual e aconselha o estudo da vida popular em toda sua plenitude, quer no aspecto material, quer no aspecto espiritual;

Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação e conservação do patrimônio científico, artístico e humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica;

São também reconhecidas como idôneas as observações levadas a efeito sobre a realidade folclórica, sem o fundamento tradicional, bastando que sejam respeitadas as características de fato de aceitação coletiva, anônima ou não, e essencialmente popular. (COMISSÃO NACIONAL DE FOLCLORE. 1995, grifos nossos).

Identificam-se na carta elementos que denunciam o interesse em sustentar o caráter

essencialista e conservador dos estudos folclóricos. Nela, expõe-se a noção de que, para se

manter a qualidade das manifestações populares, é necessário se conservar a sua pureza, não

devendo se misturar com as práticas da modernidade. A renovação de idéias é negada pelos

folcloristas tradicionais. Dessa forma, é importante que a cultura popular seja “preservada

pela tradição e não seja influenciada pelos círculos eruditos”.22

22 Peter Burke (1989), no livro Cultura popular na Idade Moderna, destaca que o termo “cultura popular” dá uma falsa impressão de homogeneidade e que seria melhor usá-lo no plural ou substituí-lo por uma expressão como “cultura das classes populares”.

Page 27: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Pautada nos princípios estabelecidos pela carta, a ilustre e também representante do

folclore baiano, Hildegardes Vianna, em consonância com as idéias de Renato Almeida,

defende no artigo Folclore palavra do século, ao jornal A Tarde (19/ 08/1967), que o folclore

se firma pela “criação espontânea do povo”, por elementos genuinamente populares, ou seja,

constitui-se da expressão de sabedoria do povo com seus mitos, lendas, histórias, cantos,

gestos, danças, teatro, festas tradicionais, magias, tabus e jogos. Elege, ainda, como

manifestação “popular” os objetos e vestimentas que ornam os representantes dessa cultura, as

rendas e bordados, o próprio “povo” com suas figuras ilustres, como benzedeiras e baianas de

acarajé, a culinária, comidas que identificam os costumes da população. Para a cronista e

folclorista, a Bahia é uma fonte inesgotável de mistérios e exotismo:

O Folclore se expandiu, invadindo terrenos jamais imaginados pelo criador, significando a maneira de pensar, de agir e de sentir de um povo. As danças, as canções, a poesia, os folguedos infantis, as crendices, a medicina popular, as artes e técnicas domésticas, a comida, o traje, o linguajar, a cerâmica, os trançados, em fim todos os aspectos da vida popular passaram a ser folclore. (VIANNA, A Tarde, 19/08/1967).

Nessa perspectiva, são ricas e múltiplas as abordagens que Hildegardes Vianna faz, em

suas crônicas, da cultura popular baiana. De maneira geral, os escritos fazem referência, com

maior ou menor rigor, à formação cultural do entorno do Recôncavo Baiano, em todas as suas

facetas: o cotidiano, as festas, a capoeira, as “características” do povo e a comida, sendo a

culinária um dos temas mais recorrentes em muitas de suas crônicas, tendo em vista a

publicação de um livro de receitas. A chamada gastronomia baiana é festejada pela autora

com muita propriedade. Os gêneros alimentícios se sobressaem a partir da riqueza de detalhes

com os quais são descritas as especiarias utilizadas para preparar o abará, o acarajé e outros

alimentos específicos da “Boa Terra”.23 As técnicas utilizadas para confeccioná-los também

não foram esquecidas.

A autora dedica várias crônicas à temática da culinária. E quando confere uma certa

visibilidade às mulheres negras, a maioria delas está representada como mão-de-obra

trabalhadora, na feitura de quitutes e sua comercialização nas ruas da cidade de Salvador. Tais

atividades por sinal são descritas de forma mais poética do que os sujeitos executantes. A

crônica Da arte de fazer cuscuz (23/09/1969) ilustra bem essa afirmativa:

23 Segundo o dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), o acarajé é um bolinho feito com feijão-fradinho, frito no azeite-de-dendê e servido com camarão seco e pimenta. O abará é uma iguaria feita também com feijão-fradinho, enrolada em folha de bananeira e cozida no vapor.

Page 28: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Antigamente, fazer cuscuz era uma arte. O seu preparo, em muitas ocasiões, principiava de véspera. O milho ou o arroz tinha de ser posto de molho para amolecer. No dia seguinte, ou melhor, madrugada seguinte, alguém acordava antes do nascer do sol para ralar na pedra ou socar no pilão o milho. Poucas mulheres utilizavam o pó de milho comprado já pronto em uma tulha qualquer... O gosto não era o mesmo, apesar de ficar algumas horas dentro d’água para tomar corpo e cozinhar melhor. E dava trabalho, pois tinha que ser escorrido num pano e ser pendurado a ensombrar, até o ponto de poder ser secado para não formar grumos.

O arroz podia ir para pedra ou para o pilão, mas havia quem usasse uma garrafa ou uma bilha (no caso apenas um rolo de madeira de abrir massa) para esmagar o arroz inchado espalhado sobre um pano grosso. O inhame dava melhor trabalho, mas tinha de ser aferventado, esfriado para depois ser ralado.

Ralar coco nunca foi tarefa fácil. Quebrar, descascar, lavar e ralar. Quando era cuscuz, sem compromisso dentro de casa, sem preocupações de agravar ou não a quem comesse, o coco podia ser, depois de lavado, guardado dentro de uma vasilha com água, para posterior ralação. Também podia ser ralado de noite, salpicando-se um tantinho de sal moído por cima para não azedar. Mas cuscuz para vender exigia tudo fresco. Tudo do mesmo dia.

Tirar leite de coco tinha ou ainda tem sua técnica. O leite sem água conseguia-se, como hoje, pondo-se as porções do coco ralado dentro de um pano e apertando-se muito bem, até escorrer o líquido alvo e saboroso. Conforme o mister a que se destinasse, levava, e ainda leva, água quente, não muito quente, mais para morna, para iguarias que dependessem da gordura do coco para amaciar a massa. Água fria para determinados tipos de mingau ou canjica e até de cuscuz de inhame-fubá, por exemplo.

O leite tirado com a primeira água era reservado para ser fervido com sal e açúcar. O Bagaço que ficava era, então, misturado na massa. Bem espremido, se fosse para cuscuz de tapioca e um pouco úmido se para milho, mandioca ou inhame. Quanto trabalho dava esbrugar o bagaço até ficar soltinho [...]

Pronto o bagaço, pronto o fubá ou o que fosse, era iniciada a fase de mistura em que os dedos tinham função precípua. Além de mexer tudo muito bem, uniformizando a distribuição do sal e do açúcar, os dedos tinham o dever de sentir o grau de umidade requerido para que saísse um cuscuz correto.

Era a hora do cuscuzeiro de barro com um guardanapo ou toalhinha fina à guisa de forro. As profissionais tinham pano adequado par o cuscuzeiro em forma de quadrado, nem muito grosso nem muito fino. A massa ia sendo colocada de um jeito todo especial, as palmas das mãos se movendo uma contra a outra, esfarinhando tudo para não formar batoques. Acabada a operação e coberta a superfície da massa com as pontas dos panos ou guardanapo, o cuscuzeiro era adaptado à tampa de uma panela de barro cheia de água até certa altura. A calefação era feita para evitar que escapasse algum vapor d’água quando fervesse, utilizando para tal fim uma pouco de farinha de guerra molhada. (VIANNA, A Tarde, 23/09/1969, grifos nossos).

Page 29: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

As observações tecidas acerca da preparação do cuscuz são riquíssimas de detalhes, ao

se destacar, passo a passo, todas as etapas realizadas até que o alimento fique pronto,

ressaltando a técnica mais adequada para a iguaria ficar mais saborosa. Os utensílios

utilizados para realização das tarefas, bem como as especiarias, também não são esquecidos,

posto que a cronista discorre minuciosamente sobre cada um deles ao longo do texto,

enumerando a funcionalidade e importância. Dessa forma, tem-se uma receita completa do

alimento que faz parte da tradição da culinária baiana.

Todavia, constata-se na mesma crônica que os sujeitos responsáveis pela execução das

tarefas realizadas na produção do cuscuz ficam no anonimato. As mulheres negras estão

“escondidas’ pelo pronome indefinido “alguém” e pelo substantivo “as profissionais”. Assim,

quem são essas mulheres? De onde vieram? Onde vivem? Como vivem? São perguntas

impossíveis de serem respondidas ao longo da crônica.

Defensora contumaz das tradições, Hildegardes Vianna temia que a modernidade

destruísse os costumes populares.24 No artigo Agosto, mês do folclore, publicado no jornal A

Tarde (06/08/1978), a cronista denuncia que o progresso e as novidades do mundo moderno

contribuíram significativamente, ao longo do tempo, para a descaracterização do folclore.

Numa perspectiva tradicional, a autora alerta que o crescimento demográfico, as revoluções

sociais e a exploração da indústria turística seriam “inimigos terríveis do folclore”.

Mesmo ameaçados por inimigos terríveis tais como o crescimento demográfico, as revoluções sociais e a exploração da indústria turística, sua grande corruptora, o povo encontra em antigas motivações, modificadas ou renovadas pela recomposição, um veículo para expressar o seu modo de pensar, agir e sentir. (VIANNA, A Tarde, 06/08/1978).

Concebe-se, assim, uma pretensa autenticidade das manifestações populares que irá

radicalmente se opor a qualquer movimento de transformação da realidade social. Essa

perspectiva é um traço marcante nos estudos sobre o Folclore, que se volta para a cristalização

do passado.

Em outra perspectiva teórica, Canclini (2003) examina como se reformulam hoje, ao

lado de uma visão tradicional, outros traços identificados com o popular: seu caráter “local” e

seu caráter associado ao nacional e ao subalterno. Segundo o teórico, a elaboração de um

discurso científico sobre o popular é um problema recente no pensamento moderno, posto que

24 A palavra tradição é tomada aqui no sentido de cristalização do passado, a perpetuação de costumes e práticas estratificadas pela elite soteropolitana.

Page 30: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

os estudiosos do tema limitaram-se a tornar visível a questão do popular por interesses

ideológicos e políticos.

Visando defender suas idéias, Canclini realizou uma análise da origem do conceito de

“popular”, que remete ao século XVIII e início do século XIX, período em que o povo

começou a existir como referência no debate moderno, devido à formação, na Europa, de

estados nacionais que trataram de abarcar todos os estratos da população. A pesquisa do

teórico explica que, diante da nova concepção, a elite européia começou a perceber que esse

povo ao qual se deve recorrer para legitimar um governo secular e democrático é também

portador daquilo que a razão quer abolir: a superstição, a ignorância e a turbulência. Assim,

“o povo interessava como legitimador da hegemonia burguesa, mas incomodava como lugar

do inculto por tudo aquilo que lhe faltava.” (CANCLINI, 2003, p. 208).

A noção política de povo como instância legitimante do governo civil, como gerador

de nova soberania, é interpretada por Martín-Barbero:

[...] no âmbito da cultura como uma idéia radicalmente negativa do popular, que sintetiza para os ilustrados tudo que estes quiseram ver superado, tudo que vem varrer a razão: superstição, ignorância e desordem. Contradição que tem a sua fonte na ambigüidade que a figura mesma do povo tem em sua acepção política. O povo é fundador da democracia não como população, mas apenas como ‘categoria que permita dar parte, enquanto garantia, do nascimento do Estado moderno’. (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 34).

O povo interessa para constituir uma sociedade moderna, mas permanece nessa

história como o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não conseguem que ele seja

conservado; os artesões que não chegam a ser artistas, a individualizar-se, nem participar do

mercado de bens simbólicos; aqueles incapazes de ler e olhar a cultura porque “desconhecem”

a história dos saberes e estilos. Ou seja, todos aqueles que pertenciam a uma categoria

considerada “inferior” em relação à elite européia.

Para Canclini (2003), os românticos, ao perceberem essa contradição e na tentativa de

reconhecer o popular como espaço de criatividade, foram os primeiros a tentar dirimir a

quebra entre político e cotidiano.25 Assim, vários escritores dedicaram-se a conhecer os

costumes populares e impulsionaram os estudos folclóricos. Canclini ainda cita três pontos

das contribuições inovadoras dos românticos, sintetizadas por Renato Ortiz:

25 Os românticos são aqui apresentados como sendo os primeiros que “descobriram” o povo, como uma exaltação revolucionária do popular e do nacional e representação de uma nação.

Page 31: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

[...] frente ao iluminismo que via os processos culturais como atividades intelectuais, restritas às elites, os românticos exaltaram os sentimentos e as formas populares de expressá-los; em oposição ao cosmopolitismo da literatura clássica, dedicaram-se a situações particulares, sublinharam as diferenças e o valor do local; frente ao desprezo do pensamento clássico pelo ‘irracional’, reivindicaram aquilo que surpreende e altera a harmonia social, as paixões que transgridem a ordem dos ‘homens honestos’, os hábitos exóticos de outros povos e também dos próprios camponeses. (ORTIZ, 1985, apud CANCLINI, 2003, p. 208).

A inquietude de escritores e filósofos, por conhecerem empiricamente as culturas

populares, formaliza-se na Inglaterra quando é fundada, em 1878, a primeira Sociedade do

Folclore.26 Comungando das idéias de Canclini, Martín-Barbero encontra uma explicação

para a emergência da noção de popular:

A invocação do povo legitima o poder da burguesia na medida exata em que essa invocação articula sua exclusão de cultura. E é nesse movimento que se geram as categorias ‘do culto’ e ‘do popular’. Isto é, do popular como inculto, do popular designando, no momento da sua constituição em conceito, um modo específico de relação à totalidade do social: a da negação, a de uma identidade reflexa, a daquele que se constitui não pelo que é, mas pelo que lhe falta. (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 35).

Dessa forma, o “povo” se apresenta como aquele sujeito que está excluído tanto da

riqueza quanto da política e da educação. Logo, toma-se o local do inculto e define-se como o

ser a que falta tudo (razão, educação, riqueza etc.). A citação ainda provoca uma discussão no

que tange a uma renovação do conceito de cultura. É inegável que os românticos construíram

um novo imaginário, no qual a cultura que vinha do povo adquiriu status, convocando um

alargamento do horizonte histórico e da concepção de humanidade ao se aceitar a existência

de uma pluralidade de culturas e diferentes modos de vida social. No entanto, ao mesmo

tempo em que imprimiram um novo conceito de cultura, também demarcaram limites para a

cultura popular, tendo em vista que essa era antagônica à cultura hegemônica e oficial e não

deveria se contaminar. Assim sendo, “ao negar a circulação cultural, o realmente negado é o

processo histórico de formação do popular e o sentido social das diferenças culturais: a

exclusão, a cumplicidade, a dominação e a impugnação.” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p.

40).

Perdendo de vista o sentido histórico da noção do popular, o que se resgata acaba

sendo uma cultura que não pode olhar senão para o passado, cultura patrimônio (herdada), ou

26 Posteriormente, A Sociedade do Folclore passou a ser o nome utilizado para designar na Itália e na França a disciplina que se especializava no saber e nas expressões subalternas.

Page 32: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

seja, folclore. Logo, culturalmente falando, pode-se afirmar que, o “povo”, na perspectiva

romântica, é o passado. E o atraso das classes populares, através da negação da modernidade,

o condena à subalternidade. A partir dessa perspectiva, Martín-Barbero apresenta,

questionando, um conceito de Folclore:

Folklore capta antes de tudo um movimento de separação e coexistência entre dois mundos culturais: o rural, configurado pela oralidade, as crenças e a arte ingênua, e o urbano, configurado pela escritura, a secularização e a arte refinada: quer dizer nomeia o tempo da cultura, a relação na ordem das práticas entre tradições e modernidade, sua oposição e às vezes sua mistura. (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 38).

E Canclini ainda assevera:

O popular como resíduo elogiado: depósito da criatividade camponesa, da suposta transparência da comunidade cara a cara, da profundidade que se perderia com as mudanças ‘exteriores’ da modernidade. Os precursores do folclore viam com nostalgia que diminuía o papel da transmissão oral frente à leitura de jornais e livros; as crenças construídas por comunidades antigas em busca de pactos simbólicos com a natureza se perdiam quando a tecnologia lhes ensinava a dominar essas forças. O popular como tradicional. (CANCLINI, 2003, p. 209).

Nessa vertente, manifestações folclóricas são narradas lendariamente e cristalizadas no

tempo e no espaço, esquecendo-se dos conflitos em meio aos quais se formaram as tradições.

O povo é resgatado, mas não é reconhecido. Convergindo para essa direção, Hildegardes

Vianna, ao apresentar nas suas crônicas uma visão nostálgica, está imprimindo também uma

marca específica dos folcloristas mais tradicionais.27 Ao longo das crônicas que apresentam as

negras, produzem-se estereótipos dessas mulheres, ao passo que não se problematizam as

questões imbricadas no processo de subalternidade presente nas vidas descritas.

Ao adotar uma concepção romântica do popular, aliada aos componentes ideológicos

de racismo e sexismo das políticas conservadoras soteropolitanas, Hildegardes Vianna orienta

uma leitura que inviabiliza que seu público leitor pense sobre a complexidade existente nos

conflitos sociais. O “povo”, nessa perspectiva, converte-se em uma entidade não analisável

socialmente, não traspassável pelas divisões e pelos conflitos, ou seja, um sujeito que só tem a

possibilidade de se apresentar como subalterno à elite baiana. Retoma-se, de certa forma, o

27 Vale ressaltar que, segundo estudos de Martín-Barbero e Canclini, há uma nova idéia sobre os estudos folclóricos, na qual se reconhece a pluralidade do cultural a partir da circulação dos movimentos, em que o novo se mistura como antigo. Essa perspectiva de cultura popular aceita a modernidade e acha possível a relação entre o passado e o presente.

Page 33: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

argumento de Martín-Barbero, que focaliza que o grande problema dos folcloristas é a

dependência com o passado e que, ao negar a circulação da cultura e sua conexão com o

moderno, o realmente negado é o processo histórico de formação do popular e o sentido social

das diferentes culturas: a exclusão, a cumplicidade, a dominação e a impugnação não são

problematizadas.

Essa ênfase no caráter tradicional do patrimônio popular, na maioria das vezes, pode

ser considerada uma posição conservadora diante da modernidade. Renato Ortiz (2006), em

consonância com as idéias de Canclini e Martín-Barbero, aponta que o folclore foi uma

necessidade histórica da burguesia européia. Assim, para Ortiz, ao se definir cultura popular

como um saber tradicional das classes subalternas das nações civilizadas, como faz William

John Thoms, implicaria associá-lo à dimensão de atraso.

De acordo com Canclini:

Em países díspares como Argentina, Brasil, Peru, e México os textos folclóricos produziram, desde o final do século XIX, um amplo conhecimento empírico sobre os grupos étnicos e suas expressões culturais: a religiosidade, os rituais, a medicina, as festas e o artesanato. Em muitos trabalhos vê-se a identificação profunda com o mundo indígena e mestiço, esforço para lhe dar um espaço dentro da cultura nacional. (CANCLINI, 2003, p. 210).

No entanto, observa-se, pelo menos no Brasil, a preservação do elemento conservador,

ao se valorizar a tradição como presença do passado e todo progresso implicando em um

processo de dessacralização da sabedoria popular.28 Todavia, o folclore brasileiro se

diferencia da concepção européia, por não se apresentar como uma necessidade da burguesia

e sim, sobretudo, como “uma forma de saber que se associa, de início, às camadas tradicionais

de origem agrária”. Identificam-se tais características a partir de Gilberto Freyre e Câmara

Cascudo. (ORTIZ, 2006, p. 71).

Renato Ortiz (2006) ainda constata que os intelectuais que se dedicaram aos estudos

da cultura popular apropriaram-se da miscigenação como símbolo para representar e expressar

a situação das populações menos favorecidas do país. Assim, mesmo com a associação de

folcloristas e antropólogos, transformando os estudiosos das culturas populares em

intelectuais reconhecidos, os estudos folclóricos se deram fora das universidades, em centros

28 Renato Ortiz (2006) constata que os estudos folclóricos brasileiros fixaram o terreno da nacionalidade na fusão do negro, do índio e do branco, isto porque o conceito de povo que predominava junto aos intelectuais brasileiros do final do século XIX era o da mistura racial. Brasileiro se apresentando como raça mestiça.

Page 34: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

tradicionais como os Institutos Históricos e Geográficos, que têm uma visão anacrônica e

desconhecem as técnicas modernas do trabalho intelectual.

Apoiando-se nos princípios tradicionalistas do folclore, Hildegardes Vianna, em 1955

(período no qual inicia a publicação das cônicas no jornal A Tarde), volta-se para o passado

com intuito de descrever o povo e a cultura soteropolitana.29 Portanto, destaca-se na sua

escrita a presença de elementos que sinalizam um sentimento de nostalgia e de

tradicionalismo.

Por isso, à medida que toda estrutura social que se pensava sólida se desmanchava no

ar, crescia em Hildegardes Vianna a necessidade de organizar o passado, reconstituindo os

fatos e coisas que ainda lhes pareciam familiares e reconhecíveis. Assim, suas crônicas

revisitam e recriam as tradições culturais de um modo de vida soteropolitano, recordam seus

lugares de memória, como o traçado das ruas do velho centro e dos casarões antigos que,

mesmo modificados, contam a história da cidade. Para a folclorista confere-lhe “identidade”

manter “viva” esta memória social, esteticamente selecionada na tradição cultural baiana.30

Dessa forma, nas crônicas, a repetição de palavras como “antigamente” e “outrora”

marca de maneira explícita a distância imputada entre o tempo descrito e a atualidade, como

se autora rechaçasse os rumos da história, como se não existissem mais lavadeiras,

cozinheiras e domésticas, como se as mulheres negras e suas atividades estivessem

cristalizadas em um tempo passado, o que pode ser observado na citação: “Era naquele bom

tempo em que havia aquele ditado Quando eu nasci já se bebia mingau. Mingau vendido ao

clarear do dia por uma mulher que mercava por mercar, porque era fácil fazer freguesia

certa”. (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969). Ou ainda:

Era naquele tempo feliz em que Salvador era ‘um doce recanto bonançoso’. Ruas pacatas com corredores de casas de duas janelas e uma porta, aqui e ali um sobradinho, mais adiante um casarão, vez ou outra um arremedo de chalé, com telhado de duas águas e um terreninho que chamava ‘Jardim na frente’. Tudo família. Cada qual integrado em sua categoria social sem recalques ou revolta. (VIANNA, 1994, p. 49).

29 Os escritos de Hildegardes Vianna se diferenciam de forma peculiar dos de Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, no sentido de que a autora concentrou a maioria dos seus escritos na representação da vida urbana. Tendo em vista o conceito de folclore, como cultura que vem do povo, os representantes da cultura popular soteropolitana são a população negra e mestiça. Assim, majoritariamente, a autora traz como sujeitos sem voz das suas crônicas as negras que circulavam pela cidade. 30 O recurso da memória, segundo Albuquerque Júnior (1990, p. 78) “[...] é, na verdade, uma tarefa de organização do próprio presente, este presente que parece deles escapar, deles prescindir [...]”.

Page 35: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

O tom nostálgico é revelador, trata-se de uma luta contra o tempo. Identifica-se à idéia

de salvação, a missão é agora congelar o passado, recuperando-o como patrimônio histórico.

Assim, os folcloristas, reconhecendo a radicalidade das mudanças em curso, se voltam para

uma operação de resgate, recordando o passado e armazenando em seus museus e bibliotecas

a maior quantidade possível de uma beleza morta, os objetos utilizados nas práticas populares.

As descrições presentes na citação são identificadas em diferentes escritos associados

aos estereótipos sobre a mulher negra endossados pela cronista. Em tais estereótipos, as

mulheres deixam de ser sujeitos para serem objetos batizados pela categoria profissional à

qual pertencem. Hildegardes Vianna se posiciona como uma representante do “povo”, visto

que fala sobre o “povo” e para o “povo”, mas numa perspectiva que permanece sempre como

exterioridade. O distanciamento autor, público e personagem é uma constante, como se

constata nas crônicas em que as mulheres negras aparecem como tipos: a “lavadeira”, a

“mulher do mingau”, a “ama-de-leite”, etc. O “povo” é o personagem principal da trama

discursiva, mas, na realidade, se encontra ausente. Não há vida interior desses sujeitos, dilui-

se a dimensão dos indivíduos, e com isso a própria existência é preterida, muitas vezes, diante

dos objetos artesanais: a vestimenta da baiana, o tabuleiro, os utensílios utilizados na

confecção dos alimentos e outros. A distância entre a folclorista e seu objeto de estudo é

referendada na crônica Pesquisa da dança folclórica:

Vale acentuar que o portador de folclore não é folclorista. Folclorista é o homem de ciência que pesquisa, estuda, compara, interpreta, tira conclusões, reconstruindo as trajetórias ou a estrutura do fato histórico. Portador de folclore, de acordo com a visão de Renato Almeida, é o homem primitivo, o homem do povo, cujo modo de pensar, de sentir e de agir corresponde e traduz a mentalidade empírica da coletividade de que faz parte. Às vezes o portador de folclore não é analfabeto. Existe gente, como ressalta Renato Almeida, que não é iletrado, ágrafo, mas cuja mentalidade é folclórica, como a de qualquer analfabeto sem tirar nem por. (VIANNA, A Tarde, 27/08/1973).

A partir desse entendimento, pode-se inferir que a cronista endossa os princípios dos

estudos folclóricos, tendo em vista que o saber popular é visto como uma propriedade de

grupos subalternos, cujas técnicas simples e a pouca diferenciação social os preservariam das

ameaças modernas. Nessa perspectiva, interessam mais os bens culturais – objetos, lendas,

músicas – que os agentes que o geram e consomem. Essa fascinação pelos produtos, o descaso

pelos processos e agentes sociais que os geram, leva à construção de estereótipos sociais.

Page 36: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Em sua pesquisa, Donald Pierson (1945) identifica que na Bahia a classe letrada era

relativamente pequena. A maioria do povo da cidade era iletrada e se incluía no que era

comumente denominado de folk, ou ao menos num estágio intermediário entre a “cultura de

folk” e a “civilização”. Nessa perspectiva, define-se a cultura popular como a cultura das

classes trabalhadoras e dos pobres. Esse segmento social, ao qual Hildegardes Vianna faz

referência em suas crônicas, constitui-se de africanos e seus descendentes.

Sobre o caráter tradicional do folclore, Canclini (2003) assevera que, ao insistirem em

uma fidelidade ao passado, os folcloristas tornam-se cegos às mudanças que redefiniram as

sociedades industriais e urbanas. Suas dificuldades teóricas e epistemológicas, que limitam

seriamente o valor de seus informes, persistem até a atualidade, tendo em vista que há um

recorte do objeto de estudo. Adepta desse princípio, Hildegardes Vianna, ao focar em suas

crônicas as primeiras décadas do século XX, termina por enevoar o avanço industrial que

impulsionou a Bahia nos primeiros anos da década de 1950, uma vez que, segundo a cronista,

“o avanço é um inimigo do folclore”.

De forma contrária, a proposta de Canclini e Martín-Barbero é que as novas narrativas

tenham uma configuração menos essencialista e que permitam a vivência de diversas

identidades culturais e não apenas um conjunto de referências estáveis e estereotipadas. Os

estudiosos propõem que se compreenda a cultura popular por nova perspectiva, em que o

moderno pode coabitar com o tradicional, a comunidade pode coexistir com a sociedade. Não

há uma anulação de uma modalidade antiga para a substituição de uma outra e sim uma

realidade que permite que diferentes temporalidades ocupem o mesmo espaço e estas possam

ser vivenciadas concomitantemente pelos agentes sociais.

Hildegardes Vianna, em 1981, ainda apregoa, em seus estudos sobre a cultura popular,

que é praticamente impossível identificar a origem do folclore baiano, devido à presença de

inúmeros elementos de etnias diversas, isto é, não poderia se especificar se a cultura foi

herdada dos brancos ou negros. Para a folclorista, o povo baiano se constitui basicamente da

cultura européia ao tempo em que considera que a contribuição africana, em conjunto, é

menor que a do índio, mesmo na cidade de Salvador, onde os negros têm uma presença

marcante. Segundo a cronista:

A tendência do negro em adotar novos hábitos, integrando-se no meio ambiente, o repatriamento de antigos escravos e seus descendentes após Abolição, a luta contra o preconceito racial, a repressão policial e outros fatores determinaram o enevoamento de certos traços de influência africana.

Page 37: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

O dócil negro sudanês, em geral, pouco ou quase nada deixou ao folclore, absorvendo-se ou adaptando-se à cultura do branco [...] Os bantos, entretanto, congos, moçambiques e, principalmente, os de Angola, por sua natureza irrequieta, deixaram marcas mais profundas: a roda de samba, a capoeira, a congada, o bate-pau. A mulher negra foi a companheira do branco, criando seus filhos, imperando na cozinha [...] (VIANNA, 1981, s/p. grifos nossos).

Encontra-se presente no artigo a idéia de “docilidade” como um estereótipo em que o

grupo dos sudaneses foi incapaz de produzir cultura e só lhes coube a possibilidade de

assimilar o conhecimento do branco, identificado como o responsável pela criação e

recomposição da cultura popular. Nessa perspectiva, é reforçada a visão exotizante e

discriminatória de que os negros só haveriam contribuído com a preservação do panorama

lúdico, aprendendo e conservando folguedos brancos e jogos da sorte que teriam desaparecido

se não fossem assimilados. Já as mulheres negras são vistas como “companheiras do branco,

criando seus filhos, imperando na cozinha”, reforçando a idéia de subalternidade, passividade

e dominação.

Contrariando as idéias de Hildegardes Vianna, a etnolingüista Yeda Pessoa de Castro

afirma que “o espaço africano é a matriz mais importante na configuração do perfil da

nacionalidade brasileira, no que pese a ancestralidade de seus povos indígenas e a densa

influência, neste século, de imigrantes europeus e asiáticos no Sul do país”. (CASTRO, 2006,

s/p.).

O folclorista Renato Almeida (1968), no artigo O folclore negro no Brasil, para

Revista Brasileira de Folclore, também reconhece a importância das contribuições africanas

para o folclore brasileiro:

As contribuições africanas para o folclore brasileiro foram inúmeras, variadas e diferentes. Em todas as manifestações do nosso folclore, quer na cultura espiritual, quer na material, a presença do negro é constante. Eis porque se deve considerar a participação do negro no folclore brasileiro como elemento constitutivo e não contribuinte. Assim, é incontestável o valor da contribuição do negro, não só nos contos, mas em tantos outros setores da literatura oral. (ALMEIDA, 1968, p. 105-106).

E ainda continua:

O negro fecundou todo folclore brasileiro. Fecundou nos ritmos, nos coloridos, na religiosidade, na densa carregação da magia, na variada coreografia, no bater dos tambores e no percutir de instrumentos, nas comidas saborosas e apimentadas, nas manifestações de sua arte, no traje

Page 38: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

espetacular da baiana nos cortejos e nas embaixadas dramáticas, nas histórias que as mães pretas contaram e ajeitaram. (ALMEIDA, 1968, p. 117).

O pesquisador alagoano Arthur Ramos (2007) também atesta a importância do negro

no folclore brasileiro em seus estudos sobre O folclore negro no Brasil. O teórico identificou

que “os sudaneses, como os iorubanos e os jejes, introduziram criações mitológicas bem

adiantadas e que se emparelham com velhos mitos da humanidade.” (RAMOS, 2007, p. 9).

Para Ramos, a mitologia sudanesa é riquíssima e exerceu muita influência no Brasil.

De acordo com a sua pesquisa, os contos africanos que exerceram influências no

folclore brasileiro reconhecem várias gêneses. O primeiro grupo se constitui de contos que

apresentam entidades mitológicas, antepassados, heróis criadores, civilizadores e

transformadores. O segundo grupo engloba elementos “totêmicos”, figuras de animais heróis

e animais deuses. A terceira categoria é a dos contos com mensagens de moralidade, meio

lendário, refletindo preocupações e anseios da comunidade em que os griot31 estavam

inseridos.

Os negros também contribuíram na dança e na música. De acordo com a pesquisa

realizada por Ramos (2007), a dança e a música que os africanos introduziram no Brasil

tiveram uma “origem religiosa e mágica”. Surgiram dos templos fetichistas e dos cerimoniais,

rituais da vida social. “A música e poesia, intrinsecamente ligadas ao gesto e à dança, saem de

encantação mágica, nos ritos religiosos e sociais.” (RAMOS, 2007, p. 103). Além dessas

modalidades, os negros africanos deixaram o legado do samba, do batuque e do samba de

roda.

Dessa forma, vale destacar que antes mesmo de Hildegardes Vianna defender a idéia

de que o negro não contribui significativamente para o folclore brasileiro, o pesquisador

Arthur Ramos já apresentava as contribuições significativas do negro para a cultura brasileira.

Dessa forma, se avançar na questão e aproximar os estereótipos de negras construídos pela

cronista-folclorista ao contexto histórico, em que situa suas histórias, período que teóricos

como Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Euclides da Cunha acreditavam que a presença do

negro no Brasil inviabilizava a civilização branca, pois esse era tido como sinônimo de atraso

e que a solução para o desenvolvimento da nação estava na uniformização de uma raça pura,

pode-se imaginar as seqüelas que tais idéias imprimiram na população afro-baiana, uma vez

31 Griot é um termo francês utilizado pela mitologia ioruba para designar o contador de história, o responsável por transmitir o conhecimento à tribo.

Page 39: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

que, ao negar a humanidade ao indivíduo, impede-o de desenvolver um senso de dignidade

humana.

O certo é que os povos de matriz africana não foram responsáveis somente pelo

povoamento do território brasileiro e pela mão-de-obra escrava. Marcaram e marcam, de

forma irreversível, a formação social, histórica e cultural do Brasil, estando presente em quase

todos os movimentos sócio-políticos que se desenrolaram no país. São responsáveis pela

adequação de técnicas pré-capitalistas, aplicadas na mineração, agricultura, cerâmica,

nutrição, metalúrgica e estratégias de construção, assim como na elaboração do português

africanizado e da religião com sua cozinha sagrada e seus princípios filosóficos.

Desse modo, Hildegardes Vianna deixa como herança textos repletos de uma visão

machista, racista e segregadora da elite baiana. Como mulher branca e representante da “nata”

da sociedade soteropolitana, a cronista observa das sacadas do sobrado onde habitava o ir e

vir das negras pelas ruas de Salvador. E é justamente com esse “olhar de superioridade” que

as representa de forma estereotipada. Lança-se nos textos um véu sobre a vida social e pessoal

das negras, representadas como mão-de-obra barata. Imagens modeladas por uma gama de

preconceitos, encobertos por eufemismos que contornam o discurso maleável da cronista.

Assim é que os textos de Hildegardes Vianna que apresentam as mulheres negras estão

repletos de traços legitimadores de preconceitos existentes na sociedade soteropolitana

ligados à cor da pele, às feições do rosto, ao tipo de cabelo, ao lugar que a população negra

deve ocupar no mercado de trabalho e a uma gama infindável de elementos que desqualificam

ou desmerecem o indivíduo. O modo pelo qual destaca e se refere a esses traços fortalece

argumentos sobre a pretensa inferioridade dos africanos e de seus descendentes.

Page 40: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

CAPÍTULO II A BAHIA JÁ FOI ASSIM: UM RETRATO EM “PRETO E BRANCO” ___________________________________________________________________________

Nas sacadas dos sobrados, da velha São Salvador há lembranças de donzelas, do

tempo do Imperador. Tudo, tudo na Bahia faz a gente querer bem a Bahia tem um jeito que nenhuma

terra tem!

Dorival Caymmi32

No final do século XIX, com a decadência do mercado da cana-de-açúcar, a Bahia,

grande produtora da especiaria, parecia, sob muitos ângulos, uma cidade paralisada, tanto que

nas primeiras décadas do século seguinte foi considerada a capital brasileira que apresentou as

menores taxas anuais de crescimento populacional. 33

Segundo Risério (2004), o declínio na demanda externa do açúcar implicava na queda

da demanda interna dos produtos industrializados. Tendo em vista que a cidade do Salvador

possuía umas poucas fábricas que se concentravam na produção de tecidos grossos para vestir

escravos e ensacar mercadorias, por conseguinte atrelada à cultura da cana-de-açúcar, a

decadência da exportação conduziu a Bahia ao desmantelamento progressivo do nascente

parque industrial.

As fábricas baianas estavam subordinadas ao comércio e ao movimento de

exportação/importação, sustentado, principalmente, pelo açúcar e o fumo, ou pelo algodão e

cacau. Assim, Risério (2004, p. 463), com muita propriedade, explica: “[...] as empresas

baianas manufatureiras não se expandiram por conta do nosso próprio sistema econômico, que

era estruturalmente agrário-mercantil.” 32 Estrofe da música Você já foi à Bahia? A música foi lançada pelo compositor baiano Dorival Caymmi em 1941. A letra da música possibilita interpretar que a descrição feita é da cidade de Salvador chamada de “Bahia”. Segundo Pierre Verger (1999), o nome “Bahia” tem sido utilizado tanto por brasileiros como por estrangeiros para se referir à cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos, a capital do estado da Bahia. Devendo seu nome à baia em torno da qual se localiza o Recôncavo, bem como à data de todos os santos, quando foi descoberta e batizada pelos portugueses em primeiro de novembro de 1501, a cidade que aí cresceu tornou-se conhecida como Bahia. Tanto para aqueles que vivem no interior do estado, quanto para aqueles que vivem no exterior do país, Salvador tornou-se intencionalmente conhecida como “Bahia”. Baseada nessa designação previamente estabelecida, toma-se nessa dissertação de mestrado a liberdade de utilizar o nome “Bahia” para referir-se a Salvador. 33 Risério (2004) informa que os recenseamentos oficiais demonstram que, de acordo com a realidade demográfica da Bahia entre 1920 e 1940, o crescimento populacional foi de 0,2%.

Page 41: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Outro fator preponderante contribui para o desânimo que assolava a Bahia. O governo

federal deixa o estado de fora do impulso industrial que se deu na nação com o advento da I

Guerra Mundial. Nessa época, a industrialização brasileira avançou significativamente,

principalmente pela impossibilidade de continuar importando produtos de países que estavam

envolvidos com a guerra.

Em 1920, o surgimento da Siderúrgica Belgo-Mineira e da Companhia de Cimento

Portland, em São Paulo, marca uma nova fase brasileira, com o governo envidando maiores

esforços para a industrialização do país e superação dos entraves ao crescimento industrial. 34

No entanto, as iniciativas ficaram restritas ao eixo sulista.

O quadro se agravou mais ainda entre as décadas de 1920-1940, período que balizou o

momento em que a depressão baiana foi mais profunda. No período do Estado Novo, da

ditadura de Vargas, a Bahia vivia um ostracismo industrial, com uma política econômica que

não beneficiava a elite baiana, e quando o governo federal passou a dar prioridade às

atividades que estavam fora do universo econômico da região. Antônio Risério, ao descrever a

Revolução de 1930, explicita o motivo que levou o presidente a boicotar o estado baiano:

[Carlos] Prestes bateu Getúlio Vargas na disputa presidencial. Mas a oposição, em movimento armado, reunindo os políticos tradicionais da Aliança e os tenentes, impediu a posse do presidente eleito e a de seu vice, o baiano (e governador da Bahia) Vital Soares. Esse processo político-militar, que acabou conduzindo Getúlio Vargas ao poder, ficou conhecido como a ‘Revolução de 30’. Começava a morrer ali, naquele ano, a velha estrutura republicana brasileira. E tinha início a ‘Era Vargas’, que passaria pela implantação da ditadura do ‘Estado Novo’ (uma variante tropical – atenuada – do fascismo europeu), para se estender até 1945. (RISÉRIO, 2004, p. 484).

Dessa forma, descortina-se o mistério que fazia com que Vargas esquecesse

economicamente a Bahia. A elite política baiana era anti-Vargas. Afinal, se não fosse o golpe,

Vital Soares, que renunciara ao governo da Bahia a fim de ser vice de Carlos Prestes, teria se

tornado vice-presidente do Brasil e o estado não ingressaria no marasmo econômico.

Fragilizada pela ausência de recursos financeiros, a classe dominante soteropolitana parecia

simplesmente perdida. Vivia numa região potencialmente riquíssima, mas carente em

transporte, energia e mergulhada no desprestígio político, com o Governo Federal exercendo

uma política fiscal de refração.

34 De acordo com o antropólogo Antônio Risério (2004), a carência de uma indústria de base foi um dos maiores entraves para o desenvolvimento industrial do país.

Page 42: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Se comparada ao século XIX, pode-se afirmar que a estrutura urbana de Salvador

permaneceu inalterada nos primeiros anos do século XX. Assistiu-se, do decorrer do período,

ao melhoramento de algumas ruas, muitas vezes patrocinadas por particulares; introdução de

alguns serviços de transportes, asseio e limpeza, iluminação e distribuição de água, mas nada

de muito significativo que representasse uma mudança substancial na estrutura da cidade.

Quanto à arquitetura, persistiam as fachadas dos casarões senhoriais, com estado precário de

conservação, que se associavam à insalubridade e má conservação do centro comercial da

cidade.

Figura 2 - Pelourinho em 190035

De acordo com reportagens do periódico O Diário de Noticias36 (31/01/1912), outro

aspecto que caracterizava as ruas da cidade era a estreiteza e a topografia do terreno

acidentado. Realizava-se a construção de moradias de acordo com a vontade do executante,

sem nenhuma preocupação com a circulação, fosse do ar, da luz ou dos transeuntes. Criavam-

se assim ruas mal calçadas e estranguladas, com pouca luminosidade e ventilação. A partir

dessas descrições, observa-se que a vida na cidade não era tão fácil, com ruas estreitas e

insalubres, ameaça constante de epidemias e endemias e os ineficientes serviços de

transportes e saneamento urbanos.

Em 1912, a aristocracia ficou esperançosa com a primeira fase do governo de J. J.

Seabra, pois seus planos de reformas civilizadoras, progressistas e modernizadoras,

35 Fotografia retirada de http://www.wikipedia.org. 36 Fundado em Salvador em 1875, O Diário de Notícias na década de 1910 tornou-se o jornal de maior tiragem e circulação da cidade.

Page 43: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

prometiam uma Salvador próspera. O Diário de Noticias traz o depoimento sobre a

expectativa com as eleições 37:

O povo da Bahia sempre viveu desiludido, nada esperou dos seus homens dirigentes, nada esperou das suas administrações. Nessa apathia, nesse torpor, nessa descrença, veio elle, o povo dessa grande terra até que se deu o momento reacionário. Todas as armas foram empregadas, todos os esforços, todas as energias: a imprensa, a tribuna, o comício popular, a barricada, os combates nas ruas. Afinal venceu. Sem sangue, sem desordem, sem arruaças, foi eleito, estrondosamente eleito, a 28 do mês expirante, o Dr. J. J. Seabra, o bahiano ilustre, o bahiano honesto, o bahiano benemérito, que muito há de fazer pela sua terra, como já tem feito, aliás. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 31/01/1912).

Tão profunda empolgação, demonstrada no texto, expressa, segundo o jornal, a

esperança que “o povo da Bahia” depositava ao governo de J. J. Seabra. No entanto, baseado

no reformismo urbano carioca, o urbanismo seabrista foi predatório. Tendo como meta

dinamitar o Centro Histórico e erguer sobre as ruínas uma cidade moderna, iniciou a ofensiva

demolidora com a derrubada da Sé da Bahia, pois acreditava que a demolição da igreja

resolveria o problema de tráfego.38 Insurgiu nessa fase uma luta contra os sombrios e

decadentes casarões coloniais, as ruas estreitas e insalubres, a ameaça constante de epidemias

e endemias, os ineficientes serviços de transportes e saneamento urbanos. Acrescentava-se a

essa etapa liberar as ruas da predominante tez escura da população, dos costumes

africanizados largamente difundidos e da "licenciosidade" das mulheres pobres. Higienizar o

espaço público era tarefa que exigia novos padrões de sociabilidade, com vistas à

reorganização radical da família, do trabalho e dos costumes. Nessa perspectiva, o projeto de

reforma urbana tinha como objetivo melhorar a qualidade de vida da população e preparar o

espaço público para o livre tráfego das “famílias de bem”.39

Dentro dessa conjuntura, Donald Pierson (1945) ratifica que a Bahia teve poucas

mudanças sociais com a chegada do século XX. De acordo com esse sociólogo, até a chegada

de 1940, Salvador,

37 J. J. Seabra foi ministro da Justiça de Rodrigues Alves, quando ele realizou a reurbanização do Rio. Eleito governador da Bahia, transplantou para cá a experiência carioca, influenciada por Paris. 38 Segundo Risério (2004), a Sé foi um monumento histórico. A construção da Igreja da Sé da Bahia era dos fins do século XVI, período da construção de Salvador. 39 Mais informações sobre a reforma seabrista, consultar FILHO, Alberto Heráclito Ferreira. Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura popular em Salvador (1890 – 1937). Afro-Ásia nº21, 1998, p. 239-256.

Page 44: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

[...] cidade velha, bem consciente e orgulhosa de suas antigas tradições, com o comportamento costumeiro, que originalmente desenvolvera em respostas às necessidades da vida colonial, ainda persistia orientando a vida, quase pelos mesmos e familiares caminhos. [...] Salvador tinha sido, há muito tempo, uma cidade relativamente isolada; o isolamento intensificou as relações pessoais e, assim, promoveu o desenvolvimento de costumes locais, em resposta às circunstâncias e condições particulares. (PIERSON, 1945, p. 94).

Para Pierson, a Bahia, até 1940, era uma área “culturalmente passiva”, onde existia

uma estabilidade e uma ordem que lembrava a Europa da Idade Média. Em cada ponto da

cidade, dominava uma igreja, não havia prédios modernos de escritórios, nem edifícios

industriais. A igreja exercia sobre a população um relativo controle, além de o prestígio

militar ser elevado. As famílias constituíam-se como um grande símbolo de uma sociedade

pré-industrial, com sua organização patriarcal, em que o homem mais velho era o chefe da

casa e todos lhe deviam obediência.

Nesse contexto, em que as forças tradicionais definhavam e a Bahia presenciava, com

a abolição da escravatura, o lançamento sobre o mercado de trabalho de um forte contingente

de população trabalhadora livre, que disputava emprego, as elites baianas tornam-se

intolerantes e fecham-se dentro de um esquema de estratificação rígida, que adota como linha

de demarcação a cor da pele. De um lado, os senhores brancos, do outro, os negros pobres.

Assim, Hildegardes Vianna recorda uma época em que a distribuição da população da

cidade se dava por grupos étnicos e a sociedade aristocrática preservava lugares e posições

demarcadas para a população negra. Segundo Pierson (1945), ao longo das elevações, na

cidade de Salvador, hoje identificada como Cidade Alta, situavam-se as ruas principais, com

as mais importantes linhas de transportes (bondes, ônibus e automóveis). No que tange à

facilidade de acesso, eram os lugares mais convenientes para residências, ali se encontravam

as casas das classes superiores, os descendentes da velha aristocracia, os grandes

proprietários, os intelectuais da cidade, os médicos, os advogados e políticos. Essas famílias

possuíam inúmeras propriedades e muitos empregados.

Os vales, Cidade Baixa, eram os lugares das residências menos confortáveis. Ali, o

calçamento desaparecia e os moradores utilizavam-se de trilhos, onde, após a chuva, a argila

vermelha aparecia e tornava-se escorregadia e perigosa. Nesses locais, viviam as classes

sociais inferiores, ou seja, de baixo poder aquisitivo. As habitações eram simples, casebres

constituídos por uma armação de madeira recoberta de barro, com chão de terra, recoberto

com areia fresca da praia. O teto era na maioria das vezes feito com folhas de palmeiras. A

Page 45: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

mobília constituía-se de bancos ou tambores rudimentares, às vezes uma cadeira barata e

esteira para dormir. O fogão era feito de lata de óleo sem fundo, nem tampa. Sobre os

habitantes dessas residências, Pierson descreve:

[...] homens, mulheres e crianças de todas as idades, a maior parte descalça ou calçando simples tamancos, trazendo muitas vezes na cabeça, com facilidade, cestas ou bandejas de doces, frutas, legumes ou flores para o mercado, grandes trouxas de roupa para serem lavadas em um lago próximo, latas de Standard Oil cheias de água, jacas, melancias, cachos de banana, sacos de farinha de mandioca; [...] De aparência notável eram as baianas que passavam – pretas altas e graciosas, acostumadas desde a infância a carregar com facilidade grandes pesos na cabeça [...] (PIERSON, 1945, p. 102, grifos nossos).

A partir dessa descrição, pode-se inferir que os moradores dos bairros pobres da

cidade de Salvador se constituíam, na sua maioria, por negros e, como define Pierson, por

“pretas altas e graciosas”, “de aparência notável”, enquanto os lugares mais agradáveis e bem

localizados, que ficavam na parte alta da cidade, eram ocupados pela elite soteropolitana,

constituída de brancos. Pierson ainda afirma:

[...] os brancos e os mestiços mais claros ocupavam os altos da cidade, que eram mais confortáveis, saudáveis e cômodos, onde, portanto, os imóveis eram mais caros; ao passo que os pretos e os mestiços mais escuros residiam geralmente nas áreas baixas, menos convenientes e saudáveis, bem como nas áreas afastadas, menos acessíveis, onde, portanto, os imóveis eram mais baratos. Em outras palavras, os ‘altos’ dos ricos correspondiam, em geral, às áreas residenciais dos brancos e dos mestiços mais claros, enquanto que os vales dos pobres e as regiões adjacentes correspondiam, em grande parte, às áreas residenciais da parte mais escura da população. (PIERSON, 1945, p. 105).

Nesse contexto de desigualdades, não é de se surpreender que os negros se

concentrassem nos empregos de baixo status e de pequeno salário, enquanto os brancos

atuavam em trabalhos de uma escala superior, com remuneração que lhes garantia manter um

padrão de vida satisfatório.

A partir desse breve panorama, constata-se que a vida da população negra, na cidade

de Salvador, na primeira metade do século XX, não era das mais fáceis. Isso se devia aos

princípios tradicionais do tempo da escravidão, que ainda permeavam as relações na cidade

soteropolitana, definindo desigualdades sociais e raciais, forjando valores, etiquetas de mando

e obediência.

Page 46: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Acredita-se que o trabalho escravo foi determinante para estabelecer regras de

convivência entre brancos e negros. A propósito do tema, Hildegardes Vianna escreve a

crônica Antigamente gente de cor (19/03/1968), um retrato significativo de como se davam as

relações inter-raciais na Bahia. Logo ao iniciar o texto, descreve a situação da população

negra com um verso pejorativo que habitualmente era declamado pela elite soteropolitana:

“Branco, branco na janela/ Mulato no corredor/ E negro no Cagador.” E continua: “[...] no

século passado e em boa parte do atual, o negro era massacrado, espezinhado, reflexo natural

dos tempos da escravidão”.

Na crônica, expõe-se a banalização do racismo, reduzindo-o à esfera de meros

preconceitos da sociedade ou “reflexo natural da escravidão”. A idéia de subestimação do

racismo objetiva criar a impressão de que tudo vai bem na sociedade, imprimindo um caráter

banal às distorções socioeconômicas entre as populações de diferentes etnias. Ao mesmo

tempo, legitima a posição social ocupada pelas elites soteropolitanas.

Essa incapacidade de perceber a discriminação racial existente no Brasil tende a

reforçar um tipo de racismo camuflado e não assumido de uma sociedade que, querendo-se

parecer harmônica e democrática, não pode esconder que lida mal com a cor que tem. Por

esse motivo, as imagens depreciativas sobre os negros precisam ser reiteradas por estereótipos

que asseguram aos não-negros as qualidades negadas aos “de cor”.

Tal idéia é reforçada quando Hildegardes Vianna, ainda na crônica, descreve que

“gente de cor” (aqui entendida como negra) tinha que reparar e tomar cuidado com o modo de

pisar, de falar, de proceder na casa alheia. Se fosse casa de rico, o cuidado tinha que ser

maior. Não era hábito se posicionar em frente de uma pessoa da elite de cor branca, mesmo

sendo convidado:

Gente de cor, normalmente pobre, a não ser que fosse mal educada ou mal compreendida, não se sentava na frente de uma pessoa de situação superior à sua, ainda que estivesse doente e fosse convidado com insistência a tomar assento. Mesmo quando incitado, desfazia-se em desculpas, relutando se devia ou não obedecer às pernas que pediam descanso ou ao que era determinado pela convenção social. (VIANNA, A Tarde, 19/03/1968, grifos nossos).

Na crônica Antigamente gente de cor chama atenção o destaque dado pela cronista ao

identificar que o status econômico ocupado pelas pessoas negras “normalmente é pobre”. A

autora também afirma que o branco que não tivesse condições financeiras favorável passava a

pertencer à mesma categoria do negro. “O branco pobre, socialmente nivelado ao negro, não

Page 47: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

raro se tornava subserviente, humilhado, como se a pele clara fosse uma sobrecarga.” Assim,

de acordo com Hildegardes Vianna, a discriminação ultrapassava a questão racial.

A crônica ainda expõe as relações étnico-raciais, em que os negros também evitavam

intimidades com os brancos de categoria “superior”, pois, conforme ensinamento de seus

ascendentes africanos, o negro tinha de se respeitar e apresentar noção de dignidade, exceto se

fosse “mal educado” ou “mal compreendido”. Se havia pessoas que se vangloriavam de nunca

ter apertado uma mão de “gente de cor”, não haveria motivos para que os negros

dispensassem atenção aos brancos.

[...] negro que se assuntasse evitava maiores expansões ou intimidades com os brancos de categoria superiores. Conforme o ensinamento dos mentores, o negro precisava saber guardar conveniências, por que negro que não se assuntava era negro duas vezes. (VIANNA, A Tarde, 19/03/1968, grifos nossos).

O termo “se assuntasse” pode ser entendido que o negro deveria manter-se em seu

lugar e aceitar a inferioridade. Hildegardes Vianna afirma que, mesmo mantendo os valores,

os descendentes de africanos que trabalhavam em casas de família, logo após a saudação de

entrada, deveriam seguir direto à cozinha, nas pontas dos pés, para de lá só sair em

atendimento a chamados ou prestar algum serviço subalterno. Já na porta da rua tirava os

chinelos e colocava-os entre os dedos com as mãos escondidas nas costas, por constituir falta

de respeito permanecer de pés calçados em frente de senhores e senhoras de “consideração”.

A atitude de não retirar os sapatos era inadmissível na época, visto que estar calçado

sinalizava uma marca de emancipação. Logo, poderia ser interpretado como ausência de

submissão aos proprietários das residências.

Vale destacar que no Brasil colonial e imperial os sapatos eram proibidos para os

cativos. Assim, algumas imagens do período mostram, no exemplo mais típico dessa situação,

africanos vestidos com luxo e colorido, porém descalços, segurando cadeiras de arruar.40 Esse

aspecto parece ter sido uma das últimas barreiras a serem transpostas pelos que conseguiam

ascender socialmente. Quando se tornavam livres, podiam usar sapatos. Com as mulheres, o

rigor era menor. Algumas podiam usar chinelas de couro, baixa e cobrindo as pontas dos

pés.41

40 As cadeiras de arruar eram um meio de transporte usado pelos senhores de engenho na época colonial. Estes se sentavam em uma cadeira e eram carregados pelos escravos. 41 Raul Lody (2003, p. 28) atribui origem muçulmana a essa chinela outrora comum, que se caracteriza como “ chinelos de pontas de couro branco, couro lavrado, o chamado changrim”.

Page 48: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

As “mulheres de cor” só tinham destaque nos funerais ou cerimônias católicas de

batismo, por terem servido com devoção a certas famílias e terem se tornado amigas antigas.

Hildegardes Vianna explica:

As mulheres de cor, nos dias de enterro, integravam o cortejo fúnebre, carregando as bandejas de flores ofertadas ao defunto. Nos batizados eram convocadas para segurar a criança. Se era uma pessoa muito dedicada e de muitos préstimos, era tomada como madrinha de apresentação42. Compreenda-se, entretanto, que esse compadrio não queria dizer que suas regalias aumentassem ou suas restrições diminuíssem. Comia na cozinha e nunca passava da copa nos dias de gala. (VIANNA, A Tarde, 10/03/1968).

Sobressai-se na crônica a explicação sobre o distanciamento que deveria ser mantido

entre negros e brancos, mesmo quando esse “merecia” um destaque no espaço familiar em

que trabalhava. A demarcação do espaço geográfico residencial que as negras deveriam

ocupar (a cozinha ou a parte dos fundos da casa) apresenta-se no texto como uma fronteira

entre brancos e negros.

Na crônica Reminiscência de negra velha (13/05/1955), Hildegardes Vianna apresenta

uma negra nonagenária, filha de “carigés”, que descreve como o negro era tratado.43 O leitor

atento observa que autora atribui à senhora comentários indicadores de que a população negra

vivia um momento de igualdade racial:

Quem é que diz que essas negrinhas, minhas parceiras, parceiras delas mesmas, são netas de ‘Carigés’? Está tudo vivendo feito gente. No meu tempo de negrinha, negro era escravo da velha, filho de porco que não suspendia os olhos do chão. [...] No meu tempo negro se enterrava na Massaranduba, onde os caranguejos roíam os defuntos antes da missa do 7º dia . Negro agora é gente. Agora é que deviam festejar o 13 de maio. Agora que acabou o cativeiro. (VIANNA, A Tarde, 13/05/1955).

Destaca-se no trecho a atenção dada pela cronista à frase da senhora negra: “Negro

agora é gente”. Tem-se o conhecimento de que no período de publicação da crônica, 1955, a

população negra já tinha adquirido algumas conquistas, como liberdade para se locomover

para onde bem desejasse e direito a freqüentar a escola. No entanto, no Brasil, o negro ainda

estava distante de gozar de todos os direitos de um cidadão livre.

Sobre a inferiorização do negro apresentada na crônica, é imprescindível entender que,

durante a segunda metade de século XIX, as teorias raciais deterministas chegam ao Brasil,

42 Segundo Hildegardes Vianna (1971), a madrinha de apresentação é a mulher que representa um dos padrinhos na cerimônia do batismo, quando este não pode comparecer. 43 “Carigés” é a denominação empregada para definir no período da escravidão os escravos libertos.

Page 49: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

difundindo a idéia de que os negros e indígenas pertenciam a uma categoria inferior aos

brancos e que os primeiros eram incivilizáveis, logo, não pertenciam ao grupo dos seres

humanos. Lílian Schwarcz esclarece:

Modelo de sucesso na Europa de meado dos oitocentos, as teorias raciais chegam tardiamente ao Brasil, recebendo, no entanto, uma entusiasta acolhida, em especial nos diversos estabelecimentos científicos de ensino e pesquisa, que na época se constituíam enquanto centro de congregação da reduzida elite pensante nacional. As teorias raciais seriam um reflexo das doutrinas utilizadas pelos ideólogos do imperialismo, justificando o domínio europeu sobre os demais povos. (SCHWARCZ, 1993, p. 14).

A análise de Renato Ortiz acerca da disseminação das teorias raciais no Brasil também é

relevante:

O que surpreende o leitor, ao se retomar as teorias explicativas no Brasil, elaboradas em fins do século XIX e início do século XX, é a sua implausibilidade. Como foi possível a existência de tais interpretações, e, mais ainda, que elas tenham se alçado ao status de Ciências. A releitura de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues é esclarecedora na medida em que revela esta dimensão da implausibilidade e aprofunda nossa surpresa, por que não um certo mal-estar, uma vez que desvenda nossas origens. A questão racial tal como foi colocada pelos precursores das Ciências Sociais no Brasil adquire na verdade um contorno claramente racista [...] (ORTIZ, 2003, p. 13).

Assim, mesmo após 1870, fase em que as teorias chegaram ao Brasil, as idéias racistas

permaneceram presentes no universo soteropolitano. Em 1933, Nina Rodrigues (apud

SCHWARCZ, 1993, p. 208) foi um dos responsáveis por disseminar essas teorias na Bahia,

defendendo que “os grupos negros eram considerados em seu conjunto e em nome da

imparcialidade da ciência um impedimento à civilização branca, ou melhor, um dos fatores de

nossa inferioridade como povo”.44

Segundo Schwarcz (1993), Nina Rodrigues, aceitando a premissa básica do racismo e da

superioridade da raça branca, defendia a idéia de que os não-brancos ameaçariam a

civilização, pois o atraso psíquico dos negros, que ainda não haviam ultrapassado o estado

44 Segundo Schwarcz (1993), Nina Rodrigues, através do estudo de crânios, defendia a idéia de que os negros e os indígenas pertenciam à categoria dos seres inferiores. O negro tenderia à loucura, à paranóia e ao crime devido à presença de caracteres retrógrados no cérebro. Fundador da “Escola Nina Rodrigues”, dentro da Faculdade de Medicina da Bahia, congregou um núcleo de médicos responsáveis pela instalação da medicina legal no Brasil. Os profissionais que integravam a “Escola Nina Rodrigues” defendiam que a raça ou o cruzamento racial explica a criminalidade, a loucura e a degeneração.

Page 50: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

infantil da humanidade, aproximava-os dos animais. Antes de Schwarcz, Pierson já

denunciava em seu livro alguns pensamentos racistas de Nina Rodrigues:

Em 1900, aproximadamente, Nina Rodrigues, conhecendo intimamente certos africanos na Bahia e impressionado pelo passo vagaroso com que eles e seus descendentes estavam abandonando as formas culturais africanas e sendo assimilados ao mundo branco, e, também influenciado em grau considerável por estrangeiros, levantou com toda seriedade a questão da incapacidade do negro para se adaptar às civilizações de raças superiores. (PIERSON, 1945, p. 254).

As idéias desse pesquisador e médico maranhense, que primavam em atestar a

incivilidade da população negra, desdobraram-se em outros conceitos racistas a partir de

traços fenotípicos. Essas apreciações associavam os corpos dos negros às trevas e à escuridão

por apresentarem a cor da pele escura. As linhas do rosto, tidas como grosseiras,

representariam supostamente o caráter e o comportamento também tidos como rudimentares e

atrasados. Assim, os ex-escravos são excluídos não apenas por terem ocupado a posição

degradante de escravos, mas porque são considerados, pelos discursos científicos, inferiores,

incapazes e responsáveis pelo atraso do país diante das nações européias brancas.

Essa visão discriminatória do negro está endossada na crônica O feio da raça, em que

Hildegardes Vianna inicia o texto com um comentário preconceituoso de Afrânio Peixoto. 45

O acadêmico declara o receio de que o alisamento eliminasse o torço da baiana e que o feio da

raça negra ou mestiça era o cabelo e não a cor. Os comentários racistas da autora prosseguem,

citando seu pai, Antônio Vianna, que enumerou depreciativamente os apelidos das cabeças

“portadoras de carapinhas”: “Cabeça seca, cabeça fria, cabeleira de xoxô, cabelo de romper

fronha, cabelo de perder missa, cabelo amoroso ao casco, cabeleira de sebo, cabeleira

teimosa, etc”. 46 (VIANNA, A Tarde, 10/03/1969).

Hildegardes Vianna considera o cabelo crespo um problema que não pesava tanto aos

homens, pois poderiam cortá-lo, deixando-o rente ao couro cabeludo. No entanto, os homens

que conservassem os cabelos compridos eram tidos como desordeiros, que faziam uso da

cabeleira para guardar as armas do delito. Assim, a primeira providência da polícia, ao

prendê-los, era raspar os cabelos para verificar o que havia dentro. Os meninos negros tinham

pavor de ter as cabeças raspadas para não serem confundidos com ladrões.

45 Afrânio Peixoto (Júlio A. P.), médico legista, político, professor, crítico, ensaísta, romancista. Terceiro ocupante da Cadeira de número 7 (sete) na Academia Brasileira de Letras, eleito em 7 de maio de 1910, na sucessão de Euclides da Cunha. 46 Xoxô - óleo retirado da amêndoa do coco dendê.

Page 51: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

O cabelo duro, para o homem de cor, não pesava tanto, a ponto de se transformar em um problema. Bastava cortar o cabelo bem rente ao casco. Só os mandiguerotes, ladrões, desordeiros, malandréus ou que nome tivessem, cultivavam uma vasta gaforrinha, sem complexos de espécie alguma. O verdadeiro matagal de fios duros emaranhados servia para acomodar a navalha traiçoeira, surgida em momentos críticos, ou algum cilindro pequeno com pó venenoso destinado a sortilégios. Por isso a primeira providência da polícia, quando fisgava um marginal, era tirar os botões de sua calça para evitar a fuga. Em seguida raspar a cabeça para ver o que é que havia. (VIANNA, A Tarde, 10/03/1969).

.

Já as mulheres, segundo a autora, não tinham a mesma sorte, uma vez que “os cabelos

eram uma verdadeira cruz”. Se os cabelos eram “fêmeos”, dando para prender, o caso não era

tão grave. Mas se os fios fossem “machos”, às vezes não dava para fazer trança, então tinham

que usar como artifício uma rotina antiga, usada nos tempos da escravidão: um pano na

cabeça para esconder a cabeleira.47

De acordo com a cronista, desde criança começava o martírio das mulheres negras. Se

as meninas tivessem quem cuidasse, mantinham os cabelos arrumados em uma trança nagô,

rente ao couro cabeludo. Já as “catarinas”, crianças responsáveis por executar as mais

variadas funções dentro da casa dos patrões, como não possuíam o privilégio de ter uma

pessoa que tratasse das madeixas, tinham os cabelos “tosados” rentes ao couro cabeludo, uma

exigência do branco para manter a higiene no ambiente doméstico. As “catarinas”, na maioria

das vezes, não eram remuneradas e suportavam o sofrimento de realizarem tarefas impróprias

à idade, em troca de comida e um teto para dormir, pois haviam sido “doadas” pela mãe para

trabalhar como ama-seca ou doméstica.48

As negrinhas e mulatinhas que tinham quem lhes chorassem, ficavam com o cabelo do tamanho que Deus lhe dera, machos ou fêmeas, acomodados em trabalhosas trancinhas que emprestavam ao couro cabeludo um aspecto semelhante ao de uma moderna planta urbana com ruas e vielas. As catarinas tinham os cabelos tosados totalmente como um João qualquer [...] (VIANNA, A Tarde, 10/03/1969, grifos nossos).

Algumas mulheres que tinham os cabelos mais crespos sofriam com as trancinhas,

pois tinham que apertar bastante para fixar, chegando a arrancar os cabelos em volta da face e

47 Os termos “macho” e “fêmea” eram empregados para caracterizar os tipos de cabelos das mulheres negras. O cabelo “macho” referia-se aos fios mais crespos e difíceis de pentear. Já o cabelo “fêmea” apresentava fios mais maleáveis. 48 Segundo Hildegardes Vianna, a ama-seca na maioria das vezes se constituía de negras que, ao secar o leite, permaneciam na casa, cuidando da criança branca. Mas no caso da criança branca não ter tido uma “mãe de leite”, os pais contratavam uma menina negra para realizar a função de ama-seca.

Page 52: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

do pescoço, eram chamadas “cabeças roídas”. Para ocultar as feridas no contorno do rosto,

tinha-se uma fita preta larga em volta da cabeça.

O cabelo pelado era uma medida de higiene para evitar a proliferação dos piolhos e uma forma drástica de evitar perda de tempo. Pentear cabelo duro era uma maratona para o dono e para o penteador.49 Logo só com a puberdade, ou pouco além, dependendo da boa vontade da patroa, a rapariga ensaiava deixar o cabelo crescer. Caso contrário, passavam a usar um torço, para evitar que presenciassem sua humilhação. (VIANNA, A Tarde, 10/03/1969).

Ainda na crônica O feio da raça, Hildegardes Vianna emprega palavras que conotam

desumanização, ao comparar o cabelo das negras ao pêlo de animal. O termo “tosados” é

usualmente empregado para se referir ao corte ou apara de pêlos em animais. Evidencia-se,

mais uma vez, a visão depreciativa em relação às negras e sua vinculação a características de

animais.50 Outro aspecto a ser considerado é a identificação das meninas com um “João

qualquer”. A apropriação de tal expressão conota um abandono, um ser sem identidade,

masculinizado, sem família, ou seja, sem importância na sociedade, “um qualquer” que

“depende da boa vontade da patroa”. Produz-se assim, uma invisibilidade da negra na

sociedade.

Esses e outros estereótipos reforçam no imaginário da população que lia as crônicas

uma representação de mulher negra baseado em valores pejorativos, mas que se sedimentam,

a partir de sua repetição, tornando-se assim características usuais quando se trata da definição

dos perfis desses atores sociais. Entretanto, não se pode deixar de destacar que o modo pelo

qual Hildegardes Vianna insere tais figuras em suas crônicas é fruto evidentemente da forma

como essas representações também se afixaram, tanto no seu imaginário quanto no da maioria

das pessoas expostas a essa construção imagística. Para Homi Bhabha, a construção do

estereótipo

[...] é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre no lugar já conhecido e algo que deve ser ansiosamente repetido [...] Como se a duplicidade essencial do asiático ou a bestial

49 O “penteador” é o cabeleireiro que ia pela freguesia arrumando o cabelo das negras que podiam pagar. Eram os tios da Costa, que cortavam , entrançavam ou aplicavam sanguessugas em caso de doenças. 50 Segundo Roberto Ventura (2000), a teoria das desigualdades raciais se difundiu no Brasil, nas últimas três décadas do século XIX, junto com os ideários positivistas, naturalistas e evolucionistas. Redefinidas e adaptadas às condições locais, deram origem a modelos de pensamento que desvalorizam a figura do negro, comparando-o a animais.

Page 53: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

liberdade sexual do africano, que não precisam de prova, não pudessem jamais ser provadas no discurso. (BHABHA, 2001, p. 119).

O estereótipo funciona como uma simplificação, não é uma falsa representação de

uma realidade, uma forma presa, fixa, que nega a alteridade e recalca as diferenças culturais.

Assim, o primeiro movimento da formação do estereótipo consiste em projetar no Outro tudo

que causa rejeição e repulsa. Bhabha (2001), ao definir o estereótipo como algo que está

sempre no lugar já conhecido e que deve ser repetido, recorre a Freud do Fetichismo e a

Fanon de Pele negra, máscaras brancas, propondo uma explicação para a representação

fetichista do estereótipo, define-o como “um aparato que se apóia no reconhecimento e

repúdio de diferenças raciais, culturais e históricas”. O fetiche e o estereótipo aproximam-se

na “recusa à diferença” (BHABHA, 2001, p. 116).

As questões colocadas por Bhabha permitem entender como são fixados atitudes e

pensamentos recalcados e “defeitos” que passam a traços predeterminados do Outro. Desse

modo, os traços fenotípicos das mulheres negras são associados à feiúra, por não

corresponderem ao padrão socialmente aceito de beleza. Logo, no imaginário da elite branca,

dentro desse contexto de feiúra, um dos lugares que a negra deve ocupar na sociedade é a

cozinha do branco.

A pesquisadora Florentina da Silva Souza (2005, p. 56) afirma que a reprodução

cotidiana de uma representação estereotipada, além de interferir na construção da auto-

imagem, gera uma vivência “neurotizante”, uma vez que, a todo o momento, o indivíduo

precisa estar contestando e lutando contra a imagem de si mesmo, cristalizada no imaginário

da elite e até no seu próprio imaginário.

Pensar em relações raciais focada na mulher negra tem uma dupla especificidade, pois

trata-se de um indivíduo atingido profundamente pelo racismo e pelo sexismo. É nesse

sentido que afirma Lélia Gonzalez: “Para nós o racismo se constitui como uma sintomática

que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com

o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular.” (GONZALEZ, 1983,

224).

É frente a esse plano de análise que essa pesquisa se depara com o texto excludente,

racista e sexista de Hildegardes Vianna, que representa uma identidade feminina marcada pelo

estereótipo de inferioridade e passividade. Negras, mulheres sem nome, destituídas de beleza,

de educação e de racionalidade, estas são as “personagens” das crônicas analisadas.

Reforçando o preconceito e reafirmando os estereótipos sobre o negro a partir do

cabelo, Hildegardes Vianna publica mais uma crônica, Do cabelo duro (17/03/1969):

Page 54: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Para moça de bom cabelo nunca houve problemas, mesmo quando os fios fossem muito finos ou de contextura pesada, dificultando o penteado. Mas cabelo duro era diferente, antes de já haver o alisamento, quem tinha cabelo duro, mesmo abundante, sofria, nem sempre com resignação, uma rotina antiga herdada dos tempos da escravidão. Era a cabeça amarrada num lenço para encobrir o cabelo, tivesse o nome de torço ou apenas de pano amarrado.

Quem andava com o cabelo descoberto tinha seu modo próprio de lavar, enxugar e lubrificar a cabeleira, depois do que fazia suas mutucas ou trancinhas, tal como as que tinham cabelo macho.51 Na hora de pentear, desmanchava tudo, passava e repassava o pente, tornando a dividir a coifa em quatro partes, que eram acomodadas em quatro tranças enredadas mais tarde na parte traseira da cabeça. O torço ou pano era então posto bem apertado, para acamar o penteado, até o momento de sair ou ser exibido. Já dizem os engraçadinhos que cabelo duro não se cortava nem se penteava. Acamava-se.

Cabeça amarrada, sem arejar, era prejudicial ao cabelo, da mesma forma que as trancinhas apertadas de quem tinha cabelo macho. O fio enfraquecia e caía. Picotar ou cortar as pontas dos cabelos e enfiar no olho do filhote da bananeira era uma providência acertada. Era uma simpatia para o cabelo crescer e encher. Esperar a maré de enchente do quarto crescente, para jogar aparas do cabelo na terceira onda que quebrasse na praia, era também efeito garantido. Mas nem todas tinham resultado positivo. (VIANNA, A Tarde, 17/03/1969).

A cronista assegura que a negra teria que se resignar com a sua situação e a única

solução era usar um pano na cabeça para ocultar a feiúra dos fios. Nessa perspectiva, são

descritos os artifícios a que essas mulheres recorriam para amenizar o sofrimento de ter

“cabelo duro”. Se o cabelo crespo, na época a que a autora se refere, era visto como mais uma

forma de expor a imagem das negras, o tratamento a ele conferido nas crônicas é importante

para deixar transparente aos leitores a feição assumida pela folclorista.

Dando prosseguimento, observa-se que os comentários difamatórios não ficaram

restritos ao tipo de fio dos cabelos das negras, pois, segundo Hildegardes Vianna, outro

problema enfrentado pelas mulheres negras eram os piolhos e as caspas. Para solucionar a

inconveniência, tentava-se embebedar os piolhos, despejando cachaça ou álcool entre os

cabelos e amarrando a cabeça com um pano grosso. Momentos depois, passavam um pente

fino. Para os piolhos renitentes havia várias fórmulas: pisava-se a folha da cicuta macerada no

álcool, o caroço de pinha posto de infusão na cachaça ou torrado e misturado com azeite de

coco.

51 “Mutucas”, segundo Hildegardes Vianna, são pequenas porções de cabelo bem retorcidas e presas em miniaturas de coque.

Page 55: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

A autora conclui a sua crônica celebrando o surgimento do ferro, uma técnica de

alisamento, que “salvou” a mulher negra do cabelo duro: “Mas o sol nascera para todos. O

ferro entrou em ação”. (VIANNA, A Tarde, 17/03/1969). No entanto, mesmo com o ferro, a

autora destaca que as mulheres negras ainda estavam distantes de alcançar o ideal de beleza:

“Eram horríveis os primeiros alisamentos, os fios esticados, lambuzados de óleo, cortados

como vassouras de piaçava, lembrando vassouras usadas para lavar urinórios”.52 A analogia

feita pela cronista entre o cabelo da mulher negra e a vassoura de piaçava apresenta de forma

cruel o processo de discriminação vivenciado pelas negras, à medida que eram “obrigadas” a

adotar padrões de higiene e beleza incompatíveis com a sua realidade.

As representações negativas do negro no Brasil têm suas origens no período da

escravidão. A idéia de que a população negra era feia se desenvolveu na maioria das cidades

brasileiras que receberam escravos. A cor escura da pele, em contraste com a alvura da pele

branca, tornou-se sinônimo de sujeira e sub-humanidade. Tudo que representava a negritude

era visto como negativo.53 Os traços físicos e os cabelos crespos passam a ser associados à

agressividade e falta de refinamento. Tais imagens pejorativas, associando a mulher negra à

feiúra, foram produzidas durantes décadas. A figura da “nega maluca” com os cabelos

desgrenhados ilustra bem o pensamento que se tinha dos cabelos das negras. Dessa forma, a

busca do alisamento funcionou como uma alternativa para a construção de uma identidade

que se aproximasse dos padrões exigidos. No entanto, essa construção dilemática de negação

da própria etnia dinamiza a construção de uma auto-imagem distorcida, em busca do

afastamento da realidade física.

O cabelo da negra, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade que

recai sobre as mulheres. Ver o cabelo da mulher negra como “ruim” e o da branca como

“bom” expressa de forma emblemática esse conflito. Por isso, mudar de cabelo significa a

tentativa de sair do lugar de inferioridade, um sentimento de autonomia, expresso nas formas

ousadas e criativas de usar o cabelo.

52 De acordo com o dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), a piaçava é uma palmeira de onde se extrai fibras resistentes para o fabrico de vassouras, que, por sua vez, serão usadas para retirar o lixo das residências. 53 A noção de negritude aqui apresentada é no sentido biológico ou racial, apresentado por Munanga (1986) no livro Negritude: usos e sentidos. Tudo que tange à “raça” negra. É a consciência de pertencê-la. A negritude também é entendida por Munanga como um movimento que prega o resgate de valores da civilização africana, recuperando a memória africana para trazer orgulho ao negro. Segundo a escritora Elisa Nascimento (1981), o movimento surgiu primeiramente na literatura, como uma forma de recusa à dominação da cultura européia e como tentativa de retorno àquilo que seria primordial da “raça negra”, representado pelas tradições e valores africanos. “O movimento da negritude é primeiramente de proclamar a originalidade da organização sócio-cultural dos negros para, depois, sua unidade ser definida através de uma política de contra-aculturação, ou seja, desalienação autêntica.” (MUNANGA, 1986, p. 56).

Page 56: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

A intelectual negra norte-americana Bell Hooks destaca a riqueza de sua experiência

no ritual de alisamento dos cabelos:

Para cada uma de nós, passar o pente quente no cabelo é um ritual importante. Não é símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não existem brancos em nosso mundo íntimo. É um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres [...] Antes que se alcance a idade apropriada, usaremos tranças; tranças que são símbolos de nossa inocência, juventude, nossa meninice. O salão de beleza era um espaço de aumento da consciência, um espaço em que as mulheres negras compartilhavam contos, lamúrias, atribulações, fofocas – um lugar onde ser acolhida e renovar o espírito. Entretanto, essas implicações positivas do ritual do alisamento do cabelo ponderavam, mas não alteravam as implicações negativas. Essas existiam concomitantemente. Dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que surge o costume entre os negros de alisarmos nossos cabelos – essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com freqüência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa auto-estima. Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Por meio das diversas práticas insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos a respeito do nosso valor na sociedade da supremacia branca. Aos olhos de muita gente branca e outras não negras, o black parece palha de aço ou um casco. As respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres negras revelam comumente como nosso cabelo é percebido na cultura branca: não só como feio, como também atemorizante. Nós tendemos a interiorizar esse medo. (HOOKS, Revista Gazeta de Cuba, janeiro-fevereiro de 2005, grifos nossos).

A catarse da pesquisadora apresenta os sentimentos de insegurança e medo das negras

que convivem de forma dilemática com a prática de negar-se a si mesma ao alisar os cabelos.

Como os estereótipos deixam marcas na auto-estima dessas mulheres que querem se

aproximar do padrão de beleza branco determinado pela mídia. O quanto é atemorizante o

fato de não ser aceita pela cultura dominante branca. A consciência ou o encobrimento desse

conflito vivido na estética do corpo negro marca a vida e a trajetória dos sujeitos. Por isso,

para a mulher negra, a intervenção no cabelo é mais do que uma questão de vaidade ou de

tratamento estético. É identitária. Assim, o que Hildegardes Vianna considera como fatos de

“antigamente” permanecem presentes na vida da população negra.

As lutas dos movimentos e organizações negras em diversas partes do mundo têm

trazido ganhos significativos, invertendo imagens negativas em positivas. Em resposta a

discriminação estético-racial, na Bahia, os blocos afros têm contribuído para incentivar a

Page 57: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

população negra a cada vez mais se valorizar. Impulsionado pelo movimento Black is

Beautiful, o bloco Ilê Aiyê inicia uma profunda renovação estética nos habitantes negros de

Salvador. A principal delas é adoção dos cabelos crespos, com penteados black power ou

compostos por trançados.

Ao criar novas formas de beleza, a estética afro tem contestado os valores

estabelecidos no senso comum, em que predominam os padrões eurocêntricos, comprovando

que a beleza é passível de transformação e redefinição, uma vez que, a partir dessa

perspectiva estética, as mulheres negras passam a se sentir belas e aceitarem os cabelos

crespos.

No que se refere ao cheiro da mulher negra, Hildegardes Vianna, na crônica Cheiro de

suor (03/12/1968), aborda outro tipo de preconceito sofrido pelas negras. O cheiro do suor

que sai dos corpos das “catarinas” que trabalhavam nas casas das famílias brancas era tido

como desagradável e comparado a odores de animais. Segundo a autora, essas meninas foram

responsabilizadas durante muito tempo por transmitirem o mau cheiro do suor para as filhas

da patroa. Branca não podia brincar com filha de empregada, pois “Catinga é própria do

negro, gemiam as bonitas senhoras [...]” (VIANNA, A Tarde, 03/12/1968).

O cheiro do corpo das pessoas de descendência africana tornou-se um motivo a mais

para classificá-las como mais próximas dos animais do que dos seres humanos. A palavra

“catinga”, de origem Tupi, era o termo usado para descrever o odor que seria “característico”

dos negros, dos índios e dos animais. Assim, a negritude era associada à feiúra, sujeira e

odores corporais. Até hoje, a noção racista de que o corpo negro cheira mal tem resultado em

uma vigilância constante para muitas pessoas negras, que se esforçam para manter o corpo

desodorizado e asseado, a fim de negar o estereótipo. Manipular a aparência torna-se então

uma necessidade, uma forma de controlar o medo da repugnância e rejeição.

Destaca-se também nas crônicas de Hildegardes Vianna a maneira utilizada pelos

brancos para se dirigir às pessoas negras. Segundo a cronista, qualquer pessoa de cor branca

era sempre tratada de “vosmincê”. O “mulato” e o negro, por sua vez, eram tratados pelo

branco de tu e você, respectivamente. Um afro-brasileiro não abraçava um branco, ombro a

ombro, abaixava-se e cingia as pernas ou, quando muito, os quadris. Curvar a cabeça e

escolher as palavras eram uma constância na vida dessas pessoas. Na crônica A benção, tem-

se uma ilustração do tratamento entre brancos e negros:

Embora o negro fosse considerado integrante da escala social mais baixa, havia o negro tu, o negro você e o negro vosmincê. O negro tu era o escravo,

Page 58: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

o agregado, o afilhado, criado com carinho no meio de uma família; negro que por seu préstimo e modos, se faziam merecer certo destaque. O negro você era o negro comum, escravo ou liberto, carregador, ganhador ou o que fosse, sem maior valia que as forças dos seus músculos para trabalhar e alcançar o sustento da vida. O negro vosmincê era o endinheirado, o chefe do grupo, o feiticeiro, o que conseguia se elevar no meio de onde viera, estudando e lutando por um destino melhor; era a negra velha das famosas casas de mestras, a negra idosa que se fazia respeitar pelo seu procedimento e virtudes morais. (VIANNA, A Tarde, 30/04/1968).

Na crônica a autora não apresenta qualquer posicionamento crítico sobre as relações

étnico-raciais, limita-se a descrevê-las, endossando ao final: “E ainda há quem diga que não

estamos vivendo hoje uma perfeita integração racial [...] O povo antigo que o diga.”

(VIANNA, A Tarde, 30/04/1968). Assim, ao acompanhar a construção dessa mentalidade

racista e preconceituosa, vê-se que essas idéias foram incorporadas no cotidiano baiano,

gradativamente, até se naturalizarem.

Nos anos 1930, no Brasil, num contexto de consolidação do Estado Nação, um

discurso de democracia racial começa a circular com o escritor Gilberto Freyre no livro Casa

Grande e Senzala (1933). Em busca de um símbolo que representasse a nacionalidade

brasileira, Freyre traz em sua obra o mito de que no Brasil as três “raças” branco, negro e

índio vivem de forma harmônica e as relações inter-raciais possibilitaram, através da

miscigenação, a criação do povo brasileiro, o mestiço.54

Esse discurso pretensamente “democrático” e institucionalizado apregoou a

inexistência de racismo ou discriminação. No entanto, contraditoriamente, estabeleceu a

manutenção de estruturas sócio-econômicas nas quais as profundas desigualdades se

cristalizaram. O antropólogo Kabengele Munanga (1999) entende o silêncio sobre as

desigualdades raciais como um traço da ideologia da democracia racial brasileira, que leva os

brasileiros a negarem a existência da discriminação.

O certo é que o mito da democracia racial tem uma penetração muito profunda na

sociedade brasileira, exalta a idéia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as

camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades

e impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem consciência dos sutis

mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade. Tal mito encobre os conflitos

54 A grande contribuição de Freyre é ter mostrado que negros, índios e mestiços tiveram contribuições positivas na cultura brasileira, influenciaram profundamente o estilo de vida da classe senhorial em matéria de comida, indumentárias e sexo. A mestiçagem, que na visão de Nina Rodrigues causava danos irreversíveis ao Brasil, era vista por Freyre como uma vantagem.

Page 59: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros, e afasta das comunidades

subalternas a tomada de consciência de suas características culturais.

O tratamento dispensado aos negros pela elite baiana não passou despercebido aos

visitantes e pesquisadores estrangeiros que aqui estiveram nas primeiras décadas do século

XX. A antropóloga norte-americana Ruth Landes, em 1938, ao realizar pesquisa na Bahia

sobre as mães-de-santo faz a seguinte constatação:

As pessoas da classe alta, em geral bem educadas e exercendo profissões liberais, gostam imensamente dos negros e adoram exibi-los. Quando dizem ‘negro’, designam apenas o tipo que vi nas ruas – a gente trabalhadora mal remunerada, que se distingue pelas roupas, pelas músicas e por outras características incomuns. Não pretende indicar meramente indivíduos de determinada cor; e, de fato, geralmente dizem ‘africanos’ ou ‘afro-baianos’, em vez de ‘negro’ que é considerado pejorativo. Um termo preferido é ‘preto’. Mas nem ‘preto’, nem ‘negro’, nem ‘africano’ são usados com referência a pessoas desse tipo físico que ocupem posições nas classes superiores. A educação ou o dinheiro, isolada ou conjuntamente, retiram o indivíduo do pitoresco grupo dos ‘negros’. (LANDES, 2002, p. 53).

A partir das observações de Landes (2002), apresentam-se pistas de quanto a negritude

estava associada à situação de pobreza. A ascensão social era sinônimo de libertação do

estigma de marginalidade. Através da promoção social, os negros passavam a pertencer a uma

categoria intermediária e eram mais aceitos pela elite.

É justamente desse contexto das relações étnico-raciais que Hildegardes Vianna vai

tratar. O surpreendente é que, quando se identifica o período em que as crônicas foram

publicadas, 1955 a 1999, constata-se que já havia uma mudança significativa na economia

baiana. A Bahia ingressara, paulatinamente, na expansão do movimento industrial brasileiro.

A partir de 1950, com a criação de um setor petroleiro e o incentivo do Governo Federal,

através de uma política de isenção tributária, via SUDENE, demarca-se significativamente

uma nova fase baiana. A implantação da Petrobrás significou um volume de investimento

inédito em toda história econômica desse estado.55

Risério atesta que os salários pagos pela empresa eram maiores do que o mercado

baiano costumava oferecer, chegando a provocar elevação de preços em áreas de

concentração petroleira. “O volume de investimentos e a massa de salários, numa região

marcada pela escassez habitacional, resultou no crescimento da indústria da construção civil

[...]” (RISÉRIO, 2004, p. 514). Deste modo, a Petrobrás foi para Cidade da Bahia, sinônimo

55 A Petrobrás, inicialmente, constituiu-se como uma empresa estatal, fundada em 1953, com a proposta de monopolizar a exploração e produção do petróleo.

Page 60: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

de mudança e enriquecimento, com a construção de estradas na área petrolífera e o

surgimento de pequenas indústrias.

A SUDENE, Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, origina-se de uma

intervenção estatal no sentido de combater o atraso técnico e econômico da região nordestina,

ou seja, medidas para superar o desequilíbrio regional brasileiro, com sua conseqüente

disparidade nos níveis de renda. Então, o Governo Federal entra em cena e providencia,

através de incentivos fiscais, a oferta de capitais à montagem de um setor industrial na região.

Essa política “sudeniana” de captação de recursos, em 1960, sentenciou a industrialização

nordestina. De acordo com Risério, pessoas jurídicas nacionais poderiam abater 50% do

imposto de renda devido, caso o montante fosse aplicado em empreendimentos nordestinos.

Posteriormente, o estímulo foi concedido também às empresas estrangeiras sediadas no Brasil.

Assim, o Nordeste passou a ser concebido como uma possibilidade de negócio atrativo.

A Bahia, por conseguinte, nas décadas de 1960 e 1970, foi quem mais se beneficiou

com essa onda de investimento. Risério afirma ainda que o estado absorveu mais da metade

dos investimentos feitos no Nordeste, na área da metalurgia, da mecânica, da borracha e da

química. Resumindo, a expansão do capitalismo brasileiro para a região nordestina engendrou

uma nova realidade baiana. O jornal de A Tarde ilustra bem a importância da SUDENE para

região nordestina:

O Conselho Deliberativo da SUDENE em 1968 aprovou 148 projetos industriais com investimentos no montante de 955,6 milhões de cruzeiros novos [...] Estes projetos possibilitarão a criação de mais 21.472 empresas diretas e estáveis na região, beneficiando mais de cem mil pessoas quando instaladas as indústrias. (A Tarde, 11/01/1969, p. 5).

Dentro dessa nova realidade, com a instalação de novas indústrias e com aumento

significativo da oferta de empregos, encontra-se a população negra baiana. A década de 1970

foi momento decisivo na história das relações étnico-raciais, reavivando as discussões

originadas em 1930, época em que a Frente Negra Brasileira na Bahia insurge no estado.56

Os anos 1970, período da ditadura militar no país, foram marcados por momentos tensos e

intensos, numa conjuntura que leva ao questionamento sobre a imagem do Brasil e dos

56 Segundo Risério (2004), A Frente Negra Brasileira na Bahia foi um movimento que surgiu no estado, reivindicando educação e respeito à negritude. Cursos de alfabetização, datilografia, música e línguas são oferecidos, visando preparar a população para o mercado de trabalho. Criada por um operário e dirigida por “pretos” e mestiços de condição bastante modesta, o movimento teve, exclusivamente, a participação de trabalhadores.

Page 61: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

brasileiros, na política, no cinema, na música popular, na religião e no carnaval, com vistas à

construção de um país democrático.

No que tange à movimentação negromestiça, detonou-se uma ação em prol de marcar

a diferença em ser negro, a partir da ideologia do pluralismo cultural. As décadas de 1970 e

1980 marcam a consolidação de uma classe média negra na Bahia. O aumento da oferta

educacional e o crescimento econômico do Brasil viabilizam a ascensão social individual de

uma minoria afro-baiana, alargando a possibilidade de participação na economia e na

sociedade. De acordo com Risério (2004), a expansão da estrutura educacional e a reforma

universitária geraram um aumento de matrículas, e a instrução se mostrou como um

mecanismo favorecedor da mobilidade social do negro. O Movimento Negro Unificado

Contra a Discriminação Racial57 é filho deste crescimento educacional e da introdução do

povo afro-baiano nas universidades. 58

Na cidade de Salvador, em 1970, com a consolidação de uma minoria que

representava a classe negra, iniciou-se uma agitação política e cultural dos negromestiços na

direção de um “etnocentrismo negro”, nos termos de Antônio Risério. Surgiu, então, o

movimento denominado por Risério de “triplo esforço de apropriação”: apropriação do

próprio passado, apropriação do presente africano e apropriação do presente negro norte-

americano.

No que se refere à apropriação do passado, Risério (2004) considera que houve uma

tentativa de esvaziar a data do 13 de maio, dia em que a princesa Izabel assinou o decreto que

abolia o trabalho escravo no Brasil, para instituir o 20 de novembro como o Dia Nacional da

Consciência Negra, em homenagem a Zumbi dos Palmares, tido como o herói da resistência

negra.

Sobre a apropriação de modelos norte-americanos, destaca-se o campo estético em que

a juventude afro-baiana se apropriou de “signos vestuais e gestuais”, além de ter incorporado

o slogan black is beautiful. Por fim, a apropriação da África. Houve uma grande mudança no

modo de olhar esse continente. Alguns brasileiros passam a perceber a África como um

espaço plural, com povos diversos que falam línguas diferentes e têm visões de mundo e

modos de vida bem distintos entre si. 57 Segundo Abdias Nascimento (1982), o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) surge, enquanto movimento politico, em 7 de julho de 1978, com um ato público organizado em São Paulo contra a discriminação sofrida por quatro jovens negros no Clube de Regata Tietê. 58 O termo “negromestiço” é empregado por Risério (2004) em A Cidade da Bahia para identificar um segmento da população constituído da miscigenação entre brancos e negros. Por aproximar-se mais das características físicas dos brancos, os negros mestiços tiveram mais facilidades em se apropriar de certos símbolos de status, como circular livremente pelas festas da elite baiana. Assim, à medida que subia de classe, o mestiço passou a ocupar situação intermediária, diferente tanto do branco dominante quanto do negro escravizado.

Page 62: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

No entanto, alguns pesquisadores contrapõem-se a Risério e consideram que as

conquistas da população negra não estão imbricadas apenas ao desenvolvimento econômico

do país, mas sim ao surgimento, ao longo da história do Brasil, de inúmeras organizações

negras que procuraram reagir ao racismo e a exclusão. O professor Clovis Moura (1989)

apresenta algumas revoltas que ocorreram ao longo da história do Brasil em que o negro se

fez presente:

Nas lutas pela expulsão dos holandeses, nas lutas pela independência e a sua consolidação, na Revolução Farropilha, nos movimentos radicais da plebe rebelde, como a Cabanagem, no Pará, no Movimento Cabano, em Alagoas, ele esteve presente. Também na Inconfidência Mineira, na Inconfidência Baiana, para lembrarmos mais alguns, a sua presença é incontestável como elemento majoritário ou como participação menor. Após o fim da escravidão e do Império, o negro se incorpora aos movimentos da plebe, como Canudos, na comunidade do beato Lourenço, e, mais destacadamente, na revolta de João Cândido. Desde as primeiras lutas sociais do Brasil que o negro, ao delas participar, conseguiu ampliá-las e transformá-las em lutas sócio-raciais. Isto é, colocou um componente novo, abriu o leque de participação e reivindicações, porque uniu essas lutas de exploração às reivindicações de etnia negra, que além de explorada era discriminada racialmente. (MOURA, 1989, p. 39-40).

Assim, observa-se que em todos ou na maioria dos movimentos sócio-políticos que se

desenrolaram no país durante a sua trajetória social e histórica houve a contribuição do negro.

Quer na Colônia, quer no Império, a população negra esteve presente e está presente até os

tempos atuais em todas as lutas travadas ou projetadas nessa nação, demarcando seu lugar e

lutando por uma sociedade mais justa com direitos iguais para todos os cidadãos brasileiros,

independente de sua etnia.

Patrícia Pinho (2004) também considera que a ascensão social da população negra,

mesmo de forma tímida, deu-se pelos diversos movimentos sociais projetados em que o negro

se fez presente reivindicando mais direitos. Sem desmerecer os vários e importantes exemplos

de reação organizada de negros no Brasil, que existem desde a época Colonial com o

nascimento dos quilombos e das irmandades religiosas, a pesquisadora destaca que é possível

considerar a década de 1930 como o período em que se iniciou o “movimento negro

brasileiro”.

A Frente Negra Brasileira (FNB), principal expressão negra dos anos 1930, nasce de

iniciativas de jornais como O Clarim e Alvorada que começam a denunciar as práticas

discriminatórias contra os negros, existentes na procura de emprego, no ensino, nas atividades

e lugares de lazer. Apesar de protestar contra a situação desprivilegiada do negro, revelava em

Page 63: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

seu discurso uma assimilação da ideologia do branqueamento. Nesse sentido, ao mesmo

tempo em que se estimulava uma identidade especificamente negra, buscava integrar o negro

à sociedade brasileira. Tratava-se assim de uma identidade que combinava “a busca por

aceitação com o reconhecimento de uma diferença”, baseada na percepção do tratamento

desigual dado aos negros, especialmente no mercado de trabalho. A Frente defendia que o

negro se tornasse adequado ao mercado de trabalho, através da manipulação de sua aparência.

Pinho (2004, p. 87) rememora em sua pesquisa que nos anos 1940 e 1950 o

movimento ainda carregava algumas das características da década anterior, pois continuava

considerando que o negro deveria buscar dentro de si qualidades que o ajudariam a superar as

dificuldades impostas pela sociedade. Nessa direção, a alegria, a espontaneidade e a

criatividade, características tidas como inatas do negro, passaram a ser exaltadas. Bastante

influenciado pelo movimento literário da Negritude, o Teatro Experimental do Negro (TEN),

fundado por Abdias do Nascimento, buscou enfatizar valores do povo negro, invocando as

qualidades que lhe seriam próprias: a emotividade, a passionalidade e a teatralidade.59 A

repercussão do TEN colaborou para criação de uma intelectualidade negra, valorizando a

educação como valor de promoção social dos negros excluídos. Com base nas idéias do pan-

africanismo, essa educação priorizava o ensino da história da África como maneira de mostrar

ao negro a sua origem grandiosa, dando-lhe motivos para que se sentisse bem com sua própria

negritude, possibilitando o surgimento de uma identidade negra baseada no orgulho das

origens africanas.

Nos anos 1960, nos Estados Unidos e no resto do mundo a centralidade da África para

a formação das identidades negras eclodiu com os ideais Black is Beautiful. Esse movimento

inverteu os sinais dos símbolos corporais associados aos negros (pele escura, cabelo crespo,

glúteos avantajados) até então vistos como pejorativos, os quais tornaram-se símbolo de

beleza. A influência desse movimento, aliado às repercussões no Brasil das lutas pela

independência ocorridas em diversas colônias africanas, desembocaram, em 7 de julho de

1978, em São Paulo, do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, o

59 Segundo Clovis Moura (1983), o movimento literário da negritude foi inaugurado por volta de 1934 e concebido por estudantes africanos e antilhanos, em Paris. Esse movimento estético se derivou da necessidade de concretização da ideologia da negritude, no entanto esse propósito foi alargado de tal maneira a confundir a proposta estético-literária com as propostas sociais, econômicas e culturais mais abrangentes. O termo "Negritude" aparece pela primeira vez escrito por Aimé Césaire, em 1938, no seu livro de poemas, "Cahier d'un retour au pays natal", que está intimamente associado ao trabalho reivindicativo de um grupo de estudantes africanos em Paris, nos princípios da década de 1930, no qual se destacam como principais responsáveis e dinamizadores Léopold Sédar Senghor (1906), senegalês, Aimé Césaire (1913), martinicano, e Leon Damas (1912), ganês. Estes autores da Negritude legaram-nos uma obra literária da máxima importância, mas foi Senghor que, com a presidência do seu país (Senegal) e uma larga aceitação Ocidental (política literária e acadêmica), contribuiu decisivamente para a divulgação da Negritude.

Page 64: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

MNUDR, que mais tarde viera a se tornar MNU. Predominaram, na fundação do MNU, as

influências dos movimentos negros norte-americanos e a idéia da “volta às raízes africanas”,

além da denúncia aberta ao racismo brasileiro. O processo de miscigenação racial passa a ser

visto como resultado da exploração violenta da mulher negra pelo homem branco e como

perpetuação do racismo brasileiro. Rompendo com o silêncio atrelado ao mito da democracia

racial, o MNU exalta o orgulho da “raça negra” como forma de explicitar as diferenças entre

negros e brancos no Brasil. Este contexto possibilitou a construção de identidades negras

orgulhosas.

As publicações de artigos com o intuito de reclamar os direitos do povo negro também

fizeram parte dos movimentos negros. De acordo com a pesquisadora Florentina da Silva

Souza, em todo Brasil as décadas de 1970 e 1980 são marcadas pelo crescimento de jornais e

revistas que se dedicaram à publicação de artigos para divulgar as atividades e reivindicações

das entidades negras.

Influenciados pelo universo político-cultural do período e dele participantes, e, ainda, utilizando um processo alternativo de edição e distribuição de textos, muito em voga nas épocas de setenta e oitenta, os editores e autores dos CN e do Jornal do MNU filiam-se mais diretamente ao que denomino de uma tradição textual alternativa, que há muito tempo faz uso desses expedientes com objetivo de pôr em circulação textos, jornais e revistas produzidos por negros e mestiços em algumas cidades do país. (SOUZA, 2005, p. 31).

Os periódicos Cadernos Negros - CN e o Jornal do Movimento Negro Unificado –

MNU, à época denominado Nego, surgiu em 1978 e 1981 respectivamente.60 Os textos

publicados tinham o objetivo de se insurgir contra os tradicionais sistemas de representação,

visando à reformulação de conceitos e imagens da população negra, como também almejavam

apresentar reivindicações contra a exclusão.

Especificamente, encontram-se nos Cadernos Negros textos com depoimentos de uma

geração de escritores que exigiam um espaço para a voz negra na vida cultural e na literatura

brasileira. Para tanto, são tematizados vários aspectos da vida cotidiana do afro-brasileiro em

particular, tais como necessidade de construção de uma auto-imagem positiva, o resgate das

tradições de origem africana e o combate às manifestações cotidianas de discriminação e

preconceito racial na escola e no trabalho.

60 Segundo Souza (2005), os CN começaram a ser publicados em 1978, em São Paulo, com a participação de escritores negros procedentes de vários estados brasileiros.

Page 65: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Os escritores abordam nos Cadernos Negros os temas em uma perspectiva crítica,

visando alterar o sistema e as relações tradicionais de representações, nos quais a categoria

“negro” é construída tendo como fundamento os estereótipos depreciativos. Trata-se agora de

idealizar outra representação e problematizar a exclusão dos negros.

Segundo Florentina da Silva Souza:

Os elementos da etnicidade negra, como cor da pele, passado histórico, ancestralidade africana, tradição religiosa e linguagem ritual aparecem e fixam-se como componentes dos textos impulsionado pelas experiências e dramas vivenciados no cotidiano e na história dos afro-brasileiros que, em vários momentos, expressam o desejo de incluir outros excluídos e de interferir nos sistemas de determinação de valor. Pretendem instalar uma outra pedagogia, munidos de símbolos e de histórias que permitam a construção de outro discurso valorativo e de outros paradigmas críticos e de análise. (SOUZA, 2005, p. 68).

Ainda de acordo com a pesquisadora, nas décadas de 1970 e 1980 houve certo

interesse de intelectuais brasileiros para o estudo e a revisão da história do negro no Brasil.

Assim, no universo acadêmico ocorreram diversas publicações de pesquisas diretamente

ligadas à história e cultura negra no país, como O Nagô e a morte, de Juana Elbein Santos

(1975); Escravidão e racismo, de Octavio Ianni (1977); Ser escravo no Brasil, de Kátia

Mattoso (1982) e outros.

Já o Jornal do Movimento Negro, além do esforço de conscientizar os leitores da

necessidade de reconfigurar a auto-imagem e redefinir o papel do negro na história de

construção do Brasil, também aborda aspectos sócio-econômicos da vida cotidiana dos afro-

descendentes na sociedade brasileira.

Indubitavelmente, a segunda metade do século XX foi um momento em que o

paradigma do pluralismo passou a permear todo campo discursivo na Bahia, com o negro

situando-se no palco das atenções, possibilitando, apesar de uma minoria, a mudança da

situação de subalternidade para a possibilidade de ascensão social e intelectual.

Nesse contexto de efervescência em ser negro, a festa carnavalesca foi o principal

canal de afirmação étnica. Os blocos afros e os afoxés convergiram na campanha contra o

sincretismo religioso, concomitante com iniciativas dos Movimentos Negros para garantir os

direitos dos negros na sociedade. Tudo isso se viu integrado em um mesmo movimento,

considerado de “racialista” ou “afrocentrista” extremado. O negromestiço queria ser aceito em

sua singularidade, em sua diferença, com direitos e deveres garantidos pela sociedade.

Page 66: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Os blocos afros, a partir de 1970, contribuíram significativamente para enriquecer o

processo de reafricanização do carnaval baiano, divulgando uma variedade de elementos da

nova “estética afro”, que então se criava. Tranças, roupas coloridas, bijuterias feitas de

conchas, contas e palhas da costa passaram a fazer parte do cenário da cidade. 61 Os afoxés,

por sua fez, escandalizavam a elite branca baiana, ao levar às ruas os ritmos e símbolos do

candomblé, através de uma estratégia de enegrecer o corpo para conferir auto-estima e

dignidade.62

De certa forma, os blocos afros alinham a identidade racial com o africanismo cultural.

O renascimento do movimento político negro nas décadas de 1970-1980 denuncia o racismo

no país, ao mesmo tempo em que se iniciava o processo de reafricanização de algumas

manifestações de origem negra. Em 1974, surge em Salvador o bloco afro Ilê Aiyê, mais tarde

seguido pelo Olodum, Malê Debalê e Araketu.

Na sua primeira apresentação nas ruas de Salvador, durante o carnaval de 1975, o Ilê

Aiyê enfatiza a beleza negra, veste uma indumentária inspirada nas vestimentas africanas e

canta:

[...] é o mundo negro que viemos mostrar para você Somos crioulos doidos Somos bem legal Temos cabelo duro Somos black pau.63

Em 1980, os blocos afros ampliam seus objetivos, deixando de atuar apenas no

campo lúdico do carnaval para elaborarem estratégias de alcance social com a promoção do

negro. Tais estratégias consistiam em desenvolver, durante todo ano, atividades sociais,

culturais, pedagógicas e educacionais, visando melhorar a condição de vida da população

negra e fortalecer a prática dos direitos humanos e a defesa dos interesses da comunidade

afro-brasileira.

Vale destacar, segundo Risério (2004), que, antes mesmo de surgir esse movimento de

afirmação nas décadas de 1970 e 1980, na década de 1930 os candomblés já se constituíam

como pontos de resistência. A partir de um crescimento considerável em números, passaram a

61 Segundo Kátia Mattoso (1988), faz parte da “estética afro” símbolos que remetem à África. O termo afro é utilizado para designar aquilo que, apesar de ter sido construído fora da África, tem a função de remeter ao continente africano ou ao que se pensa dele. 62 De acordo com o dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), o afoxé, também chamado de Candomblé de rua, é um cortejo de rua que sai durante o carnaval. Trata-se de uma manifestação afro-brasileira com raízes no povo iorubá, em que seus integrantes são vinculados a um terreiro de candomblé. O termo afoxé provém da língua iorubá. 63 Letra da música, Que bloco é esse?, de Paulinho Camafeu.

Page 67: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

ocupar as áreas urbanas de Salvador. De forma estruturada, encontravam-se dentro desses

espaços verdadeiros centros comunitários, organizações hierárquicas bem definidas e

rigorosas, em que a autoridade do líder e a solidariedade intergrupal eram normas dominantes

e indiscutíveis.

No livro Cidade das Mulheres, Landes (2002) identifica que o período de 1937 é

marcado pela tendência de aumento do poder feminino no candomblé, a exemplo dos terreiros

tradicionais do Gantois e Axé Opo Afonjá. Segundo a antropóloga, “a vontade das mulheres

de construir trajetória independente dentro do candomblé e, significativamente, na sociedade

envolvente em geral é marcante.” (LANDES, 2002, p. 24). Assim, a sua pesquisa identifica

que o matriarcado não é exclusividade das “famílias de santo”, termo consagrado por Vivaldo

da Costa Lima (1977), mas existe também nas famílias negras e pobres, nas quais a mulher,

na sua grande maioria, é responsável por prover a casa.

Na contramão dessa onda “afrocentrista” dos anos 1970 e 1980 que denuncia que a

Bahia ainda é preconceituosa, Hildegardes Vianna se volta para o início do século XX,

trazendo à tona lembranças de uma época em que a população negra só tinha como alternativa

a realização do trabalho braçal. No prefácio do livro A Bahia já foi assim, observa-se o

sentimento saudosista: “A Bahia já foi assim, até mais ou menos 1940. Depois, tudo mudou.”

(VIANNA, 1973, s/p.). Assim, a cronista escreve de forma nostálgica sobre uma Bahia

considerada pelos historiadores de “paralisada e tradicional”, que, com o declínio da

economia agroexportadora e a irrealização do sonho da industrialização, amargava dias de

marasmo e estagnação e continuava produzindo o preconceito racial.

As representações da população negra estigmatizada de negatividade levaram a

cronista, em 1997, a ser acionada pelo Centro de Educação e Cultura Popular, CECUP, no

Ministério Público por crime de racismo.64 Ao publicar em 08/09/1997, na sua coluna

semanal a crônica O destino de Lúcifer, uma lenda sobre a criação do homem, escrita pelo

folclorista paulista Aloísio de Almeida, Hildegardes Vianna cita trechos da lenda original, em

que o autor declara que o homem negro teria sido feito pelo Diabo: “De fato o Chifrudo achou

muito bonito o primeiro homem. Foi fazer o dele, mas tinha acabado o barro branco. E o pior

é que o preto já saiu brigando com quem o fez. Também levou um tapa que lhe esborrachou o

nariz para sempre”. (ALMEIDA, apud VIANNA, 1997).

64 Centro de Educação e Cultura Popular (CECUP) é uma entidade privada, sem fins lucrativos e sem vinculação partidária ou religiosa. Com a finalidade de promover a defesa e a garantia dos direitos humanos, o CECUP, fundado há 22 anos em Salvador (BA), mantém programas de políticas públicas e direitos humanos, etnia e educação e cultura.

Page 68: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

A citação de trechos da lenda de Lúcifer, sem constar de nenhuma posição crítica da

autora sobre o preconceito racial, ao contrário, o endossou, causou uma repercussão negativa

na comunidade de pesquisadores negros. Notas com críticas sobre o racismo da autora foram

publicadas em 16/09/1997, no jornal A Tarde, mesmo periódico em que fora vinculada à

crônica. Manoel de Almeida Cruz, sociólogo, e a coordenadora pedagógica da Escola

Criativa Olodum, Gerusa Bispo dos Santos, denunciam que Hildegardes Vianna não fez uma

leitura crítica do texto e reproduziu valores desfavoráveis ao negro, contribuindo para a baixa

auto-estima e fortalecimento de imagens preconceituosas. Para professora Gerusa Bispo dos

Santos:

O artigo publicado nesse conceituado jornal de autoria da professora Hildegardes Vianna, intitulado ‘O destino de Lúcifer’, trata o negro de forma preconceituosa e racista, uma vez que o negro é visto de forma negativa e está associado ao mau, o diabo. A professora Hildegardes não faz uma leitura crítica do texto, dessa forma reproduz valores desfavoráveis ao negro, contribuindo para baixa auto-estima do negro, que tem a sua cor relacionada ao negativo, introduz valores negativos e como conseqüência perda da sua auto-estima. (SANTOS, A Tarde, 16/09/1997).

Já o sociólogo Manoel de Almeida Cruz escreve:

A propósito da matéria publicada nesse jornal datada de 8 de setembro, intitulada ‘O destino de Lúcifer’, assinada pela professora Hildegardes Vianna, folclorista e docente da Universidade Federal da Bahia, onde relata trechos da obra do folclorista paulista Aloísio de Almeida, na qual expressa conteúdos preconceituosos desfavoráveis ao negro, atribuindo que Lúcifer teria criado o ser negro, a professora Hildegardes, infelizmente não manifesta em sua matéria uma visão crítica dos referidos conteúdos racistas, colhidos pelo cônego e folclorista Aloísio de Almeida. Procedimentos desta natureza só fazem reforçar a imagem preconceituosa contra o negro na sociedade brasileira. (CRUZ, A Tarde, 16/09/1969).

Sobre as críticas à crônica O destino de Lúcifer Hildegardes Vianna defende-se:

Escrevo crônicas para esse jornal desde o ano de 1955. Nunca escrevi contra religiões e política. Procurei sempre me limitar a temas referentes à cultura popular. Não sou pedagoga nem socióloga. Sou apenas folclorista, cronistas de costumes. Tenho certeza de nunca ter acrescentado comentários que introduzem valores negativos no ânimo do negro, reforçando a imagem preconceituosa que possa atingir A ou B. (VIANNA, A Tarde, 17/09/1997).

A despeito da importância dos registros de Hildegardes Vianna quanto às práticas

culinárias, ricas descrições minuciosas sobre a preparação dos alimentos comercializados,

Page 69: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

observa-se pouca familiaridade da cronista com o universo da população negra, tendo em

vista não considerar que seus escritos apresentam os afro-descendentes de forma

estereotipada, representando as mulheres negras sempre como subordinadas à elite branca,

esquecendo-se de que, além de desempenharem as modalidades de trabalho destacadas nas

crônicas, têm uma vida que não se resume às atividades do labor, com a presença marcante na

comunidade e na religião que professavam.

Sobre a posição ocupada pelas mulheres negras, Landes descreve:

Uma distinta sacerdotisa da Bahia chamou a sua cidade de ‘Roma Negra’, devido à sua autoridade cultural; foi aí que as mulheres negras atingiram o auge de eminência e poder, tanto sob a escravidão como após a emancipação. Controlando os mercados públicos e as sociedades religiosas, também controlaram as suas famílias e manifestaram pouco interesse no casamento oficial, por causa da conseqüente sujeição ao poder do marido. As mulheres conquistaram e mantêm a consideração dos seus adeptos masculinos e femininos pela sua simpatia e equilíbrio, bem como pelas suas capacidades. Não somente não tem notícia de rejeição por parte dos homens das atividades das mulheres, como indícios surpreendentes da sua estima pelas matriarcas. (LANDES, 2002, p. 351).

Enquanto Ruth Landes valoriza essas mulheres pelo poder que exercem, vivenciando

um matriarcado, Hildegardes Vianna, folclorista, dá mais atenção às práticas do labor

exercidas pelas mulheres negras. Ruth Landes, antropóloga, se aproxima estreitamente do

cotidiano do candomblé para conhecer de forma mais profunda a vida das sacerdotisas negras,

observando que, além de transitarem entre as residências dos brancos e as ruas da cidade,

comercializando alimentos, atividade muitas vezes ligada às obrigações religiosas, essas

mulheres também eram muito respeitadas pelos homens negros e exerciam poder dentro das

casas de santo. Landes inaugura uma nova visão sobre a mulher negra, em que se dá uma

inversão de poderes, no qual as sacerdotisas negras têm o papel ativo na comunidade e gozam

de prestígio social fora e dentro dos terreiros de candomblé, contrariando a posição submissa

e subalterna das personagens de Vianna.

Hildegardes Vianna desconhece o cotidiano das mulheres negras ao se limitar a

descrever o dia-a-dia das negras nos espaços domésticos das casas dos brancos e nas ruas da

cidade. A visibilidade segregada conferida ao negro, no dizer de Stuart Hall, tornou-se

possível, com a mediação de amigos que freqüentavam a residência da cronista,

conseqüentemente pessoas da mesma classe social de Hildegardes Vianna. Assim, a cronista

produz uma representação social sobre o negro contaminada por uma lógica escravocrata,

reproduzindo uma dominação, em que o negro ainda é tido como objeto, um corpo/máquina.

Page 70: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

De acordo com Weber:

[...] algumas Representações Sociais são mais abrangentes em termos da sociedade como um todo e revelam a visão de mundo de determinada época. São as concepções das classes dominantes dentro da história de uma sociedade. Mas essas mesmas idéias abrangentes possuem elementos de passado na sua conformação e projetam o futuro em termos de reprodução de dominação. (WEBER, 1974 apud MINAYO, 2003, p. 109).

Hildegardes Vianna elabora uma representação sobre mulheres negras a partir da

conjuntura social na qual está inserida, a da elite baiana. Os valores identificados nas suas

crônicas são defendidos pela cronista, mas perpassam o conjunto da sociedade ou de

determinado grupo social, como algo anterior e habitual, que se reproduz a partir das

estruturas e das próprias categorias de pensamento do coletivo ou dos grupos. Assim, embora

essas categorias apareçam como pensadas por Hildegardes Vianna, elas são uma mistura das

idéias das elites, expressão das contradições vividas no plano das relações sociais de

produção. Por isso mesmo, nos textos estão presentes valores tanto de dominação (as negras

simbolizando a subalternidade), como de resistência (as vendedoras mercando nas ruas da

cidade, enfrentando todo o preconceito imposto às mulheres). Identificam-se, assim, textos

recheados de contradições e conformismo.

Page 71: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

CAPÍTULO III MULHERES NEGRAS NA BAHIA DE HILDEGARDES VIANNA: DA COZINHA DO

BRANCO ÀS RUAS E LADEIRAS DA CIDADE

___________________________________________________________________________

Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos

como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.

Dava-se ao comércio – era quitandeira,

muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de

envolver-se em planos de insurreição de escravos, que não tiveram efeito.

Luís Gama65

No Brasil, o cativeiro da população negra vigorou durante mais de três séculos (1532 –

1888) e sabe-se que a diáspora foi tão grande que um terço da população africana foi obrigada

a deixar seu continente de origem para servir de mão de obra escrava nas Américas. O

conceito de diáspora é aqui interpretado, de acordo com Gilroy (2001), não só como

deslocamento geográfico, mas principalmente como uma circunstância de vida de parcela

significativa da população do país, teoricamente vista como membro da nação e, entretanto,

excluída e discriminada por uma sociedade que a vê como inumana ou não cidadã devido à

sua ascendência africana.

Fizeram parte dessa diáspora homens e mulheres que tinham papel de destaque no país

de origem como reis, rainhas, príncipes, chefes religiosos, donos de terra, e que foram

submetidos à condição de propriedade e, portanto passíveis de serem leiloados, vendidos,

comprados, permutados por outra mercadoria, doados ou legados. Significava viver sob o

domínio de seus senhores e trabalhar de sol a sol nas mais diversas ocupações, nas lavouras e

nas ruas das metrópoles brasileiras. Um deslocamento dessa monta acabou alterando cores,

costumes, definiu desigualdades sociais e raciais, forjou sentimentos, valores e etiquetas de

65 Luís Gama, importante poeta do Brasil de meados do século XIX, escritor, republicano, abolicionista e advogado. Nesse poema o autor revela sua origem e se orgulha desta ao descrever sua mãe, uma mulher negra que, assim como as mulheres descritas nesse capítulo, trabalhou arduamente na comercialização de gêneros alimentícios. Nota-se a valorização da identidade negra e o reconhecimento das raízes africanas.

Page 72: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

mando e obediência nos estados brasileiros que protagonizaram a escravidão, como Minas

Gerais e Bahia. Sobre a questão afirma Schwarcz:

A escravidão, que supõe ser a posse de um indivíduo por outro, legitimou com sua vigência a hierarquia social, naturalizou o arbítrio e inibiu toda discussão sobre cidadania. Além disso, o trabalho manual acabou ficando limitado exclusivamente aos escravos, e a violência e as desigualdades se disseminaram nessa sociedade. (SCHWARCZ, 2001, p. 15).

Durante o período escravocrata, a Bahia foi um dos estados que mais corroborou para

a perpetuação desse sistema. Recebeu inúmeros africanos para trabalhar nas lavouras de cana-

de-açúcar, algodão e café. Tantos negros e negras que, em meados do século XIX, quando foi

abolido o tráfico, pois a maior parte dos escravos eram nascidos na África, os africanos

representavam cerca de 63% (sessenta e três) da população escrava de Salvador. (MATTOSO,

1988).

Segundo o historiador Walter Fraga Filho (2006), nos dias imediatos à abolição da

escravatura, houve uma intensa movimentação de homens e mulheres, egressos da escravidão,

dos engenhos de açúcar no Recôncavo baiano para as grandes cidades.66 Com o fim do

cativeiro, formalmente, deixou de haver restrição ao movimento dos ex-escravos e esses não

se sentiam mais obrigados a pedir “consentimento” aos ex-senhores para sair das localidades

em que viveram cativos. Assim, os libertos não estavam mais obrigados a permanecer presos

a um lugar por vontade ou decisão de outrem.

Por conta disso, com a imigração em massa dos ex-escravos habituados ao trabalho

das lavouras, nas cidades constitui-se uma imensa população despreparada e pouco instruída,

que participava de um processo de competição desigual, sobretudo pela insurgência da nova

mão de obra imigrante. Assim, os negros continuavam a trabalhar nas atividades braçais. Em

cidades como Salvador, ocupavam-se do transporte de pessoas e mercadorias, exerciam

atividades como pedreiros, carpinteiros, estivadores, cocheiros e carroceiros. As mulheres, na

condição de domésticas, cozinhavam, limpavam, arrumavam, lavavam, engomavam e

passavam roupas. Como amas-de-leite, aleitavam e cuidavam das crianças brancas.

Nas ruas, hostilizadas por estarem em espaços em que só era permitida a presença

masculina, as negras vendiam vísceras de animais, temperos, cuscuz, cocadas, caldo de cana,

bolos, carurus e outras comidas de origem africana, atividades que já pertenciam ao cotidiano

66 O Recôncavo baiano é uma região histórica, localizada em torno da Baia de Todos os Santos, formada pela região metropolitana de Salvador, onde está capital do estado da Bahia. Outras cidades importantes que fazem parte do Recôncavo: Cachoeira, São Felix, Santo Amaro, São Francisco do Conde, Candeias e outras.

Page 73: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

das negras desde o século XVII. Documentos do Arquivo Municipal de Salvador indicam que

em 1631, pouco tempo após a fundação da cidade, as escravas de ganho já eram obrigadas a

ter licença para poder vender nas ruas. Luís da Câmara Cascudo (2004) detecta a venda

ambulante de alimentos desde 1584 e a formação do costume de apregoar doces em meados

do século XVIII, sendo o primeiro registro pertencente a Salvador.

Ainda sobre a profissão dos ex-escravos nas cidades, Walter Fraga Filho considera o

seguinte:

É possível que parte dos egressos da escravidão que migraram dos engenhos para Salvador estivessem engajados em profissões urbanas autônomas. Tudo indica que, após a abolição, houve crescimento desse setor, especialmente de vendedores ambulantes de doces de frutas e iguarias em gamelas e tabuleiros, engraxates e vendedores de bilhetes de loteria. Os governos republicanos estabeleceram rígido controle policial e fiscal sobre os que mercavam na cidade. Basta dizer que, no final do século, os ambulantes não podiam mercadejar sem licença paga à Câmara Municipal. (FRAGA, 2006, p. 336).

Assim, os homens e mulheres que abandonaram os engenhos, após a abolição,

enfrentavam uma conjuntura de crescente controle das profissões tradicionalmente exercidas

por pessoas de cor negra, por parte dos poderes municipal e provincial. Desde o final do

século XIX, principalmente com o declínio da escravidão, nas cidades, as autoridades baianas

vinham adotando medidas enérgicas para disciplinar o trabalho e os trabalhadores urbanos, a

maior parte deles negras egressas da escravidão. A matrícula das “ganhadeiras” fazia parte da

política de controle do poder público municipal. 67

Ao trazer esse passado em suas crônicas, Hildegardes Vianna reportou-se até mais ou

menos 1940, para escrever sobre o “povo” e os costumes da cidade de Salvador na

perspectiva dos estudos folclóricos.68 Entre os diversos tipos humanos existentes nos seus

escritos, encontra-se a mulher negra, saída do cativeiro imposto pela escravidão. Nas crônicas

analisadas foram identificados elementos que confirmam que, no decorrer do século XX,

persistiu a visão de que estava reservada à mulher negra, considerada destituída de atrativos, a

condição de trabalhadora braçal.

Quando se pensa nas representações sobre as mulheres negras e suas realidades

específicas na sociedade brasileira, é fácil perceber que as negras aparecem de forma

67 A matrícula era a licença concedida, através de pagamento, à Câmara Municipal para comercializar nos espaços públicos. 68 Hildegardes Vianna não fixa uma data de início para suas “recordações”, apenas estabelece que os fatos se reportam a uma Bahia de até 1940.

Page 74: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

simplificada, apenas como serviçais prontas a servir à mesa e à cama, arrumar a casa e

desaparecem enquanto indivíduos constituídos de sentimentos, desejos e vontade.

Configuram-se nessa construção discursiva de Hildegardes Vianna representações

sociais estereotipadas. Serge Moscovici (2007, p. 65) enfatiza que a tendência para classificar,

seja pela generalização, seja pela particularização, não é, de modo algum, uma escolha

puramente intelectual, antes reflete uma atitude específica com um objeto, “um desejo de

defini-lo como normal ou aberrante”. Para o teórico, o que está em jogo em todas as

classificações das coisas não familiares é a necessidade de defini-las como conformes ou

divergentes da norma.69

Para maior compreensão das crônicas apresentadas nesse capítulo, faz-se necessário

entender o conceito de representação social cunhado por Moscovici:

Representar significa, a uma vez e ao mesmo tempo, trazer presente as coisas ausentes e apresentar coisas de tal modo que satisfaçam as condições de uma coerência argumentativa, de uma racionalidade e integridade normativa do grupo. É, portanto, muito importante que isso se dê de forma comunicativa e difusa, pois não há outros meios, com exceção do discurso e dos sentidos que ele contém, pelos quais as pessoas e os grupos sejam capazes de se orientar e se adaptar a tais coisas. Conseqüentemente, o status dos fenômenos das representações sociais é o de um status simbólico: estabelecendo um vínculo, construindo uma imagem, evocando, dizendo e fazendo com que se fale, partilhando um significado através de algumas proposições transmissíveis e, no melhor dos casos, sintetizando em um clichê que se torna um emblema. (MOSCOVICI, 2007, p. 216).

Esse conceito de representação social de Moscovici permite entender que, a partir da

normalização de conceitos, os estereótipos construídos sobre os grupos populares se

fortalecem até se tornar um clichê: “a mulher da rua”, “a doméstica”, “a mulher de saia” e

outros.

Para Moscovici,

69 Moscovici (2007), a partir do conceito de representações coletivas de Durkheim (1978), desenvolveu o conceito de representações sociais. Moscovici afirma que a noção de representação coletiva de Durkheim identifica uma categoria que deveria ser explicada a um nível inferior, ou seja, em nível de Psicologia Social. Para um contexto mais moderno, em que as sociedades são mais complexas e plurais, Moscovici achou mais adequado empregar a noção de representação social.

Page 75: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

[...] a teoria das representações sociais toma como ponto de partida a diversidade dos indivíduos, atitudes e fenômenos, em toda sua estranheza e imprevisibilidade. Seu objetivo é descobrir como os indivíduos e grupos podem construir um mundo estável, previsível, tomando como referência tal diversidade. (MOSCOVICI, 2007, p. 79).

A partir dessa necessidade de definir as coisas e as pessoas, Moscovici especifica que

as representações são frutos da vivência das contradições que permeiam o dia-a-dia dos

grupos sociais, sua expressão marca o entendimento deles com seus pares e contrários. Na

verdade, a realidade vivida é representada, e através dela, os atores sociais se movem,

constroem sua vida e explicam-na mediante seu estoque de conhecimento.

Dessa forma, as representações sociais são construídas inicialmente do interesse de um

grupo, ou seja, o autor de uma obra pode ser influenciado pelo contexto social que o cerca,

pelo lugar que ocupa na sociedade, pois, segundo Moscovici (2007, p. 30), “nós percebemos o

mundo tal como é e todas nossas percepções, idéias e atribuições são respostas e estímulos do

ambiente em que vivemos”. Isso significa que as representações sociais são sempre inscritas

dentro de um “referencial de um pensamento preexistente”, por conseguinte, dependente de

um sistema de crenças ancorado em valores, tradições e imagens do mundo.

Boaventura de Sousa Santos (2005) acredita que a interpretação e avaliação são alguns

dos limites da representação, pois as ações de interpretar e avaliar dependem do conhecimento

dos agentes em questão, no caso dos autores, das práticas de seu conhecimento sobre o tema

que deseja representar e principalmente do objetivo que almeja alcançar com a representação.

Logo, ainda que Hildegardes Vianna se coloque como “porta-voz da cultura do povo

baiano”, em geral, as crônicas que descrevem a lida, comportamento e atitudes das mulheres

negras estão embriagadas de interesses e percepções de uma parcela muito “especial” de

indivíduos baianos. Entre eles encontravam-se a elite culta, formada de políticos, intelectuais

e doutores, indivíduos acostumados a lerem o jornal A Tarde e exercerem atividades

profissionais de prestígio, representantes da mais “nobre estirpe” soteropolitana. O leitor

atento encontra, nas crônicas, pistas que denunciam que a autora escrevia como uma

representante dessa parcela da população, e que, através das representações ancoradas em

valores de um passado escravo e destituídas de posicionamento crítico, reforça a visão de que

o negro é inferior e subalterno.

Hildegardes Vianna não dá voz às “pretas” e “mulatas” em suas multifaces e nas

variadas situações e papéis sociais que vivenciaram no cotidiano de Salvador. A autora limita-

se a destacar os aspectos econômicos, dando ênfase sobre dois setores fundamentais do

Page 76: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

trabalho urbano: as atividades exercidas nas ruas e os serviços domésticos. O primeiro, de

responsabilidade das “ganhadeiras” ou “vendedeiras”.70 Já no segundo, realizado no espaço

residencial da elite baiana, descortina-se uma guisa de estereótipos sobre as cozinheiras, as

amas-de-leite, as lavadeiras e as “catarinas”.

“MULHERES DE SAIA”: A ARTE DE MERCAR NAS RUAS DA CIDADE

A presença da mulher negra foi sempre destacada no exercício do comércio em vilas e

cidades do Brasil colonial. Desde os primeiros tempos, estabeleceu-se em Salvador uma

divisão de trabalhos assentada em critérios sexuais na qual o comércio ambulante nas ruas da

cidade representava ocupação preponderantemente feminina. Na cidade de Salvador, no

período descrito por Hildegardes Vianna, há quase que exclusivamente uma presença de

mulheres de descendência africana no mercado de gêneros alimentícios.

Figura 3 - Vendedoras do século XVII71

Segundo o antropólogo Roberto DaMata (1997), a rua, apesar de ser considerada pelo

branco ambiente perigoso, devido à presença expressiva de negros e desclassificados sociais,

70 Para o historiador Vilhena (1969), o termo “ganhadeira” vem desde a época da escravidão, em que tanto as mulheres escravas eram colocadas pelos seus proprietários no “ganho da rua”, como as negras libertas lutavam para garantir o sustento com a venda de produtos alimentícios e outros. A “ganhadeira” era a escrava que se movia no mercado, como vendedora ou artesã, e repartia com seu senhor a renda que conseguia, através de um acordo previamente ajustado. O que excedesse o valor combinado era apropriado pela escrava, que podia acumular para comprar sua liberdade ou gastar no seu dia a dia. 71 Fonte: Cristiano Jr., www.unb.br, em 13 de outubro de 2008.

Page 77: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

era o principal palco da vida das mulheres negras nas cidades.72 Sujeitas à violência e

agressividade relacionadas ao seu gênero, à sua cor e classe, essas mulheres respondiam com

comportamento aguerrido, enfrentando situações difíceis, pois ousadia e agressividade eram

comportamentos necessários para enfrentar a opressão social e o racismo.

As “ganhadeiras” agiam em defesa própria, na tentativa de preservar sua autonomia

nos espaços em que atuavam socialmente. De forma muito apropriada, DaMatta faz um

paralelo entre o ambiente da rua e o da casa, proporcionando a observação sobre as

dificuldades a que as negras estavam sujeitas:

A rua indica basicamente o mundo com seus imprevistos, acidentes e paixões, ao passo que a casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares. A rua implica movimento, novidade, ação, ao passo que a casa subentende harmonia e calma. Assim, os grupos sociais que ocupam a casa são radicalmente diversos daqueles da rua. Na casa, têm-se associações regidas e formadas pelo parentesco e relações de sangue; na rua, as relações têm um caráter indelével de escolha, ou implicam essa possibilidade. Assim, as relações em casa são regidas naturalmente pela hierarquia do sexo e das idades, com homens mais velhos tendo a precedência; ao passo que na rua é preciso algum esforço para se localizar e descobrir essas hierarquias. Uma conseqüência disso é que na rua é preciso estar atento para não violar hierarquias não sabidas ou não percebidas. E para escapar do cerco daqueles que nos querem iludir e submeter, pois a regra básica do universo da rua é o engano, a decepção e a malandragem. (DAMATTA, 1997, p. 91)

Já para Sodré (1988, p. 146), a rua era mais do que um ambiente hostil. Era um espaço

de socialização e criatividade, em que o universo musical do negro brasileiro aflorava, lugar

onde as negras esbanjavam, com liberdade, seus trejeitos e falares. São nos redutos das praças

e das ruas que ocorrerão os encontros dos negros. Assim, “essa rua tão temida, é o espaço de

proximidade entre a vida cotidiana e a produção simbólica, lugar de atmosfera emocional e

afetiva.”

É justamente nesse espaço público, ambiente paradoxalmente constituído de intensa

hostilidade e criatividade, que as negras garantiam seu sustento. Majoritariamente de origem

iorubá, essas mulheres ocupavam cotidianamente as ruas e praças destinadas ao mercado

público e feiras livres. Sem chapéus ou espartilhos, vestindo “saias de decência suspeita” e

“camisus com decotes desguelados”, segundo Hildegardes Vianna, circulavam com

72 De acordo com Roberto DaMata, enquadram-se no grupo dos desclassificados sociais as pessoas pobres e desamparadas que viviam pelas ruas das cidades: as prostitutas, os mendigos, os vendedores ambulantes, etc.

Page 78: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

tabuleiros, gamelas e cestas habilmente equilibrados sobre a cabeça. A presença dessas

“pretas” nas atividades de mercar era tanta, que o historiador Luís dos Santos Vilhena, no seu

livro A Bahia no Século XVIII (1969, p. 65), definiu as feiras livres de Salvador como lugares

“onde se juntam muitas negras para vender tudo que trazem”.

Desse modo, o comércio baiano no período colonial, imperial e republicano se

caracterizou pela presença massiva das negras, fato comum, tendo em vista que na África as

mulheres dominavam esse tipo de atividade. Na venda de comida, predominava a herança

africana, quer nas iguarias comercializadas, como acarajé, abará, mingau, cocada, acaçá,

bolos e outras, quer na indumentária e na prática de “mercância”, com pregões como: “São

Francisco, meu pai, quem me benze? / São Francisco, meu pai, quem me quer hoje?/ São

Francisco, meu pai, vem benzê.” (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969).

Nos escritos de Hildegardes Vianna, as “ganhadeiras” são apresentadas como

“mulheres de saia”. O uso desse tipo de vestimenta, ser mulher de saia, indicava baixa posição

social. Essa desqualificação pode ser identificada na crônica Mulheres de saia (13/03/1969).

No texto, a autora assinala o pouco valor que as vestimentas dessas mulheres tinham na

década de 1930, considerada pela elite como “roupa de negra e de mulata”. As mulheres

brancas que usavam esses trajes eram consideradas de pouca sorte, jogadas ao desprezo,

criaturas humildes, desempenhando serviços intitulados de inferiores e inadequados ao sexo

feminino:

Ainda presumivelmente há uns quarenta anos, lá pela década de trinta, o hoje chamado traje de baiana era simples roupa do cotidiano, sem maiores qualificações, marcando uma classe de mulheres sem vinculação religiosa obrigatória. Era roupa de negra ou mulata, só esporadicamente envergada por alguma branca sem sorte, jogada ao desprezo de si própria. Usar saia, ser mulher de saia, determinava a sua baixa posição social. Era mulher humilde, desempenhando tarefas subalternas e por vezes inadequadas ao seu sexo, emaranhada em um meio hostil. O conceito derivava da mentalidade criada pelas profundas diferenças entre escravos e livres, negros e brancos. Negras e mulatas, sujeitas ou libertas, tinham por anos seguidos desenvolvido atividades, honestas, mas humilhantes, convivendo em ambientes heterogêneos de mercados, feiras livres, lidando com gente de toda laia. (VIANNA, A Tarde, 13/03/1969).

Esse preconceito se agravava ainda mais pelo fato de que, até o século XIX, as

mulheres raramente eram vistas nas ruas ou em lugares públicos, sendo o lar considerado

como seu lugar próprio. A norma oficial ditava que a mulher deveria ser resguardada em casa,

ocupando-se dos afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam o sustento da

Page 79: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

família, trabalhando nos espaços da rua. A partir dessa lógica sexista, a mulher tem a casa e o

homem tem o mundo. A elite machista, legislando em causa própria, elaborou conceitos que

legalizaram seu direito de posse e autoridade sobre mulheres e crianças.

Kátia Mattoso (1992) destaca que a reclusão das mulheres brancas era fruto do

sistema social herdado do período escravista, e que nas classes média e alta as mulheres

viviam recolhidas, saindo só para a igreja, ao Passeio Público com a família ou a reuniões

sociais, sempre na companhia do marido, de algum parente ou acompanhante.73 Boa parte de

viajantes estrangeiros que estiveram na Bahia notaram e registraram que só se via nas ruas as

humildes “ganhadeiras”, à cata de clientes. Landes afirma que, em Salvador, presenciou,

[...] tarde da noite, quando a maioria das famílias se preparavam para dormir, algumas negras velhas vagueavam pelas ruas sombrias e, olhando o céu baixo, entoavam cantos, de melodias claras e melancólicas de origem africana, e de versos em parte africanos e em partes portugueses, comercializando as guloseimas, comidas, bebidas, que tinham para vender. Esses cantos pesarosos eram ternos ao ouvido, embalavam a cidade. (LANDES, 2002, p. 53).

A censura às mulheres que circulavam nos espaços públicos também é ratificada na

crônica Moleque comprador de tempero (13/02/1968) 74:

Onde alguém de compreensão e juízo iria conceber uma senhora ou senhorinha da família e consideração, andando pelos açougues, vendas armazéns, tulhas, quitandas, padarias ou quejandos, a comprar comida, acotovelando-se com pessoas de outras classes sociais? (VIANNA, A Tarde, 13/02/1968).

Em se tratando das mulheres de descendência africana, a visão machista de que o lar

era o espaço reservado à mulher estava longe de retratar a realidade, pois é um estereótipo

calçado nos valores da elite colonial, pois as negras sempre estiveram nas ruas, trabalhando

para garantir seu sustento.

73 Segundo Vilhena (1969), o Passeio Público de Salvador localiza-se ao lado da Praça de Aclamação. Foi inaugurado em 1810 pelo 8º Conde dos Arcos Dom Marcos de Noronha e Brito, então governador da Bahia, ornado de árvores frutíferas e flores, transformou-se em um espaço de lazer e local onde a elite ia passear e tomar ar puro. 74 Vale destacar a despeito do título da crônica Moleque comprador de tempero. Moleque era o nome dado aos filhos das negras. “Figura fácil de identificar pelas ruas” de Salvador, os meninos saiam sempre para comprar temperos e atender a outras necessidades das senhoras brancas, suas patroas.

Page 80: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

O fato é que a “mulher de saia” foi uma expressão pejorativa difundida na imprensa

republicana para denominar às mulheres trabalhadoras de rua. As críticas publicadas em

periódicos associavam as negras aos costumes africanos e à escravidão, que, por sua vez,

eram agregados à barbárie, ao atraso e à falta de higiene.

O suor que se desprendia dos corpos das negras e o contato das mãos no fabrico desses

alimentos passaram a ser considerados porta de entrada de doenças. A qualidade das comidas

das ruas tornou-se uma obsessão, a partir do pensamento higienista da época. Assim, as

“mulheres de saia” são apresentadas como:

Mulheres de gamela, vendendo fato de boi, peixe, mingau, mulheres de tabuleiro, mercando cuscuz, cocada, bolo; mulheres de balaio ou ganhadeiras, negociando pão, verduras, produtos da Costa da África; caixinheiras, mascateando rendas e bicos de almofada, palas de camisa e barras de crochê, artigos de procedência africana e tudo mais que coubesse no baú; mulheres compradeiras de tempero e todas as demais integrantes de profissões de mais ínfima categoria, eram mulheres de saia. (VIANNA, A Tarde, 13/03/1969).

Na crônica Mulheres de saia, faz-se um paralelo entre o comportamento das mulheres

de saia, consideradas “desqualificadas”, e as que também usavam saias, mas eram tidas como

de “respeito”:

[...] algumas se notabilizavam pelo destempero da linguagem, liberdade de gesticulação e embrutecimento da inteligência. Essas usavam uma roupa de todo dia, como traje de trabalho, um taco de saia e uma camisa, sabe lá Deus até que ponto desgüelado, deixando-as seminuas. Descalças, dedos dos pés arreganhado, cuspinhando saliva de fumo ou axá (tabaco de cão), enrolando descomposturas [...]

Mas as outras eram mulheres de respeito que as contingências da vida atiravam na rua, para labutar pela sobrevivência. Muitas eram senhoras honestas no procedimento, comedidas na palavra e no gesto, que se sujeitavam ao trato com gente de toda laia, desde que pudessem alcançar o sustento seu e de sua família. (VIANNA, A Tarde, 13/03/1969).

A descrição de comportamentos e atitudes diferencia as mulheres de saia em duas

categorias profissionais distintas. As negras que mercavam nas ruas da cidade recebiam a

pecha de mulheres desqualificadas por apresentarem um comportamento aguerrido e

características tidas como “amorais” pela sociedade aristocrata. As que se aproximavam do

padrão “senhora de família” eram mais aceitas. No entanto, percebe-se que em nenhum

Page 81: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

momento da crônica o fato de essas mulheres sobreviverem ao ambiente hostil das ruas da

cidade, obrigando-as a se tornarem “embrutecidas”, é associado pela autora a uma tentativa de

resistência a uma submissão imposta às mulheres da elite baiana, que persistia nas primeiras

décadas do século XX. E ainda mais grave, a autora silencia ante a falta de cidadania, pois à

mulher negra, devido à sua forma de inserção na sociedade escravista, foi negada a sua

condição precípua de mulher, tornando-a, dessa maneira, mais uma mercadoria senhorial.

Assim, o cotidiano da negra no mundo dos homens impunha procedimentos que visavam

auto-proteção e luta pela sobrevivência.

Entre os comportamentos considerados pela elite branca como amoral estava o

movimento do corpo, o molejo, realizado pelas negras quando andavam pelas ruas mercando

os produtos. Na tradição de origem africana, o corpo tem papel e função bastante diferentes

daquele cultivado pela tradição ocidental. O corpo móvel, elástico e gingado será visto como

exótico e imoral por uma cultura na qual, desde a infância, a mulher tem o corpo trabalhado

para a imobilidade, tolhido em seus movimentos e na expressão de seus desejos. Assim, a

liberdade de movimentos do corpo negro é desprestigiado e reprimido pelo sistema religioso

ocidental e hegemônico, forçando as mulheres a “calar” o corpo.

Segundo a pesquisadora Lúcia Osana Zolin (2003), há duas categorias que rotulam o

comportamento feminino frente aos padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal: “mulher

sujeito” e “mulher objeto”.75 Dentro do primeiro grupo, encontra-se a “mulher de saia”, que se

notabiliza pelo “destempero”, pela insubordinação, pela subversão da ordem, dos padrões

estabelecidos, pelo seu poder de decisão e de imposição da sua vontade, enquanto a “mulher

objeto” é marcada pela resignação, pela conformidade de sua condição inferior, definindo-se

pela submissão e pela subserviência, conseqüentemente, desprovida de voz.

Em se tratando de representações de gênero e raça, não é difícil chegar à conclusão de

que as duas categorias encontram-se presentes nas crônicas de Hildegardes Vianna: as

“mulheres de saia”, que se destacavam pela ousadia e o “destempero”, e as negras que se

comportavam passivamente, conforme os padrões vigentes no período.

Vale salientar que muitas negras que não atendiam aos padrões estabelecidos da época

conseguiram ascensão financeira com a atividade de “mercância”. Outras possuíam um

“protetor” português rico e andavam pelas ruas da cidade, bem vestidas e com adereços de

ouro por todo o corpo. Essas eram consideradas “felizardas”, pois se tornavam donas de

75 Segundo Zolin (2003), mulher objeto e mulher sujeito são conceitos no âmbito da critica literária feminista que classificam a posição da mulher inserida em uma sociedade patriarcal.

Page 82: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

quitanda sortida de produtos e participavam das procissões da religião católica que ocorriam

na cidade soteropolitana. 76

A negra que vendia mingau de porta em porta nas ruas da “cidade da Bahia” também

era designada “mulher de saia”. Na crônica A Mulher do mingau (16/09/1969), Hildegardes

Vianna inícia o texto apresentando as vendedeiras de mingau como mulheres “mais ou menos

iguais”, negras ou “mulatas”, que exerciam ofício de “mercar” pela facilidade encontrada para

obter freguesia: “Mingau vendido ao clarear do dia por uma mulher que mercava por mercar,

porque era fácil freguesia certa. [...] Elas eram todas mais ou menos a mesma coisa. Pretas ou

mulatas. Metidas em suas saias rodadas, os pés descalços [...]” (VIANNA, A Tarde,

16/09/1969).

Constata-se em tal crônica um desmerecimento dessa atividade quando a autora faz

alusão ao oficio de vender mingau: “mercava por mercar” e “Elas eram todas mais ou menos

a mesma coisa.” Pode-se inferir, a partir dessas afirmativas, que as mulheres negras exerciam

o trabalho de comercializar pelas ruas da cidade por terem uma vida ociosa, sem algo mais

importante para realizar ou porque a atividade era muito fácil. Quanto ao segundo comentário,

de que eram todas “a mesma coisa”, deixa pistas para se pensar que as mulheres negras ainda

eram consideradas “coisas”, “peças” e “objetos”, como no tempo da escravidão.

No entanto, na crônica, estabelece-se uma contradição no que toca à descrição do

trabalho executado pelas negras e mulatas, pois Hildegardes Vianna, ao descrever as etapas

pelas quais o mingau tinha que passar até ficar pronto, acaba por apresentar ao leitor o quanto

a atividade de preparar a iguaria é trabalhosa. Dessa forma, quando se pensa nas descrições

minuciosas e detalhistas que a cronista faz ao se referir ao preparo do mingau, não se pode

imaginar que as negras “mercavam por mercar”.

Todos os dias, as vendedoras de mingau acordavam de madrugada e atravessavam as ruas desertas à espera dos fregueses, que, ao acordarem, compravam a quantidade certa de mingau que complementaria o farto café da manhã. Em sua gamela redonda de pau, assentada sobre a grossa rodilha de pano de saco que lhe protegia a cabeça, a vendedeira equilibrava o latão com o mingau fervente[...] Vendiam anos a fio, indiferente aos males que a velhice acarretava. Algumas não ultrapassavam, entretanto, a maturidade. Sumiam. Depois se sabia que tinham morrido ou cegado. Cegavam por causa daquela quentura permanente na cabeça, explicavam as companheiras (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969).

76 Segundo a etnolingüista Yeda Pessoa de Castro (2005) no livro Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro, quitanda é uma palavra de origem banto, utilizada para designar o local onde se comercializavam frutas e diversos produtos comestíveis.

Page 83: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Dando continuidade à descrição, Hildegardes Vianna cerca-se de minúcias sobre as

tarefas pertinentes à preparação do mingau:

Milho, arroz, bem catados e lavados, eram postos de molho na véspera. De madrugada, começava a tarefa de ralar os grãos. Ralar talvez não fosse o termo apropriado. Usavam uma pedra retangular ou quadrada com a superfície superior recoberta por pequenos sulcos feitos com auxílio de um prego. A mão era mais ou menos a vinte centímetros, também de pedra, quanto mais roliça melhor. As mãos apoiadas firmemente nela, os pulsos num contínuo flexionar, e, em poucos minutos, estava tudo triturado.

Depois do ralar , enquanto o pó assentava, vinha o coco com seu fatigante roteiro de quebrar, tirar do casco, descascar a parte escura, lavar e ralar. As vendedoras de mingau ou cuscuz tinham as unhas, praticamente roídas e os polegares escalavrados de tanto ralar coco. Além disso, aquele interminável mexer com o colherão de pau, esperando abrir a fervura, acabar a ‘espuma’, tomar o ponto, não podia conservar mãos de princesa. (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969).

Apesar da descrição do fatigante trabalho das vendedoras de mingau, um ar nostálgico

permeia toda crônica, com a autora clamando pelo retorno dos “bons tempos”: “Era naquele

bom tempo [...] O mingau daquelas mulheres madrugadeiras é hoje recordado com o tempero

que a saudade empresta a tudo que já passou.” (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969). Não obstante,

A mulher do mingau não deveria proporcionar tanta nostalgia, pois na crônica destaca-se que

o oficio exigia o uso prolongado dos latões quentes de metal que cegavam essas mulheres. O

próprio trabalho de carregar as latas pesadas e quentes na cabeça já era sofrimento bastante

para que seja um alívio vê-lo eliminado. 77

Ainda nessa crônica, a autora ensaiou uma exaltação às vendedoras de mingau,

descrevendo-as como heróicas mulheres, por serem sempre “solícitas” e “limpas”, como se

espera de um subalterno, residirem em lugares insalubres e sustentarem a família inteira:

filhos, netos e até um “companheiro inútil por invalidez ou falta de caráter”:

Vendedeiras de mingau, vendedeiras de cuscuz, todas elas tinham o mesmo lidar. Acordavam antes das quatro da madrugada. Moravam em um porão, socavão ou numa casinha, numa das muitas rocinhas que salpicavam o centro da cidade, em outras eras. Muitas faziam a sua venda no mesmo cômodo em que dormiam.Tinham seus fogareiros, seus tachos e ‘bumbas meu-boi’78, suas colheres de pau, pilão, ralo grande com cabo de madeira, e pedra, cuscuzeiro, um verdadeiro arsenal.

77 Na atualidade, a venda do mingau continua, só que os latões foram substituídos por carrinhos metalizados sobre rodízios, onde se tem escrita a palavra mingau. Os horários não são mais o mesmos de “antigamente”, pois pode-se encontrar a vendedora de mingau em qualquer horário do dia. 78 Bumba-meu-boi é definido pela própria cronista como panela grande usada para cozinhar o mingau.

Page 84: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Anos a fio, as vendedeiras de mingau cumpriam a sua sina. Sempre madrugadeira, sempre pontual, sempre asseada, sempre solícita. Mulheres que davam um exemplo de disciplina e honestidade comovedora. Mulheres que, se hoje vivessem, seriam assuntos para reportagens e não sei mais o quê. (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969).

Uma análise da crônica com o objetivo de desnudar os atributos ideológicos

relacionados às personagens negras faz-se necessária. Primeiro, observa-se que a motivação

para a exaltação à mulher negra se deu pela condição de subalternidade, considerada uma

“sina” pela cronista. Tal afirmativa se comprova a partir da repetição de trechos que

descrevem características tidas como positivas ao trabalho da vendedora: “madrugadeira”,

“pontual”, “asseada” e “solícita”, ou seja, sempre pronta para servir. Em um segundo plano, a

contemplação se firma no modo vivendi das negras. Hildegardes Vianna caracteriza a

vendedora de mingau como passiva, tendo em vista a aceitação da condição social que ocupa

na comunidade, em suma, morar em lugares insalubres como os porões e trabalhar no mesmo

local em que dorme.

A vendedora de cuscuz é outra categoria de trabalho da mulher apresentada nos

escritos de Hildegardes Vianna. Em consonância com as idéias apresentadas na crônica

Mulher do Mingau, retoma-se o estereótipo da mulher negra como serviçal. Os atributos

destacados para a vendedora de mingau se repetem na crônica A arte de fazer cuscuz

(23/09/1969), em que a autora, dando continuidade à sua estratégia de descrição das práticas,

pela ótica dos folcloristas, concentra-se em detalhar a técnica empregada’ cv para cozinhar o

cuscuz, desde a escolha do milho, do arroz e do inhame, até ralar o coco, retirar o leite e

vender a iguaria. Assim como a vendedora de mingau, a mulher que vendia o cuscuz também

acordava de madrugada para mercar o produto e iniciava o preparo de véspera. 79

As vendedeiras de cuscuz, assim como as de mingau, saíam com a gamela ou um tabuleiro na cabeça de porta em porta vendendo o cuscuz ou ficavam no fundo da casa, despachando a freguesia que vinha com o prato e a moeda para adquirir o alimento. Assim muitas delas sobreviveram e sustentaram filhos e netos. (VIANNA, A Tarde, 23/09/1969).

79 Segundo Gerlaine Torres Martini (2007, p. 113), em sua tese Baianas de Acarajé: a uniformização do típico em uma tradição culinária afro-baiana, a origem do cuscuz é mourisca, alcançando outras regiões da África do Norte. Sua base era, inicialmente, sêmola de trigo, arroz ou sorgo, sem leite de coco (Cascudo, 2004, p. 187). Ele faz parte do repertório muçulmano que adentrou Portugal antes das navegações e que compreendia novos estilos de tessitura, vestuário e grande parte de sua doçaria. “No Brasil, re-entrelaçam-se elementos culturais muçulmanos via Portugal com os que são trazidos por africanos em contato com o Islã. O cuscuz baiano reside nesse encontro, adaptando-se a ingredientes nativos e outros replantados e elegidos como indispensáveis pelo gosto local que se consolidava”. Assim, essa iguaria se tornou prato matinal e merenda em Salvador, podendo ser incorporada à atividade de comercializar o mingau.

Page 85: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Pela leitura das crônicas, constata-se que a venda do mingau e do cuscuz era árdua e

comprometia a qualidade de vida das negras e “mulatas” que a executavam. Moradoras de

lugares insalubres, essas mulheres também eram responsáveis por manter a família inteira

com o dinheiro que conseguiam com as vendas. E, ao retornarem para casa, reiniciavam todo

o trabalho para a venda do próximo dia.

Tão ilustre como as senhoras apresentadas anteriormente, a vendedora de acaçá

também foi descrita por Hildegardes Vianna.80 Na crônica O tempo do acaçá (08/11/1971), a

folclorista discorre sobre a difícil tarefa de preparar o acaçá e destaca que esse tipo de ofício

ficou sempre a cargo das mulheres negras:

O acaçá era em geral feito e vendido por mulher. Uma receita simples [...] Primeiro, descascar as espigas de milho, debulhar os grãos, limpar todos os cabelos ou barbas do sabugo. Em seguida, lavar cuidadosamente, escolhendo os caroços, escolhendo os carunchos, até não haver vestígios e impurezas. Cabelo de milho sempre teve fama de desandar ponto em comida de milho. Lembre-se, leitor, que não havia água encanada nem torneira. Era uma série de potes e gamelas que funcionava na limpeza. Depois de tudo lavado, o milho posto de molho para amolecer, a mulher (sempre a mulher) apanhava as palhas, varria o chão, enxugava o que estivesse molhado naquele jeito asseado que era comum das negras. Negras, sim, porcas nunca – diziam com orgulho. Mesmo quando envergavam uma roupa velha e enodoada, marchando para o mato à cata de folhas de bananeiras. As mais afortunadas tinham um chuço. As outras, que não possuíam posses para tais luxos, amarravam uma faca amolada na ponta de uma varinha e tudo se resolvia. Tirar folhas de bananeiras era cansativo, dependendo da boa ou da má qualidade da touceira, da freqüência das chuvas e da ventania local. Cortadas as folhas, decepados os talos, levadas para a casa em rolos, eram selecionadas e passadas no fogo, esfregadas com pano seco e cortadas em tamanhos padrões.

O acaçá só podia ser feito com milho fermentado. Escorria a água, triturados os grãos na pedra ou pilão, passado tudo na peneira, esperar que o pó assentasse era grande demora. Mas você que me lê sabe o que é cozinhar milho em pó, meia hora, uma hora, lutando com várias tarefas? Por lenha ou carvão para alimentar o fogo, abanar as brasas, mexer a panela sem parar, desde o momento que ia para o lume até quando o ponto atingia o desejado?

Para o acaçá ficar lustroso, vidrado sem bolotas, trêmulo e consistente, elástico nos movimentos era preciso cozer com bastante água, sempre com cuidado de não ficar duro como angu de consistência grosseira. Para o acaçá ficar uma finura, requeria uma hora de mexe-mexe, muito suor, braços ardendo, algumas queimaduras de praxe no pula-pula da fervura. Pronto afinal, ainda havia o serviço de embrulhar em pequenas porções, ainda quente, nas folhas da bananeira. Aí o que restava era tomar banho, trocar de

80 Segundo Hildegardes Vianna (1973), o acaçá pode ser considerado um pudim de milho branco, consistente, tradicionalmente envolvido em folha de bananeira.

Page 86: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

roupa, sair para vender, andar quilômetros, subindo ladeiras e escadas de sobrados altos [...] (VIANNA, A Tarde, 08/11/1971).

No que toca às atividades das vendedoras de mingau, de cuscuz e de acaçá, todas

guardam características similares, quanto à descrição do labor: iniciam as atividades no dia

anterior às vendas, executam tarefas árduas na produção dos alimentos, o que compromete a

qualidade de vida, e têm que enfrentar a discriminação da elite soteropolitana com os produtos

vendidos nas ruas.

Com a política de higienização implantada pelo governador J. J. Seabra, a qualidade

da comida vendida na rua passou a ser preocupação constante, pois o contato manual com as

iguarias vendidas e as condições de fabricação das comidas, segundo o pensamento higienista

em voga, eram a porta de entrada para os miasmas e, posteriormente, dos micróbios e dos

vírus, que tanto debilitavam a precária saúde dos baianos. Sucessivos governos municipais e a

imprensa local, em diversos momentos, engajaram-se em campanhas para afastar as

vendedoras de alimentos das ruas centrais, sob a justificativa de higienizar e melhorar a

circulação da cidade.

Em seu livro Encruzilhadas da liberdade, Walter Fraga Filho (2006, p. 337) destaca

que o Jornal de Notícias (15/09/1900) denunciou o comércio de bandejas, tabuleiros e

gamelas na Praça Castro Alves. E que, em agosto de 1904, o mesmo periódico festejou a

decisão do poder municipal de retirar das proximidades do mercado da Baixa dos Sapateiros a

infinidade de cestos, gamelas e tabuleiros de verduras e legumes, dispostos sobre as calçadas

da referida rua.81

Na crônica Todo mundo gosta de abará (22/01/1973), Hildegardes Vianna expõe a

discriminação sofrida pelas mulheres que mercavam nas ruas de Salvador e o que a elite

baiana pensava sobre a comida de origem africana. E ainda nessa crônica declara ter

enfrentado preconceitos das famílias baianas ao publicar no livro A cozinha baiana: seus

folclores, suas receitas82 o modo de fazer o abará:

[...] trouxe a lembrança do abará que nem todo menino de família tinha licença de comer. Não só pela pimenta, que era posta dentro da massa, como também por ser vendido a desoras. Sem falar daquele preconceito de que quem comia no meio da rua não tinha educação doméstica. Passo por cima do esnobismo de uns tantos núcleos familiares que não admitiam

81 A Baixa dos Sapateiros, trecho existente entre a parte baixa da ladeira do Taboão e a Rua da Vala, foi considerado o centro comercial da cidade de Salvador, com um grande tráfego de ônibus e pessoas, e onde também circulava muito dinheiro. Hoje acabou transformando-se em um local quase abandonado. 82 Em 1956, Hidegardes Vianna lança o livro A cozinha baiana: seus folclores, suas receitas, que alcança repercussão nacional, ao apresentar uma pesquisa sobre a culinária da Bahia.

Page 87: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

comida de negro, azeitaradas, que conspurcavam a suposta nobreza de suas bocas, maltratando seus aparelhos digestivos doentios por tradição. (VIANNA, A Tarde, 22/01/1973, grifos nossos).

Como havia publicado, tempos atrás, um livro sobre a cozinha baiana, a cronista sai

em defesa da culinária afro-baiana, vindo a criticar o esnobismo da elite baiana, grupo esse de

que ela faz parte. Segundo a cronista, a culinária baiana encontrada nas ruas de Salvador não

era muito apreciada pela aristocracia. A despeito de ter como cozinheiras as mulheres negras,

a elite baiana desconhecia os pratos de origem africana, tão comumente consumidos nas casas

dos negros. Na casa dos brancos não se encontravam habitualmente petiscos africanos como

abará, acarajé, acaçá, caruru, xinxim, etc., preparados de acordo com receitas transmitidas por

ancestrais da África, os quais levavam temperos africanos, a exemplo do azeite de dendê,

ataré, iru, pejericum, ierê e egussi.83 No tempo evocado por Hildegardes Vianna em suas

crônicas, os hábitos alimentares da elite eram predominantemente de origem européia.

A letra da música A preta do Acarajé de Dorival Caymmi (1939) ilustra bem o

desinteresse da elite soteropolitana pelas práticas de preparar o abará e os gêneros

alimentícios vendidos pelas ruas da cidade:

Na rua deserta A preta mercando Parece um lamento Ê o abará Na sua gamela Tem molho é cheiroso Pimenta da costa Tem acarajé Ô acarajé é cor Ô la lá io Vem benzer Tá quentinho Todo mundo gosta de acarajé O trabalho que dá pra fazer que é Todo mundo gosta de acarajé Todo mundo gosta de abará Ninguém quer saber o trabalho que dá Todo mundo gosta de abará Todo mundo gosta de acarajé

83 Segundo pesquisa realizada por Pierson (1945, p. 284), o azeite de dendê é um óleo feito de coco da palmeira dendê; o ataré importado da África pelos negros baianos é uma variedade de pimenta; egussis são sementes de abóbora ou de melão; ierês são sementes semelhantes às do coentro; iru e pejerecum (ou bejerecum) são variedades de feijões pequenos.

Page 88: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Dez horas da noite Na rua deserta Quanto mais distante Mais triste o lamento Ê o abará

Composta no final dos anos 1930, a letra da música de Caymmi exalta a atividade de

mercar, dando destaque ao labor no preparo do alimento, assim como o horário em que as

negras mercavam, arriscando a vida nas ruas desertas da cidade. Caymmi fez a composição

porque a “preta” pontual passava toda noite pela rua, tabuleiro à cabeça, entoando o pregão

nagô. Era um fato cotidiano na vida da metropole. Para ele, Salvador era a cidade do samba-

de-roda, das velhas igrejas, do pé de guiné no caco de barro, da batida do agogô no afoxé,

como também a “Bahia” das sedas e das rendas, das feiras e dos casarios, das mulatas e

malaguetas.

No entanto, apesar de Caymmi afirmar que “todo mundo gosta de acarajé”, a verdade

é que a perseguição sofrida pelas mulheres que mercavam foi tamanha que, com o avanço do

século XX, os vendedores de gêneros alimentícios perderam-se de vista, e o serviço passou a

ser realizado por estabelecimentos comerciais, restaurantes e padarias. O acarajé foi um raro

produto que não desapareceu nem perdeu totalmente seu comércio ambulante. Também era

vendido como comida pronta. No entanto, seu preparo na própria rua sobrepujou o costume

de vendê-lo pronto na gamela. Na crônica Acarajé quentinho (21/06/1976), a folclorista

descreve essa mudança na comercialização do acarajé, salientando o transtorno desse novo

hábito no cotidiano das ruas da cidade:

Vocês que andam na rua, todos os dias, acostumados com o irritante esbarra-esbarra dos que disputam um lugar nos passeios, não estranham a presença da mulher do acarajé, com seu tabuleiro, seu fogareiro e a conseqüente desordem em volta. O cheiro do dendê fervente desagrada a muito forasteiro que não seja do tipo de ‘pituitária educada para resistir alterações olfativas súbitas’. Também há quem lamente ter que suportar aquele odor penetrante durante todo o dia, queixando-se de náuseas [...] Garanto que as próprias mulheres de acarajé gostariam de vender à moda antiga [...] O tabuleiro coberto por uma cúpula baixa de vidro e madeira. O acarajé era frio, com o molho semelhante ao dos vendidos às dez da noite. (VIANNA, A Tarde, 21/06/1976).

A citação expõe que, mesmo após anos, a atividade de mercar exercida pelas negras

continuou sendo discriminada e mal vista pela elite soteropolitana. Contudo, certos tipos de

comidas preparadas antecipadamente em casa ainda permaneceram como últimos

Page 89: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

remanescentes das ruas, as mais resistentes acabaram sendo absorvidas pelo tabuleiro da

baiana de acarajé.

Figura 4 - Tabuleiro completo. Itapuã84

O certo é que, como mostra a foto, alguns produtos que povoavam as gamelas sobre as

cabeças protegidas com turbantes e rodilhas passaram a habitar os tabuleiros. Assim, o

tabuleiro não é só do acarajé, mas também do abará, das cocadas, de outros doces e bolinhos,

do peixe e da “passarinha”.85

Para caracterizar a figura mais emblemática das ruas, a popular baiana de acarajé, que

se sobressai até hoje na cidade de Salvador, Hildegardes Vianna escreveu, ao longo dos anos,

diversas crônicas, uma delas intitulada As mãos da baiana (02/09/1996). No texto destaca-se

o interesse da folclorista pelo traje da baiana, concebida como “bizarra”.86 Posterior a essa

etapa, as mãos da mulher negra passam a ser objeto da atenção e são descritas como: “[...]

mãos nodosas, de unhas incertas. Estragadas, mas limpas. Contrastam com os braços sedosos

e roliços de suas donas. Mãos de quem trabalham, não são mãos atraentes nem desejáveis,

mas são mãos encantadas. Mãos de fadas.”. Observa-se nessa crônica uma operação

metonímica, em que a mulher é representada por uma parte do corpo que executa o trabalho,

as mãos.

Ainda na crônica, Hildegardes Vianna enumera todos os quitutes presentes no

tabuleiro, apresentando um traço marcante, tido como dos folcloristas, em que os objetos e

indumentárias se sobressaem à figura humana. As mulheres negras circulam nos textos como

meras coadjuvantes, o sofrimento e dificuldade que o labor imputava aos corpos não são

84 Fotografia retirada da dissertação de mestrado A baiana de acarajé como símbolo identitário da Bahia e sua apropriação pelo turismo, de Noeme Maria Passos Xavier (2007). 85 De acordo com o dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), a passarinha é uma iguaria feita com o baço do boi que é temperado com limão e depois frito. É dividida em cortes longitudinais, formando marcas que, no momento da venda, são cortadas, constituindo, cada tira, uma porção. 86 O dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), define esse termo como: “de aspecto ou comportamento estranho, excêntrico.”.

Page 90: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

questionados. Tal afirmativa se intensifica na crônica em que a baiana é suprimida, e o traje

torna-se o foco da atenção:

É o tecido enfeitado que dá um tom principesco às vestes da baiana. É ele que embeleza a gola do cabeção ou camisa. Que enriquece o pano que trazem embrulhando os ombros ou em volta da cintura. Que se repete no paninho que amarram na cabeça. Tecido enfeitado aprendido pelas mais velhas nas extintas ‘casas de mestra’ e que vão sendo ensinadas às mocinhas de mais capricho. (VIANNA, A Tarde, 02/09/1966).

A perspectiva dos estudos folcloristas identificada na crônica As mãos da baiana

também se repete no texto Baianas da Conceição (05/12/1967), tendo em vista que, ao

escrever sobre a presença das baianas na festa da Conceição, a cronista suprime a imagem da

negra e enfatiza, mais uma vez, as vestimentas que ornam o corpo:87

As negras da Bahia sempre louvaram a Conceição. Negras e mulatas vestidas com ricas saias de cetim branco, becas de liniste finíssimo e camisas de cambraia ou cassa, bordadas de forma tal que vale o favor 3 ou 4 vezes mais que a peça e tanto é o ouro que cada uma leva em fivelas, cordões, pulseiras, colares ou braceletes e bentinhos [...] davam o maior brilho às festas de nossa terra. (VIANNA, A Tarde, 5/12/1967, grifos nossos).

Na crônica Baianas da Conceição, ganha destaque a guisa de adereços utilizados pelas

baianas. E, a partir desses, é de espantar o rico trajar, com ornamentos de ouro e de renda com

os quais essas mulheres desfilavam pelas ruas das cidades. A impressão que se tem é de que

todo luxo e sensualidade em exagero, vetados às mulheres brancas, era canalizado para o

corpo daquelas que consideravam suas serviçais. No entanto, esse costume recebia uma

conotação escandalosa, diante da Igreja Católica Apostólica e Romana, que pregava a

discrição e proibia a exibição de riqueza. Segundo Verger (1992), em 1636 foi baixada uma

portaria real, proibindo o “luxo exagerado” das escravas do “Estado do Brasil”.

Parece estranho, mas as negras “ganhadeiras”, nas ruas, experimentavam, então, uma

mistura de pobreza e opulência, opressão e mobilidade, além da inveja das senhoras brancas, e

as piores condições possíveis de sobrevivência. Foram essas mulheres que, vivenciando uma

espécie de duplicidade, criaram o visual da baiana de turbante e saia rodada. De certa forma, a

87 A festa de Nossa Senhora da Conceição da Praia, na cidade de Salvador, segundo Risério (2004), inicia-se ao final de novembro com as novenas que acontecem todas as noites na igreja matriz da cidade-baixa. A celebração envolve uma missa campal e a procissão, paralelamente ocorre a tradicional festa, nas imediações do Mercado Modelo, com barracas de comidas típicas e bebidas.

Page 91: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

atividade de comercializar está relacionada com ao porte e à altivez dessa mulher das ruas

que, por oposição aos modos contidos daquela outrora considerada sua senhora e sua superior,

desfilava elegantemente nos centros urbanos, equilibrando sobre a cabeça as gamelas, onde

estavam depositados os produtos que mercavam.

Figura 5 - Negra baiana do XVII (Acervo da Livraria Kosmos) 88

Na imagem da negra baiana do século XVII, percebe-se a riqueza de detalhes com as

quais as baianas se vestiam desde essa época: os dedos repletos de anéis, braceletes nos dois

braços, diversos colares em torno do pescoço e as orelhas enfeitadas com argolas. Na crônica

A baiana (I), a cronista destaca: “Tanto era o ouro que cada uma trazia em seus cordões,

pulseiras, colares e pendentes que seriam suficientes para comprar 2 ou 3 negros ou mulatos

88 A figura foi retirada do livro O negro na Bahia: um ensaio clássico sobre a escravidão de Luis Viana Filho (2008, p. 134).

Page 92: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

escravos.” (VIANNA, A Tarde, 11/08/1997). Ao andar pelas ruas da cidade de Salvador,

ainda pode-se observar que o esmero e o cuidado com o traje persistem em algumas baianas

até os tempos atuais.

Sobre a moda feminina na Bahia, no início do século XX, Pierson (1945) afirma que

entre as classes “altas” a moda de Paris e de Hollywood ditava em grande parte a natureza das

vestes das mulheres, sempre compostas de vestidos e chapéus elegantes. Já as negras usavam

a vestimenta da “baiana”.

Este traje se compõe de uma saia muito rodada, de várias cores combinadas, medindo geralmente cerca de 2 a 4 metros de roda na bainha, usada bufante e armada por uma anágua, ou saia de baixo muito engomada; uma bata, isto é, blusa branca comprida e solta, em geral de fazenda de algodão, mas às vezes de seda, usualmente enfeitada de renda larga, às vezes usada muito frouxa no pescoço e deixada escorregar de uns dos ombros; um pano da costa, isto é, um comprido manto de algodão listrado, às vezes atado sobre um dos ombros e preso debaixo do braço oposto, outras vezes enrolado com uma ou duas voltas em uma grande faixa em torno da cintura e amarrado bem justo; um torso ou turbante, de algodão ou seda, atado à volta da cabeça; simples chinelas sem presilhas, de saltos baixos; muitos colares de coral, búzios ou contas de vidro, às vezes tendo corrente de metal, usualmente prata; brincos de turquesa, coral, prata ou ouro; e muitos braceletes de búzios, ferro, cobre ou outro metal. (PIERSON, 1945, p. 282).

Pierson (1945) ainda informa que, como variante da bata, uma blusa branca era usada

por dentro da saia, e o pano da costa era substituído por um xale de lã ou seda. Os calçados

eram os tamancos de sola de madeira e bico de couro ou chinelos de pano. Muitas baianas

andavam descalças. O torso usado por essas mulheres é de origem árabe, trazido para o Brasil

pelos negros de descendência haussá e outros negros, adeptos de Maomé. Pierson ainda

afirma que a portadora do traje típico de baiana, na maioria das vezes, era uma “preta” alta,

graciosa, de físico notável, andar seguro, fisionomia inteligente e jovial.

As informações de Pierson podem ser comprovadas na fotografia retirada de um cartão

postal com a imagem da baiana com a indumentária mais atual do século XX. Nela podem ser

notados os detalhes da saia rodada, das batas, o pano da costa e os colares e braceletes que

ornam o contorno do pescoço e dos braços.

Page 93: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Figura 6 - Mulher negra baiana (1912) 89

No que toca às duas imagens de baiana, destaca-se a postura diferenciada da gravura

de 1912, em que a negra apresenta-se de forma mais à vontade, com as mãos na cintura, gesto

freqüente e marcante nas pessoas de origem africana. Observa-se, ao contrário da imagem

anterior, em que a baiana encontra-se representada em uma postura mais conformada e

89 Cartão postal de título: Uma crioula da Bahia, do editor J. Melo. Data de envio do postal 06/08/1912. Pertence à coleção do Museu Tempostal, na Rua Gregório de Matos, 33 – Pelourinho.

Page 94: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

emoldurada, aproximando-se do traço europeu, que na imagem do cartão postal, a negra está

mais inserida no contexto afro-baiano.

Na imagem do postal, a “baiana” parece representar a sensualidade atribuída à Bahia

(e a ela própria), a terra do prazer e “de todos os pecados”, sensualidade evocada com

freqüência através da dança, dos cheiros, e mesmo da comida, que são caracterizadas como

“quentes” e apimentadas. Uma “baiana” que torna-se personagem cúmplice da cidade, mestra

na arte do feitiço e dos quitutes picantes, que elabora e executa sem parar de “mexer”.

Segundo o historiador baiano Cid Teixeira, a denominação “baiana” para designar a

vendedora ambulante é recente e ele explica que a sua geração, oriunda dos anos 1920, não

conhecia outra forma senão “crioula,” para designar a vendedora de pratos típicos daquela

época. E Teixeira acrescenta: “Ora, baiana ela já era, antes de qualquer coisa! Nós

importamos a designação “baiana”, que era utilizada, sobretudo no Rio de Janeiro.”.90

O antropólogo baiano Thales de Azevedo, em trabalho publicado em 1953, também

discorre sobre o assunto, o que reitera a declaração de Cid Teixeira:

Aos filhos de africanos nascidos no Brasil, chamava-se de crioulos, termo ainda hoje aplicado na sua forma feminina às pretas e mulatas que se vestem como ‘baianas’, com torso à cabeça, saia muito ampla, camisa alva bordada e muito decotada e um chale de cores nos ombros, indumentária trazida pelos africanos do Dahomey e até os nossos dias usada, com certas modificações locais, pelas mulheres ligadas aos ritos religiosos de origem africana, os candomblés. As crioulas típicas baianas são figuras típicas das ruas das cidades, onde podem ser vistas ao transitarem para os centros de culto fetichistas ou sentadas junto a tabuleiros em que expõem à venda, especialmente durante as festas populares, os manjares da famosa cozinha local, em grande parte de origem africana. (AZEVEDO, 1996, p. 37).

Dorival Caymmi também se rendeu à imponência dessas mulheres e, em 1938,

descreveu de forma minuciosa o traje das negras que vendiam acarajé nas ruas de Salvador na

música O que é que a baiana tem?

O que é que a baiana tem? Que é que a baiana tem? Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro, tem! Corrente de ouro, tem! Tem pano-da-Costa, tem! Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem! Tem saia engomada, tem! Sandália enfeitada, tem! Tem graça como ninguém

90 Essa informação foi obtida em um conversa informal com o historiador Cid Teixeira, na Academia de Letras da Bahia, em 20 de outubro de 2008.

Page 95: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Como ela requebra bem! Quando você se requebrar . Caia por cima de mim Caia por cima de mim Caia por cima de mim O que é que a baiana tem? Que é que a baiana tem? Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro, tem! Corrente de ouro, tem! Tem pano-da-Costa, tem! Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem! Tem saia engomada, tem! Sandália enfeitada, tem! Só vai no Bonfim quem tem O que é que a baiana tem? Só vai no Bonfim quem tem Um rosário de ouro, uma bolota assim Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim Um rosário de ouro, uma bolota assim Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim Oi, não vai no Bonfim Oi, não vai no Bonfim Um rosário de ouro, uma bolota assim Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim Oi, não vai no Bonfim Oi, não vai no Bonfim

Nas crônicas de Hildegardes Vianna que dão foco à mulher negra, as baianas do

acarajé são as mais “homenageadas”, tendo em vista o número de publicações que tratam do

tema e os apontamentos das aulas ministradas pela folclorista, identificados nos arquivos da

Academia de Letras da Bahia. Nas apostilas estão descritas com riquezas de detalhes as

vestimentas das negras “baianas”. No entanto, isso não surpreende, visto que, segundo Risério

(2004), entre as décadas de 1950 e 1980, Salvador se tornou uma cidade centrada na

“economia do turismo”. A preocupação com essa nova perspectiva de exploração foi

tamanha, que, em 1968, o governo estadual criou a Bahiatursa.91 Então, Salvador

transformou-se em um dos maiores pólos turísticos nacionais. Sobre o tema, Risério apresenta

algumas informações:

Os brasileiros queriam viajar para as praias da cidade histórica. Para lugares que tivessem ‘comidas típicas’, ‘folclore’, ‘festas tradicionais’. Ora, Salvador era, ao mesmo tempo, praiana e histórica, possuindo ainda a sua culinária, uma cultura popular carregada de ‘exotismo’, e festas, muitas festas. (RISÈRIO, 2004, p. 581).

91 Órgão oficial de turismo da Bahia, responsável pela coordenação e execução de políticas de promoção, fomento e desenvolvimento do turismo no estado.

Page 96: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Nesse contexto de consolidação, procurava-se desenvolver uma mentalidade turística e

promover visitas à Bahia. O tipo de divulgação requerido para atingir esse objetivo foi

fundamentado, então, em uma espécie de “imagem cotidiana baiana”, que foi sendo

construída envolvendo representações afro-baianas. Em vista disso, um dos signos escolhidos

como símbolo cultural de baianidade foi a baiana do acarajé, uma vez que boa parte das

iguarias que representam a culinária baiana é comercializada até hoje nos tabuleiros destas

senhoras.

A partir desse novo olhar sobre as mulheres que são força de trabalho e ao mesmo

tempo viabilizam a projeção da Bahia no mercado externo, Hildegardes Vianna, em 1997,

escreve a crônica A baiana (I) (11/08/1997). Recorrendo a uma vertente diferenciada, porém

sem deixar de frisar que a mercância do acarajé é predominantemente feito pelas mulheres

negras ou “mulatas”, a autora exalta os atributos físicos das vendedoras.

O texto surpreende por apresentar traços ignorados nas crônicas dos períodos

anteriores. Tem-se agora o enobrecimento dos traços estéticos da mulher negra. As baianas

são tidas como altas e bem aprumadas, fato que a autora confere à descendência sudanesa:

“Descendentes de escravos sudaneses – raça bonita e inteligente – possuía beleza, porte,

elegância, asseio e maneiras gentis.” Acrescenta ainda que traziam sempre um ar de “grande

senhora”, mesmo quando estavam com um tabuleiro sobre a cabeça. Apresentam uma

aparência feliz, sempre sorridente. E conclui: “Sua imponência não estava somente no traje.

Era também o garbo com que se vestia nos grandes dias, na maneira de caminhar, na forma de

falar, na maneira de tratar as pessoas. Talvez por isto um famoso escritor disse um dia que não

havia nada mais pitoresco que uma ‘baiana’.” (VIANNA, A Tarde, 11/08/1997).

De acordo com Verger (1992), especificamente o porte altivo das mulheres negras da

Bahia seria uma postura herdada das mercadoras nagôs, vindo dos modos urbanos adquiridos

na África, no território restrito da Iorubalândia.92 Ainda sobre o tema, o antropólogo elucida:

O que determina esse porte altivo da mulher negra da Bahia é o hábito que ela tem de transportar na cabeça os mais diversos fardos que vão desde as trouxas de roupa para lavar até os cestos repletos de mercadorias, passando pelos tabuleiros, bandejas enfeitadas com rendas sobre as quais elas dispõem para a venda, nas esquinas das ruas, produtos alimentares e guloseimas. Andam assim, com o busto erguido, os ombros e a nuca suportando sua carga, conservando uma linha horizontal e estável. (VERGER, 1992, p. 105).

92 Segundo Verger (1992), a Iorubalândia é uma região africana que compreende parte da Nigéria e do Benin, antigo Daomé, habitada pelo povo iorubá.

Page 97: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

De certo modo, vale destacar que a glamorização da baiana do acarajé termina por

ocultar o sofrimento da mulher negra, visto que a descrição da elegância das vendedoras da

rua algumas vezes foi atribuída à sua postura, conseqüência direta do fato de carregarem tudo

à cabeça.

Apesar de toda exaltação de Hildegardes Vianna ao porte da baiana, ainda se observa

na crônica A baiana (I) que a autora não se desfaz da posição de folclorista ao valorizar as

práticas e indumentária, visto que dedica alguns parágrafos para rememorar as vestimentas

das baianas no século XVIII e, em outra crônica, com a mesma temática, A baiana (II)

(18/08/1997), ressalta o traje da baiana e a riqueza gastronômica presente no tabuleiro:

Quando a baiana se sentava, as anáguas duras de goma emergiam de sob as dobras da imensa saia de chitão ou de seda. Que lindas anáguas! O tecido enfeitado que hoje é identificado como crivo, dava um ar principesco às vestes da baiana. Ele embelezava a gola do cabeção, o pano que trazia embrulhando os ombros, substituindo o clássico pano da Costa, as barras dos lencinhos, tantas e tantas peças, para não falar apenas das anáguas. (VIANNA, A Tarde, 11/08/1997).

O tabuleiro da baiana tinha cocada, amendoim torrado, amendoim cozido, fubá de milho torrado e açúcar, farinha de tapioca com coco, beijos de estudante e, mais raramente acarajé e abará. Acarajé e abará comidos frios mesmo e ninguém reclamava. Acarajé quentinho só pra lá das dez da noite. (VIANNA, A Tarde, 18/08/1997).

O interesse da cronista pelo traje é tão evidente, que, para enaltecer as vestes da

baiana, transcreve uma parte do texto As mãos da baiana, de 1969, para a crônica A baiana

(II) de 1997: “É o tecido enfeitado que dá um tom principesco às vestes da baiana. É ele que

embeleza a gola do cabeção ou camisa. Que enriquece o pano que trazem embrulhando o

ombro [...]”. Dessa forma, o tabuleiro e o traje ocupam o papel central, “esquecendo-se”,

assim, de enumerar os atributos da mulher negra, na subjetividade.

Outro tipo “pitoresco” que mercava pelas ruas de Salvador é também representada nas

crônicas de Hildegardes Vianna, as “tias da Costa”. 93 Na crônica Caixinhas e embrulhos

(23/07/1968), essas negras são descritas como mulheres que circulam pelos bairros da cidade,

levando sobre a cabeça uma caixinha, em que acomodam

[...] palas de crioula feitas com rendas de almofada, crochê, tecido enfeitado, bordado cheio ou aberto, com acabamento em ilhós de corrente e

93 Segundo Hildegardes Vianna, as negras recebiam o nome de “Tias da Costa” por venderem produtos de origem da Costa da África.

Page 98: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

perfilados caprichados; lenços de esguião com barras de tecidos enfeitados ou de crochê prontas para posterior aplicação em anáguas; barras de crochê para toalhas de mãos; espelhos de fronhas; vestidinho de cassa francesa bordada; camisas de pagão; e uma série de produtos oriundos da África. (VIANNA, A Tarde, 23/07/1968).

De acordo com Hildegardes Vianna, as “caixineiras” ou “tias da Costa” vendiam em

domicílio e eram consideradas “criaturas” de “bom princípio”, ocupavam a categoria de

mulheres recatadas, “mulher objeto”, pois, apesar de ganharem a vida no comércio ambulante,

furtavam-se ao convívio com “peixeiras”, “fateiras”94 e “ganhadeiras”, “criaturas”

consideradas de palavreado inconveniente e gestos descomedidos. Assim, as negras

caixineiras eram vistas com bons olhos pela elite soteropolitana por apresentarem recato no

modo de trajar e falar.

O termo “criatura”, empregado pela autora para denominar as recém-egressas da

escravidão e suas descendentes que exerciam atividades no comércio e iam de encontro às

convenções sociais e morais da época, tende a diminuir a mulher e sugere que as negras não

foram geradas do ventre materno e, sim, surgiram do nada. Sabe-se que, de acordo com

alguns estudiosos, a presença dessas mulheres nas ruas representava as chagas de um país que

viveu intensamente o processo escravocrata.

Fugindo dos padrões estabelecidos pela sociedade aristocrática soteropolitana, as

negras ameaçavam o projeto de construção de uma nação civilizada, tendo em vista que não

se casavam civilmente, assumiam o papel de chefe de família, devido à ausência dos homens

nos lares constituídos pela população afro-brasileira, e mostravam pouco “recato” na maneira

de trajar e falar, pois tinham que se defender da rudeza dos ambientes externos. Por mais

corriqueira que tenha se tornado a presença das afro-baianas nas ruas de Salvador, o trabalho

doméstico dentro das casas das elites brancas, também era responsabilidade das negras.

94 Eram denominadas de “fateiras” as vendedoras de vísceras de animais, popularmente designadas de fato.

Page 99: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

AS NEGRAS DOMÉSTICAS

Negra é a vida consumida ao pé do fogão Negra é a mão nos preparando a mesa,

limpando as manchas do mundo com água e sabão Negra é a mão de imaculada nobreza.

Na verdade a mão escrava passava a vida limpando o que o branco sujava. Imagina só o que o branco sujava. Imagina só o que o negro penava.

Eta branco sujão!

Gilberto Gil95

A mulher negra foi explorada como mão-de-obra pela elite branca em diversos setores

da economia brasileira, principalmente nas atividades domésticas, trabalhando como

arrumadeira, lavadeira, cozinheira, ama-de-leite e costureira. Sobre essas tarefas, Walter

Fraga Filho afirma o seguinte:

Por motivos óbvios, o serviço de ama-de-leite era dominado por mulheres. Também cuidar das crianças, engomar, costurar e lavar eram atribuições reservadas inteiramente às pessoas do sexo feminino. Em parte, essa predominância feminina refletia a preferência dos amos. (FRAGA, 2006, p. 334).

Em sua pesquisa, o historiador identificou que o serviço doméstico era um setor

predominantemente ocupado por pessoas de cor negra ou mestiça; “estas representavam

93,8% dos que cozinhavam, lavavam e cuidavam das crianças dos moradores dos sobrados

urbanos.” Ainda de acordo com a pesquisa de Fraga, “criadas e criados brancos” eram raras

exceções. No entanto, esse número ínfimo dava-se porque, segundo os anúncios de empregos

publicados em jornais da época, os patrões manifestavam preferência por serviços de pessoas

negras.

Tendo em vista que Hildegardes Vianna retrata uma sociedade recém-saída do

processo escravocrata, a cronista não poderia deixar de mencionar as mulheres que exerceram

as tarefas do lar. Na crônica No tempo da casa d`ama (15/11/1969), descreve os trabalhos

realizados pelas afro-baianas. Segundo a cronista, “antigamente” as negras eram as

responsáveis por desempenhar diversas atividades nas casas de família. Se fossem

cozinheiras, tinham que saber lidar com os diversos temperos; as arrumadeiras, por sua vez,

varriam, limpavam e lavavam a casa.

95 Trecho da letra da música A mão da limpeza (1984).

Page 100: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

De acordo com a cronista, trabalhar em “casa d`ama” significava ter emprego de

doméstica:

Trabalhar em casa d’ama queria dizer, antigamente, ter emprego de doméstica. Procurar casa d’ama, sair da casa d’ama, dormir em casa d’ama, encontrar um casa d’ama significavam procurar emprego, dormir por lá mesmo, desempregar-se ou empregar-se respectivamente. Era raro uma cozinheira ou uma lavadeira pronunciar meu patrão, minha patroa. Minh’ama e meu amo eram expressões correntes. Patroa e a branca se generalizaram, depois que se foi a Abolição da escravatura. (VIANNA. A Tarde, 15/11/1969, grifos do autor).

O noção de que os negros eram propriedades se manteve em Salvador ainda nos

primeiros anos após a Abolição da Escravatura, tendo em vista o caráter de subserviência que

a expressão “ama” conota para as domésticas. Disseminava-se a cruel idéia de que “uma boa

casa d’ama valia tanto quanto um seguro de vida.” (VIANNA, A Tarde, 15/11/1969). Assim,

de certa forma, vê-se a naturalização das relações por conta das funções ocupadas pelos

negros, ou seja, a impossibilidade que a elite baiana enxergue a população negra fora de

papéis sociais subalternos, isto é, como homens e mulheres livres com direito a remuneração

por seus serviços, direito de apresentar suas condições e, antes de tudo, de exigir tratamento

digno. Assim,

[...] arranjar uma casa d’ama não era difícil. Dependia como hoje, do candidato ou candidata ter habilidade no desempenho de suas tarefas, sobretudo ser fiel nos trocos e curto na língua. A cozinheira precisava saber lidar com aqueles temperos complicados em que manteiga vermelha (manteiga de vaca com sal), banha, toucinho e azeite doce, concorriam generosamente para tornar as pessoas gordas e aparentemente sadias. Para a arrumadeira, varrer e sacudir tudo muito bem e lavar a casa aos sábados eram suas obrigações principais. Arrumar uma empregada, arranjar uma ama, como se dizia, também não era difícil. Dependia, como hoje, de se ter dinheiro para pagar e paciência para agüentar os dias de adaptação. Fidelidade era requisito principal invocado, quando se pedia para alguém inculcar uma ama. O verdureiro, o açougueiro, o freguês de banana ou a freguesa do acaçá, enfim aquele bando de gente que vinha à porta vender, era convocado para inculcar uma ama boa. (VIANNA, A Tarde, 15/11/1969, grifos do autor).

Nessa crônica, No tempo da casa d`ama, Hildegardes Vianna ressalta que muitas

domésticas optavam por retornar para suas residências no período da noite e entrar para

trabalhar antes do café da manhã. As que permaneciam no emprego, muitas vezes pela

ausência de um lar, ao fim de um dia árduo se ajeitavam em uma tábua ou esteira forradas

Page 101: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

com retalhos de cobertores e xales velhos. Havia a possibilidade de deitarem-se em camas,

que eram armadas na cozinha, na sala de jantar ou na entrada da porta da rua, para receber de

manhã o pão, o leite e o mingau. Durante a noite, o descanso não era totalmente possível,

visto que eram despertadas para atenderem às solicitações dos patrões.

De acordo com a cronista, algumas mulheres, quando tinham “sorte”, conseguiam uma

folga por semana, que era utilizada para outros serviços e complementar a renda como

lavadeiras ou se tornarem “ganhadeira ou vendedeira”. Outras, mais afortunadas, segundo a

cronista, conseguiam um canto no porão ou um quartinho nos fundos da casa, para onde

levavam toda família. Os filhos iam sendo “aproveitados” para moleques de recado ou

compradores de tempero. As meninas, conhecidas como as “catarinas”, ajudavam no trabalho

ou eram encaminhadas para casas dos conhecidos, onde teriam o mesmo destino da mãe.

Tendo em vista que nem todas as pessoas tinham condições econômicas de manter

uma empregada doméstica, as famílias que se encontravam nessa situação possuíam uma

catarina. Desde criança, as meninas negras já se viam introduzidas nas atividades domésticas.

Algumas eram obrigadas a fazer todas as tarefas da casa, outras só brincavam com as crianças

brancas que residiam no mesmo domicílio e ajudavam, quando solicitadas por um adulto. A

crônica As catarinas (25/04/1988) ilustra a penosa situação nas quais viviam essas crianças:

As catarinas trabalhavam de sol a sol, desempenhando as tarefas mais variadas, maltratadas [...] Acostumavam-se com as birras, os insultos, as sobras de prato que tinham de comer, os trapos que tinham que vestir. Caladas, resmunguentas, respondonas, cada uma cumpria sua sina como podia. (VIANNA, A Tarde, 25/04/1988).

Na crônica, podem ser identificados sentimentos díspares. Ao tempo em que se

apresenta uma compaixão pelo sofrimento imposto a essas crianças, há um entendimento de

que o trabalho infantil realizado pelas meninas negras é “uma sina”: “as catarinas

acostumavam-se com as birras [...]”. Assim, de acordo com Hildegardes Vianna, as crianças

negras já nasciam, mesmo após a Lei do Ventre Livre96, sentenciadas a trabalharem para

ajudar na renda da família ou para terem um teto e um prato de comida. Dessa forma, a vida

não se tornará menos dura para essas mulheres com a assinatura da Lei Áurea.

Dando continuidade à descrição das tarefas realizadas pelas negras no espaço interno

das residências, Hildegardes Vianna, na crônica Da cozinha e do seu conceito (02/09/1969),

96 A Lei do Ventre Livre foi assinada no dia 28 de setembro de 1871, pelo Visconde do Rio Branco, determinando que todo filho de escrava que nascesse a partir daquela data seria livre.

Page 102: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

ressalta o desprestígio que o trabalho doméstico tem na sociedade aristocrática,

principalmente aqueles realizados no espaço da cozinha:

Trabalhar na cozinha era considerado ‘destino triste’, as senhoras brancas resistiam a executar a tarefa de cozinhar, assim sempre tinham uma menina preta, dada de presente para aprender a trabalhar, que exerciam as tarefas do lar. Cozinha era o lugar mais baixo existente na casa. [...] a cozinha se fizera para negro e negra ruim. (VIANNA, A Tarde, 02/09/1969, grifos nossos).

Chama a atenção o trecho da crônica em que autora informa que as “meninas pretas”,

as catarinas, eram “dadas de presente” para aprenderem a trabalhar. Tal afirmação denuncia

que a elite baiana não se habituou facilmente com a idéia de que os trabalhadores não eram

sua propriedade. Assim, o branco poderia se dispor dos negros quando bem aprouvesse, até

porque não foram protegidos pelo Estado.97 Assim, dentro da mentalidade da aristocracia, os

negros continuavam ocupando o lugar de “peças” que poderiam ser descartadas e

manipuladas de acordo com seu interesse.

Quanto ao trabalho executado no espaço destinado ao cozimento dos alimentos, a

cozinha, segundo a cronista, era considerada o “lugar mais baixo da casa”, pois a emissão de

uma fumaça escura pelo fogão à lenha contaminava o espaço, deixando-o com paredes e pisos

encardidos e os vidros das janelas com uma cor quase preta. O telhado também não escapava,

pois compunha-se de um emaranhado de teias de aranha, impossíveis de serem retiradas

devido à altura. Assim, a cozinha não era o local mais agradável de se trabalhar. Ao contrário,

era destinada para “negro e negra ruim”. Sobre a cozinha, Hildegardes Vianna descreve:

As velhas cozinhas, pobres ou ricas, limpas e besuntadas, salvo umas poucas que possuíam teto baixo, ostentavam bambinelas de teias de aranha, enegrecidas, verdadeiras cortinas pendentes das vigas. Cordões de pucumã faziam arabescos nas paredes encardidas. Os vidros das janelas eram quase pretos, como quase preto era o chão. Assoalhadas ou de tijolos, de chão batido ou raramente de cimento ou ladrilhos, quase sempre de telha vã, não dos lugares atraentes. Mobiliário? Todas as casas tinham fogão construído junto à parede ou no centro da peça. Talvez, então, as prateleiras, a mesa e raramente bancos ou cadeiras. A mesa de madeira de feitio tosco, mesmo quando de fabricação sólida, servia para muitos misteres. Na mesa da cozinha se engomava, se tratava a carne, se lavava prato, se dava banho em menino. Banco e cadeira? Só gente muito organizada e humana punha assentos na cozinha. Sentar de cócoras para comer não era postura difícil para quem estava acostumado a nunca ter onde descansar as pernas.

97 Muitas crianças negras eram dadas pelas mães para trabalharem nas casas de famílias brancas, pois essa era uma alternativa diante do sofrimento de não poder sustentar em filhos.

Page 103: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Também o serviço andava mais depressa sem bancos e cadeiras. (VIANNA, A Tarde, 02/09/1969).

Outro aspecto a ser considerado são as atividades realizadas no espaço da cozinha.

Todas demandavam muita energia e esforço físico, visto que, nas primeiras décadas da

República, ainda não havia o manancial de utensílios e eletrodomésticos utilizados na

atualidade para facilitar as atividades. Como esse espaço era ocupado pelas negras, eram elas

que permaneciam um dia inteiro trabalhando sem ter direito ao descanso, uma vez que,

segundo a cronista, nas cozinhas não havia cadeiras nem bancos. Assim, “a cozinha já foi o

fim. Fim em tudo e por tudo! Fim em localização, fim em asseio, fim em trabalheira, fim em

tudo e tudo. Ir para cozinha era desdouro.” (VIANNA, A Tarde, 02/09/1969).

As mulheres que exerciam as atividades domésticas, assim como as vendedoras de rua,

também eram consideradas pela elite “mulheres de saia”. Cozinheiras, arrumadeiras, amas-de-

leite, engomadeiras, lavadeiras e amas-secas, todas faziam parte dessa categoria de

trabalhadoras, só que desfrutavam de uma situação mais favorável, no entendimento da

cronista, por trabalharem dentro de casa, protegida da hostilidade dos espaços públicos.

O trabalho no espaço doméstico algumas vezes trazia certo status às negras

domésticas. Quando os patrões morriam, eram elas que se responsabilizavam em carregar a

bandeja com flores, que seria ofertada ao falecido. No entanto, não era permitido a qualquer

negra realizar essa tarefa. Só às negras de confiança que já trabalhavam na casa há muito

tempo era dada essa “honraria”. Na crônica Convidados e bandejas (07/11/1969), Hildegardes

Vianna comenta a sua participação nos funerais:

Dálias, rosas, angélicas, saudades, suspiros, cravos de defunto, galhos de crótons, caládios e folhas de palmeira eram arrumados sobre as bandejas com alguma arte. Era raro se encontrar carregador com tais bandejas, a não ser que fosse criado da casa do ofertante. O que se usava era ser conduzida por uma mulher de saia, muito bem vestida, com cabelos muito bem ajeitados. Com suas sandálias bordadas, suas saias duras de goma, seu xale dobrado e o indefectível lenço empalmado, as mulheres de saia entravam ondulantes, carregando as bandejas floridas, que iam sendo armazenadas em lugar arejado até a hora do enterro. (VIANNA, A Tarde, 07/11/1969, grifos do autor).

Observa-se que, para fazer parte desse ritual, as negras deviam se vestir com bastante

esmero, pois para elas era um privilégio ser escolhida para carregar a bandeja com as flores

que seriam depositadas no jazido do patrão. Além dos parentes, os convidados do enterro

Page 104: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

também tinham o hábito de ofertar flores e geralmente levavam suas “negras com boa

aparência” e bem vestidas para carregarem o presente, destacando que “a boa aparência”

caracterizava a riqueza, o prestígio e o poder do seu senhor.

Apesar do suposto glamour que essa atividade parecia ter, as negras continuavam

sendo, no dizer de Lélia Gonzalez (1983, p. 230), “[...] domésticas, nada mais do que mucama

permitida, a da prestação de serviços, ou seja, o burro de carga que carregava sua família e

dos outros nas costas.” Logo, o fato de serem escolhidas para levar as bandejas não pode ser

encarado como exaltação.

Figura 7 - (Acervo da Livraria Kosmos) 98

A imagem apresenta uma negra doméstica em traje de festa, usado em batizados,

procissões e funerais dos senhores brancos. Assim, como nas imagens que apresentam as

“baianas” de acarajé, observa-se a riqueza do detalhes com as quais as mulheres se

98 A figura foi retirada do livro O negro na Bahia: um ensaio clássico sobre a escravidão de Luís Viana Filho (2008, p. 134).

Page 105: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

arrumavam para essas ocasiões, destacando-se as jóias que ornavam os braços e o pescoço da

doméstica.

Na crônica Casa de Mestra (13/01/1974), a autora ressalta a posição tida, de certo

modo, como privilegiada das mulheres que exerciam trabalhos domésticos, que se destacavam

das que mercavam nas ruas da cidade. Para a cronista, o ambiente interno da casa, associado

ao contato com os brancos, tornavam as negras menos “embrutecidas”. Logo ao iniciar o

texto, Hildegardes Vianna apresenta uma definição para essas negras. Na sua maioria, eram

católicas praticantes freqüentando regularmente a igreja, porém sem nunca se confundirem

com as beatas, que eram mulheres brancas. Vestiam-se e penteavam-se com discrição,

falavam pouco, em tom meio velado, sobre alguns assuntos, quando permitida a sua

intromissão. E ainda continua:

Quem era a mestra? Excepcionalmente poderia ser encontrada uma mulher branca como Mestra. Reparem bem que está escrito Mestra, não Professora. A maioria esmagadora era de mulheres negras ou mestiças. O estado civil pouco importava. Havia muitas velhas honestas, casadas, viúvas e umas tantas com protetor ou ‘dono de casa’ dentro da maior discrição e respeito possível. Todas procedendo nos limites da compostura, debaixo de um severo regime de vida, ocupando as horas do dia com coisas julgadas úteis e valiosas na época. Em troca de uma razoável remuneração, a Mestra se propunha a ensinar qualquer menina a varrer a casa, sacudir os móveis, lavar louça, arrumar gavetas e arcas, fazer fogo, temperar panelas, ralar coco, bater bolo, lavar roupa, engomar, além do ofício de costureira. (VIANNA, A Tarde, 13/01/1974, grifos nossos).

No trecho “Reparem bem que está escrito Mestra, não Professora.”, nota-se que a

cronista faz questão de frisar a distinção da classe social ocupada pela professora, uma vez

que as negras que exerciam a função de mestras tinham a finalidade de ensinar às meninas

negras os serviços domésticos que elas, posteriormente, iriam executar nas casas dos brancos,

ao passo que as professoras, mocinhas brancas, responsabilizavam-se por ensinar a ler e

escrever às crianças brancas.

A partir das informações de Hildegardes Vianna, sabe-se que a mestra ocupava uma

categoria superior, pois era responsável pela perpetuação da ordem. No entanto, apesar do

local de destaque que ocupavam, as mestras cumpriam socialmente suas obrigações,

mantendo-se distanciadas das senhoras brancas, limitando-se apenas a dar parabéns ou

pêsames, em ocasiões que se fazia necessário. A fisionomia nesses momentos era sóbria, não

demonstrando ostensivamente os sentimentos. Sobre esse comportamento, Vianna reafirma:

Page 106: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

“Freqüentavam nas ocasiões precisas as casas de pessoas de nível mais alto, sem ultrapassar a

linha divisória que a sociedade então impunha. Como sabia conduzir-se, e jamais dava lugar a

censuras ou reparos, era bem acatada e até elogiada”. (VIANNA, A Tarde, 13/01/1974).

Hildegardes Vianna reitera o mito da “democracia racial”, em que brancos e negros

convivem harmoniosamente, desde que os segundos permaneçam responsáveis pela execução

das tarefas que exigem esforços físicos e não ultrapassem a fronteira que separa os brancos do

não-brancos. Assim, nesse texto a cronista expressa o sentimento de complacência que a

“sociedade” aristocrática soteropolitana, leia-se os brancos, tinha com as mulheres negras, as

quais mantinham uma postura servil e guardavam distância das pessoas consideradas de

posição social “superior”. Sobre o assunto Thales de Azevedo afirma:

Numa sociedade de tradições aristocráticas, como a baiana, a etiqueta no trato entre pessoas de níveis sociais diferentes é muito importante. Uma pessoa ‘adiantada’, que ultrapassa os limites que são fixados por seu status ou por sua situação de estranho, usando inadequadamente de maneiras que revelam intimidade ou identidade de posição, é sempre mal vista mesmo que seja branca. Pior ainda se é de cor, porque não só é tida como mal educada, porém como ‘ousada’, capaz de ‘tomar muita liberdade’ com pessoas que não conhece ou que ‘não são da sua classe’. E usada neste sentido a palavra ‘classe’ significa posição social muito baixa. (AZEVEDO, 1996, p. 69).

Na crônica, a autora ainda questiona a assimilação pelas negras do comportamento

“civilizado”, indicando que isso não seria possível de encontrar no universo afro-baiano,

exceto através do contato com a própria elite.

Onde tinham aprendido tal comportamento? Na classe havia de tudo. Umas, antigas escravas de estimação, bem ensinadas e bem tratadas, tinham sido alforriadas sem grandes esforços. Outras, embora com vínculo de sujeição a determinada família ou pessoas, pagavam regularmente um tributo em trabalho ou dinheiro para gozar relativa liberdade. Umas tantas tinham sido nascidas e criadas em casa de pessoas direitas que tinham cuidado dos seus modos e educação. Umas poucas, crescendo em casas de mestras tinham se identificado com a maneira de viver, tornando-se gente de casa, herdando por morte as discípulas e o bom conceito. (VIANNA, A Tarde, 13/01/1974, grifos nossos).

Destaca-se no trecho o termo "pessoas direitas” para enobrecer as mulheres brancas,

com seus valores da cultura burguesa que, durante séculos, foram beneficiadas pelos serviços

prestados pelas negras e que, por interesse próprio, ensinaram-lhes alguns modos, ditos

“civilizados”, posto que as negras exerciam atividades domésticas e, esporadicamente,

Page 107: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

adentravam no ambiente da sala. Na visão da cronista, as mestras só tinham uma postura

educada porque foram ensinadas pelas famílias brancas, “tornando-se gente de casa”.

O certo é que para os senhores, as negras eram consideradas seres humanos inferiores,

por mais que fossem adestrados na cultura e tradição branca. Por maior habilidade que

demonstrassem no processo de tradução cultural, eles constituíam apenas uma “diferença que

é quase a mesma, mas não exatamente, quase o mesmo, mas não brancos.” (BHABHA, 2007,

p. 130).

As amas-de-leite também constituíam o grupo das domésticas, uma atividade que vem

desde o período da escravidão. Era uma ocupação que exigia muita proximidade com a

família, pois a ama era a mulher responsável por cuidar e alimentar com o próprio leite

materno, da criança do branco. Negras de seios grandes, que eram providas de muito leite,

faziam dessa atividade um meio de sobrevivência. Trabalhavam amamentando os filhos das

senhoras brancas frágeis, desprovidas de saúde. Para serem contratadas, eram exigidos alguns

atributos. Fazia-se necessário terem boa saúde, para não transmitir doenças às crianças, ter

“boa aparência”, de preferência mulatas e crioulas, e não serem muito velhas.

Fraga (2006, p. 333) destaca que a Câmara de Salvador, respondendo aos “reclamos

do público”, elaborou algumas “posturas”, regulando a relação entre amos e criados. Uma

delas, a postura de número 15, determinava que a ama-de-leite que ocultasse moléstia ou

tivesse reconhecida a incapacidade de amamentar criança incorreria na pena de 20$000 réis

ou cumpririam quatro dias de prisão. Além disso, não se poderia recusar o exame médico. A

ama-de-leite que abandonasse a criança antes de concluído o prazo de contrato (período de

amamentação) seria multada em 30$000 réis ou cumpriria oito dias de trabalho forçado.

Na crônica Amas-de-leite (22/09/1986), Hildegardes Vianna informa que as mulheres

negras, que tinham tido filho recentemente, tornavam-se amas-de-leite por indicação ou por

anúncios em jornais da cidade, chegando a amamentar mais de uma criança no mesmo

período. Segundo a folclorista:

Havia grande procura de ama-de-leite, mulheres em condição de dar de mamar a crianças filhas de mães frágeis ou em condições físicas nada recomendáveis. Além da vantagem que ofereciam de desfrutar de boa mesa, ter à disposição ‘vinhos de sustância’, adquirindo uma boa amizade se para tal tivesse merecimento. (VIANNA, A Tarde, 22/09/1986).

A boa alimentação era um cuidado do branco, considerado como “vantagem” para

Hildegardes Vianna, para que a negra que amamentasse também estivesse saudável, evitando

assim transmitir doenças aos filhos do contratante. Caso a mulher tivesse leite suficiente para

Page 108: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

alimentar dois bebês e o patrão permitisse, levava o filho consigo. Se isso não fosse possível,

o filho da ama-de-leite ficava sob os cuidados de uma vizinha ou alguém conhecido e passava

a ser alimentada com leite cozido à base de farinha de mandioca. E a pobre mãe, farta de leite,

recorria a uma alternativa para diminuir a quantidade do líquido que lhe pesava a mama:

.

As mulheres com muito leite e que, por qualquer circunstância, não pudesse dar de mamar a mais de uma criança ficava em situação aflitiva. Conseguiam, com muita sorte um filhote de cachorro para pôr ao seio, aliviando a situação. Em desespero de causa com o vazamento do líquido, as dores, os vergões, e até febre, tinham que recorrer à ‘simpatia’. (VIANNA, A Tarde, 22/09/1986).

Ser ama-de-leite significava muitas vezes abrir mão da maternidade, pois muitos

senhores não permitiam que as negras dividissem o leite entre seus filhos e os delas. Quando a

criança branca crescia, às vezes, essas amas tornavam-se amas-secas. Então, passavam a

morar na casa da família na qual trabalhavam, com direito a uma folga para verem o filho

esporadicamente. Caso contrário, engravidavam novamente para prestarem serviço a outras

famílias e garantirem o trabalho por mais dois a três anos.

As negras que exerciam a profissão de ama-de-leite, apesar de não estarem nos

espaços da rua, também sofreram discriminações desde o meado do século XIX. Segundo

Fraga (2006), muitos médicos passaram a reprovar o leite materno das mulheres negras. As

“mães de leite”, de modo geral, foram vistas como “elemento” corruptor da família, sendo

acusadas de trazer para dentro da casa todo tipo de doenças infecciosas como a sífilis, que

podia ameaçar a vida das crianças brancas. Assim, desenvolveu-se uma campanha em defesa

da amamentação pela própria mãe branca, e a figura da ama-de-leite foi desaparecendo das

cidades.

As lavadeiras também se somavam à categoria das mulheres que exerciam atividades

domésticas. Hildegardes Vianna, nas crônicas As lavadeiras faziam assim (16/12/1969) e

Ainda as lavadeiras (24/12/1969), retrata o cotidiano das negras que dedicavam uma vida à

execução de um trabalho hercúleo, o de lavar roupa, por falta de alternativa para sobreviver.

Segundo a cronista, as lavadeiras se constituíam de

[...] um grupo de mulheres negras, mulatas descalças, andando pelas ruas da cidade, quase sempre as segundas-feiras, com trouxas de roupa à cabeça. Andava pelas ruas, saias meio arregaçadas, seguida a curta distância por um filho ou filha de pouca idade, carregando galhos secos miúdos ou pontas de madeiras de desmancho reunidos em um feixe. Esta era a mulher que lavava para fonte, tipo que está gradativamente desaparecendo.

Page 109: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

As que lavavam na casa da patroa, isto é, na casa d’ama, dormiam fora, não tendo horário muito rígido. Em lares organizados, em que havia dia e hora para tudo, a lavadeira tinha dias preestabelecidos para molhar a roupa. Em outras, entretanto, era um inferno, toda hora descendo roupa para lavar. Se, em algumas residências as pias de cimento, chamadas lavanderias, eram bem construídas, até que o serviço não era dos piores. Mas, se era para lavar no banheiro ou no tempo, sem gamela nem lugar para quarar a roupa, a situação não era de causar inveja. (VIANNA, A Tarde, 16/12/1969).

Quanto à realização da tarefa, as lavadeiras podiam ser classificadas como “as que

lavavam na casa da patroa e as que lavavam na fonte; as que lavavam por peça e as que

lavavam por mês; as que apenas lavavam e as que lavavam e passavam, além das que lavavam

e engomavam.” (VIANNA, A Tarde, 16/12/1969).

No entanto, todas atravessavam o mesmo sofrimento, as mãos bastante maltratadas,

pois havia as roupas grossas ou muito sujas que exigiam longas esfregas, ferindo as cutículas

das unhas. Para ajudar na retirada da sujeira, usavam sabão com substâncias químicas

agressivas que irritavam a pele e ocasionavam lesões e ferimentos. Os dedos infeccionavam

em volta da unha e supuravam. As unhas apodreciam e caíam. O terrível “unheiro” resistia

aos remédios caseiros que eram utilizados, pois as lavadeiras, durante todo sofrimento

causado pelos machucados, não paravam de lavar, pois essa era a única fonte de renda.99

Hildegardes Vianna descreve que, quando mais velhas as negras ficavam asmáticas,

reumáticas, cardíacas, mas nunca deixavam as atividades, pois tal atitude implicaria privações

para ela e sua família. “As lavadeiras cumpriam seu fardo, sem grandes paixões. Nada de

queixas, nada de lamúrias. O que elas iriam fazer? Se nascia lavadeira, lavadeira se tinha de

morrer.” (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969).

Em muitas crônicas, Hildegardes Vianna apresenta a situação da mulher negra como

irreversível. Na falta da implementação de políticas, por parte do Estado, a circunstância

deveria ser aceita com resignação. A idéia de aceitação do sofrimento imposto pelas

atividades domésticas e pelo trabalho de rua se repete em diversas crônicas em que a autora

apresenta as negras como submissas e consternadas, demonstrando poder suportar qualquer

penúria. Nessa perspectiva, o sexismo e o racismo atuam juntos, perpetuando uma iconografia

de representação da negra que imprime na consciência cultural coletiva a idéia de que ela está

nesse planeta principalmente para servir aos outros de modo abnegado.

99 No dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), unheiro está definido como uma inflamação em volta das unhas.

Page 110: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

De forma emblemática, a crônica No tempo da mulata velha (16/12/1985) reflete

muito bem esse modo de pensar hildegardiano. O traço de submissão e conformidade é

demarcado pela similaridade que a cronista atribui haver entre a Bahia de “antigamente” e a

“mulata velha”. Segundo Hildegardes Vianna, a Bahia foi assim denominada por muitos anos

por apresentar um “clima ameno e ter um ambiente ordeiro”. Se comparado às demais

crônicas que apresentam as mulheres negras, o texto deixa margem para a interpretação de

que as senhoras negras mais velhas aceitavam o destino do trabalho doméstico com

passividade e conformismo, ou seja, “uma sina”, como define a própria autora nas crônicas

analisadas nesse estudo. Segundo a cronista, “é bom recordar. Melhor ainda é tentar

reconstruir as lembranças de um velho e bom tempo.” (16/12/1985). Tempo, diga-se de

passagem, em que as negras não tinham oportunidades, exceto o trabalho subalterno. Logo,

bom tempo para uma minoria que pertencia à elite e utilizava-se da mão-de-obra negra.

Page 111: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

CONSIDERAÇÕES FINAIS

___________________________________________________________________________

Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é

coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro, acima de tudo,

graças a Deus. Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou

prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto

têm mais é que ser favelados.

Lélia Gonzalez100

Recordar. Essa foi a principal demanda de Hildegardes Vianna. Durante boa parte de

sua vida, a cronista e folclorista se dedicou a recordar uma Bahia de outrora, como se

desejasse cristalizar um tempo passado. Negando-se a enxergar a modernidade que invadia a

cidade na década de 1950, prefere rememorar uma Bahia onde negros e brancos tinham

lugares demarcados. Bahia das ruas e ladeiras estreitas e mal iluminadas.

Das sacadas do sobrado de onde residia, a cronista observava o ir e vir das negras que

desfilavam sobre as ruas e ladeiras da velha Bahia, mercando acaçá, abará, acarajé, mingau,

cuscuz e todas as guloseimas saborosas que coubessem em suas gamelas. Vestidas em suas

saias rodadas e “camisus desguelados”, elas se dirigiam à casa dos patrões para cozinhar,

lavar, passar e até amamentar. Bastava esperar, que pontualmente iriam aparecer. Sem saber

que estavam sendo vigiadas, passavam cantarolando seus pregões, todos os dias. Mal sabiam

que seriam imortalizadas nas crônicas de Hildegardes Vianna.

É uma pena, mas foram imortalizadas com olhar estereotipado e segregador. Foi assim

que a folclorista viu seu “objeto de pesquisa”. Impregnada de uma visão racista, sexista e

elitista, Hildegardes Vianna se “esqueceu” de conferir visibilidade às mulheres negras e

perpetuou em suas crônicas o estigma de que trabalho é coisa de escravo, escravo é negro,

negro é peça; logo, o único lugar a ser ocupado pela população negra é o do serviço

subalterno.

A escrita dessa dissertação permitiu retomar e repensar, de certa forma, o que foi a

Bahia nas primeiras décadas do século XX, principalmente no que diz respeito à relação entre

brancos e negros. A contradição de viver em um país teoricamente democrático, com direitos

100 Retirado do artigo Racismo e sexismo na cultura brasileira (1983).

Page 112: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

iguais para todos, e ao mesmo tempo perceber o quanto foram discriminados os cidadãos que

possuíam a tez escura e eram desprovidos de recursos financeiros.

Lembrança foi uma palavra que ajudou a repensar essa Bahia, principalmente porque

nesse vocábulo parece residir a certeza de que todos os acontecimentos e fatos existiram. No

entanto, a lembrança diz respeito ao passado, e quando ele é contado, a memória se atualiza

sempre a partir de um ponto de vista presente. Para quem não viveu, como eu, nesse período

narrado por Hildegardes Vianna, restou a tarefa de relê-lo através dos estudos daqueles que

estiveram ou se empenharam em escrever sobre essa Bahia. Leu-se então a fala histórica de

Antônio Risério, Donald Pierson, Thales de Azevedo, Clovis Moura, Kátia Matoso e outras

mais atuais, como a das pesquisadoras Florentina de Souza e Patrícia Pinho. Todos, de

alguma maneira, empenharam-se em descrever as transformações ocorridas na Bahia de

“brancos e pretos”, em denunciar o processo de discriminação vivenciada pelos negros e as

lutas e conquistas para garantir um espaço de respeito, com a concretização plena da

cidadania, na sociedade soteropolitana.

Recorrer a esses estudos não foi difícil, pois as transformações que se processaram na

Bahia ao longo do século XX provocaram várias investigações. Mas é importante não

esquecer que grande parte dessas mudanças, apesar de serem atribuídas à emergência

industrial e econômica da cidade, foram conquistas da própria população afro-brasileira. A

organização de movimentos contra o combate ao racismo e a busca de direitos iguais garantiu

de forma significativa o ingresso do negro no mercado de trabalho e na educação. A busca da

auto-estima e o respeito aos traços fenotípicos foram heranças deixadas pelos blocos afros que

afirmavam, nas letras das músicas, que a pele negra também tem beleza. Nesse caso, vale

ressaltar que, em sua maioria, as leituras sobre a Bahia, de uma forma ou de outra, acabaram

esbarrando na temática das relações raciais.

Nesse sentido, não apenas a distância, mas também esses pressupostos teóricos

pesquisados permitiram apontar para caminhos outros de leitura. Lélia Gonzalez (1983, p.

223-244), no texto intitulado Racismo e sexismo na cultura brasileira, com a propriedade que

tem sobre o assunto, despertou em mim um olhar mais aguçado para que, nas interpretações

das crônicas, pudesse perceber o quanto era segregadora a escrita de Hildegardes Vianna

sobre as negras.

Homi Bhabha (2007, p. 117) permitiu compreender que os estereótipos sobre as

mulheres negras presentes nas crônicas são uma falsa representação de uma realidade, uma

forma presa e fixa, que nega a alteridade e recalca as diferenças presentes na sociedade. No

entanto, vale destacar que essas representações são influenciadas pelo contexto sociocultural

Page 113: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

da cronista, pois, a partir de Moscovici (2007), pôde-se entender que as representações sociais

são construídas inicialmente do interesse de um grupo, ou seja, o autor é influenciado pelo

lugar que ocupa na sociedade. Logo, sendo Hildegardes Vianna uma mulher branca da elite

soteropolitana e folclorista, optou por escrever sobre a mulher negra em uma perspectiva

racista, sexista e estereotipado.

Atrelando-se ao local ocupado pelo enunciador, destaca-se que os escritos de

Hildegardes Vianna são considerados pertencentes à cultura popular, folclore. Nesse sentido,

seu interesse em recordar o passado também se justifica, tendo em vista que os estudos

folcloristas têm como uma das premissas básicas o registro de fatos, objetivando conservar as

tradições. Assim, segundo Martín-Barbero (2006) e Canclini (2003), as manifestações

folclóricas são narradas lendariamente e cristalizadas no tempo e no espaço, esquecendo-se

dos conflitos. No caso em estudo, a cronista se volta para as primeiras décadas do século XX

para descrever os serviços realizados pelas negras. Nessa sentido, as crônicas têm pouco a

dizer sobre as mulheres negras, seu “homem”, seus filhos, suas práticas religiosas, sua vida

social, exatamente porque lhe negam o estatuto de sujeito humano, tratando-as sempre como

objeto.

Dessa forma, essa dissertação de mestrado cumpre o papel de revelar uma escrita

estereotipada sobre o povo negro, a qual se perpetuou, ao longo de quarenta e quatro anos, no

caderno principal do jornal A Tarde. Tais crônicas poderiam ter exercido um papel de

denúncia, se não fosse o tom pejorativo com o qual a folclorista se refere às negras. O dever

da imprensa é delatar qualquer tipo de preconceito sofrido pelo cidadão. No entanto, durante

um longo tempo, funcionou como instrumento de incentivo e perpetuação do racismo e do

machismo da elite soteropolitana.

O certo é que estou feliz por ter concluído uma etapa, mas uma certeza permanece, a

de que “A Bahia ainda continua assim”. Posso não ver as negras subindo e descendo as ruas

e ladeiras de Salvador, com suas gamelas sobre a cabeça, mas vejo-as todos os dias nas praias

e nas esquinas com seus tabuleiros, mercando acarajé, abará e cocada. Leio os jornais

solicitando “boa aparência” para executar atividades que impliquem em lidar com o público.

E principalmente, porque ainda muitas de nós precisam permanecer escondidas na cozinha do

branco, trabalhando como domésticas, cozinhando, arrumando e lavando. Temos opções, mas

ainda são poucas, pouquíssimas, mas isso é uma história que pretendo contar mais tarde.

Page 114: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

REFERÊNCIAS

1 GERAL:

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1990, p. 78-79.

ALMEIDA, Renato. O folclore negro no Brasil. In: Revista Brasileira de Folclore. Ano VIII nº 21 Maio/ Agosto de 1968 – Ministério da Educação e Cultura.

ARRIGUCCI, Davi. Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

AZEVEDO, Thales. Uma costumbrista. In: Jornal A Tarde. Salvador, 11 de outubro de 1969.

______. As elites de cor em uma cidade brasileira: um estudo de ascensão social & classes sociais e grupos de prestígios. 2. ed. Salvador: EDUFBA: EGBA, 1996. 1. ed., Les élites de couleur dans une ville brésilienne, Paris: UNESCO, 1953.

BACELAR, Jéferson. Etnicidade – ser negro em Salvador. Salvador: Penba-Ianamá, 1989.

BHABHA, Homi. O local da cultura. 4. ed. Trad. Myriam Laranjeira (et al.) Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.

______. A Frente Negra Brasileira na Bahia. In: Afro-Ásia, n. 17, Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais, 1996.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 14. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

BURKE, Peter. 1989. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo, Companhia das Letras.

CALMON, Jorge. Nossos Colaboradores. In: Jornal A Tarde. Salvador, maio de 1991.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.

CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004.

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/ Topbooks Editora, 2005.

______. Brasil África: como se o mar fosse mentira. São Paulo: UNESP, 2006.

CHARTIER, Roger. A história cultural – entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.

Page 115: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

______. A beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 2002.

CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: GONÇALVES, José Reginaldo Santos (Org.) A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002, p.7-15.

COMISSÃO NACIONAL DE FOLCLORE. 1995. Carta do Folclore Brasileiro. Salvador: CNF.

COSTA, Adroaldo Ribeiro. Bondes e Avião. In: Jornal A Tarde. Salvador, 24 de fevereiro de 1973.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Maria Adriana da Silva Caldas. Salvador: Fator, 1983.

FARR, R. M. Representações Sociais: a teoria e sua história. In:GUARESCHI, Pedrinho. JOVCHELOVITCH, Sandra. (Orgs.) Textos em representações sociais. [prefácio Serge Moscovici]. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 31-59.

FERREIRA, A. B. H. Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

FILHO, Alberto Heráclito Ferreira. Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura popular em Salvador (1890 – 1937). Afro-Ásia nº 21, 1998, p. 239-256.

FRAGA, Filho Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & senzala. Rio e Janeiro: José Olympio. 1930.

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, Luiz Antônio. Movimentos sociais urbanos, memórias étnicas e outros estudos. Brasília: ANPOCS, 1983, p. 223-244. (Ciências Sócias Hoje, v. 2).

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

______. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Organização de Liv Sovik. Tradução de Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

______. “Quem precisa da identidade?”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

Page 116: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

HOOKS, Bel. Intelectuais negras. In: Revista Estudos Feministas. IFCS/UFRJ & PPCCIS/UERJ. Rio de Janeiro, v. 3 nº 2, 1995, p. 464-478.

______. Devorar al outro: deseo y resistência. In: Revista feminista - Otredad. México, Ano 7, vol. 13, abril 1996.

______. Alisando o nosso cabelo. In: Revista Gazeta de Cuba – Unnión de escritores y artistas de Cuba, jan. /fev. 2005. Tradução do espanhol – SANTOS, Lia Maria. Disponível em: http://www.lpp-uerj.net/olped/AcoesAfirmativas. Acesso em: 05/06/2008.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão. 5. ed. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2003.

LIMA, Vivaldo da Costa. A família-de-santo nos Candomblés Jeje-Nagôs da Bahia: um estudo de relações intra-grupais. Salvador: UFBA, 1977.

LODY, Raul. Dicionário de Arte Sacra & técnicas afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Trad. Ronald Polito e Sergio Alcides 4. ed. Rio de janeiro: Editora da UFRJ, 2006.

MARTINI, Gerlaine Torres. Baianas do acarajé: a uniformização do típico em uma tradição culinária afro-brasileira. Tese (doutorado) – Universidade de Brasília. Departamento de Antropologia, 2007.

MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.

______. Bahia: A Cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1978.

______. Bahia, século XIX uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. O conceito de Representações Sociais dentro da sociologia clássica. In:GUARESCHI, Pedrinho. JOVCHELOVITCH, Sandra. (Orgs.) Textos em representações sociais. [prefácio Serge Moscovici]. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 89-111.

MOISÉS, Massaud. A criação literária -prosa II. 17. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

MOORE, Carlos. Racismo & sociedade: novas bases epistemológicas par entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Trad. Pedrinho A. Guareschi. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

MOURA, Clovis. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 2. ed. São Paulo: Conquista, 1972.

______. Brasil: raízes do protesto negro. São Paulo: Global, 1983. p. 40-46, 100-105:

Page 117: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

Ideologia de branqueamento das elites brasileiras e os dilemas da negritude. Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/moura/moura.pdf. Acesso em: 20/11/2008.

______. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1989.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986.

______. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.

NASCIMENTO, Abdias (org.). O Negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

NASCIMENTO, Elisa N. Pan-africanismo na America do Sul. Petrópolis: Vozes, 1981.

ORTIZ, Renato. Românticos e folcloristas: cultura popular. São Paulo: Olho d’Água, 1992.

______. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.

PIERSON, Donald. Brancos e pretos na Bahia. 1. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1945.

PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004.

RISÉRIO, Antônio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva; Salvador: COPENE, 1993.

______. Uma história da cidade da Bahia. 2ª edição. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2004.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

______. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

SOARES, Cecília Moreira. Mulher negra na Bahia no século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 1994.

SODRÉ, Muniz. Jogo como libertação. In: O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 109-148.

SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

VERGER, Pierre F. Contribuição especial das mulheres ao candomblé do Brasil; VERGER P.; BASTIDE, R. Contribuição ao estudo dos mercados nagôs do Baixo Benin. In: Artigos. São Paulo: Corrupio, 1992.

______. Notícias da Bahia – 1850. Salvador: Corripio, 1999.

Page 118: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

VENTURA, Roberto. Um Brasil mestiço: raça e cultura na passagem da monarquia à república. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000) Formação: histórias. São Paulo: SENAC, 2000. p. 328-359.

VIANA FILHO, Luiz. O negro na Bahia: um ensaio clássico sobre a escravidão. 4. ed. Salvador: EDUFBA, Fundação Gregório de Matos, 2008.

VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Volume 1. Bahia: Itapuã, 1969.

______. Folclore brasileiro: Bahia. Rio de Janeiro: Funarte/Instituto Nacional de Folclore, 1981.

WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas Ciências e na Política Social. Lisboa: Lisboa Ltda., 1974.

XAVIER, Noeme Maria Passos. A baiana de acarajé como símbolo identitário da Bahia e sua apropriação pelo turismo. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Santa Cruz. Faculdade de Turismo, 2007. Disponível em: http://www.uesc.br/cursos/pos_graduação/mestrado/turismo/dissertacao/noeme_maria.pdf) Acesso em: 19/10/2008.

ZOLIN, Lúcia Osana. Desconstruindo a opressão: a imagem feminina em A República dos Sonhos, de Nélida Piñon. Maringá: EDUEM – Editora da Univ. Estadual de Maringá, Paraná, 2003.

2 OBRAS DE HILDEGARDES VIANNA:

2.1 Livros publicados:

VIANNA, Hildegardes. A cozinha baiana, seus folclores, suas receitas. Salvador: Fundação Gonçalo Muniz, 1955.

______. A Proclamação da Republica na Bahia. Salvador: Editora da UFBA, 1955.

______. Festas de Santos e santos festejados. Salvador: Progresso, 1960.

______. A Bahia já foi assim (crônicas de costumes). Salvador; BA: Itapuã, 1973.

______. A Bahia já foi assim (crônicas de costumes). 2. ed. São Paulo: GRD/Instituto Nacional do Livro. 1979.

______. Folclore brasileiro – Bahia. Funarte/Instituto Nacional de Folclore, 1981.

______. Calendário das festas populares da Bahia. Salvador: Departamento de Cultura da Secretaria Municipal de Educação, 1983.

______. Breve notícia sobre acontecimentos na Bahia no início do século XX. Salvador: Centro de Estudos Baianos (nº 99) Universidade Federal da Bahia, 1983.

Page 119: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

______. Antigamente era assim. Rio de Janeiro: Record; Salvador/BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1994.

______. A Bahia já foi assim (crônicas de costumes). 3. ed. São Paulo: GRD/Instituto Nacional do Livro. 2000.

2.2 Crônicas e artigos publicados em jornal:

VIANNA, Hildegardes. Reminiscência de negra velha. In: Jornal A Tarde. Salvador, 13 de maio de 1955.

______. Folclore palavra do século. In: Jornal A Tarde. Salvador, 19 de agosto de 1967.

______. Baianas da Conceição. In: Jornal A Tarde. Salvador, 05 de dezembro de 1967.

______. Moleque comprador de tempero. In: Jornal A Tarde. Salvador, 13 de fevereiro de 1968.

______. Antigamente gente de cor. In: Jornal A Tarde. Salvador, 19 de março de 1968.

______. A benção. In: Jornal A Tarde. Salvador, 30 de abril de 1968.

______. Caixinhas e embrulhos. In: Jornal A Tarde. Salvador, 23 de julho de 1968.

______. Cheiro de suor. In: Jornal A Tarde. Salvador, 03 de dezembro de 1968.

______. O feio da raça. In: Jornal A Tarde. Salvador, 10 de março de 1969.

______. As mulheres de saia. In: Jornal A Tarde. Salvador, 13 de março de 1969.

______. Do cabelo duro. In: Jornal A Tarde. Salvador, 17de março de 1969.

______. Da cozinha e do seu conceito. In: Jornal A Tarde. Salvador, 02 de setembro de 1969.

______. A Mulher do Mingau. In: Jornal A Tarde. Salvador, 16 de setembro de 1969.

______. A arte de fazer cuscuz. In: Jornal A Tarde. Salvador, 23 de setembro de 1969.

______. Convidados e bandejas. In: Jornal A Tarde. Salvador, 07 de novembro de1969.

______. No tempo da casa d`ama. In: Jornal A Tarde. Salvador, 15 de novembro de 1969.

______. As lavadeiras faziam assim. In: Jornal A Tarde. Salvador, 16 de dezembro de 1969.

______. Ainda as lavadeiras. In: Jornal A Tarde. Salvador, 24 de dezembro de 1969.

______. O tempo do acaçá. In: Jornal A Tarde. Salvador, 08 de novembro de 1971.

Page 120: a bahia de hildegardes vianna: um estudo sobre a representação

______. Todo mundo gosta de abará. In: Jornal A Tarde. Salvador, 22 de janeiro de 1973.

______. Pesquisa da dança folclórica. In: Jornal A Tarde. Salvador, 27 de agosto de 1973.

______. Casa de Mestra. In: Jornal A Tarde. Salvador, 13 de janeiro de 1974.

______. Acarajé quentinho. In: Jornal A Tarde. Salvador, 21 de junho de 1976.

______. Agosto, mês do folclore. In: A Tarde. Salvador, 06 de agosto de 1978.

______. No tempo da mulata velha. In: Jornal A Tarde. Salvador, 16 de dezembro de1985.

______. Amas-de-leite. In: Jornal A Tarde. Salvador, 22 de setembro de1986.

______. As catarinas. In: Jornal A Tarde. Salvador, 25 de abril de1988.

______. As mãos da baiana. In: Jornal A Tarde. Salvador, 02 de setembro de 1996.

______. A baiana (I). In: Jornal A Tarde. Salvador, 11 de agosto de 1997.

______. A baiana (II). In: Jornal A Tarde. Salvador, 18 de agosto de 1997.

______. O destino de Lúcifer. In: Jornal A Tarde. Salvador, 08 de setembro de 1997.