a calÇada como palco: experiências de intervenções
TRANSCRIPT
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Sociais
Fabiana Abaurre Costa
A CALÇADA COMO PALCO:
Experiências de intervenções artísticas do Projeto NESSA RUA TEM UM RIO
Belo Horizonte
2020
Fabiana Abaurre Costa
A CALÇADA COMO PALCO:
Experiências de intervenções artísticas do Projeto NESSA RUA TEM UM RIO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Regina de Paula Medeiros Área de concentração: Cidades: Cultura, Trabalho e Políticas Públicas
Belo Horizonte
2020
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Costa, Fabiana Abaurre
C837c A calçada como palco: experiências de intervenções artísticas do Projeto
Nessa rua tem um rio / Fabiana Abaurre Costa. Belo Horizonte, 2020.
173 f. : il.
Orientadora: Regina de Paula Medeiros
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
1. Arte de rua - Belo Horizonte (MG). 2. Arte e educação. 3. Identidade social.
4. Cultura - Aspectos sociais - Projetos. 5. Corpo como suporte da arte. 6.
Antropologia urbana. 7. Belo Horizonte (MG) - Ruas. I. Medeiros, Regina de
Paula. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais. III. Título.
CDU: 301.185.2
Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito - CRB 6/2999
Fabiana Abaurre Costa
A CALÇADA COMO PALCO:
Experiências de intervenções artísticas do Projeto NESSA RUA TEM UM RIO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.
______________________________________________________ Profa. Dra. Regina de Paula Medeiros – PUC Minas - Orientadora
______________________________________________________ Profa. Dra. Cornelia Eckert – UFRGS
______________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Antônio de Jesus – UFMG
______________________________________________________ Profa. Dra. Juliana Gonzaga Jayme - PPGCS - PUC Minas
______________________________________________________ Prof. Dr. André Junqueira Caetano - PPGCS - PUC Minas
______________________________________________________ Profa. Dra. Júnia Miranda de Carvalho - PUC Minas
Belo Horizonte, 13 de março de 2020
Georgia e Victor: vocês são minha inspiração;
dão sentido, encanto e esperança à vida.
O apanhador de desperdícios
Manoel de Barros
Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras
fatigadas de informar. Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à força criativa e criadora do Instituto Undió. Pelas mãos de Thereza e Júlia Portes, a afetividade transborda persistência e resistência pela arte. Na singularidade de cada ação, propõem partilhas necessárias. Agradeço a disponibilidade dos meus interlocutores durante a pesquisa: aos pedestres, aos artistas, aos gestores e voluntários, aos moradores e comerciantes e, de forma específica, à Marta Neves, que me instigou a compor meus silêncios pelo sarcasmo e deboche perante aos desajustes da vida, inundando-a de arte... À Regina, minha orientadora, sou extremamente grata por me pegar pela mão quando foi necessário, mesmo querendo me ver, atrevida, voando alto. Fundamentais sua sabedoria e seu entusiasmo para alimentarem minha autonomia (e asas). Aos professores que, na qualificação, colaboraram expressivamente para novas leituras e outros olhares, mas acima de tudo, ofereceram-me doses de estímulo e cuidado: Cornélia Chica Eckert, Edú Jesus e Juliana Jayme. É uma dádiva podermos nos encontrar novamente para construirmos mais esta etapa. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC Minas, em especial André Caetano e Carlos Aurélio Faria pelas aulas instigadoras e pelo brilhantismo em cada raciocínio. Aos colegas da Faculdade de Comunicação e Artes, de maneira especial ao melhor coordenador que eu poderia ter, Robertson Mayrink, por ouvir minhas aflições de doutoranda e ser paciente e coerente sempre. Aos colegas do Programa com quem dividi aulas e momentos de troca; agora dividimos amizade e crenças: Bruna Campos, Gustavo Venegaard e Tininha Machado. E aos meus agregadinhos Leo Ferreira e Otto FV. Tese é um projeto solo. Mas nunca o considerei solitário. Tenho os melhores e mais incríveis amigos que nunca me deixaram só. Agradeço aos que me honram de perto e de longe – “Cuide dos que correm do seu lado e de quem lhe quer bem. Essa é a coisa mais pura” (Chorão). Falo de partilha e quanto mais partilhei, mais recebi: Cida Frauche, Letícia Almeida, Jacqueline Dantas, Marina Marinho, Thais Helena, Lorena Maciel, Joana Pereira, Wânia Araújo, Júnia Ferrari. Dorcílio Hadesh, Henrique Neder, Pedro Pereira, Fábio Guglielmelli, João Odila: vocês são valiosamente insubstituíveis para mim. Yuri Alves, por me incentivar a outros desafios. Cada um foi fundamental para que eu chegasse até aqui. Tenho orgulho de vocês e sei que somos melhores juntes! À melhor, mais presente, solidária e amiga, batizada de Clarissa Abaurre: Clah, até aqui, você partilhou muitas alegrias, dúvidas, conquistas e tristezas, livros, livros, livros, artigos, café... e saguões de aeroportos, cervejas, balcões de bar, sol e neve, areia e montanhas. Seguimos. Leves. À minha família – aos que vieram antes de mim – representada por Fernanda, tão querida. À infinita energia vital do Universo, a que chamo Deus: agradeço por tanto, por me iluminar e por ajudar que, a cada dia, eu apenas seja!
RESUMO
O diálogo entre a arte e a cidade é o foco desta tese, que parte das manifestações
artísticas que ocorrem na via pública. A rua Padre Belchior, no centro de Belo
Horizonte, capital de Minas Gerais, é o campo empírico, por meio do projeto de
intervenções artísticas Nessa Rua Tem um Rio, promovido pelo Instituto Undió, uma
organização não governamental que tem sede na referida rua. A pesquisa discute as
dinâmicas urbanas e a eventual sensibilização que arte pode propiciar. Por meio de
uma etnografia, o objetivo é analisar os sentidos atribuídos pelos sujeitos das
intervenções artísticas esporádicas, transitórias e efêmeras organizadas pelo
instituto e apresentadas na calçada a que chamo de “palco”. Busca-se entender os
modos de percepção e apropriação de gestores, artistas, voluntários, vizinhos,
comerciantes e pedestres –, aqui chamados fruidores, que vivenciam as ações de
arte. A rua e o rio, a arte e a memória, a ressensibilização na rotina e a partilha são
articulações fundantes. Esta tese parte da discussão do rio invisível – o Córrego do
Leitão, que batiza o projeto – e o convívio com o cotidiano, para analisar o
apagamento de parte da memória dos rios de Belo Horizonte. Efetivamente, a arte,
por intermédio de intervenções com bordas flexíveis e sensíveis como uma mesa de
café para compartilhar ou uma varrição coletiva que exercita a empática troca de
papéis, se contrapõe à rigidez áspera e veloz da cidade propondo momentos de
calma para ativar afetos, senso de pertencimento e trazer visibilidade. À exceção
dos gestores, voluntários e artistas, consta-se que os demais protagonistas
raramente conferem às intervenções status de arte, porém participam ativamente da
maioria delas. Ao participarem da troca ou doação de mudas de plantas – ora
observando, ora trocando – ou pisarem em um tapete vermelho exclusivo estendido
no chão, dividem momentos e atribuem novo sentido simbólico para aquele trecho
de rua. As intervenções artísticas atuam como laboratórios de vivências sócio-
políticas e ambientais. São ações de micro resistência urbana em atos singulares de
cidadania e de direitos que ativam afeto, convivialidade, confiança, presença e
partilha.
Palavras-chave: Arte. Intervenções artísticas. Instituto Undió. Nessa rua tem um rio.
Rio.
ABSTRACT
The connections between art and the city is the focus of this thesis, which starts from
the art interventions that take place on the public road. Padre Belchior Street, in Belo
Horizonte's downtown, capital city of Minas Gerais, is the empirical field, through the
project of art interventions "Nessa Rua Tem um Rio", which is promoted by Instituto
Undió, a non-governmental organization hosted in that street. The research
approaches urban dynamics and the possible awareness that art can provide.
Through an ethnography, the objective is to analyze the meanings that individuals
give to sporadic, transitory and ephemeral art interventions organized by Undió and
presented on the sidewalk, which I call “stage”. It sought to understand the ways of
perception and appropriation of managers, artists, volunteers, neighbors, traders and
pedestrians -, here called users, who experience art actions. The street and the river,
art and memory, sensitizing routine and sharing are fundamental articulations. This
thesis is part of the discussion on the invisible river - the Leitão Stream, which is
named after the project - and the contact with everyday life, to analyze how part of
the memory of rivers in Belo Horizonte has been erased or forgotten. Indeed, art -
through interventions with flexible and sensitive edges such as having coffee or a
collective sweeping that exercises the empathic exchange of roles - is opposed to the
hectic and fast rigidity of the city's atmosphere, proposing moments of calm to
activate affections, sense of belonging and bring visibility. With the exception of
managers, volunteers and artists, the other protagonists rarely give the interventions
the status of art, but actively participate in most of them. When participating in the
exchange or donation of plant seedlings - sometimes observing, sometimes
exchanging - or stepping on an exclusive red carpet lying on the floor, they share
moments and give a new symbolic meaning to that sidewalk of Pe. Belchior street.
Artistic interventions act as laboratories for socio-political and environmental
experiences. These are actions of urban micro resistance in singular acts of
citizenship and rights that activate affection, conviviality, trust, presence and sharing.
Keywords: Art. Artistic interventions. Undió Institute. Nessa Rua Tem um Rio. River.
LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Roda de Bicicleta ...................................................................................... 39 Figura 2 – Objeto ....................................................................................................... 39 Figura 3 - “O que faz os lares atuais tão sedutores” ................................................. 43 Figura 4 – Os Bichos ................................................................................................. 51
Figura 5 – Roda dos Prazeres ................................................................................... 51 Figura 6 - Parangolés ................................................................................................ 51 Figura 7 - Planta Geral, com a área urbana colorida em amarelo (no detalhe à esquerda, a zona suburbana aparece em verde e acima, em cinza, os sítios e chácaras que constituíam a zona rural) .................................................................... 56
Figura 8 – Área central de Belo Horizonte ................................................................ 58 Figura 9 - Rua Padre Belchior e o Instituto Undió ..................................................... 60
Figura 10 - Trecho da rua (em obras) em 1928, tendo o Córrego do Leitão canalizado ao longo do trecho ................................................................................... 62 Figura 11 - Detalhe da Rua Padre Belchior - noite .................................................... 63 Figura 12 - Trecho da Rua Padre Belchior com Mercado Central ao fundo (esq.) .... 63
Figura 13 - Pista de rolamento e calçadas da Rua Padre Belchior ........................... 64 Figura 14 - Grandes bacias hidrográficas de Belo Horizonte .................................... 65
Figura 15 - Canalização do córrego do Leitão no trecho de encontro com o ribeirão Arrudas ...................................................................................................................... 67 Figura 16 - Canalização do Córrego do Leitão, Rua São Paulo em 1928 ................. 67
Figura 17 - Em imagem de 1966, o Córrego do Leitão está com curso aparente (ao fundo, a casa de no. 280 pertencente à família Portes) ............................................ 69
Figura 18 - Bacia do Córrego do Leitão e seu trajeto na cidade ............................... 70 Figura 19 - QRCode 1 – Córrego do Leitão e enchentes .......................................... 71 Figura 20 - QRCode 2 – Inauguração das obras de cobertura do Córrego do Leitão .................................................................................................................................. 71 Figura 21 - Obras de cobertura do Córrego do Leitão, trecho da Rua São Paulo, 1971 .......................................................................................................................... 72 Figura 22 - Área externa após limpeza e calçada ainda enlameada ......................... 74
Figura 23 - Área interna com tacos sujos de lama .................................................... 74 Figura 24 - QRCode 3 – Inundação no Centro/Mercado Central .............................. 75 Figura 25 - QRCode 4 – Avenida Prudente de Morais alagada ................................ 75
Figura 26 - Placa que anunciava a renaturalização do Córrego do Leitão ................ 76 Figura 27 - Eu Rio – ação-intervenção ...................................................................... 78
Figura 28 - Fachada do açougue .............................................................................. 84 Figura 29 - Piso de asfalto e calçadas com coberturas portuguesa e tátil ................ 85 Figura 30 - Trecho de rua em frente ao Undió .......................................................... 85
Figura 31 - Detalhe da rua ........................................................................................ 86 Figura 32 - Muro pixado com a frase “Aqui podia morar gente” ................................ 89 Figura 33 - Loja de consertos .................................................................................... 92 Figura 34 - Cartaz da atração do Cine Las Vegas .................................................... 94
Figura 35 - Sede do Undió, na lateral da parede/fachada a inscrição “Nessa rua tem um rio”, à direita na foto ............................................................................................ 95 Figura 36 - Área de serviço da casa .......................................................................... 96 Figura 37 - Porta do antigo consultório ..................................................................... 97 Figura 38 - Móvel antigo com prateleiras e vitrine da família Portes ......................... 97 Figura 39 - Sob a grade da fachada, a varanda da casa .......................................... 98 Figura 40 - Júlia assentada na cadeira na varanda do Undió ................................... 98
Figura 41 - Detalhe da parede do banheiro do Undió ............................................... 99
Figura 42 - Foto da parede do banheiro do Undió ..................................................... 99 Figura 43 - Dois jovens assentados em cadeira dupla de ferro, em momento de Temporada do Nessa Rua Tem um Rio .................................................................. 103
Figura 44 - Detalhe da mesa de café ...................................................................... 110 Figura 45 - Café Comunitário em dia de evento na Rua Padre Belchior ................. 111
Figura 46 - QRCode 5 – A mesa do Café Comunitário ........................................... 111 Figura 47 - Thereza (ao centro) na mesa de café ................................................... 112 Figura 48 - Voluntário lava xícaras .......................................................................... 113 Figura 49 - QRCode 6 – Explicações sobre as atividades ...................................... 114 Figura 50 - Chuveiro (ducha) feito de latão, adaptado à árvore e, na foto, Thereza lava as mãos ........................................................................................................... 118 Figura 51 - Bule com as inscrições “Gentileza traz beleza...” ................................. 120
Figura 52 - Bordado sendo confeccionado durante o café ...................................... 123 Figura 53 - Apetrechos para bordar – linhas coloridas – sobre a mesa de café, decorada com mudas plantadas em xícaras ........................................................... 124 Figura 54 - Detalhe da mesa de café ...................................................................... 124
Figura 55 - Detalhe do bordado na toalha branca ................................................... 125 Figura 56 - Grupo de bordado em torno da mesa de café ...................................... 126
Figura 57 - Detalhe da toalha .................................................................................. 127 Figura 58 - Bordado sendo feito .............................................................................. 128 Figura 59 - Intervenção “Pessoa muito importante” ................................................ 132
Figura 60 - Secando gelo ........................................................................................ 134 Figura 61 - Performance “Secar é fácil: quero ver passar” ...................................... 134
Figura 62 - Varrição – Academia das Vassouras .................................................... 136 Figura 63 - Varrição – Academia das Vassouras .................................................... 136 Figura 64 - Vista da janela da casa da cabeleireira ................................................. 137 Figura 65 - Cartaz de pássaro procurado ................................................................ 139 Figura 66 - Lambe-lambes colados na fachada de prédio ao lado do Undió .......... 139
Figura 67 - Noite dos Museus – projeção ................................................................ 140 Figura 68 - Noite dos Museus – Teatro portátil ....................................................... 140
Figura 69 - Performance “Brigas” em alguns frames ............................................... 141 Figura 70 - Crianças fazem dobraduras em papel .................................................. 143 Figura 71 - Área externa do Undió em dia de Temporada ...................................... 143
Figura 72 - Intervenção "Adeuzará-Zentai" ............................................................. 144 Figura 73 - QRCode 7 - Adeuzará: Zentai 1 ........................................................... 145
Figura 74 - Intervenção "Adeuzará-Zentai" em frente a quadros ............................ 146 Figura 75 - QRCode 8 - Adeuzará: Zentai 2 ............................................................ 147 Figura 76 - QRCode 9 - Adeuzará: Zentai 3 ............................................................ 147
Figura 77 - A chegada dos artistas de Adeuzará: Zentai ao Undió ......................... 147 Figura 78 - A chegada da performance Adeuzará: Zentai ao Undió e o grupo que borda ....................................................................................................................... 148 Figura 79 - Barbearia da Rua .................................................................................. 149
Figura 80 - Caderno com desenhos de Danilo ........................................................ 151
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 23 1.1 Da organização da tese..................................................................................... 34 2 SOBRE A CIDADE, A RUA E AS ARTES: DIÁLOGOS PROVÁVEIS ................. 35 2.1 Das artes do agora: uma revisão elementar ................................................... 36 2.2 Da contemporaneidade ..................................................................................... 41 2.3 Performances e a arte relacional ..................................................................... 46 2.4 A participação na arte: experiências do fruidor ............................................. 50
3 A CRIAÇÃO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE, AS RUAS E OS RIOS .......... 55
3.1 Da rua onde está o Undió, do córrego do Leitão e da cidade que cresce .... 59 3.2 Rios cobertos .................................................................................................... 64 3.3 Sobre os rios e o leito do Leitão ...................................................................... 75 4 CAMINHAR E (RE)CONHECER: PASSEIOS ETNOGRÁFICOS PELA RUA ...... 82 5 O INSTITUTO UNDIÓ ............................................................................................ 95 6 AS INTERVENÇÕES ARTÍSTICAS NA (E DA) RUA DO UNDIÓ: CAFÉ E
BORDADOS ........................................................................................................ 109 6.1 O café comunitário congregando quem passa pela calçada ...................... 109
6.2 A toalha bordada e rebordada ........................................................................ 123 7 INTERVENÇÕES ARTÍSTICAS NA CALÇADA: PERFORMANCES E
RELAÇÕES ......................................................................................................... 131 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 155 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 161
23
1 INTRODUÇÃO
Esta tese tem como foco o diálogo entre a arte e a cidade, a partir de
manifestações artísticas que ocorrem na rua. As dinâmicas urbanas e a eventual
sensibilização que arte pode propiciar nos interessam nesta pesquisa. A rua Padre
Belchior, no centro de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, é o campo empírico.
O alvo privilegiado é o projeto de intervenções artísticas Nessa Rua Tem um Rio,
promovido pelo Instituto Undió, uma organização não governamental que tem sede
na referida rua.
O objetivo é analisar os sentidos atribuídos pelos sujeitos das intervenções
artísticas esporádicas, transitórias e efêmeras organizadas pelo instituto e
apresentadas na calçada da Rua Padre Belchior. Especificamente, busco entender
os modos de percepção e apropriação de gestores, artistas, voluntários, vizinhos,
comerciantes e pedestres –, aqui chamados fruidores, que vivenciam ações de arte
do projeto Nessa Rua Tem um Rio, que tem a calçada como palco.
A rua é o espaço público essencial das cidades. O que melhor define esses
espaços públicos é sua natureza de “abertos a todos. Definição típico-ideal no
sentido weberiano”, mas que enseja restrições sociais ao revelar encontros
mediados por relações de poder, estilos de vida, segmentações e segregações
(ANDRADE; JAYME; ALMEIDA, 2009, p. 133-134). Portanto, como espaço público
por excelência, oculta contradições sob esta máxima democrática do livre acesso.
A rua é ordenadora e regulada; ela elege padrões e regras para a presença e
para o funcionamento da circulação e do trânsito, seja nas calçadas, seja no asfalto.
Na via pública se apresentam oposições e impedimentos que contrastam com o
pertencimento: evidenciam-se os estratos sociais, hierarquizados por posições de
classe, por exemplo. A rua conforma a segregação socioespacial que aparta e
afasta grupos uns dos outros, ainda que próximos fisicamente em algumas situações
(BOURDIEU, 1983).
Uma série de questionamentos emerge na contemporaneidade, em diálogo
com o espaço público. A arte consegue criar pontes e provocar sentidos no
ambiente urbano da rua? Longe do lugar institucionalizado das galerias, museus e
centros culturais, a arte que ocupa as ruas interroga – ou quer interrogar – modos de
olhar, interlocuções, vínculos e experimentações. No domínio das proposições
contemporâneas da arte, outros processos de subjetivação podem ser estimulados.
24
Este estudo discute a cena de uma metrópole que traz uma oposição de
processos urbanos: a funcionalidade inerente à rua – e dela inseparável – e as
manifestações artísticas não padronizadas que se realizam na rua, em propostas
para uma “cidade sensível” (CAMPBELL, 2018). A discussão se dá na empiria, a
partir da fruição específica e das inquietações que diversos atores fazem desses
processos. Está em discussão a interferência artística na calçada da Rua Padre
Belchior, que se transforma em um espaço privilegiado, semelhante a um palco
(FORTUNA, 2013), que pode forçar uma quebra na rotina e eventualmente provocar
reflexões ou estranhamento para os sujeitos que estão na rua e que passam por ela.
Na vida diária, ordinária e rotineira, momentos de “encontro” com a arte
podem ocorrer como surpresas que o espaço público propicia. Canclini aponta esse
vínculo inerente entre processos artísticos e sociais: “A partir do início do século XX
a sociologia mostrou a necessidade de entender os movimentos artísticos em
conexão com os processos sociais.” (CANCLINI, 2016, p. 17).
O caminho envolto no enredamento desta aproximação vida e arte, quase
tortuoso, como nos lembra Jesus, tem a rua como cenário. A dimensão estética,
vinculada às formas de vida ordinária possibilita fazer visível um mundo que se
tornou invisível de tão familiar ao cidadão que se move pelo hipercentro da
metrópole, numa mirada simmeliana em que a rua é lócus de acontecimento. A
questão que centraliza a discussão passa a ser a relação entre vida cotidiana, arte
contemporânea e experiência estética, “como um processo de resistência diante das
formas espetaculares que assediam as subjetividades.” (JESUS, 2015, p. 2), numa
sociedade do espetáculo estudada pelo filósofo Debord1 desde a década de 1960 e
cada vez mais atual e potente neste presente midiático e audiovisual.
Arte e rua, nesse entendimento, confluem em um trecho da Rua Padre
Belchior, no centro da cidade, em ações de intervenções artísticas do Projeto Nessa
Rua Tem um Rio. Há uma década, ações de arte propostas por artistas voluntários
incitam uma descontinuidade do cotidiano de quem transita por aquele trecho que
mede um quarteirão e meio, numa provocação para experienciar – ou não –
momentos com a arte da contemporaneidade. No desenho das linguagens e práticas
1 Em sua teoria crítica, que reúne 221 teses, aponta uma separação consumada entre imagem e realidade, numa supremacia da primeira, como evidencia na tese 1: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.” (DEBORD, 1997, p. 13).
25
de arte, são intervenções urbanas, também chamadas de arte pública, arte
relacional, arte contextual e até “situações”. O nome adotado pelo projeto estudado
é “intervenções artísticas” e será nossa escolha para nos referir a cada prática de
arte ou ao conjunto delas.
A fruição da arte no espaço público move esta investigação. Mais
especificamente, o palco é a rua e, em recorte ainda mais delimitado, uma calçada,
posto que as ações estudadas ocorrem na calçada em frente à sede do Instituto
Undió2, que desenvolve as intervenções que são objeto de estudo desta tese. Leite
(2004) nos orienta que nos espaços urbanos, ações podem atribuir sentido de lugar
e de pertencimento assim como as mesmas espacialidades podem influir nas
construções de sentidos para as mesmas ações. Essa concepção nos faz inferir que
as vivências de arte na rua – e naquela rua, em específico – são peculiares,
conformadas pelas circunstâncias.
A rua é onde as diferenças se publicizam e se confrontam politicamente
(LEITE, 2004). Na perspectiva política há a partilha do sensível3, que se ordena pela
política e pela estética, segundo Rancière (2005). O que se partilha? O tempo, o
espaço, o tipo de atuação, sendo que a partilha trata do comum e ainda do
específico, estabelecendo-se um “lugar de disputa” que determina competências e
incompetências, a visibilidade e a invisibilidade, o pertencimento propriamente. Sob
a ótica de Rancière, as ações artísticas do Nessa Rua Tem um Rio propõem um
deslocamento estético e sensível dos fruidores e constituem-se, logo, ato de
subjetivação política.
Numa visada mais ampla, outros elementos auxiliam a proposição de estudo:
experiência, construção simbólica, sentidos de uso, efemeridade (da obra artística e
da própria experiência), memória coletiva, cotidiano, reinvenção e performance. Esta
lista reúne conteúdos que, em articulação a ser iluminada por autores, reflexões e
aplicações efetivas, ativam a construção inicialmente abstrata desta narrativa. Na
prática, é como se, por algum acaso, algo – as intervenções artísticas? – nos
2 O Undió desenvolve projetos de arte e cultura para crianças e jovens há mais de três décadas e será apresentado oportunamente. Nesta tese, o Instituto Undió será recorrentemente nomeado de Undió simplesmente.
3 Expressão cunhada por Jacques Rancière na década de 1990. “Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e, inversamente, a separação a distribuição de quinhões. Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas” (RANCIÈRE, 2005, p. 7)
26
pusesse em suspensão do ritmo acelerado e quase automático com que nos
movemos pelas ruas, sendo pedestres ou motoristas no centro de uma metrópole.
É importante notar que os museus, galerias e espaços culturais são
considerados espaços artísticos institucionais4 – espaços diferenciados e de acesso
público. Já a arte urbana pode ser vista como uma prática social em que sua
apreensão estabelece relações de apropriação do espaço urbano e estabelecendo
significados sociais.
A arte urbana é uma prática social. Suas obras permitem a apreensão de relações e modos diferenciais de apropriação do espaço urbano, envolvendo em seus propósitos estéticos o trato com significados sociais que as rodeiam, seus modos de tematização cultural e política. […] Os significados da arte urbana desdobram-se nos múltiplos papéis por ela exercidos, cujos valores são tecidos na sua relação com o público, nos seus modos de apropriação pela coletividade. Há uma construção temporal de seu sentido, afirmando-se ou infirmando-se. (PALLAMIN, 2000, p. 23).
A arte urbana e seus múltiplos significados são tecidos na sua relação e nos
modos de apropriação com os interlocutores. Para Pallamim nesta construção
temporal de sentidos, é valoroso “rever seus próprios papéis diante de tais
transformações: quais espaços e representações modelam ou ajudam a modelar,
quais balizas utilizam em suas atuações nesse processo de construção social.”
(PALLAMIN, 2000, p. 19).
Se historicamente, a arte formal está nos espaços públicos por meio de
esculturas e monumentos que saúdam conquistas e eternizam heróis em todo o
mundo, mais recentemente as cidades acolhem novas possibilidades artísticas. Em
meados do século XX, os grafites e os pixos vieram ocupar muros, paredes,
pilastras e monumentos nas vias públicas, enquanto as performances acontecem
nas ruas. No Brasil, as ações performáticas de Flávio de Carvalho pelas ruas de São
Paulo – Experiência no. 2 e Experiência no. 35 – são consideradas por Cocchiarale
(2004) as primeiras manifestações da arte contemporânea.
4 A este respeito, existe larga bibliografia. Entre elas, destaca-se Brian O‟Doherty, com o basilar “No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte”, que trata estes espaços como normativos, anódinos e orientados, em que o mundo externo não entra; o espaço é exclusivo e a estética é transformada numa espécie de elitismo social. “A obra é isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação em si mesma” (O‟DOHERTY, 2007, p. 03).
5 Experiência n° 2 foi o exercício de andar no sentido contrário ao de uma procissão de Corpus Christi, com chapéu à cabeça e Experiência n° 3 configurou-se como um desfile pelas ruas com um traje masculino concebido para os trópicos: o New Look, como o chamou, era composto de saia e blusa em tecido translúcido. O artista chamava essas performances de experiências. Para saber mais ver (MORAES, 1986).
27
Estudar as intervenções de artistas e coletivos de artistas e leigos que
colaboram com as ações do Undió, implica em discutir a arte da contemporaneidade
como encontro, afetação e criação de sentido em dado momento. Como pontua
Geertz (1997a), o processo de atribuir à arte um significado cultural é sempre um
processo local e que também traz um “olhar da época”, que é a bagagem cultural
inerente ao momento. E ressalta a capacidade de criar sensibilidade, por meio da
experiência coletiva:
A capacidade de uma pintura fazer sentido (ou de poemas, melodias, edifícios, vasos, peças teatrais ou estátuas), que varia de um povo para o outro, bem assim como de um indivíduo para outro, é, como todas as outras capacidades plenamente humanas, um produto da experiência coletiva que vai bem mais além dessa própria experiência. O mesmo se aplica à capacidade ainda mais rara de criar essa sensibilidade onde não exista. (GEERTZ, 1997a, p. 165).
Ganha relevância para esta pesquisa menos o fato de o autor citar objetos
artísticos mas, mais especificamente a capacidade que manifestações artísticas têm
de criarem sensibilidade. Nesta abordagem, a arte que acontece na rua aciona tanto
a experiência coletiva quanto a apresenta aonde ela não existia, eventualmente
criando sensibilidade. As intervenções propostas pelo Undió trazem para a calçada
experiências com a arte onde ela não estava ou não costumava estar. Cartaxo
(2009) reforça essa dinâmica social quando afirma que a cidade, com seus
movimentos, se converte em um reflexo do mundo e o artista utiliza, então, a cidade
para ativar reflexões coletivas.
A perspectiva de arte que o Nessa Rua Tem um Rio aborda transita entre as
possibilidades de resistência subjetiva na metrópole, em intervenções artísticas no
espaço urbano realçando o direito à cidade e às experiências de significação do
indivíduo, por intermédio da arte; uma guerrilha do sensível (MENDONÇA, 2006).
Neste sentido, via espaços da subjetivação, construídos pelo sensível, que é
material da arte, a experiência estética “atravessa e é atravessada pela experiência
ordinária, provocando um estremecimento sutil, quase eventual, mas que nos
permite vislumbrar (ou apenas pressentir) em meio à pobreza da nossa rotina, o que
ainda não sabíamos ou não desconfiávamos possível”, afirma Brasil (2006, p. 96-7).
No sentido estrito do termo, arte contemporânea é a arte do agora, que
desperta a simultaneidade ao se manifestar “no mesmo momento e no momento
mesmo em que o público observa.” (CAUQUELIN, 2005, p. 11). A fruição analisada
28
acontece a partir de ações públicas livres e de caráter coletivo que propõem
compartilhamento (de artistas, voluntários, moradores, comerciantes, passantes),
numa ocupação pacífica, opcional e significante para quem dela participa. Esta
fruição, também considerada como interlocução, se efetiva em intervenções híbridas
por misturarem performances e instalações, sem modelo, data ou delimitação
espacial claros, capazes de produzir um eventual (re)encantamento. Se existe
fruição, cabe indagar sobre o grau de intensidade para os atores sociais que
compõe aquele universo.
Metodologicamente, este estudo é uma etnografia. Em realce, a etnografia da
cidade, à qual tem contribuição da Etnografia da Duração (ROCHA; ECKERT, 2013).
Rocha e Eckert apontam que os acontecimentos investigados na cidade são, cada
um deles, “condição do ato de interpretação da cidade, cabendo ao antropólogo-
pesquisador, situado na figura do narrador, tecer as matérias lembradas e evocadas
das quais resulta seu trabalho de campo.” (ROCHA; ECKERT, 2013, p. 13). As
autoras afirmam que cabe ao antropólogo “o papel de mediador na agência de
reatualização e retransmissão de fazeres e saberes tradicionais nas modernas
sociedades complexas”. Os recursos audiovisuais são proeminentes na produção
antropológica, tornando-se instrumentos para um registro que proporciona um
“diálogo vigoroso nas experiências etnográficas e uma das principais vertentes dos
estudos sobre culturas contemporâneas.” (ROCHA; ECKERT, 2013, p. 10).
Nesta tese, os registros fotográficos e audiovisuais foram elementos
fundamentais para o entendimento e a construção das vivências dos fruidores. Tive
acesso a fotos documentais de diversos eventos ocorridos na rua, pude gravar em
áudio algumas entrevistas e consegui fazer vídeos de algumas intervenções, às
quais podem ser observadas em alguns pequenos trechos em vídeo (codificados em
QRCode6). Assim, pude experimentar momentos de revisão e de concatenação de
ideais a partir do que foi registrado em arquivos produzidos durante o meu processo
de trabalho de campo.
A pesquisa etnográfica foi realizada no universo da Rua Padre Belchior e no
seu entorno. A análise antropológica pressupõe aqui a descrição densa, defendida
por Geertz (1989), em diálogo com a abordagem de Magnani (2002) “de perto e de
dentro”, que privilegia a vivência cotidiana dos atores sociais. Foi necessária uma
6 Eles expiram em março de 2021, mas os links seguem possibilitando a exibição dos vídeos.
29
imersão da pesquisadora no campo, com interação com as pessoas que compõe
esse cenário, participação da rotina nos dias de semana e nos rituais, sobretudo nos
sábados pela manhã, quando são programadas as apresentações artísticas e o café
comunitário com os bordados da toalha de mesa.
Para isto, privilegiamos o projeto Nessa Rua Tem um Rio, em duas ações
específicas que são as Intervenções artísticas na Rua Padre Belchior – doravante
nominada de Nessa Rua Tem um Rio, e o Café Comunitário, eventos de natureza
esporádica, portanto não periódica e não regular que ocorrem na Rua Padre
Belchior. O Café Comunitário também é denominado pelos conhecidos e amigos do
Undió como “Café da Thereza”, criadora da performance; entretanto, mantive o
nome original devido às discussões que desenvolvo na tese, nas quais priorizo a
essência do coletivo. Na pesquisa desenvolvida, os pedestres – muitos deles
desconhecidos da artista Thereza Portes, autora da mesa e fundadora, gestora e
patrocinadora do projeto Nessa Rua Tem um Rio –, são protagonistas.
Naquele trecho de calçada, que envolve o quarteirão entre as ruas São Paulo
e Curitiba, acontecem as intervenções de arte, que são alternativas aos circuitos
oficiais de museus, espaços culturais e galerias. O Café Comunitário, oferecido para
todos e para quem quiser participar, constitui-se, no contexto do projeto Nessa rua
tem um rio, intervenção artística urbana, como partilha do sensível, representada por
uma xícara de cafezinho coado na hora, acompanhado de biscoitos, pães e bolos.
Comerciantes, moradores e transeuntes do local, quando participam das
ações propostas, frequentemente chegam devagar e lançam olhares curiosos. Às
vezes andam com pressa e titubeiam entre parar ou seguir. Um questionamento
recorrente que pode ser traduzido por “o que era aquilo? Arte? Não sei...” surge
quando perguntados sobre as intervenções que presenciaram. Sob os olhos dos
gestores e artistas, as intervenções são ações de arte para a comunidade. Por não
apresentarem a arte na acepção que a palavra tem no senso comum, vinculada à
materialidade e ao local consagrado à arte, aquelas ações são provocativas.
Mas, será que as intervenções artísticas do Nessa rua tem um rio são
entendidas pelos sujeitos – moradores, comerciantes e pedestres – como ações de
arte? Talvez ativem a participação, experiência e o afetamento que a arte pode
propiciar. Para o grupo que organiza as intervenções – gestores, artistas, voluntários
e alunos – cada ação carrega um conteúdo artístico explícito, numa evidência que
poderá ser checada e ser aceita ou ser refutada. Desta forma, em antagonismo de
30
expectativas entre os grupos, que evidencio nas hipóteses, haveria um ponto em
comum para a articulação de sentidos? E como o espaço público, a calçada,
naquele ambiente da área central, angaria o sentimento de pertencer? Como as
intervenções artísticas afetam aquele pedaço de rua? Reverberam para outras
ações voluntárias? As intervenções artísticas ocupam e ressignificam o espaço
criando territórios simbólicos? Em qual grau de potência as ações instauram novos
graus de criatividade? São estas algumas das perguntas que moveram a
pesquisadora.
Para trazer elementos que colaborem para responder a essas inquietações,
algumas hipóteses se interpuseram e mantenho em realce pelo menos três que
articulam a minha análise. Para os artistas, as ações artísticas do projeto Nessa Rua
Tem um Rio têm o sentido de dar visibilidade e transformar os significados, resgatar
memória e pôr em evidência uma antiga e pequena rua da capital mineira. As ações
são estratégia de “reinventar” a percepção sobre o referido espaço e contribuir para
atrair e possibilitar novos usos da rua do lugar. As ações, no entanto, são atividades
sem capacidade de alterar a rotina, usos e apropriações da rua pelos pedestres,
comerciantes e moradores que, com efeito, percebem essas ações como um
capricho, um momento de diversão e lazer momentâneo que não altera a sua rotina.
Para a leitura analítica, foram priorizadas as intervenções de arte, as
descrições, os relatos e as atitudes das pessoas que estiveram presentes nos vários
eventos durante a realização da pesquisa. Tanto a observação da pesquisadora
quanto as interações empreendidas com as pessoas que compõem o entorno foram
importantes para entender e articular o conteúdo das narrativas dos interlocutores;
para aproximar da realidade estudada; para evidenciar os sentidos atribuídos à arte
na rua, naquele lugar da região central da cidade. As minhas observações somadas
às opiniões e comentários dos interlocutores, obtidos em conversas informais e
ainda em entrevistas anotadas ou gravadas, davam conta de um atravessamento
entre arte e vida social, aspecto citado recorrentemente, tanto na situação de arte
quanto no contato e convívio social.
Ao discutir essa fluidez nos campos, esse certo entrelaçamento abstrato e,
por vezes involuntário, recordo que as inquietações que motivaram esse estudo já
me acompanhavam há algum tempo. E me conduziram à busca de um doutorado no
campo das Ciências Sociais. No início do curso, não tinha dimensão do tamanho do
31
desafio em que estava me envolvendo. Cheguei disposta a discutir a arte e a cidade
e, já na entrevista de seleção, recebi um alerta dos avaliadores que poderia soar
desencorajador: não havia ninguém para me orientar no tema “arte”. Aquela falta foi
tomada como desafio e se transformou em vivências ricas e plurais nas ciências
sociais, sob a condução de diversos professores. Mas, sobretudo, sob a liberdade
de ação, cuidado e respeito que recebi da minha orientadora, Regina Medeiros.
Conto isto nesta introdução porque aquela vivência mudou completamente meus
planos iniciais, seguiu alterando a rota da pesquisa e, por fim, repercute no trabalho
que apresento neste documento etnográfico.
O foco da arte foi dividindo atenção com as ciências sociais e a antropologia
e, quando menos esperava, a arte era um dos assuntos, mas não o principal da
tese. Está muito nítido que os deslocamentos das práticas artísticas da
contemporaneidade atravessam o viver socialmente. Para reverberar essa lógica,
passei a estudar e discutir o direito à cidade, a produção do espaço público, o “fazer
a cidade” e a trama urbana, as práticas culturais. É inegável que foi um esforço que
trouxe riqueza à pesquisa, ela própria dizendo em letras grandes, quase audíveis,
que é dinâmica, tem vida própria e quer expressar sua voz. O exercício de
elaboração da tese também representou o desafio de excluir temas, de acrescentar
outros, de constante auto-reflexão na solidão – comumente comentada entre os
doutorandos – da construção de um estudo científico.
Mais do que uma reflexão, este relato inicial que faço é sobre o aprendizado e
a riqueza que é pesquisar. Temos suposições iniciais que, quem sabe, se
transformam em dúvidas que nos mobilizam, nos seduzem e encantam. Meu objeto
foi me comunicando novidades a cada visita, a cada interação com o campo. Saía
de casa de uma forma e retornava transformada: inquieta e em busca de fontes,
outros olhares, algo que criasse um possível novo diálogo ao qual eu não tivesse
atentado (GEERTZ, 1989). O resultado que apresento reflete as intercorrências.
Certezas, não as tive, e sigo inquieta e animada pelo novo, pelo devir.
Cabe uma outra observação, igualmente pessoal, de um efeito que
certamente aparecerá no texto. Minha formação original é em jornalismo, profissão
que exerci por mais de uma década. O afastamento e a objetividade jornalísticos
pareciam sempre de prontidão, numa queda de braço com a etnografia. Quando era
preciso “me colocar na cena”, a partir do texto, para contar sobre minhas
impressões, precisava reescrever, reelaborar. Ou estar atenta às sensações que
32
sempre registrei nas notas do meu caderno de campo. Vivi, na etnografia, o desafio
de opinar.
A meu favor no desenvolvimento da pesquisa de campo, ocupei um
privilegiado espaço quando, por dois meses em 2006, dei aulas no curso de
formação de educadores de arte do Undió. Tornei-me, desde então, voluntária em
alguns eventos. Em outros lugares que não o de pesquisadora, já participava dos
projetos do Undió e tive a oportunidade de trabalhar diretamente com seus mentores
e artistas, tendo acesso à forma de organização do instituto. Isso foi muito válido
para facilitar minha entrada, imersão, aproximação e compreensão do campo.
Importante registrar que no percurso etnográfico, foi fundamental a
participação da artista Thereza Portes, criadora e gestora do projeto Nessa Rua Tem
um Rio. Ela sempre esteve disponível para minhas entrevistas, para esclarecer
dúvidas pontuais e trazer informações novas durante toda a pesquisa. A tese reflete
essa presença solícita e atenta. A facilidade de acesso às fontes e às fotos foi
essencial e, especialmente, graças ao apoio do Undió, pude trazer alguns registros
visuais de eventos em que não estive presente ou não pude fotografar.
Ressalto que optei por apresentar os eventos, que são as temporadas, fora
da ordem cronológica. Apresento-os de forma a ter, a cada um dos conteúdos, um
encadeamento de propostas que dialogam com o texto. Optei por manter anônimos
os interlocutores – pedestres, comerciantes, moradores e voluntários – “batizando-
os” com novos nomes, à exceção dos artistas e gestores. Outro detalhe diz respeito
a como optei por grafar a Rua Padre Belchior, com erre maiúsculo, trazendo, na
minha percepção, identidade única à rua.
Para se compreender as relações espontâneas criadas a partir dos eventos
do Undió na capital mineira, é importante a identificação e a análise de diferentes
visões e percepções acerca da participação, representatividade e envolvimento dos
interlocutores – gestores, artistas, voluntários, alunos e vizinhos (comerciantes e
moradores), além do público. Para tanto, foram utilizadas entrevistas abertas e semi-
abertas, “que se caracterizam pela flexibilidade e por explorar ao máximo
determinado tema.” (BARROS; DUARTE, 2006, p. 64).
Grande parte do trabalho de campo ocorreu durante as intervenções. As
observações foram registradas em caderno de campo, servindo como apoio e
registro para anotações de questões surgidas, de reflexões, insights e proposições.
Nessas oportunidades, indago àquelas pessoas, que se dispõem espontaneamente
33
a conversar, sobre a participação nas ações, suas impressões. Indago sobre a
vivência com aquele trecho de rua antes e no dia das apresentações artísticas e
suas impressões a respeito da experiência. Colabora dando densidade, cor e
emoção a realização de entrevistas com as artistas-gestoras do Instituto Undió.
E, inspirada em Rocha e Eckert (2013), cuidei de fazer registros audiovisuais
em formato de fotografias e vídeos, amplificando a coleta de dados e a capacidade
de documentar o campo para ampliar análises por meio dessas representações
(BECKER, 2009)7. Desta forma, há a possibilidade de o leitor que toma
conhecimento desta pesquisa refletir, ele próprio, sobre a dimensão audiovisual do
que está descrito textualmente, ainda que as imagens sejam representações e
tenham o “recorte”, ou a curadoria da pesquisadora.
Em dias em que não havia evento de Temporada, me misturei ao ir e vir das
pessoas. Fui cliente da loja de ferragens e da assistência técnica de celulares.
Muitas vezes, optei por tomar notas à distância. Postava-me na esquina e ficava
observando os ciclos de movimentos humanos. Eu queria perceber o ritmo e o
envolvimento das pessoas com as opções da rua em horários comerciais e à noite;
em dias de segunda-feira a sábado e aos domingos, quando escutava silêncios.
Observava a rua e seus momentos inspirando-me no conceito de cena de
Clark (2008), que se refere ao caráter qualitativo de um espaço: relaciona-se
igualmente à expressividade daqueles que estão ali como freqüentadores e às
práticas ali realizadas. Estruturas físicas, demográficas e atividades constituem a
cena, que pode ser definida como um elemento urbano ou uma vizinhança ou ainda
uma forma de vida. Vivenciei dificuldades para fazer entrevistas especialmente pela
desconfiança das pessoas, a falta de interesse em prestar informações e o
desconhecimento a respeito da rua: “Nem sei o nome dela, passo aqui só para
pegar o ônibus mesmo”, ouvi mais de uma vez.
Na etnografia de rua, “o perfil de uma comunidade, indivíduo e/ou grupo se
configura aos poucos, pois o etnógrafo trabalha pacientemente a partir de colagens
de seus fragmentos de interação.” (ROCHA; ECKERT, 2003, p. 6). As autoras
sugerem que o antropólogo vivencie o desafio da experiência formada pelo que
chamam de „morada de ruas‟, em que caminhos, ruídos, cheiros e cores –
7 Uma representação é uma construção social, feita por meio de quatro fases: seleção, tradução, arranjo e interpretação, podendo ser um filme, uma fotografia, um mapa. “A representação é necessariamente parcial, é menos do que experimentaríamos e teríamos à nossa disposição se estivéssemos no contexto real que ela representa.” (BECKER, 2009, p. 31).
34
desenhados pelo próprio movimento dos pedestres e dos carros – sugerem as
direções e sentidos que nos conduzem a certos lugares, cenários e paisagens.
Durante o processo de elaboração desta tese doutoral, o suporte teórico me
direcionou e me permitiu fazer o entrelace com as observações e as reflexões em
campo, a escuta e a análise das narrativas dos interlocutores e a escrita
antropológica. Trago uma rápida apresentação, adicionada à essa introdução, sobre
a cidade e a rua e a arte contemporânea, eixos centrais de conteúdo que
subsidiaram minha discussão.
1.1 Da organização da tese
A tese foi organizada em seis capítulos constituintes do texto final. Após esta
introdução, o segundo capítulo reúne discussões teóricas sobre a cidade, a rua e as
artes, apropriadas para a temática da tese a que chamei de diálogos possíveis. O
espaço público está no capítulo seguinte: o surgimento de Belo Horizonte, suas
ruas, os rios que correm sobre sua planta e, em particular, a rua Padre Belchior.
Ganha relevo a discussão sobre os rios devido ao fato de que o projeto de
intervenções artísticas foi batizado como Nessa Rua Tem um Rio em homenagem
ao rio que se esconde naquela rua.
O terceiro capítulo é constituído pela trajetória etnográfica, desde a entrada
em campo até a conclusão do trabalho empírico. O capítulo quatro é dedicado ao
Instituto Undió, sua origem e a composição dos projetos elaborados e
desenvolvidos. São tema do capítulo cinco as ações do Nessa Rua Tem um Rio,
com ênfase no Café Comunitário, na toalha bordada e nas interações sociais. A arte
da contemporaneidade e os efeitos da interação com os interlocutores nas
intervenções de arte no cenário urbano são a discussão do capitulo seis.
Por fim, são feitas as considerações finais, que se baseiam nas análises
traçadas em todo o estudo, apoiadas nas reflexões, conexões teóricas, análise dos
diálogos e interações; nos desafios da flexibilidade de fazer e refazer a proposta
inicial, posturas e conceitos; de compreender os símbolos e o diálogo codificado, no
estranhar o familiar e no ato necessário de me afastar do objeto que se constituía, a
cada dia, no dono de meu tempo e da paixão.
35
2 SOBRE A CIDADE, A RUA E AS ARTES: DIÁLOGOS PROVÁVEIS
A experiência urbana contemporânea, na concepção de Arantes “propicia
uma complexa arquitetura de territórios, lugares e não-lugares, que resulta na
formação de contextos espaço-temporais flexíveis, mais efêmeros e híbridos do que
os territórios sociais identitários.” (ARANTES, 2000, p. 191), alega. No espaço
comum “vão sendo construídas coletivamente as fronteiras simbólicas que separam,
aproximam, nivelam, hierarquizam” para ordenar mútuas relações. São as zonas
simbólicas de transição, intituladas de “liminares”.
Em articulação com o pensamento sobre a cidade, para Fortuna vivemos, na
metrópole tardia e pós-moderna, repleta de lapsos de tempo e transformações
profundas. Do pensamento que desenvolve destaca-se nesta pesquisa: a cultura da
velocidade e a transfiguração de áreas urbanas em lugares de passagem; “a
globalização da cultura, associada às novas formas de afirmação contra-
hegemônicas de valores, identidades e comunidades locais.” (FORTUNA, 2002, p.
123), e a precarização dos círculos de convivialidade, cada vez mais restritos devido
ao que chama de “urbanização da injustiça”, resultante da contínua privatização dos
lugares e patrimônios públicos que fragilizam a cidadania. Sob este olhar
problematizador, a arte no espaço público pode eventualmente provocar novos
ciclos de convívio e contato social, além de ativar reflexões sobre a cidadania.
A experiência estética na atualidade, a partir de parâmetros históricos da arte
moderna e da arte contemporânea, em articulação com o espaço público se
destaca. Toma-se como questão a ser estudada o espaço público, mais
especificamente a rua, como contraponto ao espaço institucional das galerias e
museus. A cidade, especificamente a metrópole, no centro da questão, poderia ser
mais democrática e desfrutável, e talvez mais amistosa para seus habitantes, por
intermédio da arte? Questões que se impõem e que convidam à discussão de áreas
do conhecimento limítrofes e que se esbarram nas bordas.
Quanto à cidade em contato com a arte, a discussão que Jacobs (2011)
alimenta provoca boa interlocução com as intervenções artísticas a serem
analisadas. Apesar de desenvolver estudos que afetam especialmente a arquitetura
das cidades, a autora traz o elemento humano em afetação todo o tempo: pondera
que “arte é arbítrio, simbolismo e abstração” frente à abrangência e complexidade
infinitas da vida.
36
Precisamos da arte, tanto na organização das cidades quanto em outras esferas da vida, para ajudar a explicar a vida para nós, para mostrar-nos seus significados, esclarecer a interação entre a vida de cada um de nós e a vida ao redor. (JACOBS, 2011, p. 415).
Para trazer ainda mais adequação a este estudo, Jacobs trata das ruas e das
calçadas como órgãos vitais da cidade, cenário da atividade do Undió. Buscando na
análise envolvente de João do Rio, que desvenda com riqueza de detalhes as ruas,
seus tipos e atividades e seu espírito, “[...] a rua é um fator da vida das cidades, a
rua tem alma!” (RIO, 2008, p. 29), para ele, esta é uma “alma encantadora”8.
2.1 Das artes do agora: uma revisão elementar
Para uma melhor apreensão do termo “arte contemporânea” que será
conceito fundamental para o entendimento das articulações artísticas do Nessa Rua
Tem um Rio, uma revisão de tempos e movimentos se faz necessária. Será uma
pincelada organizadora dos conceitos, sem a intenção de desviar o potencial crítico
de uma revisão aprofundada, mas apenas como um sobrevôo que mapeia uma área
a ser explorada.
Outra consideração importante se refere à utilização do termo “arte
contemporânea”. Trata-se de um jargão usual que enfeixa uma produção tanto
teórica quanto conceitual e cria um estatuto – fato que explica a escolha –, em
detrimento da expressão “arte da contemporaneidade”, mais fluido e mais
representativo, na minha percepção, para as produções atuais. E, por último,
interpretar uma manifestação artística é contextualizá-la em relação a
acontecimentos – políticos, sociais, econômicos –, idéias, outra arte (ou artes), o que
ajuda na justificativa desta revisão.
Nosso ponto de partida cronológico são os anos 1960, momento em que as
artes inauguram o conceito do contemporâneo (ARGAN, 1992). Acontece o
rompimento em relação à pauta moderna e há destaque aos conteúdos audiovisuais
– como processo e como materialidade –, com o rebaixamento de categorias
específicas como pintura ou escultura, anulando classificações usuais até então. As
linguagens se articulam cada vez mais, incorporando a dança, o teatro, a música, e
8 Cabe aqui menção ao fato de que Jane Jacobs estuda a realidade das cidades americanas e João do Rio investiga e vivencia, em sua obra, o Rio de Janeiro. Ambos estudam realidades próprias que, entretanto, não se restringem àquela localidade ou contexto histórico, podendo ser referências para a interpretação de outros casos e em especial o Instituto Undió.
37
outros fazeres artísticos. Além disso, existe um mercado internacional que opera
com novas mídias, tecnologia e outros atores sociais; estes trazem o engajamento
subjetivo e político, como a prática necessária de evidenciar as questões de gênero,
raça e sexualidade.
As artes vivenciam um fluxo com idas e vindas que refletem contextos. E, mas
essencialmente, as artes se alimentam dos ciclos, dos momentos e movimentos que
as antecederam; seja para reverberar, seja para negar o passado. Isto pressupõe
alguns retornos necessários para se mirar melhor o momento atual.
Como sociedade, passamos pela Modernidade estreante nos anos 1860,
portanto cem anos antes do recorte que propomos. Foi o tempo do Impressionismo,
seu gosto pela novidade, sua recusa do passado acadêmico e a tentativa de
harmonizar a arte do momento – efêmera – com a arte até então substancial,
considerada eterna (CAUQUELIN, 2005). Se estivéssemos vendo uma cena, o pano
de fundo seria uma nova urbanidade, fundamentada nas alterações radicais movidas
pela revolução industrial, período econômico bem demarcado. Comunicações,
transporte, máquinas e descobertas ativavam novos meios de viver, com o
crescimento ordenador das cidades. Em conjunto, produziram uma nova classe
social, a burguesia, que iria tornar-se hegemônica. Kester afirma que a principal
função da arte muda drasticamente no período moderno, quando a tradicional
função de transmitir e idealizar formas dominantes de poder, quer fosse religioso,
quer fosse secular, passa a assumir o papel de rompê-las ou desestabilizá-las
(STOTT, 2014)
A industrialização atuou ainda sobre o processo técnico artístico. Uma boa
dimensão disso se dá com o surgimento da fotografia que irá impactar fortemente as
obras de arte, especialmente a pintura. Walter Benjamim (2013) no texto
fundamental de 1935 “A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica”, estuda
os impactos do surgimento da fotografia – e do cinema. No texto em que põe em
questão a perda da aura, teoriza sobre o apagamento do caráter de ritual e de
sagrado da obra de arte, já que o aqui e agora, que são provas da sua existência
única e autêntica, desaparecem com as reproduções. “Com a chegada da fotografia
houve uma primeira ruptura com as formas mais tradicionais de produção de
imagens, que passaram a ser reproduzidas e deslocaram o lugar antes ocupado
pelo original”, como nos conta Jesus (2016, p. 159).
38
Os artistas se libertaram, assim, de documentar cenas e passaram a se
comportar como cronistas da vida moderna. Outra facilidade evidenciada para a
pintura foi técnica. Houve a produção em escala das tintas em várias cores e tons,
que vinham convenientemente em bisnagas, facilitando tanto o manejo delas pelos
artistas quanto o transporte e os deslocamentos, pois os temas de inspiração da
época, além de plurais, eram ao ar livre (au plein air). Liberados da documentação
pictórica verossimilhante, os pintores puderam experimentar e ousar nas
representações. Com tantas alterações de contexto, mas simultâneo a ele, o
Impressionismo foi considerado um movimento artístico de ruptura em sua fase
inaugural.
Também é sobre temporalidade que essa ruptura trata. As artes, até então
percebidas como estilos em suas durações longas de muitas décadas e até mesmo
séculos, passam a viver movimentos, que se sucedem acelerados. A ruptura trazida
pela Modernidade vai alimentar as vanguardas históricas européias e as russas do
espírito do novo e da autonomia.
As vanguardas vão ser os elementos fundantes do rompimento artístico e têm
na formulação de um campo autônomo na arte uma de suas bases mais
importantes. O engajamento se materializa na conotação política expressa em
manifestos, conteúdos programáticos e declarações. “Era preciso que a arte se
tornasse tão inovadora e radical quanto a vida.” (CANTON, 2009, p. 19),
reverberando o estado das coisas daqueles anos. Os movimentos artísticos
modernos eram eminentemente conceituais, fazendo com que as obras de arte
carregassem os conceitos que exemplificavam, como cita Stangos (2000).
Nomes classificatórios são corriqueiramente esquemáticos, o que pode ser
visto tanto como um valor ou como uma limitação; entretanto, é inegável que o
período entre os anos 1900 e 1950 foi pleno de explosões criativas. Surgem, em
sequência, e, em alguns momentos, em justaposição mantendo o ir e vir de
motivações, os “ismos” (CANTON, 2009). Tempo de fauvismo, cubismo,
expressionismo, futurismo, dadaísmo, surrealismo e muitos outros como o
Suprematismo, o Construtivismo russo e a Bauhaus. As criações eram alimentadas
por pesquisas do consciente e do inconsciente e de outras referências como as
africanas. Em vivências efervescentes de produção, variedade e materialidade,
propunham sínteses, abstrações, geometrizações e construções de formas inéditas
até então.
39
O período entre guerras foi prolífico. Na antessala da I Guerra (1914-1918)
nos anos 1910, várias correntes de arte propunham a destruição e o niilismo, o
engajamento, o antibelicismo ou a total imparcialidade; evidenciou-se a exacerbação
de sentimentos com a II Guerra (1939-1945) e a expansão crítica das angústias do
pós-Guerra. A arte parecia capaz de criar outra realidade e até mesmo transformar
aquela que vinha sendo vivida.
Realidade e arte se entrecruzavam e se problematizavam, ora de forma mais
racional, ora de forma mais subjetiva. Na subjetividade está presente a discussão do
sentido da vida e sua funcionalidade, muitas das vezes com carga de niilismo. Dois
exemplos da subjetividade são a “Roda de Bicicleta” (Figura 1), de 1913, de Marcel
Duchamp e o “Objeto” (Figura 2), de 1936, de Meret Oppenheim. Uma roda posta
numa banqueta por Duchamp não é nem mais um objeto que roda e nem outro com
o intuito de assento; no “Objeto”, a artista questiona o próprio sentido utilitário dos
objetos apresentando sua xícara recoberta de pelos acompanhada de colher e pires
peludos.
Figura 1 - Roda de Bicicleta Figura 2 – Objeto
Fonte: (DUCHAMP, 2018) Fonte: (LÍVIA, 2019)
Já na década de 1940, o automatismo inconsciente avançou para a abstração
de uma geometria restrita que moldou, na década seguinte, o Expressionismo
Abstrato estadunidense. Com Jackson Pollock, anos mais tarde, tem-se o corpo
fazendo parte processual da obra de arte pelo gestualismo da action painting, a
40
pintura de ação que, anos mais tarde, irá se ampliar com o happening e a
performance.9
A neo-vanguarda, quando artistas estadunidenses e europeus dos anos 1950
e 1960 retomam procedimentos das vanguardas dos anos de 1910 e 1920, põe em
questão a repetição – na perspectiva do retorno – como uma proposta, observa
Foster (2014). Entre eles estão a pintura monocromática, a escultura construída, a
colagem e a assemblage – montagem, em francês, que é a colagem de materiais e
objetos tridimensionais –, o ready-made – objeto comum que é tirado do seu
contexto e apresentado como objeto de arte. Em uma analogia que acompanha a
passagem do tempo, Foster argumenta que a obra da vanguarda “nunca é
historicamente efetiva ou plenamente significativa em seu momento inicial [...]
porque é traumática – um buraco na ordem do simbólico de sua época, que não está
preparada para essa obra, não pode recebê-la.” (FOSTER, 2014, p. 46).
Assim como o nascente Impressionismo do século XIX, o Minimalismo lançou
mão de materiais industriais. Os artistas mais representativos, para Batchelor (2001),
são Carl Andre, Donald Judd, Dan Flavin, Sol LeWitt e Robert Morris que reúnem as
primeiras obras do movimento, entre 1963 e 1965. Naquele momento, o mundo vivia
uma onda industrial tecnológica e os materiais saíram do ambiente das fábricas, da
construção e do acabamento da engenharia civil como o aço, o vidro, o acrílico, a
lâmpada fluorescente e o verniz para compor objetos de arte. Formas elementares e
quase sempre tridimensionais enfatizam a simplicidade e a neutralidade restritas ao
essencial. Há interação do observador, que é fator determinante para a apreensão
do sentido da obra, já que a regra máxima é “o que você vê é o que você vê”.
A Arte Conceitual, ela própria um receptáculo gigante de desdobramentos, em
especial do Minimalismo, apresenta o grande mergulho das artes no mundo das
ideias e informações. Elas são a propulsão da arte e, muitas vezes, sua única
“materialidade”. O artista que é referência, Sol LeWitt, ele mesmo representante do
antecessor Minimalismo, escreve em seus Parágrafos sobre Arte Conceitual (1967):
9 Zanini ilustra o momento e as diversas manifestações que apontam para a desmaterialização da
arte: “A abertura para além do objeto estético canônico, através do environment, happening e performance, que se fez notar em artistas como Yves Klein, Piero Manzoni e no Grupo Fluxus na Europa, em Allan Kaprow nos Estados Unidos e no Grupo Gutai no Japão, antecedeu a porosa sequência de tendências, recebendo nomes de Body Art, Minimal Art, Processual Art (Anti-form), Arte Povera, Land Art (earthworks e Arte Conceitual, propriamente dita, na segunda metade da década de 1960.” (ZANINI, 2018, p. 117).
41
nessas obras, "a idéia torna-se uma máquina de fazer arte". Tendências se seguem
a tendências10.
2.2 Da contemporaneidade
A partir de então, chegamos à contemporaneidade. Nos vários sobressaltos
de um variável e oscilante fazer artístico que acontece simultâneo às análises, às
críticas e à fruição, a arte contemporânea foi descrita nos anos 1970-1980 como
pós-moderna, nos recordam Harisson e Wood (1999), um rótulo que seria
questionado posteriormente. Talvez fosse um termo provisório para algo que ainda
não tinha nome, posto que nada estava tão patente 50 anos atrás.
Se pós-modernidade, como condição histórica e social, se refere ao fim da
modernidade, o que efetivamente se viu na arte não foi uma finalização de processo
para a entrada em outro, mas vários reinícios alimentados pelas inspirações
dialéticas da modernidade. Foster questiona: “E o que aconteceu com o pós-
modernismo? Até há pouco tempo esse conceito parecia excelente.” (FOSTER,
2014, p. 187). Ocorre que, dito de forma simplificada, a história vivida é muito melhor
assimilada com o passar do tempo e com o afastamento necessário às
classificações.
Quanto ao pós-moderno11, filósofos, sociólogos, críticos e diversos autores
tiveram percepções densas e não coincidentes, mas todas elas marcantes e vitais
para a compreensão do fenômeno. O pós-moderno seria o novo paradigma em que
o que está em questão “é uma negociação constante até mesmo obsessiva, com os
termos do próprio moderno” para Huyssen “que é em si tão diverso e multifacetado
como o modernismo o foi antes de ser mumificado e virar dogma.” (HUYSSEN,
1997, p. 12).
10 A sucessão de movimentos cessa, na opinião de Lucie-Smith (2006) em meados dos anos 1970.
Cabe ressaltar que, para as artes atuais até mesmo a noção de movimento perdeu sentido, devido à pluralidade de conceitos. O modernismo, tão afeito à tradição do novo, consubstanciado na experimentação, com o passar do tempo sofre desgaste, especialmente junto ao público, que o considera de difícil entendimento e esgotado em apelo.
11 A discussão sobre pós-moderno traz visões diferentes e cabe citar algumas delas. Para Lyotard
(2008) o pós-moderno significou um marco de encerramento das narrativas de progresso da modernidade, enquanto para Jameson (2007) e Harvey (1993) trata-se do capitalismo tardio. Bauman celebrizou o conceito de “modernidade líquida”, fluida e plástica, enquanto Lipovetsky e Charles (2004) adotou o termo hipermodernidade, numa alusão ao fato de que, para ele, não houve ruptura, mas uma exacerbação de características de comportamento modernas.
42
No Brasil, o crítico Mário Pedrosa foi um dos primeiros a utilizar o termo em
um artigo publicado no jornal Correio da Manhã em 26 de junho em 1966, que foi
recuperado por Arantes. Ele escreveu:
Hoje, em que chegamos ao fim do que se chamou de arte moderna (…), os critérios de juízo para apreciação já não são os mesmos [...] fundados na experiência do cubismo. Estamos agora em outro ciclo, que não é mais puramente artístico, mas cultural, radicalmente diferente do anterior e iniciado, digamos, pela pop art. A esse novo ciclo de vocação antiarte, chamaria de arte pós-moderna. (ARANTES, 2004, p. 355).
A arte é o receptáculo e escoadouro de tendências, vivências e contextos da
vida, como já dito. Como teoria inclusiva por essência, a “obra de arte total”
(Gesamtkunstwerk)12 preconiza a fusão da arte com a vida13 (BATCHELOR, 2001).
Associado à ideia de síntese, há o ideal de dissolver a distinção entre arte e não-
arte, ou de fundir a arte com a vida. Em razão disso, as análises se voltam para a
sociedade e os efeitos dos eventos sobre ela.
Em 1956, a colagem “O que faz os lares atuais tão sedutores” (em inglês, Just
What is that makes today’s homes so different, so appealing) de três metros
quadrados, criação do inglês Richard Hamilton, apresentou o lar de uma sociedade
de consumo. Televisão, aspirador de pó e gravador com fita de rolo eram utensílios
que compunham o cenário para outras figuras da obra: um halterofilista, uma pin-up
e uma dona de casa. Ali estavam reunidos ícones do consumo, ativados pela
publicidade. Foi concebido como pôster e ilustração para o catálogo da exposição
“This is tomorrow” do Independent Group de Londres. Numa composição de
significados articulados entre imagens e título, aquela obra foi considerada como o
início da pop arte, termo cunhado um ano depois pelos críticos estadunidenses
Fiedler e Banhan (SANTOS, 1986).
12 Esse conceito, que tem uma origem romântica, no século XIX, portanto, ficou conhecido sobretudo
por conta da ópera de Wagner, descrita como uma tal obra de arte total por conjugar à música o teatro, a dança, a poesia, as artes plásticas. (SELIGMANN-SILVA, 2018).
13 “Em teoria (embora só em teoria) a arte do século XX pode ser dividida entre essas duas dinâmicas
igualmente poderosas e mutuamente exclusivas: em direção à autonomia e em direção à síntese.” (BATCHELOR, 2001, p. 65).
43
Figura 3 - “O que faz os lares atuais tão sedutores”
Fonte: (CINCO..., 2011)
Logo depois, a pop arte seria abraçada pelo american way of life, tornando-se
uma manifestação artística emblemática com as serigrafias de Andy Warhol e as
pinturas inspiradas em histórias em quadrinhos de Roy Lichtenstein. Era a
entronização absoluta do descartável e da cultura de massa, num curioso e
paradoxal díptico “ironia x glamour”. “Antiarte” para Pedrosa (1966), pastiche e
hermética para muitos, herdeira ou não do moderno, parte indissociável ou não
daquele período, o fato é que a arte da contemporaneidade é a que vivenciamos
atualmente, repleta de enredamentos.
Fazendo menção a Walter Benjamin, para quem cada época sonha a
seguinte e, desta forma, revê a anterior, Foster (2014, p. 189) testifica que “não
existe um simples agora: todo presente é assincrônico, uma mistura de tempos
diferentes; logo não existe transição pontual”, visão absolutamente plausível e
esclarecedora para a suposta confusão de títulos, nomes e características que se
sobrepõem.
A respeito da década de 1950 e os desdobramentos dela, Zanini relata que
havia espaço para valores contrários às estéticas formalistas vigorantes, além de
44
representar uma antessala para que a interlocução entre autor e espectador fossem
vividas:
[...] ocorreram diversos fatos em sequência, de outra ordem, separados dos princípios e métodos sempre imperantes na obra de arte, que constituíram pontos de referência, como a importância que as tecnologias avançadas começaram a assumir no desenvolvimento da arte, posterior a certo arrefecimento das vanguardas históricas. Ao environment, preparatório do happening, atividades de uma epistemologia do efêmero que se projetaram nas décadas seguintes, acrescentaram-se a Body Art a performance e a Land Art nas décadas de 1960-70. (ZANINI, 2018, p. 202).
Em 1957, Guy Debord14, auto-declarado “doutor em nada” funda na Itália a
Internacional Situacionista que defendia a mudança radical de toda a ordem,
considerada aprisionadora. A arte ligada à vida cotidiana, ao lazer e à cultura dita o
ritmo das manifestações propostas. O grupo de artistas, pensadores e ativistas
situacionistas apostavam na participação ativa dos indivíduos em todos os campos
da vida social, principalmente no da cultura para combater a alienação e a
passividade. Como prática, adotam perambulações coletivas ao acaso pela cidade e
estimulam as reinterpretações do espaço com base na experiência vivida da deriva e
do desvio. É um importante embrião para a discussão das artes audiovisuais e a
cidade, dando valor à reinterpretação do espaço comum a partir de experiências que
geram afetividade.
Sobre o exercício crítico Situacionista, Paola Berenstein Jacques escreve:
A resposta do Situacionismo à cidade moderna contrapõe-se aos preceitos do urbanismo consolidado na primeira metade do século XX, propondo a experiência dos espaços urbanos não usuais de forma lúdico-criativa, a apreensão da cidade enquanto lugar do jogo e dos acontecimentos mais variados, espontâneos e efêmeros. À medida que as relações afetivas estabelecidas entre as pessoas e o espaço urbano passam a ser, para os situacionistas, o ponto de partida para o reconhecimento da cidade, a própria ideia de usuário e de usos da cidade é colocada em questão. (JACQUES, 2003, p. 45).
O interesse dos situacionistas pelas questões urbanas repercutia a
importância que delegavam à cidade “como terreno de ação, de produção de novas
14 Filósofo, cineasta e agitador cultural, Debord lançaria em 1967 “A sociedade do espetáculo”, obra
citada na introdução deste trabalho, com conteúdo teórico que faz uma análise crítica da sociedade de consumo. O discurso libertário das 221 teses reunidas no livro ganhou força e reverberação com os acontecimentos de maio de 1968. E, em “Advertência da edição francesa de 1992”, o próprio autor vaticina: “É preciso ler este livro tendo em mente que ele foi escrito com o intuito deliberado de perturbar a sociedade espetacular. Não exagerou nada.” (DEBORD, 1997, p. 12).
45
formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou ausência de paixão, da vida
cotidiana moderna”, comenta (JACQUES, 2003, p. 13).
São experiências que contam mais de cinco décadas, mas que estão
atualizadas e compatíveis à contemporaneidade. A crítica urbana permanece
pertinente para o campo estudado, já que o ímpeto situacionista dá valor aos
espaços urbanos não convencionais para experimentos efêmeros e espontâneos.
Isto combina com a lógica das intervenções de arte do Nessa Rua Tem um Rio
ocasionais e impermanentes.
Seguindo a linha cronológica, no pós-guerra ocorre a contracultura,
movimento coletivo mundial. Nesse ponto, a arte política, engajada e contestadora,
tem lugar nos anos 1960-1970 em uma conjuntura de contestação social. Corpos
ativistas estão nas ruas e nos espaços públicos via o Movimento Hippie, o discurso
pacifista de Martin Luther King e a luta armada dos Panteras Negras nos Estados
Unidos, via mobilização contra a guerra do Vietnam. “É proibido proibir” é a máxima
defendida nos protestos dos estudantes de Paris em maio de 1968 e proliferam pelo
mundo ocidental.
No Brasil, o ambiente é de censura e perda das individualidades pós-golpe de
1964. Esse quadro geral proporcionou a retomada da discussão da autonomia da
arte e o deslocamento – tanto de foco quanto das práticas – para os espaços não
institucionalizados das galerias. Chegar às ruas foi um desdobramento natural.
Os ecos da contracultura reverberavam em obras com autorias
compartilhadas e experimentais. Em voga está a ausência de identificação de
estabilidade absoluta com qualquer repertório. Uma série de performances
organizadas por George Maciunas na Europa, entre 1961 e 1963 inaugura o
movimento Fluxus. A atitude de proximidade entre artistas e não-artistas se
apresenta em acontecimentos cênicos e happenings que buscavam a simplicidade
diante do mundo, do fazer artístico e da cultura. Esses registros são
interdisciplinares e plurais e se manifestam em múltiplas formas artísticas em diálogo
e interação: artes visuais, fotografia, vídeo, música, dança, teatro, poesia e outras.
No fazer artístico, prepondera a ideia de fluxo, movimento, escoamento. O Grupo
Fluxus mobiliza artistas de várias nacionalidades, entre eles Joseph Beuys, Nam
June Paik, John Cage e Yoko Ono (CAMPBELL, 2018; FOSTER, 2014; FREITAS,
2013; ZANINI, 2018).
46
A exploração de sons e ruídos tirados do cotidiano ocupa lugar central na
definição da atitude artística do Fluxus, que combina, ainda, conteúdos sinestésicos
simultâneos, estimulando os sentidos. As performances e os happenings se ligam ao
teatro e à dança e convocam os espectadores à participação em espetáculos
experimentais, muitas vezes descontínuos, sem foco definido, não-verbais e sem
seqüência previamente estabelecida. (LUCIE-SMITH, 2006; ZANINI, 2018).
2.3 Performances e a arte relacional
Aqui, neste texto, happenings e performances têm espaço de destaque, visto
que muitas intervenções que ocorrem na Rua Padre Belchior partem de uma
motivação que se inspira em ambas, e se escopo colabora com a análise de muitas
delas. Também existe uma natural e evidenciada conexão entre a antropologia e a
performance, fato a ser destacado, especialmente em relação às reflexões que
unem os campos. A Antropologia da Performance é um modo de avaliar a vida
social como um conjunto de atos performativos, uma certa dramaturgia que fornece
inteligibilidade. É o que estuda, na USP (Universidade de São Paulo), o Núcleo de
Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA), liderado por John Dawsey.
Em prefácio do livro “Antropologia e Performance: ensaios napedra”,
organizado pelo núcleo, Diana Taylor (2013), especialista em performance e
professora da Universidade de Nova Iorque, reforça a complexidade ao alegar que
nos estudos da performance, as noções sobre o papel e a função variam bastante.
Ela destaca a polissemia da palavra, indica a abrangência teórica e o grau de
intraduzibilidade. E acrescenta o aspecto fátuo da sua existência: “Alguns estudiosos
admitem a efemeridade ao afirmarem que ela desaparece já que nenhuma forma de
documentação ou representação é capaz de apreender o „vivo‟.” A performance
estaria, pois, delimitada ao presente, como se o vir a ser ocorresse por seu
desaparecimento. “Outros estendem o entendimento da performance considerando-
a como sendo limítrofe da memória e a história. Como tal, ela participa na
transferência e na continuidade de conhecimento.” (TAYLOR, 2013, p. 11-12).
Richard Schechner (2013), fundador do The Performance Group em Nova
Iorque em 1967 e professor de Estudos da Performance na Tisch School of the Arts
da Universidade de Nova Iorque defende a idéia de que toda performance é um
comportamento restaurado. Uma experiência, defende o autor, se completa ou se
47
realiza através de uma performance ou forma de expressão. Ele articula a noção de
trança, em que performances podem ser vistas como uma trança de elementos de
rituais e de teatro. Rituais aqui compreendidos como sistemas de construção
simbólica culturalmente construídos que compartilham alguns traços: uma
ordenação que os estrutura, um sentido de realização coletiva com propósito
definido e a percepção de que eles são diferentes do cotidiano (PEIRANO, 2002)15.
Schechner acredita que as fontes da cultura humana são performativas, em
amplo espectro de atividades – “vão desde o ritual [...] até formas populares de
entretenimento, festas, atividades da vida diária, os negócios, a medicina e os
gêneros estéticos do teatro, da dança e da música.” (SCHECHNER, 2013, p. 37). As
qualidades performativas de cada uma das atividades depende do que chama de
“seis pontos de contato”, a saber: transformação do ser e consciência; intensidade
da performance; interações entre o público e o performer; a sequência da
performance como um todo; a transmissão de conhecimentos performáticos e,
finalmente, uma questão: como as performances são geradas e avaliadas? – e
defende que há um constante cruzamento de fronteiras entre o teatro e a
antropologia.
Nesta confluência, no final da década de 1970, Schechner desenvolveu
estudos sobre performance em parceria com o antropólogo Victor Turner, que se
dedicou a estudar as simbologias subjacentes aos rituais. Ambos reconheceram a
importância do conceito de ritual para o entendimento dos sentidos da performance.
Turner escreveu que “as performances revelam o caráter mais profundo, verdadeiro
e individual da cultura” e está orientado para uma universalidade e transparência
relativa das populações em que elas poderiam vir a entender umas às outras por
meio das suas performances (TAYLOR, 2013, p. 11).
“Para mim, a arte da performance é um „território‟ conceitual com clima
caprichoso e fronteiras movediças; um lugar onde a contradição, a ambigüidade e o
paradoxo não são somente tolerados, mas estimulados”, afirma o artista, escritor e
teatrólogo Gomez-Peña (2013, p. 444) para quem a performance é
15
Rituais são entendidos, nesta lógica, como eventos “tanto ordinários quanto críticos [...] que partilham de uma natureza similar, um sentido de acontecimento cujo propósito é coletivo,” (PEIRANO, 2002a, p. 8). O rito foi retomado e recuperado nas décadas de 1970 e 1980, quando a preocupação etnográfica voltou a ter importância para a antropologia “agora não só como mecanismo bom para pensar, mas também ação social boa para viver”, para Peirano (2002b, p. 24).
48
[...] uma forma de ser e estar no espaço, frente a (ou em torno de) um público específico. Também é um olhar intensificado, um sentido único de propósito no manejo de objetos, de compromissos e de palavras e, ao mesmo tempo, uma „atitude‟ ontológica em direção ao universo. (GOMEZ-PEÑA, 2013, p. 459).
Ele alude ao fato de que performers não são necessariamente atores, poetas
ou artistas, mas se situam num espaço intersticial e que, nessa perspectiva, as
possibilidades de desencadeamento de reflexões críticas, politicamente engajadas e
esteticamente elaboradas acerca de uma vida social, cultural e política circundante
são mais importantes do que a excelência artística.
A arte da performance, que surge como algo pleno de experimentalismo, uma
reação às artes simplificadas e reduzidas ao entretenimento, tem a capacidade de
transformar, gerar empatia, causar espanto e provocar efeitos lúdicos e/ou críticos
em atores e espectadores. Na ocupação de espaços, é uma contraposição ao
museu, suas regras de uso e de experiência medida. As performances são a forma
mais recorrente de intervenções de arte na rua que esta tese estuda. São as
performances que criam uma ligação com os fruidores e nos trazem a discussão
sobre a arte relacional.
Nicolas Bourriaud (2006) lançou, em 1997, coletânea de ensaios em que
propõe a expressão “arte relacional” para qualificar práticas no cenário urbano como
parques e praças que propõem formas diversas de relações. Na opinião dele, são
interações humanas e que se realizam em seu contexto social em que tem-se a arte
contemporânea que se manifesta no “estar junto”, ressaltando as práticas conviviais,
relacionais e interativas16. No entanto, o autor recebe críticas17 por focar suas
análises em uma produção exclusivamente hegemônica – européia e estadunidense
e, ainda, por acreditar em uma dinâmica artística que se sujeita às contingências do
ambiente e do público (BISHOP, 2012).
16 “A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das
interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado) atesta uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos postulados pela arte moderna.” (BOURRIAUD, 2006, p. 19)
17 Ver: “Poderíamos dizer que as preocupações com o espaço público e com as redes sociais que
motivaram a arte ativista atravessaram um processo de apropriação perversa. Neste processo, as tradições de arte ativista foram submetidas a uma reificação conceitual e transformadas em antítese moralizadora e ingênua à arte avançada, cosmopolita e auto reflexiva apresentada no circuito das bienais. Essa tática funciona em toda as divisões que, de outra forma, separam uma figura como Nicholas Bourriaud de um de seus críticos mais sérios, Claire Bishop. Isso é sintomático de uma luta para limitar a atual proliferação de práticas artísticas dentro de uma narrativa que privilegia a obra de arte como uma espécie de máquina desconstrutiva cuja função primordial é simbolizar ou instigar um deslocamento terapêutico de identidades tradicionais.” afirmação de Grant Kester (STOTT, 2014, p. 76).
49
Claire Bishop, uma das estudiosas que questionam o pensamento de
Borriaud considera que o esforço de se pensar a arte dos anos 1990 “é um passo
inicial importante para a identificação de tendências recentes na arte
contemporânea.” (BISHOP, 2012, p. 110). Mas ela discorda de o público ser visto
como uma comunidade: uma entidade social, coletiva, a quem se dão os meios para
criar uma comunidade, por mais temporário ou utópico que isso venha a ser.
Plausível e essencial para a discussão que esta tese propõe é a citação de
Bishop, que traz luz para sua discordância quanto à equiparação do julgamento
ético-político das relações produzidas por um trabalho de arte ao julgamento
estético:
A qualidade das relações em “estética relacional” nunca são examinadas ou colocadas em questão. Quando Bourriaud afirma que “encontros são mais importantes que os indivíduos que os compõem”, percebo que essa questão (para ele) é desnecessária; todas as relações que permitem “diálogo” são automaticamente presumidas democráticas e, portanto, benéficas. Mas o que “democracia” de fato significa nesse contexto? Se a arte relacional produz relações humanas, então, a próxima pergunta lógica a se fazer é quais tipos de relações estão sendo produzidas, para quem e porquê. (BISHOP, 2004, p. 120),
Esta questão nos é cara, pois a qualidade das relações estabelecidas nas
intervenções artísticas do Nessa Rua Tem um Rio são fundamentais para os efeitos
observados e as reações percebidas em cada evento. Notoriamente são
manifestações individuais, ainda que haja uma generalização de sensações, mas
estas giram em torno do senso comum.
A arte sempre foi relacional, em graus diferentes. Esta evidência parte da
perspectiva orgânica de que é necessário haver uma presença específica, que é o
espectador, para a apreciação da obra. Ademais, entre a obra e o espectador há
sempre um encontro, uma relação, uma interação. Arrisco dizer que, seja feliz ou
frustrante, é deste encontro que se trata a arte. Ou, de forma mais enfática, “A
resposta mais adequada para a obra de arte não é mais a veneração ou o respeito,
mas o desconforto, a ruptura ou um desarranjo sem precedentes dos sentidos.”,
como dispara Kester (STOTT, 2014, p. 77).
Em consonância a este pensamento, em “A poética da obra aberta”, Umberto
Eco argumenta que a presença do fruidor é tão singular quanto a obra proposta, o
que nos faz inferir que a interação é, ela própria, essencialmente participativa e
relacional:
50
Uma obra de arte, forma acabada e fechada em sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é também aberta, isto é, passível de mil interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração de sua irreproduzível singularidade. Cada fruição é, assim, uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra revive dentro de uma perspectiva original. (ECO, 1991, p. 40).
A arte relacional, premente nos anos 1990, bebe da fonte de influências da
arte participativa dos anos 1960, alimentada por criações que convidam o
espectador a interagir para que a obra “aconteça”. Assim, o conteúdo conceitual só
ocorre por intermédio da relação a ser estabelecida ao longo de um percurso de
experimentação do espectador com a obra.
2.4 A participação na arte: experiências do fruidor
Para ilustrar, ponho em evidência os artistas Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio
Oiticica, trio da mesma geração artística e filiação estética – Grupo Frente (1953),
núcleo do Concretismo no Rio de Janeiro; e, anos mais tarde, formaram a
dissidência neoconcreta (1959), que defendeu proposições que eles já utilizavam
como a teoria do não-objeto, a sensorialidade, a experiência e a participação.
De Lygia Clark cito “Os bichos”, esculturas articuladas feitas de alumínio com
dobradiças em que o fruidor manipula e “cria” formas. De Lygia Pape ponho em
realce a obra sensorial “Roda dos Prazeres”18, um círculo de tigelas com líquidos
coloridos para o público experimentar a conta-gotas o "sabor" das cores, ativando
paladar, olfato e visão. E de Hélio Oiticica destaco os “Parangolés”, tipo de túnica ou
capa vestível à qual, com os movimentos do fruidor, transformam a obra e a
experiência em algo único, sobretudo quando é aceita a provocação que o artista
propõe de se dançar.
18 O princípio do prazer foi discutido por Freud, em 1911, para designar as duas formas de operação:
um é regido pelo princípio de prazer/desprazer; o outro pelo princípio da realidade.
51
Figura 4 – Os Bichos Figura 5 – Roda dos Prazeres
Figura 6 - Parangolés
Fonte: (CLARK, 2018) Fonte: (PAPE, 2017) Fonte: (OITICICA, 2011)
Em cada uma dessas poéticas, é implícita à obra a participação voluntária do
fruidor. A partir da participação, surge um ponto de vista particular e insubstituível. A
experiência individual se nutre da eventual vontade de “viver” as obras. Muitas das
intervenções que ocorrem na Rua Padre Belchior demandam a interação similar à
proposta pelas obras citadas em que o fruidor precisa aceitar se relacionar,
integrando seu corpo à arte. Em comum nas obras de Lygia Pape e de Hélio Oiticica
está a prevalência do espaço aberto e não controlado das galerias ou dos museus.
Esta característica também se apresenta nas provocações de arte no Nessa Rua
Tem um Rio. E, assim, mais uma vez, está em evidência a dimensão da vida, numa
dinâmica que parte de experiências factíveis, acessíveis e que são processadas em
espaços cotidianos como a rua, a praia ou uma comunidade.
“A arte contemporânea que surge na continuidade da era moderna se
materializa a partir de uma negociação constante entre arte e vida, vida e arte.”,
afirma Canton (2009, p. 49). Para elucidar esta aparente disputa, Brígida Campbell,
ela própria artista, além de pesquisadora, caminha em direção à arte fora do seu
campo ao defender que
[...] os artistas de hoje não estão preocupados com as dicotomias entre arte e não-arte, galeria-rua, objeto-experiência, [...] estão livres para criar obras sem categorias definidas e a transitar entre diferentes universos culturais da arte. (CAMPBELL, 2018, p. 35).
52
A arte da contemporaneidade é chamada de arte pós-autônoma por Canclini
(2016) para quem se trata de iminência que entrecruza práticas e teorias sociais
com o trabalho artístico e as teorias estéticas. Corroborando esta perspectiva, Katia
Canton considera que: “Nesse campo de forças, artistas contemporâneos buscam
um sentido, mas o que finca seus valores e potencializa a arte contemporânea são
as inter-relações entre as diferentes áreas do conhecimento humano.” (CANTON,
2009, p. 49). A produção simbólica ganha espaço na articulação texto, som, imagem
em movimento, há novas relações espaço-temporais e o intenso hibridismo entre
suportes, domínios e possibilidades de criação, como pontua Eduardo de Jesus.19
À disposição dos artistas e do público, que interage e diversas vezes faz parte
da obra, existe uma enorme variabilidade de possibilidades subjetivas, matéricas e
técnicas a serem articuladas. Em ambiente público, como a rua, existe espaço para
a troca de singularidades como percebido nas intervenções observadas como o
Café Comunitário, em que estranhos trocam opiniões sobre a melhor xícara, o
melhor petisco ou como adoçar o café com rapadura.
A partir dessa concepção entrelaçada de influências, o diretor de teatro Amir
Haddad crítico da condição limitadora de ter a arte adquirido características de
produto de consumo, e, por isso mesmo submetida às leis de mercado, afirma que
as artes são para livre acesso de todos: “A natureza pública da produção artística é
imperiosa e determinante” (HADDAD, 2012/2013, p. 50). Ele crê que há necessidade
premente de as artes serem compartilhadas, “pois não são criadas para o consumo
próprio ou para serem ocultas ou reservadas.” (HADDAD, 2012/2013, p. 50).
As artes audiovisuais instigam, assim, a diluição dos limites entre o que é ou
não arte, aquela antes institucionalizada, categorizada e vista como algo a ser
apreciado. Essa arte dos dias atuais, disruptiva e em processo, difere das obras
legitimadas e descritas por Bourdieu (1983),20 Aquelas são manifestações artísticas
19
“O que ocorre é um trânsito entre os mais diversos suportes, indo do desenho em papel, passando pela pintura, performance, fotografia, instalações que, combinadas com opções e estratégias pessoais que incorporam técnicas bem distintas (tradicionais e novas), fazem da arte contemporânea um amplo e dinâmico território.” (JESUS, 2016, p. 170).
20 Para Bourdieu, “Nada distingue, com efeito, mais rigorosamente as diferentes classes do que as
disposições e as competências objetivamente exigidas pelo consumo legítimo das obras legítimas; e, mais rara do que essa capacidade relativamente comum, de adotar um ponto de vista propriamente estético sobre objetos já constituídos esteticamente − designados, portanto, à admiração daqueles que aprenderam a reconhecer os sinais − é a capacidade reservada aos "criadores" de constituir esteticamente objetos quaisquer ou mesmo "vulgares" (porque apropriados, esteticamente ou não, pelo vulgar) ou a aptidão para engajar os princípios de uma
53
eruditas, cujo consumo é sinal do gosto da pertença dos sujeitos aos estratos sociais
mais altos e, por isso, dotados de códigos de apropriação das pinturas e esculturas,
das composições musicais clássicas, etc. Ranciére, citado por Foster (2014)
especula sobre as metamorfoses da mescla entre arte e vida, em que há jogos de
trocas, atravessamentos e deslocamentos. Foster (2014) aborda o esforço de reatar
os vínculos práticos da arte com a vida, as experiências e apropriações, no livro com
o sugestivo título “Retorno ao real”.
estética "pura" nas escolhas mais ordinárias da existência ordinária, em matéria de cozinha, de vestimenta ou decoração, por exemplo.” (BOURDIEU, 1983, p. 8).
55
3 A CRIAÇÃO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE, AS RUAS E OS RIOS
Belo Horizonte, capital mineira, nasceu de ideias e projeto republicanos, nos
quais vigoraram os padrões de racionalidade e funcionalidade. Dos estudos e
planejamento do engenheiro Aarão Reis e sua equipe de construtores surgiu uma
cidade higienista, organizada com padrões sanitários ideais, típica do nascente
urbanismo do período (ANDRADE, 2004; BAPTISTA; CARDOSO, 2013; JULIÃO,
1996; LEMOS, 2010; ROCHA, 2007). Na perspectiva positivista, a cidade trazia em
si projeções de progresso e racionalidade na administração e gestão para
transformar o Brasil, essencialmente agrícola naquela época, em um país urbano e
moderno. Em 12 de dezembro de 1897, o governador– chamado à época de
presidente – de Minas Gerais, Crispim Jacques Bias Fortes, inaugurou a nova
capital, que já possuía 10 mil habitantes.
O traçado da cidade nutriu-se de inspiração européia, sobretudo francesa, e
americana. Ordenada em retas, formou-se por linhas ortogonais – que
correspondem às ruas – e diagonais – onde estão as avenidas. Inicialmente
hierarquizada em três zonas: Zona Urbana, Zona Suburbana e Zona Agrícola, a
primeira delas é aquela que nos interessa mais neste estudo (Figura 7, no destaque
em amarelo). Entendemos por Zona Urbana um espaço organizado não apenas
geometricamente, mas também pelas funções sociais e administrativas que
contemplam o comércio, serviços públicos, opções de lazer e transporte.21
21
A Zona suburbana, que circundava a Zona urbana, era formada por ruas não regulares que se adaptavam melhor à topografia e não recebeu, a princípio, infraestrutura urbana. A Zona Rural, que circundava a Suburbana, estava destinada a pequenas lavouras e era composta por cinco colônias agrícolas com várias chácaras abastecendo a cidade com produtos hortigranjeiros. (BELO HORIZONTE, 2016).
56
Figura 7 - Planta Geral, com a área urbana colorida em amarelo (no detalhe à esquerda, a zona suburbana aparece em verde e acima, em cinza, os sítios e
chácaras que constituíam a zona rural)
Fonte: Acervo da Comissão Construtora Nova Capital
Na época de sua criação, a área de topografia era diversificada, com grandes
trechos de declividade “em que verifica-se incompatibilidade entre o traçado – mais
adequado a terrenos planos – e o relevo local, impondo-se, em diversos trechos vias
com rampas acentuadas.” (BELO HORIZONTE, 1996, p. 16) que, mais tarde, com o
desenvolvimento do núcleo urbano e adensamento populacional, apresentaria
dificuldades com o manejo dos cursos d‟água.
Em trecho do texto do projeto da Comissão Construtora da Nova Capital, em
ortografia original, assinado pelo engenheiro Aarão Reis, as ruas foram desenhadas
para a circulação de veículos, levando em conta alguns aspectos: “Às ruas fiz dar a
largura de 20 metros, necessária para a conveniente arborização, a livre circulação
dos vehículos, o tráfego dos carros e os trabalhos da colocação e reparos das
canalizações subterrâneas.” (BELO HORIZONTE, 1996, p. 15). Nesse excerto, está
clara a menção às retificações dos cursos d‟água, chamadas de “reparos”, atestando
que desde a criação da cidade, já estava previsto a cobertura dos rios existentes
como uma forma de melhorar a estética urbana, como afirma mais à frente: “de
futuro, será uma das mais apreciadas bellezas da cidade”.
57
As primeiras obras concluídas foram a Praça da Liberdade, o Palácio do
Governo e as Secretarias de Estado, além do Parque Municipal, a Praça da
Estação, a Rua da Bahia e as avenidas Santos Dumont e Afonso Pena. Durante as
primeiras duas décadas, Belo Horizonte, erguida para ser o símbolo da República,
se assemelhava a um “canteiro de obras ora envolta no xadrez empoeirado das ruas
e avenidas, ora atolada nas valas e fundações dos edifícios, paralisados pelo alto
índice pluviométrico.'' (SALGUEIRO, 1987, p. 113). Na cena da jovem capital havia
construções em diversos estágios, ruas recém abertas, buracos para as fundações
dos prédios e para os postes de iluminação pública (BELO HORIZONTE, 1996). E,
não raro, muita lama espalhada pelas ruas.
O Congresso mineiro determinou um “prazo de quatro anos para a construção
e transferência da capital.” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1997a, p. 26), mas, na
data de inauguração, as obras não estavam concluídas. A precariedade das
condições da jovem cidade foi descrita no relatório de governo do prefeito Vaz de
Melo em 1916, que escreve que “[...] a nossa cidade se ressente de muitas faltas e
está longe de atingir desenvolvimento que se lhe deve assegurar como Capital que
é.” (BELO HORIZONTE, 1996, p. 40). E acrescenta: “Uma cidade, principalmente,
Capital, só pode ser considerada definitivamente construída, quando todos os seus
serviços essenciais, tais como os de águas, esgotos, viação, calçamento,
iluminação, etc., se acham terminados,” (BELO HORIZONTE, 1996, p. 40). E
encerra realçando que “afirmar que Belo Horizonte já está nas condições da Capital
sonhada pelos mineiros? Certamente que não”. (BELO HORIZONTE, 1996, p. 40).
Outra evidência das constantes obras naquelas primeiras décadas é a
Avenida do Contorno, desenhada para circundar a cidade, concluída apenas na
década de 1940, conforme registro documental. “Após tantos anos transcorridos
desde o projeto inicial, a imagem do centro, como espaço moderno, higiênico e
elitista a ser isolado do resto da cidade ainda permanecia como uma orientação das
administrações municipais.” (BELO HORIZONTE, 1996, p. 17). Os anos 1940, aliás,
foram época profícua em novas construções e no início do ciclo de construção de
arranha-céus, sob o governo modernista de Juscelino Kubistchek (1940-1945).
Período de constante substituição do velho pelo novo, foi um governo que investiu
em obras de infraestrutura de águas e esgoto para a periferia. Houve, ainda, o
crescimento da cidade em direção ao eixo norte com o lançamento do Complexo da
Pampulha, construído para o lazer da classe alta. (BELO HORIZONTE, 2002).
58
As décadas se passavam e a cidade crescia em ocupação de espaço e em
população. Aos poucos, foi evidenciado o desenvolvimento do comércio na região
central. Avocação comercial do centro da cidade se evidenciou e esteve reforçada
até meados dos anos 1960. A oferta de produtos e serviços variados fazia com que
a região fosse frequentemente visitada por moradores de outras áreas. Havia
concentração de serviços bancários, farmácias, lojas, cinemas, bares e cafés. Essas
atividades, além de atender necessidades do dia a dia, propulsionavam as relações
cotidianas e novas sociabilidades, que iam configurando o papel simbólico do centro
(FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1997b).
Com o surgimento dos bairros nos anos 1960, houve uma descentralização,
sobretudo do comércio, como pode ser observado em outras cidades de grande
porte no Brasil. Essa dinâmica alterou o hábito dos moradores de “ir ao centro” para
fazer compras ou para fazer alguma transação bancária, por exemplo. É na região
central que está localizado o centro histórico da capital, que seguiu atraindo os
turistas de outras cidades e estados e os demais habitantes de diferentes regiões de
Belo Horizonte.
Figura 8 – Área central de Belo Horizonte
Fonte: A autora, 2020
59
Partindo desta lógica inerente à evolução das cidades, seus centros
caracterizam-se tradicionalmente como locais que congregam repartições públicas e
as atividades de comércio, de encontros e de entretenimento. Os sentidos
conferidos ao “centro” são difusos, conseqüência das suas diversas atribuições. São
também espaços aglutinadores de atividades administrativas, como define Barreira:
“A palavra centro e a palavra cidade têm uma homologia nos discursos, pois era no
centro que as coisas aconteciam.” (BARREIRA, 2003, p. 326, grifo da autora). Para
fins de organização político-administrativos, o Centro conforma o território de um
bairro. Localizada no bairro Centro, a rua Padre Belchior, alvo desse estudo
etnográfico, será apresentado no item que se segue.
3.1 Da rua onde está o Undió, do córrego do Leitão e da cidade que cresce
Foi um acontecimento cercado de mistério o que movimentou a rua numa
manhã de sábado. Uma grande placa anunciando uma obra pública de
“Renaturalização do Córrego do Leitão” foi instalada na Rua Padre Belchior, esquina
da Avenida Augusto de Lima, um local de grande movimento de tráfego. O fato foi
registrado pela mídia e pela população local no dia 25 de maio de 2013. Seria uma
obra de melhoria dentro da programação de embelezamento para a Copa do Mundo
que o Brasil sediaria no ano seguinte? A obra, a ser financiada pela Caixa
Econômica Federal, era assinada pela Prefeitura de Belo Horizonte, indicava
parcerias com o Governo Federal e dois ministérios: do Meio Ambiente e da Pesca e
da Aquicultura. Dois dias depois, a placa desapareceu e deixou muitas questões
sem resposta. O que seria a anunciada obra? Será que o Leitão iria reaparecer na
paisagem do centro da cidade? Quem teria retirado a placa? Foi uma provocação
que pôs à tona as águas escondidas pelo asfalto. Esse acontecimento será
retomado no item 3.3 desta tese.
60
Figura 9 - Rua Padre Belchior e o Instituto Undió
Fonte: Elaborado pela autora, 2020
A Rua Padre Belchior tem calçadas largas e diversos pontos de comércio e
serviços.22 Acolhe pontos de embarque e desembarque de transportes públicos,
além de algumas poucas residências, em prédios de até três andares que persistem
ao lado do Mercado Central23, ponto turístico e característico da capital. Nos dias de
hoje, quem se movimenta pela rua a pé, de carro ou de ônibus não percebe indícios
de que ali há um rio, que se tornou invisível. O desconhecimento da existência do rio
já seria motivo forte o bastante para a placa daquela obra pública chamar a atenção.
Atualmente capeado, num processo de cobertura que começou na segunda metade
da década de 1960, o Córrego do Leitão foi escondido pelo asfalto. Nesse processo,
a rua “apagou” o rio. Em certa medida, que talvez soe paradoxal, esconder o curso
22
“Ao longo da calçada, um bazar de roupas e utensílios usados está ao lado do cine-privê de filmes eróticos, e, à direita, uma loja com a placa de “aluga-se” está desocupada. Duas mesas de plástico na calçada têm festivos clientes que dividem uma garrafa de cerveja e falam alto, mexem com quem passa a pé em frente ao bar. Algumas lanchonetes de preços populares disputam a clientela com a promoção de pastel e refresco ou café e pão de queijo. Açougue, salão e loja de sucos compõem a variedade de escolhas. [...] Nas calçadas, pedaços de cimento irregulares, desníveis e alguma sujeira (lixo miúdo pelo chão, cascas de frutos e legumes).” Texto da autora, criado em 2017 para artigo de conclusão da disciplina de “Espaço e Sociedade” no curso de Doutorado.
23 Importante referência comercial de produtos mineiros de diversas naturezas e origens, além de ser referência turística da cidade.Inaugurado em 7 de setembro de 1929, o mercado foi idealizado para ser o centro de abastecimento da então recém-planejada cidade. (MERCADO CENTRAL DE BELO HORIZONTE, 2019).
61
d‟água torna evidente a narrativa poética que enseja o projeto Nessa Rua Tem um
Rio. Ao evidenciar o rio, o projeto artístico traz de volta o córrego, resgata o que
estava submerso e evidencia a memória da cidade.
Uma combinação lógica de números marca a identidade do logradouro para
efeitos de endereçamento de encomendas, cartas e contas. Como um registro de
CPF ou de carteira de identidade, o código de endereçamento postal 30.190-070 é
único e determina aquele lugar constituído de dois quarteirões, chamada Rua Padre
Belchior24 localizada no Centro de Belo Horizonte. Os limites daquela dupla de
quarteirões25 de proporções diferentes – um deles é o dobro do outro – são, em uma
extremidade, a Avenida Amazonas (no.885 ) e, em outra, a Avenida Augusto de Lima
(no.544).
A Rua Padre Belchior tem sua origem intrinsicamente ligada às águas
abundantes na área escolhida para sediar a nova cidade. Antes de ser rua, ela era
rio. Impelida pela força das águas do Córrego do Leitão, que serpenteava pelo
terreno, a rua surgiu antes como margem, como borda do traçado fluvial natural.
Como não existia na planta original da cidade inaugurada em 1897 (BORSAGLI,
2014), um decreto – no. 43 de 7 de setembro de 192926 – criou a rua Padre Belchior,
aberta oficialmente três décadas após a inauguração de Belo Horizonte. O registro
fotográfico (Figura 10) ilustra a abertura da rua em 1928 em que se pode ver, em
detalhe no canto direito, o guarda-corpo que limita o rio, correndo a céu aberto ao
longo da rua.
24
De acordo com Gomes (2008, p. 199), o nome escolhido é uma homenagem ao padre Belchior Pinheiro de Oliveira, sacerdote, maçon e deputado mineiro natural de Diamantina (1775); participou do Movimento Constitucionalista de 1820.A toponímia original, que no caso de Belo Horizonte apresenta amplos conhecimentos de história e geografia –, nos alerta Gomes, “reflete, de muitas maneiras, o jogo de poder político [...]. Da bajulação mais deslavada à necessidade de se preservar a memória de quem realmente é significativo, cada época batiza os logradouros públicos de acordo com os interesses envolvidos.” (GOMES, 2008, p. 18).
25 Quarteirões de 120 x 120 metros segundo o ofício no. 26 de 23 de março de 1895, apresentando ao governo as plantas da cidade (GOMES, 2008).
26 O artigo 3o determina: “A rua marginal do córrego do Leitão, no trecho comprehendido entre a Avenida Paraopeba e a rua Santa Catharina, passará a se denominar Padre Belchior”, grafia da época, em decreto assinado pelo prefeito da época, Christiano Machado. (BELO HORIZONTE, 1929). A avenida Paraopeba é a atual avenida Augusto de Lima.
62
Figura 10 - Trecho da rua (em obras) em 1928, tendo o Córrego do Leitão canalizado ao longo do trecho
Fonte: (CURRAL DEL REY, 2010)
O dinamismo e o ritmo acelerado da Rua Padre Belchior nos dias atuais,
típico do centro da cidade, se distancia de sua criação, ocupação e uso. A referida
rua é constituída de casas em estilo sobrado da primeira metade do século passado
dividida em duas partes: na parte superior é direcionada para moradia e os andares
térreos abrigam lojas ou pequenos negócios familiares. No início da fundação da
cidade os sobrados eram construções habituais da zona urbana que, com o
crescimento da cidade, cederam lugar a prédios, muitos deles comerciais.
63
Figura 11 - Detalhe da Rua Padre Belchior - noite
Fonte: Foto da autora, 2019
Figura 12 - Trecho da Rua Padre Belchior com Mercado Central ao fundo (esq.)
Fonte: Foto da autora, 2019
Belo Horizonte, é uma referência de fluxo de riquezas entre as diversas
regiões do país, segundo Gomes “logo ultrapassou seus objetivos iniciais, passou a
atrair e a abrigar importantes estabelecimentos de natureza comercial e industrial.”
(GOMES, 2008, p. 13), num cenário que se espraiou para além da região central da
64
capital.27 O Centro é marcado pelos constantes deslocamentos de transeuntes e
veículos, inclusive pela Rua Padre Belchior, corredor de transportes coletivos e
acesso a ruas e avenidas.
Figura 13 - Pista de rolamento e calçadas da Rua Padre Belchior
Fonte: Foto da autora, 2017
3.2 Rios cobertos
A relação da capital mineira com os rios é inseparável de sua história. Desde
a escolha do Arraial do Curral Del Rey pela comissão construtora da nova capital, a
fartura dos mananciais de água foi ponto destacado. O relatório elaborado pelo
engenheiro chefe Aarão Reis detalhava “condições de salubridade, de solo e
subsolo, topografia, meteorologia, abastecimento d‟água e esgotamento sanitário,
viabilidade de comunicações, disponibilidade de materiais para a construção e
riquezas agrícolas.” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1997c, p. 26). Em 13 de
dezembro de 1893, “Belo Horizonte é escolhida [...], definindo, ainda, o Congresso,
um prazo de quatro anos para a construção e transferência da capital.” (FUNDAÇÃO
27
“Na década de 1920, a Avenida do Contorno deixava de ser o limite da zona urbana da cidade para delimitar apenas sua área central. Entre os anos 1930 e 1950, as intervenções físicas em Belo Horizonte tinham por objetivo conformar uma atraente paisagem urbana e iniciava-se um processo de verticalização da área central.” (JAYME; TREVISAN, 2012, p. 362).
65
JOÃO PINHEIRO, 1997c, p. 26). A Figura 14 mostra a distribuição da malha fluvial
no mapa de Belo Horizonte e região.
Figura 14 - Bacia hidrográfica do Ribeirão Arrudas e Ribeirão do Onça
Fonte: (BELO HORIZONTE, 2012)
Desde o princípio da construção da cidade, a existência das águas
representou uma dificuldade no traçado das ruas. Faltou concordância na prancheta
dos arquitetos e dos engenheiros civis e sanitaristas, como aponta um relatório da
Prefeitura de Belo Horizonte:
A comissão de construção da Capital, em 1894, optou pelo projeto que continha um traçado geométrico, recusando a proposta do engenheiro Saturnino de Brito, que privilegiava o aspecto sanitário e baseava o traçado no sistema natural de escoamento das águas. (BELO HORIZONTE, 2008, p. 16).
O engenheiro sanitarista Saturnino de Brito dirigiu os projetos de
abastecimento de água potável durante o período de 1894 e 1895, priorizando a
hidrografia e o curso dos rios. Para Brito, os traçados geométricos das cidades, tão
enaltecidos esteticamente à época, deveriam adaptar-se às características naturais,
históricas e culturais de cada sítio. Deveria ser feita a proteção de bosques e
florestas nas bordas das cidades para escoamentos pluviais e estabilização de
terrenos íngremes para controle de erosão e de deslizamento de encostas.28
28
“[...] ele ressalta a adequação do projeto de Belo Horizonte e avalia positivamente o traçado moderno proposto para a nova capital, as dimensões das ruas e das áreas destinadas aos parques e jardins. Entretanto, considera que o traçado geométrico proposto (e finamente implantado) para a cidade é muito rígido por referência à rede hidrográfica natural do sítio, pequenos cursos d‟água
66
A despeito da divergência que afastou Saturnino de Brito, o projeto
geométrico de cidade e sua instalação se deram. Se, em um primeiro momento essa
relação com rios e córregos era necessária como condição de vida e bem estar, o
crescimento da cidade tornou a convivência controversa, seja por parte dos
administradores ou por parte dos moradores.
Os impactos hidrológicos e ambientais advindos do crescimento urbano
alteraram a funcionalidade dos rios na paisagem da cidade. Águas servidas e não
tratadas, esgoto e lixo jogados nos córregos, leitos retificados em canais de concreto
e construções nas áreas de cheias dos rios – impermeabilização e interferências nas
bacias – tiveram como consequência alagamentos e enchentes. Eram os efeitos do
crescimento da futura metrópole e, sob o aspecto natural, a ruptura entre o traçado
geométrico e a topografia. Assim resume Borsagli: “O erro começou aí: construir
uma cidade quadriculada sobre o relevo acidentado [...] não levando em conta os
cursos d‟água e acreditando que a natureza se submete ao ser humano, uma
utopia racionalista.” (BORSAGLI, 2014, p. 262).
Borsagli (2014) aponta que em 1900 um violento temporal faz as primeiras
vitimas na nova capital. Fato similar seria recorrente nas décadas seguintes. Em
1915, ocorre a primeira grande enchente. Um relatório da Prefeitura datado de 1919
ressaltava que “[...] dada a topografia, os córregos que atravessam a capital, é de
ver-se pelas grandes chuvas o distúrbio que, de par com as enxurradas, as águas
pluviais causam nas vias públicas e casas particulares.” (FUNDAÇÃO JOÃO
PINHEIRO, 1997b). Como solução, os rios foram, então, paulatinamente, retificados
e canalizados para conduzir os esgotos para fora da cidade. A foto (Figura 15 em
data inexata dos anos 1920) apresenta trecho em canalização do Córrego do Leitão.
que drenam vales estreitos em meio a uma topografia variada caracterizada por colinas e terrenos íngremes. Ele ilustra suas críticas por meio de um traçado viário alternativo que valoriza a adaptação da geometria das ruas de forma a incorporar os cursos d‟água ao plano urbano segundo a orientação dos estreitos fundos de vale.” (NASCIMENTO; BERTRAND-KRAJEWSKI; BRITTO, 2013, p. 117).
67
Figura 15 - Canalização do córrego do Leitão no trecho de encontro com o ribeirão Arrudas
Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto
Dado a importância da canalização, fato fundamental para o urbanismo e
presente em ações governamentais, há um verbete no Dicionário Temático Abílio
Barreto. O termo aparece como elemento propulsor de saúde, bem estar e
embelezamento para a capital naquele início de século. Nas anotações históricas,
em 1924, a canalização do Leitão foi determinada por três motivos, entre outros:
[...] o econômico, pelo aproveitamento dos quarteirões atravessados pelo córrego; o de ordem estética, para embelezamento das ruas por ele percorridas; o de ordem higiênica, para saneamento da região. Paralelamente se fez o coletor dos exgotos. (MUSEU HISTÓRICO ABÍLIO BARRETO, 1894-1946).
Figura 16 - Canalização do Córrego do Leitão, Rua São Paulo em 1928
Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto
68
Em 1924 são iniciadas as obras de retificação e canalização na bacia do
ribeirão Arrudas. Uma grande enchente, em 1930, é potencializada exatamente
pelas obras realizadas na década anterior. E, em fevereiro de 1948, ocorre nova
tragédia: a maior enchente registrada até então e a adoção de solução provisória
com a construção de barragens de retenção. Entre as décadas de 1920 e 1950, os
belorizontinos têm uma cidade atravessada por córregos com águas claras e com
vida aquática, porém não livres de poluição. Enchentes, alagamentos,
transbordamento de córregos e deslizamento de encostas eram elementos de
imprevisibilidade que não combinavam com uma cidade que tinha a pretensão de
ser uma das mais modernas e bonitas do país (BAHIA, 2007).
Entre 1950 e 1970, Belo Horizonte teve a maior taxa de crescimento do país.
Pulou de uma população de 352.000 habitantes em 1950 para 1.250.030 em 1970.
E, especialmente, o cenário dos anos 1950 e 1960 apontava para o crescimento
rápido e desordenado, com reflexos estruturais, como ilustra Mesquita: “a
infraestrutura da cidade não acompanhou o aumento da população provocando uma
crise nos serviços de saneamento básico.” (MESQUITA, 2010, p. 4). Os córregos e
cursos d´água, que cortavam sinuosamente a paisagem urbana, eram uma ameaça
e havia planos para que fosse fechados.29 Seria uma solução de saneamento e
higiene, como propagada pelos urbanistas desde o projeto da nova capital de Aarão
Reis às ações recorrentes de canalização e, ainda – e talvez mais importante para a
fase de desenvolvimento – dava respostas imediatas para a mobilidade e o
ordenamento.
A preocupação com a mobilidade para veículos de todos os portes, que eram
sinônimos de desenvolvimento no período, já se prenunciava na década de 1950. E,
pouco depois, em 1963, uma decisão do governo municipal referendou aquele
contexto, quando as árvores que formavam a alameda natural na Avenida Afonso
Pena foram cortadas, para alargar a via para os carros. Conhecida como “cidade
jardim”, Belo Horizonte perdeu o apelido que a vinculava ao bem estar, e ganhou um
perfil rígido de cimento, asfalto e ferro, aliando-se com o crescimento urbano.
Júlia Portes, que nasceu e foi criada na casa de número 280 da Padre
Belchior onde abriga o Undió, relata que quando o Córrego do Leitão estava aberto,
29
O processo de canalização e capeamento dos córregos e ribeirões belo-horizontinos começou na década de 1960 e foi incrementada na década seguinte. No caso do Leitão, “permitiu a expansão e a integração urbana entre a região central e a região do Barro Preto e Calafate”, relata Borsagli (2014, p. 264). Ver (BELO HORIZONTE..., 1972).
69
era possível atravessar a rua Padre Belchior apenas em suas extremidades, pelas
Avenidas Amazonas e Augusto de Lima. “Eu me lembro de me pendurar no guarda
corpo para ver o rio correr”, ela se recorda. Na figura 17, a seguir, o sobrado da
família Portes.
Figura 17 - Em imagem de 1966, o Córrego do Leitão está com curso aparente (ao fundo, a casa de no. 280 pertencente à família Portes)
Fonte: (INSTITUTO ÚNDIO, 2012)
Na década de 1960, os rios ainda correm a céu aberto na cidade, mas sem
sistema separador de esgoto, o que evidencia a poluição e os problemas sanitários.
Porém, a perspectiva de haver cursos d‟água limpos, revitalizados e integrados à
paisagem não era uma solução. Portanto, se melhorias nas condições sanitárias
eram a justificativa, de forma cabal os capeamentos iam criando espaço para o
asfalto e a consequente mobilidade motorizada (BORSAGLI, 2014; MESQUITA,
2010). No novo contexto de adensamento urbano, os rios vão sendo cobertos.
A cidade vivia um período de grandes obras viárias e, nesse processo, outros
córregos foram fechados. A administração municipal sob gestão do prefeito
nomeado – e não eleito – Oswaldo Pieruccetti, implanta o projeto “Nova BH 66”, uma
parceria com a Escola de Arquitetura da UFMG, enfocando o desenvolvimento
rodoviário, tendo o carro como símbolo, privilegiando asfalto e o concreto.
Mesquita (2010) destaca o momento crítico na década de 1960 com a
poluição dos rios pelo despejo de esgotos durante quase seis décadas. Para ilustrar,
cita caso relatado por um leitor em carta enviada ao jornal Diário de Minas
70
evidenciando a situação do Córrego do Leitão. Morador da confluência entre a Rua
São Paulo e a Avenida Bias Fortes, pedia o soterramento do córrego que
transbordava a cada chuva inundando as ruas e os passeios com lama. “Os rios
passaram a ser “alienígenas” dentro de Belo Horizonte, pois estariam tomando um
grande espaço que poderia ser dos automóveis. [...] geram feridas abertas que
atravancavam o crescimento da capital.” (MESQUITA, 2010, p. 11).
Paulatinamente, entre 1966 e 1972, são efetuadas as obras de alargamento e
posterior cobertura do Córrego do Leitão. De 1970 a 1972, o córrego tem seu canal
alargado, aprofundado e coberto na zona urbana planejada entre a Avenida do
Contorno e sua foz no ribeirão Arrudas, como revela Borsagli (2014) e há
repercussões positivas entre os habitantes da cidade.
Figura 18 - Bacia do Córrego do Leitão e seu trajeto na cidade
Fonte: (CANALIZAÇÃO..., 2020)
No esforço de legitimação das obras em detrimento da paisagem natural, a
iniciativa pública faz propaganda institucional sobre os benefícios do tamponamento
do córrego. Para reforçar as vantagens da obra e apresentar os prejuízos que o
curso d‟água causa, um vídeo (QRCode 1) apresenta o Leitão como um vilão. Na
narração da peça de propaganda oficial que está nos arquivos do Instituto Moreira
Sales, disponível no Youtube, há o seguinte texto:
71
Era uma vez um leitão que parecia manso, mas era bravo e sujo – muito sujo. Quando enchia, entrava até na casa dos outros. Às vezes, enfurecia e então, não respeitava nem os outros animais. O córrego do Leitão não respeitava nada nem ninguém. Hoje o Leitão está por baixo dessa nova e ampla avenida, que vai ajudar a resolver os nossos problemas de trânsito. Cenas de enchentes, você nunca mais verá. (CENTRO DE REFERÊNCIA AUDIOVISUAL, 1972)
Nas imagens do vídeo que precedem aquelas do trecho asfaltado, há ruas
enlameadas, áreas alagadas e casas destruídas. A narrativa audiovisual apresenta o
córrego como um inimigo público.
Figura 19 - QRCode 1 – Córrego do Leitão e enchentes
Na sequência das obras, com a pavimentação pronta, outro vídeo (CANAL
MIS BH, 2018), (QRCode 2) este disponível no canal do Instituto Moreira Sales no
Youtube, apresenta a cidade limpa e organizada.
Figura 20 - QRCode 2 – Inauguração das obras de cobertura do Córrego do Leitão
Nas imagens, vemos faixas que se referem às vantagens da empreitada.
“Hoje o Leitão está por baixo”, anuncia uma faixa em tecido pendurada de lado a
lado da rua asfaltada, em mensagem de duplo sentido, evidenciando que realmente
72
o córrego foi capeado, mas fazendo alusão à pretensa “queda de braço” em que,
como numa disputa, o Leitão foi derrotado. Outra faixa promete que “Este córrego
não encherá mais”. No texto gravado sobre as imagens do vídeo, chama atenção a
mensagem de apoio à vida motorizada:
Hoje o Leitão está por baixo desta nova e ampla avenida, uma verdadeira passarela negra que vai ajudar a resolver nossos problemas de trânsito. Cenas de enchentes você nunca mais verá; desta própria obra, com o tempo, você se esquecerá. Mas não deve esquecer para o bem da cidade que o dinheiro dos impostos está sendo empregado em realizações como a canalização do Leitão. (CANAL MIS BH, 2018).
A narração se encerra acenando para um futuro beneplácito e progressista
simbolizado pelas obras: “Outras virão, maiores ainda para fazer de BH uma cidade
para nós e nossos filhos”. O tom e o vulto das obras que privilegiavam a
funcionalidade da cidade estavam na visibilidade das ações da municipalidade. Esta
foi inaugurada no dia 07 de janeiro de 1970.
Figura 21 - Obras de cobertura do Córrego do Leitão, trecho da Rua São Paulo, 1971
Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto
73
Com grandes investimentos públicos, é possível presenciar em Belo
Horizonte o desaparecimento dos córregos e rios, tendo a pavimentação como
camuflagem da poluição e degradação das águas. O desenvolvimento metropolitano
que priorizou o tráfego de veículos ao encerrar as águas em leitos de concreto e,
posteriormente, escondê-las sob asfalto, provou ser uma política equivocada. Após
fenômenos naturais de chuvas torrenciais ou contínuas, as águas continuaram
transbordando, provocando lastimáveis alagamentos e enchentes pela cidade, como
registrados na década de 1980. Houve uma grande enchente em 1981 e em 1983 foi
registrado o maior transbordamento do ribeirão Arrudas, causando a morte de quase
cem pessoas. Assim, como uma reverberação do passado, o século 20 seguiu
deixando vítimas nos cursos dos rios, ainda que encobertos30.
Em 2004, foi lançado pela Prefeitura o “Programa de Requalificação da Área
Central Centro Vivo”, que acabou por afetar a Rua Padre Belchior. O seu uso como
corredor de trânsito foi priorizado, com ênfase para o transporte coletivo, numa
tentativa de melhoria da oferta por mobilidade da cidade. Porém, se as obras
afetaram positivamente a rotina de quem precisa se locomover de um bairro ao
Centro, afetaram negativamente a vida de quem tem comércio ou presta serviço.
Diversos depoimentos durante a pesquisa confirmam a queda de movimento de
clientes. Em muitos casos, as obras reconfiguraram relações e alguns negócios
foram fechados e outros, para evitar mais prejuízos, diminuíram equipes de trabalho
e até espaço físico.
À época de conclusão desta tese, em janeiro de 2020, as chuvas torrenciais
em Belo Horizonte foram notícia nacional. O Instituto Nacional de Meteorologia
noticiou um volume pluviométrico recorde para o período de 923,3 milímetros,
superior ao de 1985, que era de 850,3 milímetros. Na noite do dia 28 daquele mês, a
região Centro-Sul foi inundada e a força e o volume das águas provocaram grande
30 Desde o programa “Nova BH-66”, é nítida a opção pelo escoamento de veículos, com uma
necessária reordenação do trânsito. Mais tarde, novas medidas são tomadas, dentre elas as pistas de rolamento exclusivas para o transporte coletivo e a proibição de estacionamento ao longo das vias públicas de muitas ruas e avenidas da área central. “No caso do centro, já em 1970, predominava a homogeneização da paisagem urbana e o aparecimento de novas centralidades fez com que a região fosse abandonada pelos estratos médios e altos, se tornando cada vez mais um local de trânsito intenso de veículos e pedestres”, relatam Jayme e Trevisan (2012, p. 262).
74
destruição de vias públicas.31 O Córrego do Leitão não apenas transbordou como
teve a vazão aumentada desde sua nascente até o Centro, provocando enchente
que se estendeu até o ribeirão Arrudas, passando pela Rua Padre Belchior e
arredores do Mercado Central. Ruas foram literalmente transformadas em rios
No dia seguinte, os sites de notícias e telejornais noticiavam as
consequências do temporal, com notáveis estragos e perdas. Móveis e utensílios de
dezenas de estabelecimentos foram postos no passeio para ser feita a limpeza da
parte interna. “Já vi muitas enchentes em meus 35 anos de comércio aqui, mas
nunca houve um transbordamento que invadisse minha loja. Ninguém pode
esquecer que existe um rio aqui embaixo; pra dizer a verdade, essa rua é um rio”,
queixou-se o proprietário da loja de tintas. O Undió vivenciou prejuízos: “Perdemos o
telhado”, relatou Thereza lembrando que a casa foi completamente reformada em
2014. Os efeitos da lama, que adentraram na casa (Figura 22) estragaram o sinteco
do piso em taco de madeira no nível térreo (Figura 23).
Figura 22 - Área externa após limpeza e calçada ainda enlameada
Figura 23 - Área interna com tacos sujos de lama
Fonte: Instagram do Undió (@undio) Fonte: Instagram do Undió (@undio)
31
“Somente nas três primeiras horas da noite, de 19 ás 22h10, a capital mineira bateu os 117,4 milímetros, o que equivale a mais da metade do esperado para todo o mês, que era de 329,1 milímetros”, noticiou o jornal Estado de Minas no dia seguinte à chuva intensa. (EMILIANA, 2020).
75
Figura 24 - QRCode 3 – Inundação no Centro/Mercado Central
Figura 25 - QRCode 4 – Avenida Prudente de Morais alagada
3.3 Sobre os rios e o leito do Leitão
A Rua Padre Belchior tem fatos a contar que se vinculam com a história do
córrego escondido. A calçada daquela rua, por exemplo, se constitui como espaço
de resistência, algumas vezes.
Em um sábado de maio de 2013, uma instigação artística em formato gigante
de placa de rua colocada em uma esquina, anunciava uma obra que tinha o Córrego
do Leitão como alvo, ocorrência que foi narrada no item 3.1, neste capítulo. A
provocação, quase um manifesto, foi representada por uma placa de obra pública
que prometia, em letras maiúsculas, a renaturalização do Córrego do Leitão.
A ação provocou curiosidade em muitas pessoas que por ali passavam,
pedestres habituais, e inclusive em mim que, à época, ainda não estudava o Undió,
mas me deslocava para o centro da cidade para alguma tarefa rotineira. Surpresa
boa eu tive quando, anos depois, ao pesquisar a história, pude me lembrar de ter
testemunhado aquela placa exposta na rua. Ao recuperar a dinâmica do evento,
soube que um coletivo anônimo de artistas decidiu tirar da margem a discussão
sobre os rios invisíveis. Essa provocação de arte quase virou caso de polícia. Sem
assinatura que identificasse a autoria, a Prefeitura queria multar os autores e, por
76
não saber de quem se tratavam, esteve em vias de instaurar um inquérito criminal
(Figura 26).
Figura 26 - Placa que anunciava a renaturalização do Córrego do Leitão
Fonte: (BRAGA, 2013)
O site do Projeto Manuelzão, em texto publicado em 06 de junho de 2013,
explica o ocorrido:
Na manhã do dia 25 de maio, uma placa inusitada foi encontrada na Rua Padre Belchior, perto do Mercado Central, no centro de Belo Horizonte. A placa, que se assemelhava muito às chapas metálicas de obras oficiais, informava renaturalização do Córrego do Leitão. Encoberto há 42 anos, o córrego corria pelo centro, mas foi canalizado para acabar com o mau cheiro e dar lugar aos carros e ao asfalto. A placa trazia as marcas da Caixa, Governo Federal e Ministérios da Pesca e do Meio Ambiente. Segundo ela, a obra, orçada em R$ 6 milhões, seria uma parceria entre a Prefeitura e o Governo Federal e ficaria pronta em maio do ano que vem. Contudo, a obra é fictícia e não consta em nenhum órgão de comunicação dos governos federal e municipal. (PROJETO MANUELZÃO, 2013).
Na placa, uma imagem em layout caracterizava o entorno do córrego como
espaço de convívio e lazer. Apresentava pessoas caminhando às margens de um rio
aberto, animais, ciclistas, estrutura de escadas de acesso, bancos e vegetação ao
longo do curso d‟água. A placa apócrifa foi instalada na esquina da Rua Padre
Belchior com Rua São Paulo, com dimensões de 3,50 x 2,50 metros. Foi instalada
77
no sábado, dia 25 de maio, e removida pela Prefeitura na segunda-feira, dia 27. O
assunto quase se transformou em um inquérito policial, como noticiou o Jornal Hoje
em Dia em 28/05/2013 (“Brincadeira com placa fictícia pode virar caso de polícia”,
assinada por Ernesto Braga), a polêmica foi deixada de lado com a retirada da
placa.
A placa que indicava ação fictícia do poder municipal sugeria obras maiores
de “Renaturalização dos cursos d´água urbanos” que envolve a recuperação dos
rios e córregos para regenerar e recompor a fauna e a flora natural. De acordo com
informações do Projeto Manuelzão (2013), a revitalização seria um passo anterior à
renaturalização, processo complexo e alto grau de improbabilidade. A revitalização é
a forma mais eficiente de integrar os cursos d‟água às cidades, trazendo o convívio
da população com o rio, incluindo atividades como pescar e nadar. Portanto, a
provocação demonstrou seu arrojo, talvez utópico, de ir além no imaginário do que
seria factível.
Em artigo publicado na revista sobre espaços públicos Piseagrama32, um
texto sem autoria, assinado pela própria revista (PISEAGRAMA, 2015), o título
apresenta de início a proposição de resistência e reflexão provocativa: “Nem
pegadinha nem arte: política”. O texto discute que a placa, “um dispositivo
desacreditado e banalizado no cotidiano urbano”, ganhou relevância e visibilidade.
“Se transformou em uma espécie de tela em alta definição, capturando a atenção de
uma pequena e instantânea multidão para a transmissão de um futuro improvável e
agora compartilhável”. E, ao questionar a inoperância do estado em produzir cidades
saudáveis com esgoto tratado, lixo reciclado e córregos limpos, afirma que o ato
anônimo injeta imaginação na agenda oficial, carente de ações que priorizem as
pessoas e que teria sido “na verdade uma generosa contribuição cidadã”.
O conteúdo do texto remete ao fato de que naquela prosaica esquina do
centro da cidade emergiu um micro-parlamento popular e informal em que cada um
dava sua opinião. Durante o final de semana em que a placa ostentou sua obra
utópica, um assunto esquecido, ressurgiu como tema urgente: o córrego do Leitão.
As “poucas horas de confusão” alimentaram um debate democrático sobre o futuro
das cidades, como defende o texto.
32
“PISEAGRAMA é uma plataforma editorial dedicada aos espaços públicos – existentes, urgentes e imaginários – e além da revista semestral e sem fins lucrativos, realiza ações em torno de questões de interesse público como debates, micro-experimentos urbanísticos, oficinas, campanhas e publicação de livros.” (PISEAGRAMA, 2019).
78
Para o Undió, no entanto, aconteceu uma reviravolta inesperada motivada
pela placa. Thereza recorda que o fato irritou os carreteiros e deixou-os agressivos,
alterando o relacionamento amistoso que havia. Eles consideraram que a ação da
placa era do Undió e que, portanto, Thereza estava envolvida em uma ação que os
prejudicaria mais à frente:
Depois da placa, que ficou apenas um final de semana, o clima mudou. Foi mesmo um divisor de águas! Por não termos assumido a autoria, eles se sentiram traídos porque, em alguns meses, começou o Centro Vivo, projeto de reformulação de trânsito, uma obra grande que chegou violenta e quebrou tudo: asfalto, calçada... e eles foram retirados do ponto tradicional de parada... Tiveram dificuldades para seguirem com o trabalho. Falavam da “fraude do Córrego do Leitão”. Ficaram hostis... Achavam que tínhamos relação e responsabilidade. Os que ficaram mais hostis foram aqueles que participaram do “Nessa rua tem carreto”, um café que organizamos em cima dos carretos com a grande participação deles, resgatando a ocupação, porque o negócio do carreto passa de pai para filho e antes eram os pais deles. Foram eles os que ficaram mais distantes e raivosos. Foi só tempos depois, quando as obras terminaram e eles puderam voltar a estacionar, inclusive em frente ao Undió, que nosso relacionamento foi retomado.
(Thereza Portes).33
Foi com carga de ativismo, tanto ambiental quanto artístico, que o artista
Wilson de Avellar apresentou a performance “Eu Rio” em outubro de 2010, na 1ª
temporada do Nessa Rua Tem um Rio. O protagonista era o Córrego do Leitão.
Avellar se lançou ao chão e simulou um nado a seco, serpenteando seu corpo em
pleno asfalto entre a Praça Marília de Dirceu e a Rua Padre Belchior – por onde
correm as águas do córrego –, seguindo a guia do meio fio. Cerca de 12 quarteirões
separam os dois pontos.
Figura 27 - Eu Rio – ação-intervenção
33
Entrevista concedida em 29 de março de 2018.
79
Fonte: (AVELLAR, 2010)
Para o artista, era essencial chamar a atenção dos transeuntes para um fato
que não pode evanescer: o rio está vivo ali. “Foi o ponto de partida para a minha
criação esse grito, um libelo mesmo, que pudesse trazer a consciência das pessoas
para o valor, a importância das águas.” (Wilson de Avellar).34 Ao parar em vários
bueiros e nas gelhas incrustadas no asfalto, colava o ouvido naquelas ferragens
para ter a certeza de ouvir o rio correndo. Deixou explícita a existência do Leitão que
a pavimentação das ruas esconde. Destaco aqui o detalhe de que aquela era a obra
inaugural do projeto, em sua primeira edição, e que apontava para a temática
premente do uso da cidade e dos corpos que estão no espaço urbano, como chama
atenção o próprio artista:
Fiz a escolha de ter a rua como espaço de apresentação e de escuta. Vivência da rua pelo que está por emergir como um ressalto, do que está suspenso. E o corpo é colocado na rua, que é um lugar violento, sem espaço para o humano e onde apenas a máquina prevalece. Existe a possibilidade da cartografia de cada um. Há muita responsabilidade, mas outra ordem de responsabilidade da audiência. É uma ação de toponímia, em que quero estudar o sentido e interpretação. (Wilson de Avellar).
32
Ao longo da ação artística, munido de cotoveleiras e joelheiras e de um
barquinho de papel, o artista discutia a transitoriedade e a fragilidade humana frente
ao rio. Estar presente àquela performance teve em mim um efeito de estranhamento.
Eu entendia a força do gesto envolvido na ação, mas também me preocupava com a
34
Entrevista realizada em 11 de maio de 2019.
80
segurança física dele. Em torno dele no percurso havia algumas pessoas, talvez
curiosas, talvez querendo ajudar aquele homem jogado ao chão. Mas, na chegada
ao Undió, Avellar demonstrava muito contentamento, apesar do nítido cansaço
corporal. Acredito que a ação tenha provocado as reações díspares na audiência, ao
atuar na falta de consenso que a “partilha do sensível” pressupõe, e, como
performance, a intervenção dota o momento de dramaturgia, que a vida social
comporta.
Na proposição política da sua atuação, Avellar menciona que
[...] tenho pensado qual a relação arte e vida... é questão que pesquiso para tentar entender a realidade, num mergulho da experiência, numa construção de conhecimento. Estudo da fronteira; noção de deslocamento; encontro e desencontro. Evolução de um espaço ao outro – nascente e desaguar (que foi o que fiz aqui na performance, comenta numa observação à sua própria fala). O trabalho de performance privilegia a rua e isto é muito revigorante porque faz provocações. No caso, trabalhei a potência do rio em seu sentido aquoso... ser água, ser rio. A proposta surge muito da experiência com o rio soterrado, velado. (Wilson de Avellar).
32
Para resgatar lembranças e recordar vivências das pessoas na sua relação
com os rios e córregos da capital, o Projeto Manuelzão/UFMG organizou em 2017
uma mesa redonda durante a exposição “À margem” sobre a bacia do Rio das
Velhas. Na ocasião, Thereza Portes narrou suas experiências especificamente com
o Córrego do Leitão: “São muitas as minhas lembranças do local; meus familiares se
reunindo na beira do córrego e minha mãe recebendo amigos. Até brincávamos com
a divisão do córrego, pois tínhamos a rua do lado de lá e de cá do rio.” (PROJETO
MANUELZÃO, 2017).
As recordações da artista e gestora, sob o ponto de vista subjetivo, podem ser
também a memória de outros, memórias coletivas sobre o espaço urbano, tecidas
por fragmentos de memórias individuais (ROCHA; ECKERT, 2013). E, em relação ao
tempo, que acessa esta memória, afirmam: “o patrimônio etnológico de cidades se
transforma num espaço afetivo e poético.” (ROCHA; ECKERT, 2013, p. 23). É a
perspectiva do vivido, num panorama temporal, capaz de acionar sentidos.
Thereza Portes afirma que investir em políticas que revitalizem os rios é
acreditar na vida. “É preciso mudar o rumo dessa política para que nossas crianças
possam também ter um rio ou um córrego para brincar, conhecer e aprender com
ele.” (PROJETO MANUELZÃO, 2017). Thereza reforça a proposta do projeto do
instituto que criou, o Undió, que “trabalha justamente isso, vivenciar e reverenciar
81
nossas águas”, relata . E, dessa forma, nas ações que organiza na rua, convoca a
população para a participação em movimentos em favor da qualidade de vida
urbana. Sob o olhar do impacto em termos de uma discussão sobre o valor das
águas, as intervenções do Undió ampliam e realçam as reflexões sobre a metrópole.
Numa alusão às grandes transfigurações urbanísticas que se anunciaram
desde 1970 e que seguiram na década de 1990, período profícuo em acenos à
reforma urbana, Barreira destaca a necessidade do resgate do tempo passado para
uma dinâmica harmônica hoje. “A perspectiva de ressignificar e criar novos usos
para o espaço urbano expressa a procura de uma relação mais orgânica entre
passado e presente.” (BARREIRA, 2003, p. 321). Assim, em essência, por
intermédio das intervenções de arte, Nessa Rua Tem um Rio inclui na prática o
direito à cidade, democraticamente inerente às pessoas que vivem nela e àquelas
que visitam ou esporadicamente circulam por ela.
82
4 CAMINHAR E (RE)CONHECER: PASSEIOS ETNOGRÁFICOS PELA RUA
Tornar-se „um‟ com os ritmos urbanos é perder-se no meio da multidão, se deixar possuir por alguma esquina, fundir-se nos encontros fortuitos, mas é também localizar-se nas conversas rápidas dos habitantes locais, registrar piscadelas descompromissadas dos passantes, rabiscar apressadamente um desenho destas experiências no seu bloco de notas, „bater‟ algumas fotos, gravar algumas cenas „estando lá‟. Desenhos, croquis, anotações, fotos, vídeos etc. (ECKERT; ROCHA, 2003, p. 4)
Pesquisar a própria realidade me faz caminhar sobre uma linha tênue que
abala as convicções de uma jornalista que precisa da imparcialidade como pedra de
toque. No momento da pesquisa, o fazer antropológico tem que realçar. Mas me
envolvo em indagações. O conhecimento prévio até que ponto pode ser imparcial?
Ou ele seria essencialmente parcial? Estranhar o conhecido (VELHO, 2003) seria
possível? O processo de ver, ouvir e escrever (OLIVEIRA, 1996), a pesquisa e a
posterior escrita etnográfica, se alinha ao sinestésico. Escrever se recheia de
experiências auditivas, táteis, olfativas e visuais que suscitam insights (INGOLD,
2008) e é inevitável incluir o sentir nesta produção escrita. E, retomando um
pensamento weberiano, o pesquisador é um produtor de conhecimento, mas, é um
cidadão.
Às percepções sensoriais soma-se uma imersão na minha própria vida, num
resgate do meu tempo de moradora daquele trecho de cidade. Esclareço que por
oito anos (entre 1982 a 1990), morei naquelas imediações, mais exatamente a dois
quarteirões da rua que decidi estudar. Minha experiência, portanto, está presente ali
no trabalho etnográfico (PEIRANO, 2008): tempo, espaço e memória são
deslocamentos concretos e também simbólicos. É relevante, ainda, para a
compreensão do meu envolvimento com o objeto, o fato que chamei atenção na
introdução deste texto: eu ter sido professora do curso de Multiplicadores do Projeto
Undió em um módulo de dois meses sobre cultura e arte em 2006, que se
desdobraria no projeto Nessa Rua Tem um Rio.
Na visita que faço à rua numa manhã de domingo35, em que tudo está quieto
e sem tantos ruídos, sentimentos e lembranças afloram. O “fato etnográfico” está em
mim, além das reações que anoto no caderno que levo nas mãos. Registro em
palavras que eu sinto falta até do que não gostava e esse sentimento contraditório
35
Comecei a ir a campo em 2016, no início do curso de Doutorado em Ciências Sociais. Sem pretensões, inicialmente, fui sistematizando minhas visitas. Minha observação participante ia ganhando corpo e fôlego com o tempo.
83
traz ainda mais emoção para o meu deambular pela rua e arredores. Saudade do
alto-falante do açougue que desde cedo de manhã anunciava as ofertas. Saudade
do cheiro de pequi, enjoativo e “grudento”. Saudade da correria para não perder o
horário do ônibus para o trabalho. Tudo parece tranqüilo em confronto às memórias
que tenho da vocação comercial que aquele lugar enseja.
Aquela manhã que me suscitou recordações afetivas sinestésicas foi uma das
incontáveis oportunidades de “estar lá”. Estando lá, gravei na mente, numa foto, num
áudio, num vídeo ou mesmo em rabiscos de um caderno algumas ocorrências e
impressões, um comentário ou outro que ouvi. Fiz longos e frequentes
deslocamentos até a Rua Padre Belchior, ora pela manhã, ora à tarde e, em
algumas ocasiões, à noite, oportunidade em que freqüentava os bares.
Para entender a pulsação da rua, visitei-a em dias de semana e ainda aos
sábados e domingos. A chegada ao campo sempre se deu sem “cena montada”, o
que foi valioso para a observação, que me proporcionou a compreensão das
relações e práticas sociais. E assim, fui me embrenhando nas narrativas da rua,
seus ocupantes temporários e seus movimentos diversos. Fácil identificar um dia de
semana, uma manhã de domingo ou um fim de dia comercial.
Escolhi traçar trajetos e meios de mobilidade diferentes como forma de
apreciar o caminho e a chegada ao campo, aliada à possibilidade de estranhar o
conhecido (VELHO, 2003). Algumas vezes, caminhei; outras vezes, optei por fazer o
trajeto em transporte coletivo; em poucas oportunidades escolhi ir de carro
particular, o que se provava sempre um problema, devido à dificuldade de
estacionar. Em qualquer das formas, os poucos quilômetros que me separavam
daquela área (exatos 3.300 metros de distância da minha residência) iam se
transformando à medida que me aproximava da rua. Transições claras de uma área
residencial para outra comercial: adensamento de lojas e de anúncios de
prestadores de serviços, outdoors, concentração de sinais de trânsito, aumento no
volume de veículos e de pessoas. Profusão de cores e barulhos quão mais próxima
eu ficava do Centro.
Sigo a pé pelas calçadas da Rua Padre Belchior e me fixo na observação da
parte edificada. Em sua maioria, são construções baixas, alguns prédios (com até
três andares) e um único sobrado. Me atento às condições de conservação dos
prédios, dos estabelecimentos comerciais e das calçadas. Algumas edificações têm
fachadas descascadas em contraponto a outras que aparentam tinta recente; há
84
alvenarias em condições desgastadas por rachaduras; há faixas de anúncios em
tecido com letras quase ilegíveis devido ao pó de asfalto e à fumaça. As promoções
de combos café e pão de queijo são anunciadas em placas escritas em giz nas
lanchonetes e as ofertas formam um varal em papel no açougue.
Figura 28 - Fachada do açougue
Fonte: Foto da autora, 2019
Nos pisos das calçadas, alguns trechos em pedra portuguesa em mescla
preto e branco ainda resistem ao tempo. Aquelas pedras – as mesmas que
eternizam as curvas da calçada da praia de Copacabana – se contrastam com
pedaços de cimento irregulares, desníveis, buracos e alguns trechos com piso tátil
(em alto-relevo padronizado) para orientar e auxiliar a locomoção de deficientes
visuais. Os contrastes descritos me chamam atenção e, na minha percepção,
demonstram graus diferentes de cuidado; e, em certa medida, de envolvimento com
a rua.
85
Figura 29 - Piso de asfalto e calçadas com coberturas portuguesa e tátil
Fonte: Foto da autora, 2018
A área física da Rua Padre Belchior é arborizada e larga, mas é curta em
extensão, conformada em apenas um quarteirão e meio. Em sua funcionalidade
primordial, é uma rua de passagem, que dá acesso a corredores de trânsito. As três
pistas do asfalto se dividem em estacionamento para carretas de aluguel –
caminhonetes e carretinhas que têm estacionamento exclusivo naquele trecho –,
pista de rolamento para veículos comuns e faixa exclusiva de ônibus, com linha azul
pintada no chão pavimentado. No ritmo normal do horário comercial, compartilha os
diversificados barulhos do trânsito de ônibus, carretas, veículos menores e o
constante ir e vir de pedestres.
Figura 30 - Trecho de rua em frente ao Undió
Fonte: Foto da autora, 2018
86
Figura 31 - Detalhe da rua
Fonte: Foto da autora, 2018
O motorista de ônibus buzina e acena para o colega que deixou o turno de
serviço e está ainda uniformizado, de pé, tomando água na lanchonete. Em época
de manga ubá, o aroma da fruta (um tipo específico e muito perfumado), que é
oferecida em carrinhos de mão pelos vendedores, se mistura ao cheiro de fumaça
dos motores. A fuligem se acumula no banco do abrigo de ônibus. E, no bazar de
produtos usados, diversas mercadorias estão ao alcance da mão do pedestre
interessado em uma televisão ou um par de botas. Café quentinho na lanchonete
oferece o calor e o sabor da bebida e se mistura a outros aromas, cheiros, cores,
ruídos diversos. Polissêmica e polifônica, a rua se apresenta (CANEVACCI, 1997).
Chego à Rua Padre Belchior, numa manhã de sábado, e vejo o burro sem
rabo36 que pede passagem ao carro que parou em fila dupla para combinar um
carreto. Carlos, o jovem de 25 anos que recolhe recicláveis urbanos há quatro anos,
bate numa garrafa de vidro com um bastão de metal enquanto grita, tentando vencer
o ruído da rua. Tenta chamar a atenção daquele motorista que parou
inadvertidamente na sua rota de passagem. Em pouco mais de dez metros, naquele
36
Termo utilizado nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro que se refere aos coletores de detritos e que significa: “1. Carreta de duas rodas que se puxa por dois tirantes dianteiros para transportar coisas diversa; 2. Indivíduo que puxa essa carreta.” (BURRO..., 2020).
87
trecho de asfalto e gente, uma “sociabilidade barulhenta” (ARANTES, 2000) se
constitui. Várias cenas se confundem e aumentam o barulho: a caminhonete de
carreto acelera, o ônibus que parou no ponto arranca e o vendedor de loteria grita a
sorte do número 75: “É pavão, vai dar pavão na cabeça!”.
Naquele sábado, aquele lugar é uma combinação dinâmica de ir e vir de
pessoas que transitam como pedestres, motoristas ou passageiros nos veículos. Ali,
na rua pavimentada por asfalto, veículos de todos os portes se deslocam: ônibus,
carretas, automóveis, burros sem rabo, bicicletas. Caleidoscópio urbano, todos os
fragmentos possíveis se apresentam. Aquele cenário poderia se combinar com o
ritmo do centro da cidade de uma metrópole qualquer do mundo globalizado. Alheia
a qualquer discussão, a árvore de ipê rosa vai singelamente colorindo de rosa o
asfalto da rua Padre Belchior, com suas flores, como se construísse um poema
urbano de flutuações e pousos.
O espaço formal e organizado das lojas divide espaço, atenção ou clientela
com o informal como alguns ambulantes e catadores de recicláveis. São os
fragmentos de produção de ocupação e renda possíveis. Para ilustrar as impressões
da diversidade que se somam no meu caderno de campo, ouço um sotaque que me
parece ser do Nordeste do Brasil. Um ambulante oferece redes de descanso vindas
do Recife, segundo ele, confirmando minha impressão auditiva. Apresenta os
produtos e fala da boa qualidade para uma cliente, que, em sua caminhada
apressada, se viu forçada a parar, impedida pelo carrinho de redes praticamente
atravessado na calçada.
Num final de tarde de sábado, poucos pedestres transitam pela região e
especialmente pela rua Padre Belchior, que tem as lojas fechadas. O bar da esquina
da Rua São Paulo com Avenida Augusto de Lima está aberto e muitos clientes estão
sentados nas cadeiras de plástico das dez mesas dispostas na calçada. Bebem
cerveja. Duas pessoas estão em pé no balcão, uma delas bebe uma bebida
transparente, que se assemelha à cachaça, enquanto a outra conversa com o
atendente que passa um pano para limpar a superfície onde os clientes apóiam os
cotovelos e o copo.
Na etnografia de rua, “o perfil de uma comunidade, indivíduo e/ou grupo se
configura aos poucos” (ECKERT; ROCHA, 2003, p. 6) e eu, estando lá, fui
construindo minhas colagens dos fragmentos de interação com a balconista da
lanchonete, com o vendedor de flores, com o barbeiro, com o vendedor de bilhetes
88
de loteria e com o dono do bar. Foi nessa, e dessa, trajetória múltipla que engendrei
e compreendi o exercício etnográfico. Durante a pesquisa de campo, percorri a rua
inúmeras vezes. Fiz descobertas e fui entendendo cada detalhe até que pudesse
entender a realidade aparente naquele pedaço de tecido urbano e saber de cor seus
marcos visuais.
A empatia, eu ia adquirindo com os relatos. “Ah, sei demais dessa rua, viu,
menina?! O rio passava aqui uns 50 anos atrás e tenho saudade”, reflete Teles,
antigo morador com quem me encontrei ocasionalmente numa manhã de sábado.
Golpe de sorte da pesquisa, que nos brinda com encontros inesperados. O exercício
que meu interlocutor faz torna compreensível uma geografia fantástica. Vogel, Mello
(2017, p. 46) para quem a rua “é um universo de múltiplos eventos e relações”,
chamam de geografia fantástica essa “cartografia” de objetos que tratam da
evocação da memória. Ocorre, afirmam, uma verdadeira leitura arqueológica urbana
por meio de relatos do que foi vivido. Os interlocutores trazem fatos que evidenciam,
em uma paisagem urbana imaginária, lugares que não mais existem, mas que
podem ser resgatados do esquecimento pela força da memória acessada por
antigos moradores.
Em tom de nostalgia, apontando para os estacionamentos privados dos dois
lados da rua ele comenta com veemência e sem esconder sua indignação: “É triste
pensar que morava gente ali e ali, em espaços que agora são lugares de parar
carros”. No exercício da memória, ele traz à luz suas recordações afetivas e os usos
que, para mim, são apenas intuídos. Aquela menção a ambientes que já foram
moradia me trouxe a recordação – e um registro (Figura 32) – de alguns sobrados
pixados com “Aqui podia morar gente” nas ruas do Pelourinho, em Salvador. Após
processo de reabilitação em 1985, organizada pela arquiteta Lina Bo Bardi, em 1991
começou o processo de revitalização, com foco no turismo, expulsando antigos
moradores e fechando casarios à espera da valorização imobiliária.37
37
Em 1985 o centro histórico de Salvador foi reconhecido pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade. Com a intenção de reverter à degradação física na qual os prédios estavam sumidos, a Prefeitura de Salvador contratou a arquiteta italiana Lina Bo Bardi para desenvolver um projeto de reabilitação que, na intenção original desta arquiteta, procurava preservar as relações sociais e a cultura ali existentes. Mas, após do ano 1991, o Governo do Estado da Bahia, a cargo do político Antônio Carlos Magalhães, deu inicio a um projeto de intervenção chamado "Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador" [...] com um processo de gentrificação que expulsou a grande maioria dos moradores de baixa renda e mudou a função dos imóveis voltando-os para o comércio e os serviços. (PRIMEIRA..., 2018).
89
Figura 32 - Muro pixado com a frase “Aqui podia morar gente”
Fonte: Foto da autora, 2015
Esse conjunto de reminiscências minhas e do meu interlocutor atuou como
pistas para pensar sobre a interdependência do esquecimento e da memória vivida
na cidade. “A cidade, a rua, o bairro nos habita como espaço vivido, como a
profundeza de um poema” (ECKERT; ROCHA, 2003, p. 6). As autoras analisam a
obra poética do escritor francês Georges Perec, que faz uma etnografia da rua em
que viveu.38 No documentário, por meio do resgate de fotos antigas, há uma
reafirmação de que não se pode reviver o passado sem o encadeamento em um
tema afetivo necessariamente presente.
Em uma das visitas ao Undió, vi uma foto em um álbum e aquele pedaço de
recordação fez com que a passagem do tempo, desta vez, fosse contada em
dimensão de décadas. Era uma imagem das casas da rua e em algumas, havia
varanda com jardineiras e cadeiras na calçada. Aquele registro me fez imaginar a
rua de antigamente, com vizinhança cordial e cadeiras colocadas na rua, para que
as pessoas pudessem desfrutar do ritmo da vida que passa. Confirmei com Júlia
Portes a imagem mental que fiz: ela me contou da saudade de um tempo de
38
Trata-se da Rua Vilin, que teve seus relatos e vivências transformado em filme. En remontant la rue Vilin 1992 (VOILAT, 2016).
90
compartilhamento da calçada em que se discutia atualidades e política, se trocava
receitas “e podíamos acompanhar o crescimento das crianças das famílias”.
As pessoas mais velhas vivenciaram a rua pacata, um espaço em que
exercitavam o lúdico nas conversas banais, na caminhada despretensiosa do footing
e nas brincadeiras. Para os mais jovens, as dinâmicas da rua apartam a
convivialidade. Será que a possibilidade de ir ao Centro os alegra ou os amedronta?
Será que conseguem aproveitar a vivência, localizar uma loja sem um mapa
eletrônico ou pedir informações para algum desconhecido?
Nos dias de hoje, as casas estão gradeadas, têm portão eletrônico e
interfone, que afastam os corpos. É um sintoma da insegurança. As ruas do Centro
se apresentam violentas. Poderia ter sido o grito de “pega ladrão” que ouvi vindo da
avenida ao lado? Mais um pedestre sem celular... Mas a consideração pessoal que
faço da violência não é causada pelo furto. É fruto da observação do trânsito intenso
de carros e seus motores barulhentos; os frágeis corpos de transeuntes que
avançam os sinais de pedestre competindo com os carros no asfalto e são
fustigados pelas buzinas. O ir e vir apressado, incessante e indistinto dos passantes
não me permite fitar nenhum rosto. O que era bucólico no passado registrado na
fotografia, agora foi substituído por uma certa indiferença, alimentada pela pressa.
Ao refletir sobre forma e conteúdo dos espaços, Vogel e Mello (2017) trazem
uma questão prática, resumida em uma máxima proposta por eles de que “a
etnografia de um espaço social não pode ser senão a etnografia de que se passa
nele”. Há particularidades propostas pela dinâmica social. A casa - que é sede do
Undió e que, antes, foi morada da família Portes -, em sua dimensão de ambiente de
acolhida de estranhos e de quem se interessa em entrar, subverte a máxima do
espaço privado, na leitura que faço a ocupação do Undió. Para além do previsto,
outras relações de apropriação diferenciadas estabelecidas naquela cena resultam
em diversos usos possíveis.
A rua, em sua funcionalidade, propõe o contato entre pessoas de várias
origens sociais como a interação do trabalhador informal que atua como vendedor
ambulante de óculos escuros com a estudante adolescente de classe média. Em pé
e do ambiente público, ela experimenta três modelos e compra um par no modelo
“lançado recentemente”, como diz o vendedor reforçando o apelo da novidade.
Há, porém, diversos acontecimentos que não pressupõem interação – ou, ao
menos, ela não é evidente. No fim do dia de trabalho, o relógio marca 18h20 de uma
91
quinta-feira, muitas pessoas aguardam o transporte coletivo. Desconhecidas entre
si, algumas aliviam o estresse da espera e o cansaço do dia ouvindo algum áudio no
celular, com os fones enfiados nas orelhas. Os fones parecem ser armadura contra
ruídos e interferências externas. No ponto de ônibus, aquela pequena multidão – 15,
talvez 20 pessoas – divide o espaço e o silêncio. Abstraio-me na observação. E me
torno mais uma pessoa do grupo, não me permitindo quebrar aquele silêncio
consentido e coletivo com alguma pergunta eventual para alguém.
Aquele momento me trouxe uma citação de Gabriel de Tarde, para quem “A
conversação é a mãe da polidez. Isso acontece mesmo quando a polidez consiste
em não conversar.” (TARDE, 1992, p. 141), trecho que faz muito sentido ali naquela
situação da rua. Em silêncio, há uma dimensão comunicativa, um grau de
“conversação”, que ocorre pelo comportamento reflexivo naquela experiência
urbana. Enquanto aguardam pelo transporte urbano, aquelas pessoas tão diferentes
se assemelham.
Prossigo nas minhas deambulações pela rua e nas investigações de
personagens que sempre têm histórias para contar. Eles oferecem um olhar sobre
as ações que estudo. Alguns interlocutores são fundamentais pelo tempo que estão
trabalhado na Padre Belchior, como é o caso de Breno, o paneleiro que trabalha
consertando panelas e fogões (Figura 33). Desde 1994 está ali e viu as
modificações da rua... “Calçada passava aqui bem perto da porta da loja. Agora, é
larga e os ônibus passam com muita frequência aqui”.
Ao contrário dos comerciantes do local, ele não reclama da perda de clientela
e explica: “Meu trabalho é muito específico! Tem gente que vem de longe; até de
Jequié, na Bahia”. É fácil comprovar o que ele diz, já que aguardo uma fila de três
clientes – dois foram buscar o serviço e outro levou uma panela para por o cabo –
antes de ele ter um tempo para dar atenção à pesquisadora. “Eu já te vi andando por
aqui algumas vezes. Mas o que é mesmo que você quer?”, me inquire. Explico sobre
a pesquisa e ele olha para mim e faz uma observação, certamente me considerando
velha para minha intenção de estudo: “nunca é tarde, não é mesmo?!”. Não discordo
e nem justifico por duas razões: porque quero dar sequência à conversa e porque
ele dispara, eloqüente, uma série de comentários que vou anotando rapidamente:
A mesa do café já vi várias vezes, já participei. Sempre quando posso vou lá tomar um café e comer um bolo. A Thereza é muito educada e a mãe dela também, sempre me tratam bem e tratam todos com educação. São
92
educadas e simples. Chegam, trocam idéia... Não fazem diferença das pessoas, sabe?! (diz querendo que se entenda que não há distinção social) O que fazem? Ah, muitas coisas. Já plantaram árvore... Já varreram a rua – o que achei muito bom, porque eu vivo varrendo aqui em frente! Muita poeira e fuligem. Aqui é agitado. Tem sempre movimento por aqui. Elas trazem pessoas que usam droga e estão em recuperação e fazem batucada aí. Tem uns que zoam e ficam rindo... eu explico o que acontece ali. Por alto, né? Falo que era uma mulher que há muito tempo atrás tinha mania de fazer broa e café e dava pras pessoas. (Breno, Paneleiro).
A entrevista com Breno, mantida na grafia como foi na fala, trouxe a
pessoalidade do olhar de quem vivencia a rua. Ele relata suas impressões como um
prestador de serviços, mas é um atento observador dos ritmos daquela via. A
intimidade com que se apropria das informações demonstra envolvimento e
intensidade das recordações.
Figura 33 - Loja de consertos
Fonte: Foto da autora, 2019
Saber o que pensam os comerciantes nem sempre foi uma tarefa confortável
durante a pesquisa. Melhor dizendo, a tradição mineira que aponta para um sujeito
desconfiado apareceu recorrentemente. Foi assim com o dono da lanchonete em
frente ao Undió. Monossilábico inicialmente, Walter José não parecia interessado na
conversa que eu tentava desenvolver.
Aos poucos e com relutância, comentou sobre a queda do movimento do
negócio, informou que está no mesmo endereço há 31 anos, contou que dos oito
empregados, restaram dois. Ele atribui o momento atual à mudança de trânsito –
“melhorou para o Centro e para a cidade, mas não para o comércio” – e à crise
econômica. Pergunto se os carreteiros que fazem ponto ali em frente são clientes:
93
“Eles estão vivendo os reflexos da crise, assim como todos nós. Com poucos
clientes, não têm dinheiro e trazem o lanche deles”. Diz que conhece a Thereza e
que acha “interessantes e boas as ações de teatro e de festa que ela faz”.
A vendedora da loja de eletrônicos já viu muitos eventos na rua e sabe que
“teatro o pessoal adora. Mas a pergunta que sempre fazem é se é de graça. Eu
atravesso a rua e vou tomar café sim, mas não me envolvo muito”, confessa. “Uma
ONG, é mesmo? Já vi algumas coisas acontecendo que me chamaram a atenção,
mas acho que nunca presenciei nada de arte”, comenta José, atendente da
relojoaria, há três anos trabalhando no estabelecimento. Anoto no meu caderno uma
frase que me ocorreu diversas vezes nas entrevistas casuais que faço: “será arte?”39
Recorrentemente, ela está lá. Será?
As referências que os comerciantes fazem aos fatos ocorridos durante as
temporadas do Nessa Rua Tem um Rio reverberam o que é típico do espaço urbano
público: eventos coletivos e sem intimidade. Vogel e Mello discutem a vida
comunitária como
[...] um conjunto de desempenhos suportados por „palcos‟, por „cenários‟. [...] Jogos, reuniões, festas, encontros, cerimônias e atividades assemelhadas que se oponham às idéias de privacidade e de intimidade encontram na rua seu lugar ideal. É aí que deve estar o que é de todos. (VOGEL; MELLO, 2017, p. 35).
E, se discutimos Belo Horizonte nesta tese, os fatos narrados poderiam
acontecer em outra cidade ou em outra rua de outro bairro, dadas às características
dos encontros humanos no sentido de comum.
Numa manhã de sábado em que acontece uma Temporada, chego à rua
8h30. Há pouco movimento de pedestres e de veículos. Ando até a esquina oposta à
da que cheguei aproveitando aquele aparente hiato no movimento frenético do
cotidiano, que tão bem conheço. Faço algumas fotos com meu celular. Passo pela
fachada do Cine Las Vegas que exibe filmes pornô e me entristeço pensando que
por várias vezes pensei em entrar, mas nunca consegui tempo e, no fundo, sei que
39
Cada vez que escrevo esta dúvida no meu caderno, inevitável pensar no poema de Ferreira Gullar, “Traduzir-se”, que reverbera questões opostas convivendo num mesmo ser e, nessa dualidade, quer saber se aquilo – o viver – é arte: “Uma parte de mim é todo mundo/ Outra parte é ninguém / Fundo sem fundo/ Uma parte de mim é multidão/ Outra parte estranheza e solidão / Uma parte de mim, pesa/ Pondera/ Outra parte, delira/ Uma parte de mim almoça e janta/ Outra parte se espanta/ Uma parte de mim é permanente/ Outra parte se sabe de repente/ Uma parte de mim é só vertigem/ Outra parte, linguagem/ Traduzir uma parte noutra parte/ Que é uma questão de vida ou morte/ Será arte?/ Será arte?” (GULLAR, 2017, p. 30).
94
me faltou um pouco de coragem. Encontro o porteiro e bilheteiro do cinema, Zinho,
fazendo um lanchinho e aproveito para conversar com ele. Ele conta que está ali há
25 anos. “Ah, já vi de tudo por aqui”. Atualmente, o sucesso tem sido a vovó
Tsunami, uma stripper que faz duas a três sessões seguidas e “ela vem com umas
amiguinhas” diz, conferindo à atração um status de show.
Figura 34 - Cartaz da atração do Cine Las Vegas
Fonte: Foto da autora, 2019
Funcionam duas salas no cinema e ele se desculpa de não podê-las mostrar
porque está havendo sessão. Ele, então, me descreve: “A primeira passa os filmes
hetero e a seguinte passa os filmes gay. No fundo, à direita, tem um banheiro e, à
esquerda, uma salinha. É o tak roon, um quarto escuro aonde os frequentadores
podem ter privacidade” (Depois de eu pedir para ele repetir o nome do quarto, o sr.
Zinho pede para escrever no meu caderno... Relendo minhas anotações, me deparo
com a letra dele e vem à mente a risada que guardei quando entendi que se tratava
de um dark room) “São três jogos de cadeiras e lá eles podem ficar mais à vontade.
Infelizmente, são gays”. Zinho não imagina que seu comportamento é
discriminatório, preconceituoso e homofóbico. Penso que sua opinião pode ser fruto
possivelmente de uma educação conservadora, reforçada pelo convívio quase
exclusivo entre os homens dos arredores – carreteiros, ambulantes e vendedores –
que têm comportamento machista. Eu, de formação libertária e adepta das
bandeiras do feminismo, naquele momento prefiro apenas ouvi-lo e me concentrar
nas anotações.
95
5 O INSTITUTO UNDIÓ
O Instituto Undió é uma Organização Não Governamental (ONG) criada há 35
anos pelas artistas Júlia Portes e Thereza Portes (mãe e filha) com o objetivo de
promover ações de arte por meio de projetos sócio culturais. São oferecidas oficinas
itinerante de teatro, música e artes plásticas para crianças e adolescentes, que são
acordadas com instituições parceiras. Desde 2006, o Undió tem sede no número
280 da Rua Padre Belchior, um sobrado de 1930 (Figura 35), espaço em que se
desenvolvem as oficinas de arte e expressão plástica. E, em frente ao sobrado, na
calçada, ocorrem as ações variadas de arte, que são objeto desta tese.
Figura 35 - Sede do Undió, na lateral da parede/fachada a inscrição “Nessa rua tem um rio”, à direita na foto
Fonte: Instituto Undió (2017)
Undió, no idioma banto, quer dizer casa. Esse universo simbólico que traz
consigo o imaginário de um lar é reforçado na descrição da organização que está no
site (INSTITUTO UNDIÓ, 2016) ressaltando que “Na nossa casa educamos através
da arte”. E, realmente, no endereço em que funciona o instituto, a aura de um lar
ocupado e em funcionamento está na cozinha cheia de utensílios, no armário
debaixo da pia com material de uso coletivo, na área de serviço, com bacias de
alumínio e panos de prato pendurados num varal de corda, nas flores e folhagens
plantadas nos vasos que ornam a entrada da casa. Aquele ambiente foi
transformado, melhor dizendo recuperado, pelas artistas para dar um tom
96
aconchegante, familiar e hospitaleiro, “mas foi um resgate da casa mesmo”, sorri
Júlia.
Figura 36 - Área de serviço da casa
Fonte: Foto da autora, 2018
A casa que sedia o Undió pertence à família Portes desde sua construção, foi
residência tanto da mãe quanto da filha e conserva seu padrão arquitetônico e de
interior originais. Em entrevista40, Júlia Portes conta que o pai, médico, sempre
atendia consultas ali, sem cerimônia ou hora marcada. “Era movimento o tempo
todo. Minha mãe sempre tinha um cafezinho fresco coado para os pacientes e seus
acompanhantes”, recorda. A porta (Figura 37) em modelo vai-vem em vidro
emoldurado em madeira, que faz parte da decoração e da funcionalidade da casa,
conserva a informação: Consultório Médico - Doutor Geraldo Portes.
40
Realizada em 12 de novembro de 2016.
97
Figura 37 - Porta do antigo consultório
Figura 38 - Móvel antigo com prateleiras e vitrine da família Portes
Fonte: Foto da autora, 2017 Fonte: Foto da autora, 2018
A porta poderia ser uma relíquia, no entanto, seu estado ótimo de
conservação compõe perfeitamente o ambiente do sobrado, e me traz a sensação
de que a qualquer momento possa passar por ali um paciente em busca de alívio
para uma dor qualquer. Essa viagem a um tempo que não me pertenceu aguça meu
olhar para todos os detalhes da casa. Atento-me para alpendre com vasinhos de
plantas, as cadeiras de ferro pintadas de branco, a sopeira de louça fina colocada na
porta de vidro do móvel de buffet da copa, os tacos brilhantes de madeira do chão
(Figura 39). São todos indícios de uma nesga do tempo, um reviver na primeira
metade do século 20. Aliás, sempre que penso na varandinha da casa do Undió,
preciso corrigir meu pensamento: alpendre, um termo antigo que, ele sim, me faz
reviver a casa da minha tia-avó, que tomava chá em tardes amenas, assentada
numa cadeira de ferro no alpendre, aquele avanço da casa que dava acesso visual à
rua Piratininga, no bairro Carlos Prates.
98
Figura 39 - Sob a grade da fachada, a varanda da casa
Figura 40 - Júlia assentada na cadeira na varanda do Undió
Fonte: Foto da autora, 2017 Fonte: Foto da autora, 2019
O banheiro da casa reafirma esse movimento de cápsula do tempo,
direcionada para o passado. E, em detalhes, nos conduz a algumas décadas atrás.
O chão é em “vermelhão”, tipo de massa feita com cimento e pó xadrez, que traz cor
à massa que vai virar piso. As louças são de época, como a pia branca e a
saboneteira cinza que está embutida na parede de azulejos; estes se estendem até
dois terços de altura. O vaso de folhagens no chão faz uma composição agradável
com o espelho de moldura rosa retrô (Figura 41).
Mas o que se destaca é uma fotografia em preto e branco, um pouco
desgastada e com as bordas rasgadas, o que denota sua antiguidade. Ela retrata
um homem e duas crianças em frente ao sobrado (Figura 42). “São meu pai e meus
irmãos e a data é de 1966”, Thereza nos diz. Penso, intrigada, no trânsito entre o
tempo – hoje, 54 anos passados – e entre os espaços: a foto apresenta a mirada
dos moradores da casa tendo o Leitão ao fundo. Detalhes reunidos, estar naquele
banheiro transmite um clima acolhedor e quase familiar.
99
Figura 41 - Detalhe da parede do banheiro do Undió
Figura 42 - Foto da parede do banheiro do Undió
Fonte: Foto da autora, 2019 Fonte: Foto da autora, 2019
As atividades regulares de formação promovidas pelo Undió são realizadas
para cerca de 150 alunos, adolescentes e jovens entre 15 e 22 anos. São moradores
de bairros de periferia como a Pedreira Prado Lopes, Novo São Lucas, Vila São
Rafael, Cachoeirinha e do Centro. A missão, da ONG é: “Criar oportunidades por
meio da arte, da educação e da cultura, para que crianças e adolescentes, em
condição de vulnerabilidade social, suplantem os obstáculos impostos pelo meio em
que vivem e escolham seus próprios caminhos”.
Apesar do interesse, investimento e dedicação pessoais das gestoras e dos
voluntários que oferecem seu talento e tempo de trabalho, o Undió enfrenta
problemas relacionados à oscilação das ofertas tanto em quantidade quanto em
volume de atendimentos, dada à escassez de verbas. A ONG recebe doações de
100
vários colaboradores estrangeiros e brasileiros, que contribuem financeiramente.
Entre os patrocinadores estão a fundação alemã Mahle e a Cemig; parceiros e
apoiadores o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Pimenta
Filmes e Grupo de Dança Be Hoppers. Entre 2002 e 2010, o Instituto Ayrton Senna
financiou parte dos projetos, ganhador do prêmio Itaú/Unicef em 2011, o que
contribuiu para que o Undió ganhasse visibilidade midiática.
Segundo relato de Thereza41 “o dinheiro em cada época vem de um lugar”,
em razão disso, é necessário conviver com a escassez e com a abundância, em
determinados períodos, o que garante a manutenção dos projetos. Apesar das
dificuldades, ela se mantem serena42 e recorre a outras organizações que se
propõem a cooperar, como, por exemplo, o supermercado Verde Mar, fornecendo
semanalmente produtos de confeitaria que suprem os lanches dos alunos. O quadro
de pessoal da ONG é composto de três professores de arte com carga horária
semanal de 12 horas, quatro voluntários para captação, divulgação e oficinas e uma
coordenadora financeira que se ocupa da gestão do dia a dia do instituto.43
Desde que foi criado, o Undió cresceu em atuação a partir de demandas
diferentes ao longo do tempo. Mas, conserva uma característica fundante que é a
partilha de experiências e a troca cultural tendo a arte como propulsora e linguagem
unificadora, afirma Thereza Portes em declaração publicada no blog
(www.undio.org).
Atualmente o Undió atua em várias frentes em Belo Horizonte, mantendo um
formato itinerante. Além do projeto Nesta rua tem um rio, desenvolve os seguintes
programas: Arte na Espera que tem como objetivo levar ações de arte aos pacientes
e seus familiares no Hospital das Clínicas; o CineÓ que exibe gratuitamente filmes
na parede da casa-sede da ONG; a Toalha de Mesa Bordada que narra histórias e
lembranças de quem quiser contá-las com agulha e linhas coloridas – em ação
compartilhada com outras intervenções na rua. A ação propositiva de bordar a toalha
ocorre junto com o Café Comunitário e em outros eventos. E, em iniciativa recente,
41
Entrevista em 28/03/2018. 42
Em uma última conversa com ela, em janeiro deste ano, 2020, ela me contou que estava muito satisfeita porque o projeto Nessa Rua Tem um Rio obteve, pela primeira vez, o patrocínio na Lei Municipal/Fundo de Investimento para o ano inteiro, garantindo a realização de algumas “temporadas”.
43 Quando colhi esses dados, a realidade era essa, mas em novembro de 2019, havia apenas uma estagiária de 4 horas semanais, paga com verba particular da própria Thereza.
101
há quatro anos, desenvolve ações de valorização dos quilombos urbanos Mangueira
e Manzo, em Belo Horizonte.
Os dois projetos mais antigos do Nessa Rua Tem um Rio são as intervenções
artísticas e o Café Comunitário, nosso foco de estudo, pesquisa e análise; ambos
acontecem há dez anos. As intervenções de arte são desenvolvidas em caráter
colaborativo pelo grupo de Multiplicadores do Instituto Undió, formado com alunos
do curso organizado em 2006 por artistas convidados44, que atuam de forma
voluntária. Tem como eixo central ações direcionadas à percepção da memória local
e do patrimônio cultural na construção da identidade da e na cidade ao despertar a
importância da preservação de bens culturais.
As intervenções pretendem estabelecer uma relação mais próxima com o
cotidiano da rua através da arte, como fica evidenciado em texto oficial:
O projeto Nessa rua tem um rio propõe interferências poéticas na Rua Padre Belchior e arredores, e um convite para pequenas „interrupções‟ nos hábitos e ritmos usuais do centro da cidade, como possibilidade de inaugurar novas leituras e pontos de vista sensíveis sobre o cotidiano da e na cidade e suas possíveis (e infinitas) „entrelinhas‟, sobre arte, memória, corpos e pensamentos. (INSTITUTO UNDIÓ, 2015)
Thereza acrescenta outras informações, reforçando a dinâmica de criação e
funcionamento do projeto Nessa Rua Tem um Rio:
[...] de minha autoria, foi iniciado em 2010, como consequência de um Curso de Multiplicadores Culturais oferecido pelo Instituto Undió. A finalidade do projeto, fruto do curso, é promover atividades de arte contemporânea e interferências artísticas urbanas para sensibilização da comunidade, mobilização dos moradores, famílias e transeuntes da Rua Padre Belchior, região central de Belo Horizonte, onde fica situada a sede do Instituto Undió.
Em relação ao título do projeto, Júlia, em lembranças recheadas de
afetividade, conta que o nome “nessa rua tem um rio” veio como um presente
espontâneo: “Aqui em frente à casa, eu contava aos alunos que a rua era muito
diferente no passado e que, mesmo escondido pelo asfalto, nessa rua tem um rio, o
Córrego do Leitão. Pronto; foi assim, quase numa frase de efeito, que veio o nome
44
Já participaram das ações os artistas: Adriane Puresa, Alexandre Pimenta, Ana Flávia Baldisseroto, Beatriz Goulart, Camila Buzelin, Carlinhos Ferreira, Dudude, Fernando Cardoso, Júlia Portes, Junia Penna, Lucas Miranda, Marcelo Márquez, Marco Paulo Rolla, Marconi Marques, Maria Helena Bernardes, Marta Neves, Nydia Negromonte, Sávio Leite, Shima, Thereza Portes, Thiago Mendes, Wilson de Avellar, Xepa (Viviane Gandra e Marcelino Peixoto) e Piseagrama.
102
do projeto”, recorda. O grupo de alunos que participa de projetos do Undió e que
ouviu os relatos da Júlia descobriu o fato curioso de haver um rio escondido pelo
asfalto, passou a investigar o entorno e buscar relatos dos moradores. Ficaram
admirados “com a vida tranquila dos antigos moradores do local e quase não
acreditaram que por debaixo da rua poluída pela poeira de um trânsito devastador
existia um rio, agora canalizado”, conta Thereza Portes que segue ilustrando aquela
vivência dos alunos.45
Acostumados a passar diariamente pela rua, começaram a enxergá-la e observá-la de outra maneira. Visitaram lojas, museus situados nas imediações e conversaram com transeuntes [...] mas as histórias preferidas dos jovens estavam ligadas ao rio subterrâneo: as pontes que permitiam esconderijos inusitados, as enchentes, a influência do rio na vida e nos costumes dos moradores e ainda os inúmeros lances pitorescos da região. (PORTES, 2015, p. 49).
Foi criada a experiência chamada de Laboratório Undió de Intervenções
Urbanas, que se desdobrou a partir do curso de Multiplicadores Culturais realizado
entre 2006 e 2007. Durante o curso, os alunos realizaram uma pesquisa sobre
patrimônio, memória, costumes e tradições da Rua Padre Belchior, que contribuiu e
reforçou a vocação do projeto em acionar e recuperar a memória local. Thereza
Portes (2015, p. 49) afirma que a junção da experiência com intervenções artísticas
e a motivação dos jovens ativaram a reflexão “sobre ações que despertassem nos
educandos a valorização e o conhecimento da memória deste centro histórico e que,
ao mesmo tempo, correspondesse ao desejo coletivo de tornar aquela comunidade
mais humanizada”.
A casa do Undió, onde atividades rotineiras das aulas de arte são
desenvolvidas com os alunos, se metamorfoseia em residência durante os eventos
do Nessa Rua Tem um Rio. Aquela casa que já foi o lar de uma família retoma suas
características de acolhimento. Há um clima receptivo e hospitaleiro no quintal e no
alpendre que são extensões da casa e que têm significado de intimidade. Estes dois
ambientes recebem pessoas desconhecidas entre si, mas que se harmonizam num
ir e vir para fruir as atividades e objetos de arte apresentados no espaço.
45
No mapeamento da região, foi localizado o Mercado Municipal e a Praça Raul Soares. Por meio de documentos, recortes de jornais, relatos de moradores e comerciantes, foi possível tomar conhecimento sobre as enchentes do Córrego do Leitão – que tem o seu leito serpenteando os bairros Santa Lúcia, Cidade Jardim e Lourdes até desaguar no Ribeirão Arrudas, no Centro, que coleta dos rios, ribeirões e córregos de Belo Horizonte.
103
A sensação de acolhimento que emana tanto do alpendre quanto do quintal à
frente da casa transparece na fala de uma participante. Ela aparenta ter por volta de
70 anos e se recorda dos momentos em que cadeiras na calçada já foram o lazer
característico há décadas. A lembrança desse costume é celebrada por Júlia, que
aponta para as cadeiras da sua época de infância. Dois participantes jovens – 25 e
30 anos – estão assentados numa cadeira de balanço dupla feita em ferro e pintada
de branco. Do quintal onde estão, visualizam a calçada e o movimento dos
participantes da intervenção de arte do dia. Talvez façam ou não ideia da relação
histórica que aquela cadeira guarda com o ambiente. Despretensiosamente se
balançam, trocam comentários sobre o que vêem e, sob o meu olhar, parecem
divertir-se como espectadores do movimento.
Figura 43 - Dois jovens assentados em cadeira dupla de ferro, em momento de Temporada do Nessa Rua Tem um Rio
Fonte: Foto da autora, 2019
Segundo Delgado as cidades são “cristais”, em que a memória e o hoje se
encontram:
As cidades, como espaços de vivências coletivas, são paisagens privilegiadas de registros de memória. A pena dos escritores faz dessas paisagens personagens vivas de narrativas, que, na interseção com a História, expressam, de forma policromática, a vida das pessoas no cotidiano de suas ruas, praças, cafés, escolas, museus, residências, universidades, fábricas, repartições públicas, bares, cinemas. As cidades são cristais de variadas luzes, entre elas as da memória, que, com sua
104
temporalidade sempre em movimento, reencontra os lugares de ontem com sentimentos do presente. (DELGADO, 2006, p. 117)
A ocupação e apropriação dos espaços urbanos são, na perspectiva de
Thereza, possibilidades de “ver a cidade sob um novo ângulo” (PORTES, 2015, p.
50). A rua passa a ser uma espécie de experimento artístico e das emoções, com
outra função além de ser passagem ou espaço para atividades comerciais. A
atividade artística pretende deslocar a atenção dos transeuntes (eventuais
participantes) da passividade do deslocamento funcional e convidá-los a repensar
suas relações com a cidade. O formato flexível, democrático e gratuito das
intervenções propostas evidencia a vida da ou na rua e a convivência em
comunidade. “Bastam a rua, a vida, as pessoas”, comenta Júlia Portes no blog do
projeto em que enaltece esta circunstância que une a rua ao convívio social.
As propostas de intervenção artística conjugam educação e arte, com a
intenção de estimular crianças, jovens e adultos a repensar e refletir sobre os
lugares onde vivem e por onde transitam, sobre si mesmo a partir da cultura local e
de diferentes expressões artísticas. A iniciativa, acreditam as gestoras, vem para
recuperar a ideia de partilha comum, buscando a aproximação entre as pessoas em
um agenciamento coletivo, artístico e de sensibilização.
No projeto Nessa Rua Tem um Rio, os jovens participam de encontros com
artistas de várias vertentes (artistas plásticos, cineastas, atores) para discutirem
como se elabora o processo criativo, o método e a linguagem, investigando de que
forma é possível intervir e interferir na rotina das pessoas e da cidade. O fruto destes
encontros, além da troca de conteúdos e as inquietações do processo criativo, é a
criação coletiva de uma intervenção urbana em que a arte esteja disponível para
quem passa pela rua.
A respeito desses encontros, Thereza Portes (2015, p. 51) conta que a
evidência de que “a arte é inseparável da vida” tem sido um resultado que une, em
sua semelhança, dois grupos – jovens e artistas – com formações muito diferentes e
que trazem novos conhecimentos. Para o público em geral – “pessoas comuns que
passam desavisadas por esta rua” –, a provocação ocorre e pode ser potencializada,
iniciando um eventual questionamento: “as cidades pertencem aos seus habitantes?
O conhecimento de sua história pode mudar a expectativa de seus habitantes?
Desejamos valorizar uma nova consciência que torne nossa cidade mais afetuosa e
humanizada?”, questiona.
105
Marta Neves46 artista plástica com trajetória de engajamento em causas
sociais47 de gênero como temas feministas e LGBTQi+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transexuais, Queer, Intersexuais e +, que são as outras categorias não
contempladas), tem uma história longa de participação em dezenas de temporadas
do Nessa Rua Tem um Rio e, no início da nossa conversa, tenta fazer contas. “Não
sei dizer quantas vezes fui convidada”, diz enquanto acende um cigarro. “Participo
do Nessa Rua Tem um Rio desde 2011 e já te digo que são as intervenções mais
legais que faço”, responde nitidamente feliz com a recordação que passa pela sua
mente. O fato de ter muitas participações fez dela uma presença constante nas
análises que fiz do projeto. “Thereza é muito inaugural! Topa as idéias e vibra com
elas”, comenta sobre a artista e gestora do Undió e enumera: “Fiz no Undió a
primeira versão do tapete e pelo menos outras três performances. Ela morre de
vergonha porque não tem cachê, mas isso não importa. Eu jamais deixaria de fazer
algo no Unidó por causa de dinheiro”. As discussões que a arte engendra para
aquele espaço são a gênese de cada trabalho:
Antes de eu criar uma obra para apresentar no Nessa Rua Tem um Rio, penso no que ficaria bom para o local: penso na resposta da e para a rua e as imediações. E penso de uma forma mais ampla sobre o sentido para aquele centro nevrálgico, penso na circulação de pessoas... penso naquelas que estão paradas nos pontos de ônibus e nos sinais e também penso sobre o próprio espaço do Undió. Cada obra tem uma especificidade, tem muito essa coisa de pensar para o local, refletir sobre ele. (Marta Neves, artista plástica).
Sobre a arte na rua, em caso específico do Nessa Rua Tem um Rio, e de
forma geral, ela afirma que
O termo arte desimporta. Pra mim são intervenções. A priori! Posso gostar mais ou menos, não importa. A palavra arte não aparece, talvez, para quem não transita no meio. Mas isto não tira o valor das ações como ações de arte, sabe? O que mais importa é que “essas coisas” estejam ali, que a idéia de arte esteja disseminada ali. A palavra arte é extremamente opressora.
46
Entrevista ocorrida em 03 de abril de 2019, além de diversos outros contatos ao longo das atuações da artista nos eventos.
47 No site do Itaú Cultural há a seguinte definição: “O trabalho da artista é um exercício de sarcasmo sobre a arte e o sistema que a envolve. A crítica, o mercado, a mídia especializada e o próprio artista são afrontados por suas obras com humor corrosivo.” (ITAÚ CULTURAL, 2017). O crítico Luiz Flávio Silva escreve: “O trabalho de Marta revela uma aguçada consciência da situação do produtor de arte da atualidade [...] numa sociedade consumista e idiotizada pelo processo de banalização da consciência - que ainda insiste em ver a arte como decorativismo ou meio de ascensão social. [...] A experiência da relação imagem-texto na obra dessa artista pensante procede de sua capacidade de conferir densidade às experiências vividas e constitui uma linguagem que põe em evidência tanto os objetos designados por ela, quanto o reflexivo - e inflexível - sujeito que dela fala". (SILVA, 2001).
106
Que ela não existisse mais para um grupo extremamente respaldado. Talvez seja contra... Não consigo não enxergar que seria uma bela utopia que a ideia da arte circulasse por todo canto. Esses pequenos lugares de invenção, eles realizam essa ideia de forma micro, como contrausos. (Marta Neves, artista plástica).
Pequenas interrupções no cotidiano atuam como os contrausos, respaldados
por iniciativas da arte, como a “Roda dos Prazeres”, já discutida. O CineÓ é outra
interrupção que ocorre na Rua Padre Belchior, com sessões esporádicas de filmes
projetados na parede da casa do Undió, Para o diretor e videomaker Alexandre
Pimenta, que já produziu alguns filmes para o projeto e que organiza o CineÓ, está
certo de que “tudo que acontece aqui é arte”. À esta certeza ele acrescenta o
aspecto da ocupação e do fato de que a arte pode estar em lugares hostis: “Além de
ser arte, é resistência porque é democrático”. É o mesmo pensamento de Raissa
Angrisano, formada em artes plásticas e que cuida da gestão administrativa do
Undió desde 2008 – como voluntária, como contratada e outra vez como voluntária,
sempre de acordo com a verba de patrocínio:
Aqui, a essência é ser sempre resistência. Existe uma acessibilidade muito grande, das pessoas e das ideias. É ouvir a voz de todos. Cada intervenção é um espaço de respiro na cidade, torna a arte mais democrática, traz reflexões. (Raissa Angrisano, artista plástica).
Ela acredita que as intervenções são estratégicas para o conjunto de
relações, que se fortalecem e está certa de que os carreteiros, os comerciantes e os
passantes são afetados.
Ao lado de ações como as do Undió, Belo Horizonte se notabiliza por abrigar
manifestações culturais que ocupam as ruas e que são notoriamente espaços
coletivos de resistência. Assim é com o carnaval, o “rito sem dono” (DAMATTA,
1983). A criação e proliferação dos blocos autônomos ocorrem há uma década e
transformaram o que era uma festa esvaziada em um evento monumental48, com
expectativa crescente de público da ordem de milhões (BELO HORIZONTE, 2019) –
três milhões de foliões em 2018 e 4,3 milhões de foliões em 2019.
Além do carnaval, observam-se outros focos de autonomia e resistência que
reforçam os processos de subjetivação no espaço urbano. São exemplares da
ocupação do espaço público eventos que ocorrem debaixo de um viaduto e em uma
48
Atuo há seis anos como percussionista em seis blocos de carnaval, todos surgidos de ações voluntárias e coletivas, e vi a evolução acelerada da festa.
107
praça: o Duelo de MCs (desde 2007) e a Praia da Estação (desde 2010). O Duelo
acontece numa organização do coletivo Família de Rua, e tem a ativação da
audiência de forma incidental, formada pelos que frequentam as batalhas de rimas
musicais e que convidam outras pessoas. A Praia acontece na fonte de água da
Praça da Estação, em uma ocupação horizontal auto-organizada, sem coordenação
ou responsáveis, sempre mobilizada pelas redes sociais.
Esse conjunto de eventos na rua acontece “gerando interrupções, processos
poéticos e „engrossando‟ o fluxo criativo e artístico da arte na cidade que se soma,
assim, aos fluxos de resistência cultural e produção do espaço nas cidades
contemporâneas.” (CAMPBELL, 2018, p. 21). São estratégias coletivas de
apropriação da cidade, em ações coletivas livres, sem hierarquia, criativas e
estéticas. Mendonça, Moriceau e Paes (2015, p. 7) chamam estes grupos de
“guerrilheiros do sensível”. Nestes eventos,
[...] o resultado é incerto, com possibilidades de advir algo imprevisível, potencialmente liminar”, afirmam e complementam: “Se há felicidade é a da criação, a do encontro. O que está em cena não vale pelo que representa, mas pelos pensamentos que cria. (MENDONÇA; MORICEAU; PAES, 2015, p. 8).
Articula-se o exercício do imaginário nessas manifestações espontâneas.
Além disso, trata-se do “direito à cidade”, exposto e defendido por Lefebvre em 1967
(livro homônimo) como queixa e exigência; retomado nos anos 2000 (HARVEY,
2014)49 no sentido da liberdade de reinventar, de forma coletiva, as experiências de
significação do indivíduo. Nos casos citados são experiências que se constituem por
intermédio da arte.
49
“O direito à cidade é, portanto, muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais profundos desejos.” (HARVEY, 2014, p. 28)
109
6 AS INTERVENÇÕES ARTÍSTICAS NA (E DA) RUA DO UNDIÓ: CAFÉ E BORDADOS
Para dar conta da proposição de interromper a passagem mecânica das
pessoas pela rua, o projeto Nessa Rua Tem um Rio acolhe e também promove
intervenções efêmeras e variadas de artistas e alunos. Na calçada em frente à casa
é onde ocorrem os eventos. “As calçadas pertencem às casas, o que não significa
que sejam parte destas como propriedade. Seu caráter público contrasta, por vezes,
com as formas pelas quais são circunstancialmente utilizadas.” (VOGEL; MELLO,
2017, p. 73). Assim, os usos tanto privado quanto público se impregnam de uma
intrigante dialética vivenciada pelos fruidores. “Para simplificar: um sistema de
espaços só existe em conexão com um sistema de valores, ao passo que ambos
são impensáveis sem a correlação necessária com um sistema de atividades.”
(VOGEL; MELLO, 2017, p. 89).
São performances, instalações, exposições de arte e alguns momentos de
interação entre os passantes, que pode ser uma interferência na rua como, por
exemplo, atividade de varrição coletiva, troca de mudas, banho de balde ou
montagem de uma mesa farta com café e quitutes. O tema central, da rua e do rio,
que inspira os projetos artísticos e instalações, faz uma calorosa ligação entre o
interior e exterior em muitas dimensões: o rio e as bordas, a rua e a calçada, o
público e o privado.
6.1 O café comunitário congregando quem passa pela calçada
O Café Comunitário, atividade que o instituto organiza, acontece com ou sem
a apresentação artística explícita, já que para Thereza Portes, o Café Comunitário é
iniciativa artística na sua forma mais envolvente e pode ser compreendido como um
ato de sensibilização das pessoas. Ela não se preocupa em rotular como arte, ou
melhor, evita de fazê-lo, e apenas comenta se tratar de “uma iniciativa sensível”. Aos
olhos do público e devido ao acesso democrático, o café talvez seja a intervenção
mais atraente e interpelativa e que se destaca, junto com os bordados que podem
ser feitos ali, na hora.
110
Figura 44 - Detalhe da mesa de café
Fonte: Foto da autora, 2018
Oferecer o café ocorre de uma maneira ritualística. E são diversos os detalhes
que nos levam a conjecturar isso. O pó é coado em um filtro de flanela apoiado num
suporte metálico, tendo o bule esmaltado como recipiente. Esses itens e a forma de
fazer “são tipicamente mineiro, em especial das cidades do interior do Estado”, como
afirma Júlia50, demonstrando orgulho por manter a tradição. “Assim é como minha
mãe coava café”. Em sua fala e por sua expressão, é possível observar o resgate de
um gesto imbuído de saberes e tradição: seja pela hospitalidade ou pela repetição
de uma prática familiar.
50
Entrevista realizada em 12 de novembro de 2016.
111
Figura 45 - Café Comunitário em dia
de evento na Rua Padre Belchior Figura 46 - QRCode 5 – A mesa do
Café Comunitário
Fonte: Foto da autora, 2018
Na sua forma de organização existe uma mesa, de aproximadamente 10
metros lineares, coberta por três toalhas brancas bordadas. Os bordados estão
salpicados, em cores e motivos autorais, numa produção espontânea de pessoas
com ou sem experiência em bordar e que acontece enquanto o café é servido.
Portanto, cada toalha vai sendo bordada aos poucos, em diversos eventos de café
na calçada. Sobre as toalhas são colocados os bules esmaltados apoiados em um
suporte metálico chamado de mancebo, que têm coadores de pano carregados com
pó de café à espera da água que ferve na cozinha da casa. O café é coado ali
mesmo, instantes antes de ser servido, aos olhos de quem irá degustá-lo. (Figuras
45 e 47).
O Café Comunitário é uma ação esporádica, sem periodicidade definida e
sem custos para quem participa. Encerra em si um apelo repleto de estímulos
sensoriais em cores, formas e o cheiro do café. Ainda que pareça redundante, são
tantas as sensações que prefiro, aqui, pecar pelo excesso de descrição, que terá a
companhia das imagens. Além dos bules, na mesa existe, em repouso ainda, um
112
festival de cores, formas e tamanhos de xícaras e pires reunidos em doações pelo
Undió ao longo dos últimos cinco anos.51 As toalhas que cobrem a longa mesa têm
bordados salpicados, em cores e motivos autorais, numa produção espontânea de
quem quiser colaborar. Desta forma, além do café, a ação propõe a expansão da
experiência, com a participação de quem quiser deixar seu registro manual em
linhas coloridas.
Figura 47 - Thereza (ao centro) na mesa de café
Fonte: Foto da autora, 2019
Para acompanhar e compor o ritual do café comunitário são colocados,
também, à disposição dos participantes, broa de fubá, bolo, pão fatiado, biscoitos de
polvilho abrigados caprichosamente em cestinhas com um guardanapo embaixo. Os
pires e xícaras sobre a mesa, diversos em suas origens, formas, cores, tamanhos e
idades, criam um desenho assimétrico e cuidadosamente desordenado. Aquela
composição mudará em poucos instantes, pois novas xícaras limpas ocuparão lugar
das que foram usadas.
51
Os pires e xícaras são cerca de 600 unidades, como informa o site do Instituto (undio.org), todos frutos de doações, trazem, em boa medida, o espírito colaborativo que se instala ali. O volume demonstra o acolhimento que a idéia de organizar um café gratuito obteve por parte dos amigos do Undió e de anônimos, após o chamamento para as doações no site da ONG.
113
Vendo a cena, penso em um filme gravado em velocidade acelerada e
percebo dinamicamente a concretude daquele evento. Atuando como voluntária por
algumas vezes, pude observar que não há ordenação, hierarquia ou qualquer regra
a ser seguida. Todos podem coar o café, todos podem lavar as xícaras e todos
podem buscar as quitandas que serão servidas (Figura 48). Sinto que a proposição
de leveza que a ação traz flui entre todos que se aproximam da mesa. As pessoas
que por ali passam, que trabalham na região ou que vão com o objetivo de participar
do evento, circulam livremente em torno da mesa e fazem suas escolhas. Pegam a
xícara que mais gostam ou nem ligam para isso, adoçam ou não o café,
experimentam quantos bolos e biscoitos quiserem. Quem são os protagonistas?
Seria a mesa ou os convivas? Acredito que um não existiria sem o outro e decido
por considerar a todos protagonistas.
Figura 48 - Voluntário lava xícaras
Fonte: Foto da autora, 2019
A mesa farta montada na rua parece ímpar e é ela, em seu caráter inusitado,
que faz o convite para o café, ou seja, não existe uma pessoa encarregada para
abordar os passantes para uma parada. Em geral, aqueles que já participaram,
chegam descontraídos e familiarizados e ficam à vontade para compartilhar do
evento. Os novatos estranham aquele acontecimento ou festa, olhando
114
desconfiados, ariscos, com interesse ou com curiosidade e às vezes perguntam
sobre o que se sucede naquele lugar. Alguns querem saber quanto custa o café e se
surpreendem ao saberem que é de graça. “Coisa estranha... É uma ação social?”,
pergunta um jovem de bermuda e boné, que pode perfeitamente representar
inúmeros outros pedestres que por ali passam e param.
O momento do convite fluido para o café se configura como algo “para todos e
para quem quiser”, mas que vai além. Esse ritual que tem tom festivo possibilita uma
interação momentânea entre diferentes personagens, desconhecidos entre si, que
no ato de escolher a xícara, servir o café, optar por uma quitanda ou bordar a toalha,
se olham, falam, comentam sobre os sabores e sobre o café ou sobre a vida e o
cotidiano, numa espécie de comportamento comunicativo. Para Goffman (1999) o
comportamento comunicativo entre as pessoas se dá como interação não-focalizada
– fruto da simples co-presença – ou como interação focalizada, em que a atenção
tanto visual quanto cognitiva está compartilhada, como ocorre nas ações do Nessa
Rua Tem um Rio, que, como efeito, põe em evidência aquele espaço específico pela
ocupação da calçada e pela sociabilidade provocada pela interação.
Figura 49 - QRCode 6 – Explicações sobre as atividades
Quando a intervenção envolve o Café Comunitário, os informantes são
prolíficos. “Ué, o que é isto?”; “Pode comer?”, escuto de transeuntes. “Que bom
gosto! Que xícaras bonitas”, ouço de outra. O café suscita curiosidade imediata de
quem passa ali – talvez um convite ao paladar com o cheiro inebriante (para
alguns)52 do café fresco e a composição de pães, bolos e biscoitos na longa mesa,
talvez um convite visual das flores que decoram os vasos, da coleção de xícaras
coloridas e da toalha bordada com muitos temas.
52
Independentemente de se gostar ou não de café, o aroma da bebida coada na hora não é ignorável ao olfato. E na calçada, o aroma e a excepcionalidade da mesa são absolutamente dignos de atenção, cabe destacar.
115
Naquele sábado53 que precedeu o domingo de dia das mães, um clima festivo
parecia fazer parte das intenções de quem passou por ali e parou na mesa de café.
Sem roteiro e absolutamente espontâneo, Valdir, um senhor aparentando uns 60
anos de idade, vestido em trajes sociais, tentou congregar as pessoas falando: “Por
favor, todas as mães poderiam se aproximar?” Como a receptividade foi pequena,
ele elevou a voz para ser melhor ouvido e, mesmo com alguma dificuldade em juntar
as pessoas, fez sua participação voluntária:
Sou poeta e convido a todas que são mamães a chegarem mais perto aqui da mesa pois eu gostaria de declamar para vocês uma homenagem. Meu nome é Valdir, sou nascido e criado em Belo Horizonte. Eu vou começar a falar. É dedicado a vocês mamães e futuras mamães... a todas as belorizontinas. Mãe, você é a razão da nossa existência. Filhos, amem suas mães [...]. (Valdir, poeta).
Assim que o poeta Valdir começou a interpretar sua homenagem, Thereza
Portes, a gestora do projeto, comentou nitidamente feliz: “Gente, se eu contar que
nada disto é combinado, ninguém acredita!” e emendou dizendo que sempre há o
inusitado em cada evento na rua.
O conteúdo se tratava de valores de senso comum, com rimas fáceis e a
obviedade do amor obrigatório entre mães e filhos. Não demorou e o poeta já tinha
cumprido seu papel. Senti que ato de recitar o poema tinha a sinceridade
inversamente proporcional à densidade das palavras que o senhor Valdir recitou.
Pela minha percepção, aquela poesia deve ter sido repetida várias vezes ao longo
do tempo por ele, que não tinha nada nas mãos. O público recebeu a possível
homenagem de maneira morna e o aplaudiu rapidamente, sem vibração ao final. A
baixa adesão de forma alguma, o desanimou e, ao finalizar, pareceu-me satisfeito
em realizar a cortesia, quase um galanteio, às mães.
Na sequência, dona Nilda, convidada do café e moradora da vizinhança, ficou
animada e disse: “então, agora também vou declamar. Primeiro, um poema meu,
depois, um outro, de Cora Coralina”. A receptividade que teve foi maior, expressa
nos aplausos e nas palavras de estímulo que recebia. Estimulada pela plateia e pela
aclamação de apoio que recebeu, elevou o tom de voz e falou os versos de cor.
Depois, recitou ainda uma poesia de Carlos Drummond de Andrade, que não tinha
anunciado à plateia.
53
12 de maio de 2018.
116
Frente ao inédito, que carrega um ar de inusitado na ocorrência do café na
calçada, ocorre um “choque de sentidos”, como menciona Pallamin (2000). Muitos
passam em frente à mesa e desaceleram o passo; alguns param; dentre aqueles
que param e perguntam do que se trata, muitos participam daquele momento que se
constitui uma nova e incomum sociabilidade no espaço da rua. É possível ouvir
comentários variados, como por exemplo, “Nem sou cafezeira, mas gostei mais da
socialização do que do café”, afirmou uma senhora. “Ah, que café ótimo, me lembro
da fazenda da minha avó vendo esse coador de pano”, recordou Guilherme,
bancário. Essas declarações combinam com os desejos de Thereza e Júlia, de
provocar pensamentos sobre uma cidade mais sensível e de estimular a memória
afetiva.
A valorização dos objetos e práticas do passado, ali oferecida de maneira
intimista, ativa a mania de memória. É a chamada “cultura da memória”, proposição
de Huyssen (2000).54 Ele é um crítico da ideia de patrimonialização e musealização
como forma de conter o ritmo acelerado das mudanças movidas pela tecnologia com
o consequente apagamento do passado. Mesmo sendo ácido em relação ao “medo
de esquecimento”, ele escreve que a “cultura da memória” pode, ela em si mesma,
ser um sonho que pode trazer continuidade “dentro do qual possamos respirar e nos
mover.” (HUYSSEN, 2000, p. 30): “Mas, o sonho tem o poder de permanecer, e o
que eu chamei de cultura da memória, pode bem ser, pelo menos em parte, a sua
encarnação contemporânea”. Quanto aos registros do passado, Thereza revela um
projeto antigo que fará em breve. “Minha mãe guardou no congelador a última broa
que minha avó, já falecida, assou. Eu farei uma grande escultura em metal para
decorar a mesa de café”. Assim, vai partilhar ainda mais suas vivências familiares
com o público.
O Café relativiza duplamente as fronteiras entre o público e o privado,
desafiando a polarização das entidades morais casa-privado e rua-público
(DAMATTA, 1997). Primeiro, pela sua natureza não ordinária. Compartilhar pães,
bolos e café à mesa é vivência típica do âmbito doméstico da casa, da cozinha, da
mesa e da família, diferente de beber e comer no espaço público da rua, em pé e
54 Em “Seduzidos pela memória”, livro fundamental para a compreensão da memória histórica em um
mundo globalizado, o autor organiza um dos muitos paradoxos atuais: “A minha hipótese é que, também nesta proeminência da mnemo-história, precisa-se da memória e da musealização, juntas, para construir uma proteção contra a obsolescência e o desaparecimento, para combater a nossa profunda ansiedade com a velocidade de mudança e o contínuo encolhimento dos horizontes tempo e espaço.” (HUYSSEN, 2000, p. 28).
117
com desconhecidos. No entanto, o recipiente que contem a bebida é um xícara que
poderia ter saído do armário de louças da residência daquela pessoa que sorve o
café. Nesse conjunto de indício está a surpresa de tantos ao avistar a mesa na
calçada.
Segundo aspecto que relativiza fronteiras, e de modo mais profundo e
subjetivo, é o fato de que o Café estimula memórias afetivas. As de Guilherme, por
exemplo, se referem a vivências do universo familiar e privado, rememoradas ali
naquela calçada, espaço de domínio público. E mais, numa proximidade
instantânea, há o “contágio dos outros” (CAIAFA, 2007) em que aqueles estranhos
até momentos antes se tornam familiares, trocam ideias e impressões, dividem
recordações de eventos familiares similares que os aproximam e, efetivamente,
tomam café juntos.
Nem todas as pessoas que participam do ritual do café comunitário, são
“desconhecidos”, não raro existem os integrantes corriqueiros daquele trecho de rua,
que são habituais “convidados”, como o vendedor ambulante de óculos de sol de
nome Genaro. “Sou vendedor há mais de 30 anos e sempre passo por aqui. Esta
rua é muito barulhenta. Mas é boa pra vendas. Quando tem café, paro, observo e
tomo uma xícara; tem pessoas muito diferentes nesses dias, mas também tem
aquelas de todo dia”, relata. Em uma mão segura o mostruário de vendas em isopor
com os modelos de óculos fincados e na outra segura a fatia de bolo que degusta:
“Muito bom. Ah, essa rua é muito melhor com café”, encerra nosso diálogo com um
meneio de cabeça.55
Na manhã da conversa com Zinho, o bilheteiro do cinema, durante o café que
se segue à nossa conversa, ele demonstra estar muito à vontade no ambiente. Fica
zombando dos carreteiros, que, segundo ele, gostam do café da Thereza para
comer. “Eles não param de encher a barriga. São boca nervosa... Manja só”, me diz
enquanto me abraça de lado pelo ombro. Conversa vai, conversa vem entre ele e os
carreteiros, ele abraça Thereza e troca algumas palavras com ela. Os dois riem.
Quero saber se ele não vai tomar um cafezinho: “Eu não participo por livre e
espontânea vontade de não querer. É muito agradável, mas eu sou muito rígido em
relação a horários. Só sei que transeuntes e carreteiros aproveitam também. Bom
55
Entrevista realizada em 12 de maio de 2018.
118
para todos”. Pergunto se há outro evento de que e ele responde sem titubear: “Ah, o
chuveiro! O chuveiro foi incrível, acho muito bonitinho. É a criatividade!”
Figura 50 - Chuveiro (ducha) feito de latão, adaptado à árvore e, na foto, Thereza lava as mãos
Fonte: Foto da autora, 2019
No grupo dos carreteiros há jovens e profissionais mais antigos. Raimundo
fica feliz em me contar que deu a colher de pau com que o café é mexido até hoje,
“acho que já preciso trazer outra”, reflete demonstrando que se envolve com o
evento. Ouvindo nossa conversa, Thereza assente com a cabeça. Carreteiro ali
desde 2012, ele declara: “Nossa artista é a Thereza! E como o café dela é bom, não
tem melhor.”
Um deles é motoboy há um ano e faz serviços de entrega – um carreto de
objetos, ele me diz – e antes era ajudante de carreto, atividade que exerceu por
cinco anos. “Maneiro, né?! Bom demais, as pessoas são muito educadas. Além do
café? Vi umas coisas de árvore, tavam dando plantas. Até levei uma para casa”.
Carreteiro ali há 22 anos, Joseval comenta que este é o 8º café de que participa
(mas traz para mim uma impressão de que apenas soltou um número qualquer). “Já
vi muitas encenações aqui. Tinha um de deitar no chão; eu até deitei também... Era
uma simulação de morador de rua, sabe?! O chuveiro... ajudei a montar”.
Conversar com os carreteiros me causou a impressão de que é durante os
cafés que eles se inteiram sobre o que ocorre no Undió e que têm um
relacionamento cordial com os gestores do espaço. Por prestarem serviços em
119
horário comercial, raramente eu encontrava os mesmos carreteiros – que eu passei
a identificar pelos carros de frete. Poucos se interessaram em conversar comigo.
Considerei-os arredios. Por vergonha? Por acharem que tinham pouco a dizer?
Há convidados como Ricardo, que não escondia seu contentamento e uma
genuína surpresa em conhecer mais a rua e se envolver no evento:
Estou me divertindo. Cheguei aqui a convite de uma artista que está expondo numa intervenção paralela ao café. Não conhecia ninguém. Agora, já troquei ideias com muitas pessoas interessantes, já experimentei um par de sapatos no bazar de usados aqui ao lado, na loja vizinha. E o melhor foi que aprendi a fazer um café mais saboroso. Descobri que preciso escaldar o pó de café antes de passar toda a água, pra retirar todo o sabor de cada medida. (Ricardo, gestor cultural).
56
A fala de Ricardo, informal e articulada, faz interlocução com o que o espaço
de contágio urbano tem de intenso, segundo Caiafa:
Nas grandes cidades, a convivência com desconhecidos cria certas condições especiais para o diálogo e o silêncio. Nas ruas cruzamos frequentemente com estranhos cuja procedência ignoramos. E não é só a diversidade humana, mas toda sorte de estímulos em torno, todo espaço natural e construído nas cidades tende a constituir um ambiente de descontinuidades que nos interpela e que exige constantemente um gesto de nossa parte. É a intensidade urbana. (CAIAFA, 2007, p. 105).
Curioso a respeito da mesa que se estendia pela calçada no trecho de rua
que o leva à academia onde trabalha, Marcos, o professor de Educação Física
contou que já tinha presenciado aquele café ali em vários sábados. “Nunca parei.
Acho que ficava sem graça; mas com certeza sempre estou com pressa”,
confidenciou enquanto se servia de um pedaço de bolo. Morador daquela região, ele
elogiou a ação se dizendo orgulhoso de saber que a iniciativa era gratuita e
acessível a qualquer pessoa que se interessasse. “Nossa, gente, nem gosto muito
de café, mas essa mesa está muito apetitosa e vocês estão de parabéns”,
comemorou Josias, aposentado, que carregava uma sacola com verduras frescas
recém adquiridas no mercado. Ao se servir de café e biscoito, conversou com as
pessoas que estavam em torno da mesa.
Corroborando com ideia de sociabilidade que Josias enalteceu, a vendedora
do bazar de roupas usadas, Paula, elogiou as iniciativas. “Muito bom. Participo de
tudo e, mesmo quando não venho, fico olhando de longe. Gosto do encontro entre
56
Entrevista realizada em 12 de novembro de 2016.
120
vizinhos das lojas e dos moradores, além do público que sempre chega de mansinho
e depois se integra”. Há cinco anos ela acompanha “o movimento”, como intitula, na
calçada.
“Nossa, estou surpresa. E confesso: muito feliz” comenta a vendedora de
frutas do Mercado há uma década, Adriana Soares, que nunca tinha visto ou
acompanhado um café ao ar livre naquela rua. Ao lado da vendedora, Fabrício
Figueiredo, músico, prova a broa com o café e garante que a combinação “tão
mineira” o faz lembrar da fazenda do tio-avô “numa saudade gostosa”.
Figura 51 - Bule com as inscrições “Gentileza traz beleza...”
Fonte: Foto da autora, 2016
“Gentileza gera beleza, gera amor, gera felicidade... alegrias e bem querer” é
a inscrição feita à mão que está atada à alça do bule de louça, que serve de jarro
para flores. A tirinha de papel com os dizeres veio como identificação na embalagem
do bolo de cenoura e farinha orgânica, trazida como doação para o Café. “O mínimo
que posso fazer para colaborar com esta iniciativa que sempre, em todas as vezes
que já vim, me oferece muito em termos de troca”, enaltece a pedagoga Aparecida,
que trouxe a filha Valentina, de cinco anos, para aquele café de todos. Assim, de
forma natural, faz coro com as propostas de dádiva – que pressupõem convites e
partilhas – estudadas por Marcel Mauss.
121
As dádivas circulam [...] com a certeza de que serão retribuídas, tendo como „garantia‟ a virtude da coisa dada que é, ela própria, essa „garantia‟. Mas, em toda sociedade possível, é da natureza da dádiva obrigar a termo. Por definição, uma refeição em comum, uma distribuição de kava, um talismã que se leva não podem ser retribuídos imediatamente. O „tempo‟ é necessário para executar qualquer contraprestação. A noção de termos está portanto logicamente implicada quando se trata de retribuir visitas, [...] celebrar festas alternativas, retribuir serviços rituais e de honra. (MAUSS, 2003, p. 234-5).
Aparecida fala de reciprocidade ao escrever que gentileza gera beleza, gera
amor e gera outros sentimentos. Alude à dádiva, que circula. E quando ela oferece
gentileza recíproca, me faz pensar e atentar que também se aplica aos gestores do
café, que recebem produtos e vasilhas de algum doador e retribuem com o café
grátis aos passantes que retribuem com os agradecimentos e os elogios.
Na mesa e no entorno dela, além dos momentos que envolvem os
preparativos, é visível o clima festivo e ritualístico, que toma aspecto de festa, capaz
de revelar um traço cultural da sociedade mineira. DaMatta, ao ressaltar o caráter
revelador dos rituais frente às cristalizações sociais de uma sociedade, afirma:
“serve, sobretudo na sociedade complexa, para promover a identidade social e
construir seu caráter. É como se o domínio do ritual fosse a região privilegiada para
se penetrar o coração cultural de uma sociedade.” (DAMATTA, 1983, p. 24).
DaMatta ao analisar o que une casa e rua como categorias sociológicas,
considera o cotidiano e as práticas sociais como fundamentais para o entendimento
da sociedade brasileira. Casa e rua não designam simplesmente um espaço
geográfico
[...] ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas. (DAMATTA, 1997, p. 14).
No caso específico do café comunitário, uma ação de sociabilidade que,
embora, reúna uma diversidade de pessoas que espontaneamente estabelecem
uma relação social, é capaz de expressar memória, emoções, sentimentos que
numa prática coletiva retroalimenta a identidade mineira. Nessa perspectiva, a cena
e o cenário, que se constroem e se diluem quase na mesma instantaneidade,
possivelmente se caracterizem adequadamente como “situações rituais”, na leitura
de Agier:
122
[...] marcadas por uma distância do cotidiano regrado de acordo com diversas formas liminares [...]. Num espaço delimitado de tempo e apropriado, o tempo de um acontecimento ritual, de um encontro, é simbolizado entre indivíduos e um coletivo, visível ou não. A unidade indivíduo-espaço-sociedade faz-se de maneira efêmera. (AGIER, 2011, p. 97-8).
A calçada, como espaço público, é quase como o coração – numa analogia à
sua importância – da cidade, numa síntese da vida pública informal. Nela se reúnem
pessoas que “não se conhecem de maneira íntima, privada, e muitas vezes nem se
interessam em se conhecer dessa maneira.” (JACOBS, 2011, p. 59). Jane Jacobs
afirma que esta é a grande “serventia” da cidade, em que os contatos estão além da
vida privada e que, em contatos prévios e regulares, triviais até (pessoas que param
num bar para uma cerveja, uma conversa com o jornaleiro, os fregueses da padaria,
como aponta), constitui-se um pressuposto de apoio que é a confiança. Pequenos
contatos públicos nas calçadas das grandes cidades resultam “na compreensão da
identidade pública das pessoas”, cujo cultivo não é institucionalizado – e nem
poderia, como frisa Jacobs.
Ela é crítica do planejamento urbano e das propostas de reurbanização que
muitas vezes desconsideram as necessidades sociais e pessoais dos cidadãos e
priorizam a estética arquitetônica tornando a cidade um espaço disfuncional. A
autora ressalta que a vizinhança é uma instância que mescla o público e o privado,
em que a confiança e a partilha são elementos fundamentais para selar as
interações sociais. “Compartilhar é um termo legitimamente aversivo para um velho
ideal da teoria do planejamento urbano. [...] O compartilhar, aparentemente um
recurso espiritual dos novos subúrbios, tem um efeito destrutivo nas cidades”
(JACOBS, 2011, p. 67). E é, mais uma vez, taxativa: “O resultado mais comum nas
cidades, onde se veem diante da opção de compartilhar muito ou nada, é o nada”.
Retomando a análise do Café Comunitário certamente há uma partilha
também no sentido da vizinhança de Jacobs quando os comerciantes e vizinhos
tomam café. A partilha que o café proporciona no Centro da cidade forma entre as
pessoas participantes uma espécie de ilha nesse mar de efemeridade, de trânsito
rápido e de ruído intenso. Thereza, ao propor um público/audiência plástico e fluido,
que se aproxima da mesa ao vê-la ao longe, propõe uma maneira de fazer uso dos
espaços da cidade, de forma diferente de visualizar o mundo urbano e novas formas
de sociabilidade.
123
Todo o processo é permeado por relações transitórias entre os que chegam,
os que saem e os poucos que ficam, que são os que compõem a ONG, que
organizam a cerimônia ou que prestam serviço voluntário. Assim como chegaram,
partem sem muitos registros além das impressões sobre aquela iniciativa e sobre o
dia, em comentários ordinários.
Compartilhar na e da mesa de café pode ser ampliado para a doação
voluntária de itens para a mesa como o café e os pães e bolos, no ato de passar o
café, servi-lo, manter a mesa limpa e as xícaras lavadas; na convivência frugal entre
os “convidados”, na troca de ideias, nos comentários sem importância e nas outras
amenidades do cotidiano. Realço nessa partilha a sutileza na montagem da mesa, a
variedade de quitandas e a qualidade das xícaras de louça. Em conjunto com a
toalha de tecido, demonstram o cuidado com que o Café Comunitário é oferecido. A
artista Marta Neves escreveu sobre o café no site do Undió: “Não há convidados,
senhas, preço e nem se trata de caridade antiestética de bebida servida em copos
de plástico. Comunhão?”, ela deixa a pergunta como uma provocação.
6.2 A toalha bordada e rebordada
Figura 52 - Bordado sendo confeccionado durante o café
Fonte: Foto da autora, 2019
As toalhas que recobrem a mesa tornam o momento do café duradouro ou até
mesmo permanente para aquelas pessoas que decidem bordar. Cada uma delas
que voluntariamente se propõe a, com agulha e linha, deixar sua marca, vai
124
deixando registrado em linhas coloridas e traços livres, seu grau de habilidade,
experiência, participação, criação imaginária ou expressão artística. “Nossa, eu
bordei esse coração há uns três anos”, diz a estoquista Nádima, transparecendo a
felicidade de identificar o registro que fez no tecido branco.
Figura 53 - Apetrechos para bordar – linhas coloridas – sobre a mesa de café, decorada com mudas plantadas em xícaras
Fonte: Foto da autora, 2019
Figura 54 - Detalhe da mesa de café
Fonte: Foto da autora, 2019
125
Junto com os enfeites dispostos em cima da mesa – jarros com flores e
folhagens – há o material para bordar, ao alcance das mãos. Uma latinha reúne
linhas coloridas, tesoura e uma dezena de agulhas espetadas em uma almofadinha.
Está presente ali, na organização dos elementos para o bordado, o mesmo cuidado
dedicado aos alimentos, numa evidenciada situação ritualística, como já vimos. “Ah,
mas eu não sei bordar”, informa uma senhora que recebe como resposta de uma
voluntária que passa o café: “Esta é a intenção: que a senhora faça do seu jeito e
exatamente o que tiver vontade”.
As linhas coloridas estão à espera de mãos que dêem formas a casos,
objetos, sentimentos, lutas ou que queiram contar uma história. Em cores diversas,
ilustrarão o tecido branco em pontos de bordado. (Figura 55). E, mais interessante e
que enche de pessoalidade o ato: saber bordar é o que menos importa e não é um
requisito; o que basta é ter vontade de bordar. Essa mensagem de estímulo à
participação é repetida pelos convivas daquela manhã e se explicita na revelação de
Ilmo: “Não sabia nem colocar linha na agulha... A colega me ajudou aqui”.
Estabelece-se tanto o valor relacional quanto o valor da experiência nos
testemunhos construídos em traços pessoais bordados. Contato, convívio, troca e
experimentação se juntam.
Figura 55 - Detalhe do bordado na toalha branca
Fonte: Foto da autora, 2016
126
Figura 56 - Grupo de bordado em torno da mesa de café
Fonte: Foto da autora, 2019
“Aqui borda quem quer e borda o que quiser, porque o ato de entrega tem
grande valor”, reforça uma voluntária que está passando café. Ao ouvi-la, me
apercebo da cena e me espelho na fala dela. Por diversas vezes, durante as
temporadas, estive bordando pequenas coisas enquanto esperava a água ferver.
Nesse ínterim, estimulava as pessoas que chegavam perto de mim a tentarem fazer
seu próprio registro. No convite a pegar a agulha e escolher uma cor de linha, eu
ficava satisfeita ao ver que o chamamento era aceito pela maioria das pessoas.
Percebia uma genuína dedicação de cada uma. Bordar sempre teve uma carga
afetuosa para mim, que venho de uma família de mulheres que bordavam enxovais
das filhas e netas.
Constato a relação dialética entre o café, que é fluido e efêmero, e a toalha
sobre a qual ele é ofertado, em tecido durável. A cada novo evento, a longa toalha
reina sobre a mesa e recolhe – eterniza, talvez – trechos da vida de diversas
pessoas. Duração e impermanência, materialidade e imaterialidade em diálogo
naquele ato que vivencio em mais um Café Comunitário.
Mas a toalha bordada coletivamente ao ar livre acolhe outro apelo que
contrasta com a individualidade de cada participante. Facilmente se percebe que
aquela é uma tela em que as causas políticas e a militância estão representadas.
Mais uma vez, a resistência está exposta nas proposições do Nessa Rua Tem um
Rio. Muitas mensagens da toalha eternizam algumas lutas como “Justiça”;
“Movimento População de Rua”; “Desistir jamais”; “Fora Temer”; “O futuro é nosso”.
127
Figura 57 - Detalhe da toalha
Fonte: Foto da autora, 2016
128
Ainda que o Café Comunitário aliado à toalha seja planejado por seus
organizadores, ele é interpretado por diferentes percepções de diferentes atores
sociais, como explica Márcia, voluntária, artista plástica: “permitem que as pessoas
fiquem inquietas e que circulem por aqui. Assim, descobrem do que se trata e dão
sua visão sobre o que viveram”. Cita o caso de uma senhora “de uns 70 anos” que
perguntou o sentido de tudo aquilo. “Quando eu devolvi a pergunta a ela, porque eu
estava curiosa para ouvi-la, me disse que não sabia do que se tratava, mas que se
sentia bem ali”. Gerar uma cidade mais afetuosa e que pertence aos habitantes dela
é uma das intenções de Thereza, bem expressa naquela narrativa. E relembra que
aquela mesma senhora terminou a visita bordando uma flor na toalha; ao se
despedir, disse: “deixei minha marquinha na toalha”. Trata-se da “produção coletiva”
de experiências provisórias e locais de que trata Caiafa (2007).
Figura 58 - Bordado sendo feito
Fonte: Foto da autora, 2019
A mesa sempre farta traz um sentimento acolhedor e, junto com ele, inúmeras
reações. De minha parte, ainda me surpreendo com a vitalidade presente a cada
nova temporada. Depois de dezenas de participações em múltiplos papéis – como
voluntária que côa café e que repõe itens da mesa, como convidada, como
pesquisadora –, acredito que jamais me cansarei vivenciar toda essa cena. Alegro-
me com a profusão de cores e formas das xícaras, acho interessante a desordem
proposital de pires e xícaras, me satisfaço vendo os convivas da mesa
experimentando a variedade de alimentos, gosto da cadência de pessoas que vem e
129
vão. Agrada-me o pulsar da vida em uma sutil comunhão, e que dura instantes, que
vejo ali.
O poder de afetação tem repercussões diferentes entre as pessoas que
ocasionalmente transitam pela rua e entre as pessoas que têm na rua sua rotina,
como os comerciantes. “Boa atitude, né?! Quisera muitas outras pessoas fizessem
isso”, manifesta-se um pedestre. De outro ouço: “Que cortesia! A cidade precisa
disso”. O afeto que é percebido naquela mesa também é repercutido por um terceiro
pedestre que me pergunta quem promove a ação. “Faço questão de dar os
parabéns porque me deixou muito contente e acho que é um gesto muito bonito”,
arremata, antes de se aproximar de Thereza e de trocar algumas palavras. A
gestora demonstra sua alegria ao sorrir, agradecer o elogio e oferecer um café. Ela
evidencia satisfação em alcançar, naqueles instantes, alguns objetivos do projeto
que criou.
Para quem enxerga altruísmo naquela doação de tempo, de café e pão, de
partilha, uma consideração recorrente durante a pesquisa, trago um pensamento do
teatrólogo Haddad, quando escreve sobre o acesso livre às artes e a necessidade
de compartilhar. Ele nos ajuda a refletir sobre a necessidade de propor alternativas e
acesso, evitando o que chama de “pior” em nós:
O ser humano perde, assim, o sentimento generoso da doação e se transforma cada vez mais naquele que se preocupa mais em acumular do que em distribuir. O mundo em que vivemos parece querer nos transformar na pior das criaturas, e das mais ferozes e egoístas da natureza. (HADDAD, 2009, p. 50).
131
7 INTERVENÇÕES ARTÍSTICAS NA CALÇADA: PERFORMANCES E RELAÇÕES
Num sábado pela manhã, dia 07 de dezembro de 201557, dia típico de
movimento e importante para as compras e para resolver pendências da semana
que passou, estava estendido na calçada da rua Padre Belchior um inusitado tapete
vermelho. Dava uma ideia de uma passarela improvisada para um desfile de
importantes figurinos urbanos representados pela gari, pelo coletor de material
reciclável, pela senhora com sacola de feira, entre tantos outros, que com seus
passos cadenciados, desfilavam na imaginária passarela. O tapete vermelho foi
colocado pela artista Marta Neves e se constitui uma intervenção artística nomeada
de “Pessoa muito importante” (Figura 59), numa ironia com o termo em inglês Very
Important Person (VIP). Aquele espaço acarpetado vermelho, delimitado, cria, na
minha concepção, uma limitada “ilha” retangular improvisada na cidade que traz
visibilidade: na rua, para a rua e da rua.
Acanhada, a senhora segurando a mão de uma criança resiste, mas é
convencida pela menina que pisa decididamente no tapete e se diverte com a
situação. A gari, vestida em seu uniforme laranja nem titubeia: caminha pelo tapete e
ainda ensaia passos de um sambinha, abraçada à vassoura. Naquele momento, ela
se transforma na orgulhosa porta-bandeira da escola de samba do coração que
abraça seu panteão e se empolga no bailado. Muita gente, porém, desvia do tapete
e alega não querer “pagar mico” ou se atemoriza no caso de fazer alguma coisa
errada pisando ali; e assim, seguem sendo anônimos passantes.
Diferentemente, a gari que varre a rua e o office boy – ele também faz
questão de passar pelo tapete e solta uma gargalhada enquanto diz: “Sou Will Smith
e vou pegar meu Oscar” –, incorporam a figura de celebridades. Eles, pessoas
comuns, subvertem o sentido do tapete vermelho. Naquele ocasião, desfilam com
graça e desprendimento sobre o tapete enquanto são saudados com palmas e
assobios pelos espectadores que estão no ponto de ônibus ou que passam pela rua.
57 Naquele sábado em que o tapete vermelho foi estendido, aconteceu a XVIII Temporada do projeto
Nessa rua tem um rio. Naquela temporada, que durou da manhã até a noite, uma programação variada foi montada. Houve uma série de eventos do Coletivo Beco e uma prática esportiva oferecida pelo Baixo Bahia Futebol Social, time feminino que promove o esporte em caráter coletivo e transforma as ruas da cidade em campo aberto para as práticas cotidianas de compartilhamento. Além disso, foi posta a mesa de Café Comunitário e lançado o Caderno de Experiências do Seminário “Arte, cultura e transformação social” da Associação Favela é Isso Aí.
132
Figura 59 - Intervenção “Pessoa muito importante”
Fonte: (INSTITUTO UNDIÓ)
Aquele tapete tangiliza, ou quer tangibilizar, uma vivência, o que há de
relacional na experiência estética, que é multidirecional. E o título da obra, “Pessoa
muito importante”, faz mais do que provocar a visibilidade ao trazer instantes de uma
fama alegórica e cênica, ela dá visibilidade aos despercebidos socialmente,
oferecendo uma situação de glamour. Eles próprios são os autores da performance,
vivendo ali aspectos como a efemeridade e a dramaturgia da vida social em que os
papéis e as funções são diferentes daquelas da vida real.
“Olha, que surpresa ver este tapete aqui!” comenta Maristela, dona de casa,
apontando para a faixa vermelha que recobre uma parte da calçada. Antes de pisar,
ela pergunta se pode realmente caminhar sobre o tapete, ao que é estimulada pelo
público. Depois de fazer sua caminhada como pessoa muito importante, ela nos
conta:
Vir ao mercado é meu programa dos sábados. No início, vinha comprar ingredientes para o almoço da família. Agora, filhos criados, venho com menos compromisso. Mas este tapete, que parece uma passadeira, é uma novidade, né?! Nunca tinha visto... E olha que sempre passo por aqui. Ah, é arte? Interessante. Precisamos sempre nos renovar pra acompanhar o mundo. Eu acho! (Maristela, dona de casa).
Ao participar daquela performance observando e aplaudindo, me senti
inquieta pensando sobre algumas questões. Será que o tapete, em forma de
passarela, trouxe sensação de pertencimento por quem por ele passou? Será que
133
transeuntes que nunca repararam na calçada passaram a se aperceber daquele
espaço? E será que, naquela rápida interação, os transeuntes notaram as presenças
uns dos outros como sujeitos e não meros passantes? De acordo com Cartaxo
(2009), essas novas posturas e procedimentos não possuem o seu valor estético
aderente à forma, mas uma condição de acontecimento-efêmero, em que a
participação do público é relevante e, por vezes, imperceptível.
No esforço de subverter a rotina previsível, compassada e obrigatória, e
discutir as redes assimétricas de poder na cidade, em 2012, Marta apresentou
Nessa Rua Tem um Mar. A obra estabeleceu diálogo direto com os passantes, a rua
e o projeto. Na performance, tábuas de passar roupa transformaram-se em pranchas
de surfe. A artista ocupou com voluntários e com o público o asfalto da Rua Padre
Belchior, em movimentos de equilíbrio sobre as tábuas e em manobras corporais.
Trouxe à discussão a questão das águas escondidas naquele trecho de rua;
estimulou também a vivência lúdica e despretensiosa de um esporte adaptado às
condições da provocação que a intervenção foi capaz de estimular. “Foi incrível
porque as pessoas queriam participar, estavam felizes de estarem ali. Coisa rara de
ver, né?!”, reflete e conclui que “sim, são momentos cada vez mais raros”.
Na situação ritual, posto que a performance tanto é teatro quanto é ritual –
concepção da trança (SCHECHNER, 2013) –, Agier nos recorda que as criações
artísticas podem por em relação indivíduos diferentes, anônimos ou não, da
multidão, “todos à procura de conexões e de associações que procuram existir
contra o vazio de sentido e de relações que espreitam, como ameaça, qualquer
habitante das cidades.” (AGIER, 2011, p. 174). No caso das pessoas que pisavam
no tapete ou nas pranchas/tábuas, elas expressavam o pertencimento e a
visibilidade das diferenças ocupacionais e sociais no espaço urbano.
Um período antes de começar minha pesquisa no campo, assisti alguns
vídeos de registro de outras intervenções. Em uma delas, os artistas do coletivo
Xepa e alguns pedestres e convidados secavam barras de gelo com paninhos
brancos, calmamente passados sobre as superfícies repetidas vezes, provocando
um estado de continuidade quase meditativo. A ideia de “enxugar gelo”, estapafúrdia
e inútil, conseguiu afetar os espectadores. Thereza se diverte recordando de uma
cena durante a performance. Um pedestre parou e ficou observando aquele
movimento por algum tempo. Ele demonstrava seu estupor coçando a cabeça e
tentando ver sentido no ato. Até que, numa reação ao exaspero, falou alto para
134
todos ouvirem, como se quisesse obter adesão de outras pessoas: “Ah, secar é fácil;
quero ver passar!”.
E foi assim que, numa provocação do público, nasceu o desdobramento
“Enxugar é fácil: quero ver passar” (Figura 60), em que os artistas passavam as
barras de gelo com antigos ferros de passar aquecidos à brasa. O caso denota um
diálogo que provém da afetação provocada pela intervenção artística. E, ainda, as
duas performances reverberam os atos de arte desmaterializada de uma forma
quase palpável que é a inexorabilidade do gelo se derretendo.
Figura 60 - Secando gelo
Fonte: (XEPA, 2010)
Figura 61 - Performance “Secar é fácil: quero ver passar”
Fonte: (XEPA, 2011)
Na temporada do dia 21 de dezembro de 2015, foi organizada a Academia
das Vassouras. Foi uma varrição coletiva da rua, comandada por Dudude Herman,
135
autointitulada artista de dança e improvisadora, uma das propositoras da ação. Eu
estava ali não apenas como observadora, mas participante do movimento. Busquei
minha vassoura entre aquelas que estavam penduradas na grade da fachada do
Undió (Figura 62) e me coloquei varrendo a rua. Vários pensamentos e sentimentos
me atravessaram naquela performance. O ato de varrer além de ter sido uma
diversão seja pelo inusitado da ação, seja pelo próprio movimento, trouxe-me a
experiência da alteridade ao estar no lugar de “varredora de rua”. Imaginei-me
vestida com o uniforme laranja, típico daquelas trabalhadoras, e pude ter a
dimensão do esforço físico que a atividade exige. Limpar a rua foi uma atitude que
veio, para mim, carregada de civilidade ao pensar no espaço público.
Enquanto varria, eu ouvia as exclamações de surpresa de quem esperava o
ônibus no ponto e de vários passantes. Dudude, que discute em sua obra a poética
do andarilho, alardeava, com um megafone, as inúmeras utilidades de se exercitar
enquanto se cuida daquela calçada (Figura 62 e Figura 63). “Vem, gente, vem fazer
a dança da vassoura! Vem pra limpar a rua! Vem pra trazer alegria pra vida!”,
conclamava a todos os ouvintes a compartilharem o momento. “O que está
acontecendo aqui? Vocês varrem pra quê?” me pergunta um pedestre que espera o
ônibus. Sem saber da dúvida do homem, Dudude fala: “A rua vai ficar mais bonita!”,
ecoa a voz da artista como se fosse uma resposta aos olhos inicialmente incrédulos
do pedestre.
A “Academia das Vassouras” aciona, na performance participativa, a “arte
desenmoldurada”, que Canclini (2016) apresenta, discutindo a arte atual como sem
rótulos, sem suporte fixo. São desmaterializadas (ZANINI, 2018; JESUS, 2018) e se
fortalecem potencializando o que está implícito à poética proposta ao gerarem
elucubrações e ao provocarem vivências singulares – posto que são experiências
carregadas de subjetividade – e propõem discutir, entre outros temas, o ritmo
urbano, com sua profusão de sistemas de signos.
136
Figura 62 - Varrição – Academia das
Vassouras Figura 63 - Varrição – Academia das
Vassouras
Foto: Alexandre Pimenta Foto: Undió - Divulgação
Em outra intervenção, anterior – entre maio e julho de 2015 –, uma pequena
loja vazia que estava para alugar tornou-se a “Loja Nada”, ao lado do Undió,
dividindo espaço com estabelecimentos comerciais diversos e residências e com a
movimentação diária daquela rua. “Montamos a coleção Undior na Loja Nada em
2015. Foi um sucesso e queria repetir. Era um espaço minúsculo da loja antiga e
temos, no entorno, todos aqueles apelos de comércio popular ali”, narra Marta, uma
das idealizadoras da obra. Uma das idealizadoras, a artista plástica Marta Neves,
explica: “A discussão é a respeito do consumo. Como será que as pessoas se
comportam numa loja em que não há nada a ver, nada a comprar? Trazer a
inquietação da dúvida nos interessa.”.
Quando repetiu a performance dentro da programação “Noite nos Museus” –
em que os museus e centros culturais da cidade ficam abertos no inusitado horário
da noite e da madrugada –, a intervenção teve efeito visual para criar a ilusão de um
outro espaço, com outra intencionalidade naquela calçada de comércio popular. “Na
Loja Nada montamos um painel que reproduzia uma loja chique na parede, com
escadaria com detalhes em dourado nos corrimãos e luminárias e em outros
adornos”. A crítica ao excesso foi direcionado ao consumo de luxo, tendo a marca
Dior como “inspiração” e a presença de drags queens, dela própria e do artista
Fernando Cardoso. A intervenção aconteceu com a participação ativa dos
pedestres; muitos deles chocados com o que assistiam, fato que diverte Marta.
“Eu acho os eventos que acontecem aqui ações úteis e necessárias!”. Assim,
com essa frase de efeito, começamos nossa conversa, eu e a cabeleireira que, da
137
janela, enxerga a casa do Undió. (Figura 64). Ela é vizinha há oito anos. Ali na casa
que ocupa com a filha, funciona também o salão de beleza especializado em
apliques: “é o mega hair”, esclarece. “Conheci a Thereza de uma forma amistosa
porque sempre que me via, me cumprimentava com um „oi vizinha‟ e eu ficava feliz.
É uma espécie de proximidade que não é apenas física, entende?”, relata. Quando
eu me mudei, logo vi o movimento. Acho o momento de dividir a mesa ali na calçada
valioso para rever a vizinhança”, faz o comentário como um devaneio.
Figura 64 - Vista da janela da casa da cabeleireira
Fonte: Foto da autora, 2019
Entusiasta das ações que testemunha da janela e que participa quando pode,
ela acredita, pela sua fala, que muitas atrações são escolhidas para emocionar e
trazer identificação. É caso concreto o chuveiro, que ela recorda com alegria:
[...] já vi e participei de tanta coisa bacana ali. Eu acho que a Thereza busca coisas que as pessoas conhecem, como a demonstração das plantas medicinais (ela se refere a uma mesa de chá que teve as ervas amarradas a uma corda sobre a mesa, em que as pessoas podiam fazer seu próprio chá), o chuveiro feito de balde. Nossa... Nesse dia, eu fui lá pra minha terra e me senti criança outra vez: nós tomávamos muito banho de balde, eu e minhas três irmãs. Minha mãe enchia de água quente. O chuveiro achei muito interessante e tomei banho nele! Chegou a me emocionar mesmo. Já sei que teve teatro, só não pude ver. Já assisti o cinema na parede (ela se refere ao Cine-Ó, que reproduz filmes na parede do pátio interno do instituto). Mas o café é.... Nossa, nem sei o que dizer. A gente não tem tempo de tomar café junto, então eu acho que é uma oportunidade e tanta. Puxar um dedo de prosa, ter aproximação. (Cabelereira).
138
Positiva e animada, ela se queixou apenas do movimento comercial, que caiu.
“Antes havia mais bazares e „topa-tudo‟, mas agora tem mais bares, o que muda
muito o ritmo da rua”. Entrevistar Néia foi uma atividade leve e que demandou
apenas anotações porque o assunto fluiu com tranquilidade. Ela, como apreciadora
das intervenções, tinha informações interessantes e estava disposta a dividi-las
comigo.
Longe das manifestações artísticas que acontecem na rua, como o tapete, a
varrição ou a secagem de gelo, o tema meio ambiente ocupa as atenções de quem
participa das temporadas. Para discutir a incidência dos pássaros no dia a dia
urbano, a artista e ornitóloga Karina Felipe fez uma longa pesquisa sobre as aves
que desapareceram da capital mineira – por extinção ou por escassez. O resultado
do estudo é apresentado na intervenção “Boletim das Aves”, que destacou o
desaparecimento do gavião real além do encontro do trinca ferro e do carcará nos
céus e nas árvores de Belo Horizonte.
Para anunciar suas descobertas, montou uma série de cartazes com os
pássaros: desaparecidos, procurados e encontrados. (Figuras 65 e 66), que foram
expostos na fachada do Undió e nas paredes da casa. Colados nas fachadas e
muros dos espaços públicos, cartazes que anunciam algo e têm como alvo quem
passa pela rua são chamados de lambe-lambes. Como uma arqueologia urbana e
recente, as mensagens de “Procurado”, “Encontrado” e “Desaparecido” se
assemelha a páginas policiais.
139
Figura 65 - Cartaz de pássaro
procurado Figura 66 - Lambe-lambes colados na fachada de prédio ao lado do Undió
Fonte: Foto da autora, 2018 Fonte: Foto da autora, 2018
Ela explica sua intenção de discutir em qual grau a cidade é um espaço de
prisão e não de liberdade. Os pássaros são a metáfora perfeita para a inquietação
que moveu a artista, que tem um vínculo com o Undió, como conta: “Fui estagiária
por um ano e meio no projeto em 2011-12. As discussões aqui são inquietantes
porque falam do sutil e na sutileza se revelam grandes verdades”. Para completar a
intervenção, Karina também fez um jardim vertical nas grades do portão do Undió,
com mudas das sementes germinadas de comidas de passarinho (painço, girassol,
alpiste, aveia), substituindo por verde aquele símbolo de proteção.
Em nova noite de “Noturno nos Museus” de 2019, o Undió participou com
uma programação variada. Um público mais eclético e diferente do que aquele que
transita pela rua aos sábados apareceu. Eram estudantes de artes, professores,
voluntários e amigos do projeto. A parede do Undió (Figura 67) e a fachada do
prédio do outro lado da rua estavam ineditamente iluminadas por projeções gigantes
de cenas das ações do Nessa Rua Tem um Rio. Alexandre Pimenta contou que de
um extenso álbum com fotos das muitas dezenas de eventos organizados na rua
140
surgiram as imagens escolhidas. Na varanda e dentro da casa, acontecia exibição
de micro teatro – teatro em caixinhas –, com tramas que duravam de um a cinco
minutos (Figura 68, em que Júlia Portes está assistindo a uma peça).
Figura 67 - Noite dos Museus – projeção
Figura 68 - Noite dos Museus – Teatro portátil
Fonte: Foto da autora, 2019 Fonte: Foto da autora, 2019
Naquela noite, aconteceu uma nova performance, “Brigas”, de Marta Neves,
em companhia de Fernando Cardoso. Foi “um jogo com questões de amor, parceria,
gênero e, lógico, brigas”, Marta narra. “Trata-se de uma performance-piada,
inspirada no processo pessoal dos dois, há um ano em separação de casamento”.
Os dois chegaram à varanda da casa vestidos de uma forma chique: ela de vestido
longo, usando peruca loura e ele de terno, com os cabelos penteados para trás.
Ambos traziam escovas de cabelo nas mãos, para servir de microfone. O repertório
era composto por três músicas de Ângela Maria e Cauby Peixoto que tocavam em
play-back ao fundo. “Brigas tem esse envolvimento forte com questões de gênero,
ele com a voz fina e eu com o tom grave, somado à coisa da intersexualidade que
descobriu e não esconde mais. Daí a troca de vozes na hora”.
141
Figura 69 - Performance “Brigas” em alguns frames
Fonte: Fotos da autora, 2019
Além das intervenções que planeja, cria, organiza e executa nas Temporadas,
Marta tem um vínculo com o Undió por meio da Academia Transliterária (2020) que
“é minha ação mais presente e constante, com reuniões semanais: tudo transitório, a
sede também é, mas acontece mais frequentemente no Undió por parceria firmada
com a Thereza”. A Transliterária é coletivo de artistas e escritores trangêneres, que
surgiu para agregar trabalhos artísticos, literários e demais vertentes culturais da
população transexual, travesti e transgênero Marta reporta uma performance criada
de forma coletiva em 2017 a que atribui significado especial, chamando de
“coroamento” das atividades organizadas pelo grupo. “Nós montamos um cartório,
que executa ações formais e tem toda essa aura de legalidade, em um mundo
paralelo e chamamos de A quebra da maldição desde o seu nascimento – Cartório
Transliterário. Com o cartório montado, era emitida a certidão de posse do próprio
142
corpo, com carimbo de Barbie, lacre com purpurina e benção final do artista Marco
Paulo Rolla. Eram nossos parceiros Nickary Ayker e Toda Deseo, coletivo de teatro
que aborda as questões relacionadas a identidades de gênero e orientação sexual.”
Em mais um sábado de temporada de Nessa Rua Tem um Rio, a “XXIX
Temporada de Intervenções”58 ocorreu no dia 11 de maio de 2019. Uma
performance estava sendo aguardada e só se sabia que seria do lado de fora da
casa. Mais precisamente seria em deslocamento pelas calçadas, Marcada para as
onze horas da manhã, já passava do meio dia e não havia nem sinal dos artistas.
Uma certa inquietação estava perceptível entre os voluntários que participavam da
mesa do café, seja coando o café, seja repondo xícaras e pães na mesa. “Será que
vai dar tempo? Já tô indo embora”, resumiu a professora Leila Cruz. E, junto com
ela, eu fazia coro, apreensiva, já que tinha um compromisso na hora do almoço e
talvez perdesse a observação daquela intervenção, apesar da minha expectativa.
Quinze dias antes, em passagem pelo Undió, conheci os dois artistas e trocamos
rapidamente algumas palavras e impressões, o que reforçou a vontade de ver os
resultados do que eles planejaram.
Mas, enquanto havia um tempo suspenso à espera, as ações continuavam
acontecendo. O café seguia sendo servido e pessoas continuavam bordando a
toalha. No quintal da casa, seis crianças estavam sentadas em roda no chão de
cimento, brincando com pedras, folhas e flores. Ao lado delas, uma exposição de
jogos manufaturados artesanalmente me fez entrar num túnel do tempo e me
lembrar da minha longíngua infância. “Pescaria” (com seres marinhos feitos em
feltro), caleidoscópios variados e a minha favorita: “Cinco Marias”. Jogar os cinco
saquinhos em formato de almofadinhas para cima e criar manobras com as mãos
era um jogo que fez meus dias de brincadeiras com vizinhos sempre mais felizes. E
não me bastava jogar; eu me sentia especialista em costurar os saquinhos
pequenos com arroz dentro para participar de alguns “torneios” que organizávamos
entre amigos.
58 A contagem das temporadas acontece de acordo com os eventos, de acordo com Thereza Portes.
Sem periodicidade regular, para ser “temporada” sempre há um mix de acontecimentos, “mas nada muito específico. E o nome temporada ficou mais interessante porque não queríamos chamar de edição. As temporadas acontecem desde 2010 e para cada uma delas fazemos cartaz para divulgar”, me conta em conversa em 02/01/2020.
143
Figura 70 - Crianças fazem dobraduras em papel
Figura 71 - Área externa do Undió em dia de Temporada
Fonte: Foto da autora, 2019 Fonte: Foto da autora, 2019
Voltando às crianças, elas de vez em quando se levantavam e interagiam
com o jardim e os vasos de plantas, orientadas ou não pelos adultos. Assim como o
que ocorreu comigo, aquela cena trazia vários elementos de resgate, a começar
pela atitude curiosa daquelas meninas e meninos com os elementos da natureza, e
depois com as dobraduras de figuras em origami (Figura 70), em uma ludicidade
sem telas – TV, celular, computador. As outras práticas traziam as brincadeiras
simples, que exigiam interação entre os brincantes, num resgate de modos de
socialização. “Ai, que saudade senti de brincar de casinha e fazer comidinhas”,
escutei de uma visitante que aparentava ter uns 60 anos.
“Cath & Pilar – pedras e pedrinhas” era uma mostra anunciada no convite
daquela temporada e que compôs o programa da manhã. A Cath e a Pilar estavam
naquele grupo de crianças assentadas no chão, com as pernas cruzadas ou para
trás, participando das brincadeiras. Enquanto se envolviam descompromissadas
com o brincar, cuidaram de deixar orientações: uma placa feita a mão indicava
“Cuidado”, ao lado de outra com a inscrição “Não toque”. Os avisos manuscritos por
uma letra infantil ofereciam “Instruções para apreciar a coleção de pedras”. A
coleção de pedras era um dos destaques da programação daquele dia.
Thereza Portes, quando perguntada sobre a realização da performance, disse
que os dois artistas estavam chegando: “Olha: eu estou vendo-os ali na esquina!”,
apontou. As duas pessoas vieram caminhando de alguns quarteirões para trás”.
Sim, ambas estavam ao alcance da vista, mas ainda como “manchas de cor”, uma
vermelha e uma amarelo claro. Andavam pela calçada oposta, paravam,
144
agachavam, se “olhavam”, se tocavam. Em silêncio, sem emitir qualquer som.
Faziam posturas que se assemelham às do yoga e alguns gestos de reverência,
como com as mãos postas juntas coladas ao peito. Se afastavam uma da outra e
“interagiam” com uma parede ou o meio-fio. Seguiam adiante, às vezes lado a lado,
às vezes uma atrás da outra. E, mais uma vez, paravam e interagiam entre si.
Figura 72 - Intervenção "Adeuzará-Zentai"
Fonte: Foto da autora, 2019
Vestidas com macacões de corpo inteiro em tecido elástico de uma cor única,
tipo lycra, tinham os braços, pernas, rosto e cabeça cobertos. A indumentária é
utilizada na modalidade “zentai” – o corpo todo, em tradução literal –, uma
manifestação artística surgida no Japão, que é limítrofe ao teatro e à dança. Ao
mesmo tempo em que escamoteia a identidade da pessoa, o tecido colante
evidencia a silhueta e acentua os detalhes do corpo. A partir daquela roupa que
esconde a individualidade, posso fazer uma leitura sobre a apropriação da liberdade
que o anonimato oferece. Forma-se um instigante paradoxo do “mostrar e revelar”
realçado por “camuflar e ocultar”.
Intitulada de “Adeuzará: Zentai”, a ação homenageia a deusa Rah, uma forma
feminina do Deus Rá, o deus sol na mitologia egípcia. De acordo com o convite que
circulou nas redes sociais do Undió, “Adeuzará: Zentai propõe a experiência de um
encontro inesperado entre o impessoal e aquilo que, no outro, é tanto nuclear quanto
universal; uma inclinação para a existência e a conexão”. Leandro Acácio e Renata
145
Queiroz – junto com Luciana Tanure, que não esteve presente à intervenção –,
foram os artistas propositores da performance; o trio compõem um coletivo que
desenvolve pesquisas transdisciplinares sobre arte, psicanálise e arquitetura na
cidade de Belo Horizonte.
Figura 73 - QRCode 7 - Adeuzará: Zentai 1
Fonte: Elaborado pela autora, 2019
O momento mais interessante para a minha observação e que evidenciou as
bordas flexíveis da arte aconteceu em frente a uma pequena exposição de quadros
na rua. Um bar na calçada oposta ao Undió expõe pinturas de um amigo do
proprietário, como me informou a balconista semanas antes, em uma de minhas
visitas de campo. Na performance, quando os dois artistas chegaram, passaram a
compor o mosaico de imagens com os quadros coloridos e de motivos variados. Um
dos artistas se agachou ao lado de uma obra, de costas, como se estivesse
formando um conjunto com o quadro. Aquele instante trouxe em evidência o que é a
arte convencional, representada pelos quadros, e o que é ou pode não ser arte,
salientada pelos corpos estáticos dos performers.
Houve uma notória interrupção no cotidiano ao unir, naquela manhã, quadros
e corpos performando. Um catador de material reciclável, de passagem por ali com
seu carrinho, olhou para os artistas e balançou a cabeça em sinal de desaprovação.
O senhor Lucas estava de olhos arregalados e não resistiu à surpresa quando
percebeu que o que achava que eram manequins “ganharam vida” e andaram.
“Uai... mas tem uma pessoa viva aí dentro?! Nem podia imaginar. Olha, pra ser bem
sincero, eu não to entendendo nada. Isso aqui é arte: o quadro. Mas, você me dizer
que esses dois aí também são artistas... eu não sabia”.
Aquela pergunta que me seguiu durante todo o transcorrer do campo “Será
arte?” permaneceu presente. Aquela arte institucionalizada e materializada nos
146
quadros, para muitos dos observadores é. Já os corpos performando gestos e
movimentos ao longo da rua talvez não fosse. “Mas é?”, indaga Clarice a Pedro, que
responde que talvez seja, “mas não tenho certeza”.
Figura 74 - Intervenção "Adeuzará-Zentai" em frente a quadros
Fonte: Foto da autora, 2019
Os fruidores estarem intrigados ou até mesmo atônitos evidencia que, embora
a arte contemporânea proponha a apropriação dos espaços urbanos de forma lúdica
e o escape à monotonia, no sentido popular a arte é entendida delimitada em
museus. A frase em tom de descrença “isso é arte? Como assim?” demonstra isso.
Como se estivessem em um tempo suspenso, os artistas prosseguiam na
atuação, enquanto o ir e vir da rua seguia igual. Uma moça falando ao celular vinha
andando apressada em direção aos performers. Quando os viu, diminuiu os passos
e falou com quem estava no celular: “Gente, o que é isso? Coisa doida! Nunca vi
nada parecido... Amiga, vou mandar foto pra você ver isto”. Ela parou a conversa
para tirar fotos da ação artística e, logo depois, estava fazendo pequenos vídeos.
Pareceu-me que ela precisava provar o que via e as imagens estáticas talvez não
fossem suficientes. Seu estupor seguia nas frases que me disse quando conversei
sobre o que ela achava que era a cena na rua. “Uai, não sei não... Você sabe o que
é isso aí? Tô achando o povo meio doidão”, falou e deu uma risada. Fez outra foto
de um novo ângulo e me mandou um tchau com um aceno de mão.
147
Figura 75 - QRCode 8 - Adeuzará: Zentai 2
Figura 76 - QRCode 9 - Adeuzará: Zentai 3
Fonte: Elaborado pela autora, 2019 Fonte: Elaborado pela autora, 2019
Figura 77 - A chegada dos artistas de Adeuzará: Zentai ao Undió
Fonte: Foto da autora, 2019
Quando se aproximaram da casa do Undió, os artistas passaram a criar
interação com o público, eu, voluntariamente participava. Pensei se não seria efeito
da hospitalidade, do nível de convivência ou possivelmente por eles serem os
“convidados” daquela temporada. Receptivo, o público que os aguardava
demonstrava interesse. Os artistas paravam à frente de um ou dois deles e
permaneciam estáticos, como se chamassem para a conversa, que seria muda e
feita de gestos e toques. Comparando aquela receptividade à da rua, pude
compreender que todos foram afetados, mas em graus diversos.
É relevante a análise daquela performance como possível instauradora de
sistemas de apreciação e de entendimento baseados na capacidade de afetação e
na capacidade de modulação da intensidade de interesse, todas essas
148
características subjetivas. Uma boa imagem que identifica essa subjetividade
apresenta-se na Figura 78, a seguir, em que algumas pessoas se envolvem com a
performance, enquanto um grupo que está bordando a toalha branca continua
concentrada na atividade.
Figura 78 - A chegada da performance Adeuzará: Zentai ao Undió e o grupo que borda
Fonte: Foto da autora, 2019
Terminada a intervenção, pensei que poderia voltar depois para ouvir
impressões dos comerciantes, já que optei, durante sua execução, por ter acesso
aos pedestres. E assim fiz. Em um dia de semana, já à noite, o fim do horário de
expediente da barbearia coincide com a abordagem que faço aos barbeiros. São
dois jovens com cabelos e barbas bem cuidadas, uniformizados, que me recebem
perguntando se quero cortar os cabelos. Explico que não. Quero saber se viram a
intervenção ocorrida quatro dias antes, no sábado pela manhã.
Para trazer à memória, conto que eram dois artistas vestidos dos pés à
cabeça com malhas coloridas coladas ao corpo que se deslocaram juntos pela rua,
parando em alguns pontos, performando gestos mínimos como se fossem
manequins. “Sim, nós vimos! Achei bem estranho, viu?” disse Marcelo, ao que foi
retrucado por Danilo: “Ah, era artes plásticas, né?! Eu acho... bom, acho... que eles
estavam representando as pessoas aí. Tá todo mundo cego, surdo, mudo... a
humanidade, sabe?!”. Aquela fala despertou em mim a lógica da expressão “ao deus
dará”, que significa estar entregue à própria sorte, e que está no título da
149
performance “Adeuzará...”. Penso se a provocação que os artistas certamente
fizeram pode ser percebida pelos fruidores e não estou certa da resposta. Mas sei
que para muitos que testemunharam o evento, aquilo não era arte.
Figura 79 - Barbearia da Rua
Fonte: Foto da autora, 2019
Na loja ao lado, uma farmácia natural, interrogo o vendedor de chás e ervas
sobre a mesma ação do sábado anterior. “Ah, não entendi muito bem”, me diz
Cléber. “Eu ri um pouco e acho que ri porque não entendi do que se tratava. Mas ri
também porque as pessoas estavam rindo. Alguém me disse que era um teatro”,
completa, numa justificativa que, para ele, soa convincente.
Ao ouvi-lo, parecia que ouvia as pessoas que passavam e desviavam,
aquelas que desaprovavam a performance ou aqueles que fingiam ser um fato
normal de uma rua do Centro. Cléber me pareceu repercutir o senso comum, que
ficou visível em muitos rostos dos passantes daquela manhã. Percebi, também, que
alguma inquietação restou na sua apreciação da performance. Será que ele se
sentiu envergonhado por observar algo que não pôde compreender; e ainda mais
envergonhado por ter sido questionado por mim a respeito daquela experiência?
Num mundo em que as respostas e a compreensão costumam ser instantâneas, não
ter a resposta “certa” parece um incômodo. Acredito que possa ter sido a arte a
150
portadora dessa não resposta ou da resposta sempre certa, porque a mediação está
eivada de subjetividade.
Frutos de novos contextos e novas captações, Campbell (2018) aponta as
várias mudanças ocorridas nos sistemas de arte e nas formas de ocupação dos
espaços públicos como práticas de poder invisível que abrangem o contexto político
de cada ação e ato singular. São ações que têm conteúdo em discussões cotidianas
que afetam e organizam a sociedade como as questões sociais, os direitos, as
ecologias. “Trata-se de uma forma de recortar a realidade a partir dessas forças que
produzem novas experiências e afetos.” (CAMPBELL, 2018, p. 36).
A interpretação de Danilo, da barbearia, é uma exceção: foi um dos únicos a
associar intervenção e arte. Indo além, ele interpreta o que viu, contextualiza e
consegue abstrair.
Acho que foi uma metáfora da vida. Eles faziam coisas lentamente, como se estivessem sem pressa, parece que queriam passar um recado, deixar uma lição. Quando passaram aqui na porta, já tinham chamada a atenção de muita gente. E eu acho sim que as pessoas notaram e sentiram algo. (Danilo, Barbeiro).
A leitura dele correspondendo às intenções dos promotores do Nessa Rua
Tem um Rio que é provocar reflexões sobre a cidade, seus modos de vida, as
interações no meio urbano, seus conflitos e hierarquias.
Dando vazão à nossa conversa, que se torna quase um bate-papo, ele me
apresenta seu caderno de desenhos. Olho cada página com cuidado e fico atenta à
fala subjacente aos traços. Ele me explica que queria fazer “faculdade de belas
artes”, mas está complicado conciliar o horário de trabalho, as contas e a sua
vontade. Conta aquilo como se precisasse da chancela de um ensino formal para se
considerar artista. Relata que também é poeta e lê, como quem recita, alguns versos
que escreveu para as vítimas da tragédia da mineradora em Brumadinho. São
palavras cálidas. Tento me desvencilhar da emoção que aqueles versos provocaram
em mim, elogio o trabalho como um todo e o incentivo a frequentar as aulas livres de
arte que acontecem no Undió. “Ah... mas, de tarde, aperta pra mim por causa do
trabalho. Vou lá um dia”, me diz, em tom de promessa, encerrando nosso encontro.
151
Figura 80 - Caderno com desenhos de Danilo
Fonte: Foto da autora, 2019
A arte atual se relaciona cada vez mais à autonomia, característica reforçada
pelas intervenções que o Undió promove. Mas na fala de Danilo, parece que a
expressão de arte, o aprendizado ou a formação artística se concentra nos muros
acadêmicos. É uma visão inquietadora que conflui com minhas questões sobre a
arte e que me levaram até este texto, fruto da pesquisa. Ao discutir as intervenções
artísticas apresentadas na rua, avalio que, em grande parte do tempo, a arte é
elitista e excludente. Assim, antidemocrática, perde seu poder transformador. Quero
fazer coro com Helena Katz (2003), que escreveu que “A experiência que a arte nos
proporciona afeta nossos sentidos e nossos sentimentos, revelando um novo
entendimento do mundo e de nós mesmos. É por isso que a arte é tão indispensável
quanto a alimentação”.
Em discussão sobre a cidade, Agier (2011) aponta que ela é processual,
sempre relacional e situacional, nunca generalizadora posto que se constitui caso a
caso pelos citadinos e pelos lugares, a rua, por exemplo, produzindo movimentos e
dinâmicas socioculturais genuínas. É claramente uma cidade viva. A performance
presenciada dias antes ativava essas dinâmicas tão particulares, confirmadas pelos
152
relatos posteriores. Aquela rua naquela ocasião, portanto, é percebida como um
espaço de relações, com memórias e identificações.
Ao ocupar a rua, local de deslocamento de muitas pessoas que se movem ou
se fixam com interesses diversos, há um convite aberto. O convite é informal e
impreciso para quem queira ou se interesse por parar, por olhar, por fazer parte e,
em última análise, por se deixar afetar. Convite aceito, a arte produzida pode, então,
acessar a experiência de fruição, tão subjetiva. E se a experiência – que é vivência
que requer presença –, é valorosa, o tempo despendido passa a ser uma variável
fundamental: estar simultâneo à obra ou estar presente enquanto ela acontece.
Ali, no espaço público da calçada em que ocorre o Nessa Rua Tem um Rio, o
lugar importa e se destaca; essa importância reverbera nas dinâmicas sociais que se
estabelecem de forma fluida naquele lugar. A arte se insere em espaços de vida em
comum. Poderíamos dizer que a arte na rua rompe com a monotonia da vida nos
espaços urbanos contemporâneos e reinventa a maneira de visualizar e relacionar
com o mundo?
Na conversa que tive com Marta, ela destaca a perspectiva do transitório e do
diálogo com a rua, espaço atestadamente marginal de forma geral e naquele trecho,
sob o olhar da artista “É ainda mais marginal”, diz para embasar esta noção
realçada.
Ah, destaco e quero chamar atenção para a existência e manutenção de uma ONG voltada para a arte – lugar de resistência a esses processos de glamourização da vida, da cidade, do consumo. A cidade e as ruas vivem processo de expulsão e exclusão de pessoas e ações! Minha convivência é real, minha presença ali na região é grande. Sempre frequentei o Mercado Central... Gosto do Centro pra rodar, pra sentar, pra bater papo; gosto daquele universo que tem ali, enfim. De circular pelo centro e pelos bares. O centro ainda é um local em que se vê diversidade e esta é uma coisa muito rica no centro. Vemos travesti, cis, trans, jovens, famílias, velhos, ricos... cachorros... Cinema pornô... certos grupos mais à margem atualmente, especialmente um grupo LGBT. Ainda! Embora os processos tendam a apagar isto. Classe média alta já não costuma circular pelo Centro da cidade. (Marta Neves, artista plástica).
Ela reconhece que a arte é uma das coisas que mais fazem sentido, como
artista ou como pessoa, “mas que não vai salvar o mundo... Não muda a vida de
quem passa ali... é um certo ar.... uma certa abertura pra quem passa ali... Alguma
coisa „um pouco menos‟ que acontece ali, no meio do atropelo e a velocidade. Não é
saída, mas é algo!”. Compartilho as convicções da artista, que encerra nossa
entrevista com um desabafo: “Fui acusada de não ser profunda. Não me importo. Se
153
eu não estabeleço sentido para a arte e os críticos, eu crio algo em relação com a
cidade!”. Quando Marta fala, de uma maneira enfática e quase esbravejando, reativo
as questões que me moveram e me envolveram até aquele ponto da investigação.
Quis tratar de discutir o fazer artístico que cria dissenso e afeta o cotidiano com
ações simples, sutis e ordinárias que talvez passem despercebidas. Por fim, sim:
criar algo em relação à cidade é o que importa, acredito, fazendo coro com a artista.
155
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O momento de conclusão da tese colabora para a certeza inquieta de que as
dinâmicas sociais apontam para um território que se move. Esse território, nesta tese
denominado Rua Padre Belchior, não é apenas a faixa em que transitam os
pedestres: é um espaço a céu aberto, no centro da capital mineira, que recebe e
apresenta proposições que tencionam ativar provocações. São ações artísticas que
privilegiam a calçada localizada em frente ao Instituto Undió, como cenário e
ambiente, a que nomeei de “palco”. Compreendem performances e instalações
como uma mesa de café ou uma varrição coletiva, em que o público (os transeuntes,
comerciantes, amigos da equipe da Undió) participa voluntariamente motivado pela
curiosidade, estranhamento ou por opção. De outra parte, estão os artistas que se
dispõem apresentar e viver a relação com a arte. Ainda nesse cenário, está a equipe
da Undió, liderada pela artista Thereza, que idealiza, organiza e vivencia esses
rituais, que são as intervenções, juntamente com os personagens na rua.
Os sentidos atribuídos a esses rituais são distintos. Variam desde a
concepção de que as interferências artísticas quebram a rotina do cotidiano e criam
a possibilidade de construir a sociabilidade até à ideia de que podem provocar e
reinventar sentidos no ambiente urbano da rua, confluir arte e rua. Há ainda o
sentido de estimular a interação social com estranhos passantes e com os
comerciantes, que no cotidiano não vai além de um cumprimento usual e de uma
sociabilidade que agrega personagens diferenciados. O que de fato eles partilham?
Sensibilidades, suspensão de um ritmo acelerado dos centros de uma grande
cidade, práticas sociais, memórias, tradição mineira, utopias urbanas, sentimentos
de pertença ou reflexões coletivas? Um cardápio variado que pode ser acessado de
acordo com os movimentos das subjetividades.
Ocupando o espaço da vida cotidiana ordinária, existe certamente uma carga
de surpresa que contribui para o estupor de vários protagonistas. Nas minhas
observações e nos relatos dos informantes, a arte desenmoldurada, que se esgota
no instante mesmo de seu acontecimento, interpela sujeitos quanto à
impermanência da arte, pois as intervenções são pontuais e ligeiras. E provoca
vivências singulares que são experiências eivadas de subjetividade. Durante sua
ocorrência, as intervenções artísticas instigam a profusão dos sistemas de signos
156
que envolvem, de forma geral, os habitantes das cidades, e, de maneira específica,
quem transita pela calçada da Rua Padre Belchior.
Retomando a origem da Rua Padre Belchior sobre o Córrego do Leitão,
ressalto sua cobertura asfáltica com o objetivo de solucionar os problemas
relacionados às costumeiras inundações até os anos 1960. Seu apagamento da
paisagem urbana motivou o nome do projeto Nessa rua tem um rio, como
homenagem e como provocação à memória. As ações de arte tratam de por em
evidência as escolhas de políticas públicas, que não privilegiam a ocupação
humana. No encerramento da pesquisa (em janeiro de 2020), foi possível observar
de perto e diretamente as tragédias provocadas pelas tempestades em Belo
Horizonte, que geravam e ainda geram perdas, prejuízos e sofrimento. A construção
urbana se desvincula do ecossistema e o intenso movimento das águas, revoltas,
transbordaram pelo asfalto que as sufocavam como se dissessem “nesse rio tem
uma rua”.
O fato de conhecer anteriormente a Rua Padre Belchior e ter atuado
voluntariamente dos projetos de Undió e compartilhar com a equipe de códigos, as
interações cotidianas, conceitos e sensibilidades se tornou familiar e acolhedor. Mas
exatamente por isso, por outro lado despertou inquietação para aprofundar sobre o
tema arte e rua. Nesse contexto, o desafio que provocou a realização dessa tese foi,
para mim, como pesquisadora, estranhar o familiar e, fazer uma imersão no campo
(como recomenda a antropologia) a partir de outro lugar, como um jogo de papéis
que se cruzam e se rompem a cada momento no campo.
Nas minhas andanças pela rua, podia ter a noção até de olhos fechados de
quantos passos precisaria dar para chegar a determinada loja ou ao Undió. Podia
sentir o cheiro que exalava de diferentes ambiente e sabia distinguir os ruídos
conhecidos de outros estranhos dos automóveis, das vozes e dos carrinhos
ambulantes. Foram sensações sinestésicas naturalizadas pela minha vivência
naquela rua. Como estranhar tudo isso? Como sentir as coisas de outra forma e
como ser uma pesquisadora naquela rua? O suporte importante nesse processo foi
o caderno de campo (que no final tinha todas as páginas preenchidas por
observações e questões que me inquietavam ou eram familiares). O celular
funcionando como equipamento fotográfico e de vídeo foi apoio fundamental para a
percepção de olhares. O exercício de colher histórias de outros personagens sobre a
vivência com a Rua Padre Belchior, que reverberaram emoções nostálgicas e
157
afetivas, tanto individuais quanto coletivas, num exercício de memória, facilitou a
percepção sobre o “outro”, de outras histórias que não são minhas sobre o mesmo
espaço.
Por meio da arte na rua, consubstanciada pelas atividades realizadas pelo
Undió, pude constatar que outros protagonistas, diferentes dos artistas e dos
organizadores dos eventos, raramente conferem a elas status de arte. Em suas
narrativas, a arte está naturalmente exposta nos espaços fechados institucionais,
marcada pela autoria e tendo a ajuda de um pequeno texto explicando minimamente
a obra ou seu processo criativo. Posso intuir, então, que a circulação da arte
proposta “fora da caixa” e cada vez mais desmaterializada surte efeito ao deslocar o
senso comum. Não é percebida pelos sujeitos, talvez acostumados aos espaços
oficiais como museus e galerias para declarar e referendar o que é arte.
Sob o olhar destes mesmos sujeitos, apesar de não alterarem a rotina, mas
apenas o ritmo dela, as atividades do Nessa Rua Tem um Rio são interpretadas
como lazer ou diversão de curta duração. São notadamente vistas com curiosidade
e parecem ser bem vindas. São tidas como interessantes, exóticas e divertidas, e
desta forma, deixam evidenciado o sucesso do intuito dos artistas e gestores de
sensibilizar e ressensibilizar as pessoas. Sem rótulos ou explicações elaboradas, a
natureza expandida da experiência estética está presente, portanto.
Em eventos de performance, a atuação dos fruidores é considerável: à
medida que os artistas vivem a ação e interpretam seus papéis, captam as reações.
Assim, os artistas alteram seus “trajetos poéticos” ao incorporarem repertórios
inéditos dos fruidores. A performance proposta se transforma em happening: sem
roteiro e sem a chance de ser identicamente repetida. O efeito, então, é fruto do
inesperado e do provisório, aspectos inerentes àquela manifestação e presentes nas
ações narradas. A originalidade aparece diversas vezes como no improviso de um
poema para as mães e nas reações de interação – ou não – do tapete vermelho que
convida a um desfile.
Uma a uma, as ações de arte possibilitam que o palco, que é a rua, seja
ocupado por seus usuários. Ao se tornarem protagonistas, eles participam de
diversos processos de transformação do espaço, fazendo valer o direito à cidade e
suas funcionalidades. Humanizam involuntariamente, de forma sutil e
aparentemente desavisada, a rua, esse microcosmo da cidade. Cultivam pequenos
contatos e compartilham partilha e confiança, assistindo um filme na parede de uma
158
casa, recebendo uma muda de planta, trocando idéias e reminiscências com um
desconhecido ou assistindo gratuitamente uma performance de arte. São as paradas
e o respiro de um ritmo produtivo – substituído por instantes de sensibilidade.
O Café Comunitário e a toalha bordada foram nitidamente as ações que
angariaram mais simpatia, aproximação e envolvimento das pessoas. Reputo isto a
diversos motivos. Ambas as intervenções permitem interação, sociabilidade, resgate
da memória de costumes mineiros, afetação, pertencimento, e até mesmo o
aprender, exibir ou apreciar habilidades – como nos bordados, exemplarmente. As
interações, ainda que fluidas no centro de uma grande cidade, têm o anonimato
como fato notório. Seguramente, o que ocorre na Rua Padre Belchior não é inédito
visto por essa perspectiva. Na rua e pela rua, Belo Horizonte abraça outras
iniciativas culturais que expandem horizontes da cidadania. Na cidade há outros
eventos dessa natureza como os dançarinos do Quarteirão do Soul na praça Sete
de Setembro, coração da capital, os rimadores da batalha de rap no Duelo de MCs
debaixo do Viaduto de Santa Teresa e o carnaval.
Por parte da equipe da Unidió, observa-se a percepção de uma nítida
flutuação de fronteiras entre as categorias artísticas, o autor e o espectador, numa
trama de afetos que discutem a arte e a vida e que afeta os significados da arte. Ao
ocupar a rua, local de deslocamento de muitas pessoas que se movem ou se fixam
com interesses diversos, há um convite aberto (informal e impreciso, portanto) a
quem queira ou se interesse por parar, por olhar, por fazer parte e, em última
análise, por se deixar afetar. Convite aceito, a arte produzida pode, então, acessar a
experiência de fruição, tão subjetiva. E se a experiência – que é vivência que requer
presença –, é valorosa, o tempo dispendido passa a ser uma variável fundamental:
estar simultâneo à obra ou estar presente enquanto ela acontece. Ali, no espaço
público da calçada em que ocorre o Nessa Rua Tem um Rio, o lugar importa e se
destaca; essa importância reverbera nas dinâmicas sociais que se estabelecem de
forma fátua naquele lugar.
Pesquisar sobre esse tema é refletir sobre a arte da contemporaneidade que
gera dissenso. Parti da noção construída de que a arte é, para mim, um ambiente
para o trânsito de sensações e percepções sensíveis, que gera reflexão ativa,
problematizando o meu lugar no mundo. Será arte? Uma questão que motivou a
dualidade tão frequentemente observada na rua. Ao mesmo tempo em que eu era
159
“todo mundo”, também estranhava o fato de ser eu mesma, dual – humanidade e
indivíduo – e intraduzível.
Independente da falta de unanimidade de sentidos percebidos, entendo que
uma nova sociabilidade se propõe com as ações de intervenção artística. Uma
sociabilidade tão frugal quanto a rede de relações instáveis, sutis e frágeis formada
pelo fluxo de pessoas que convivem naquele trecho de rua. Ao dividirem momentos,
por exemplo, em torno de uma mesa de café, de observarem um painel com
desenhos de pássaros extintos ou em extinção, de pisarem em um tapete exclusivo
estendido no chão ou participarem da troca de mudas de plantas – ora observando,
ora comentando, ora trocando –, atribuem novo sentido simbólico para aquele trecho
de rua, aquele pedaço de calçada.
As intervenções artísticas do Nessa Rua Tem um Rio apresentam um foco
local para uma discussão bem mais ampla, que implica mobilizar e sensibilizar
outras questões, em outros espaços urbanos com diferentes lentes produzidas pelos
diferentes campos de conhecimento. Trata-se de um olhar potente e diverso para as
cidades grandes, que são caracterizadas pelo amontoado de arranha céus, sob o
barulho constante das buzinas e vozes humanas. Nesse mesmo cenário, espaços
são inventados, reinventados, usados e apropriados de forma sensível,
ressignificando esses espaços, afetando a rua e motivando para outras ações de
arte. Os objetivos são tanto difusos quanto circunstanciais e, por isso mesmo,
provisórios.
Finalmente, as atividades do Undió podem ser interpretadas como ações de
micro resistência urbana, expressas nos atos singulares de cidadania e de amplos
direitos à cidade. Este aspecto já foi apontado anteriormente, sob o ponto de vista
dos pedestres que participam das ações. Entretanto, o direito à cidade em relação
às ações propositivas do Undió, coloca em discussão o meio ambiente, a mudança
do curso natural dos rios, o desaparecimento dos pássaros e os projetos
arquitetônicos que priorizam os interesses de determinados grupos sociais. Traz
reflexão para o ritmo acelerado com que os moradores das grandes cidades se
movem e propõe paradas em prol do bem estar e até questionando o que viria ser
esse direito democrático.
Cada ação, refletida minimamente nesta tese, põe em pauta a construção
social da identidade com olhares coletivos e estimulando narrativas construídas a
partir das vivências dos sujeitos. Discute os modos de vida urbana e a
160
representação da arte para uma cidade sensível, ativando coletivamente resistência,
presença e partilha. O Undió, representado pelo Nessa Rua Tem um Rio, é um
gesto, uma proposição, um procedimento de experiência estética alargada. Nessa
natureza expandida, a arte tem função e potência política.
Concluo, sabedora de que há diversas camadas ainda a serem analisadas,
afirmando que as intervenções de arte chegam a ser singelas utopias, realizáveis,
ao proporem o pertencimento do habitante à cidade em situações de encontro,
colaboração, recordações e afeto. Movida pelas circunstâncias e pela inspiração que
o tema desperta, aludo, a título de licença poética, à metáfora do vaga-lume escrita
em 1941 em carta do cineasta Pier Pasolini a um amigo. No texto, ele enaltece os
lampejos de arte e poesia, tidos como momentos de exceção em uma Itália fascista
e os compara aos vaga-lumes. Assim, algo incidental, mesmo sendo dia claro, cada
ação artística é como um vaga-lume a piscar na escuridão de tempos sombrios.
161
REFERÊNCIAS
ACADEMIA TRANSLITERÁRIA. Sobre. Disponível em: <https://academia transliteraria.wordpress.com/. Acesso em: jan. 2020.
AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.
AGIER, Michel. Encontros etnográficos: interação, contexto, comparação. São Paulo. Ed. UNESP, 2015.
ANDRADE, Luciana Teixeira de. A Belo Horizonte dos modernistas: representações ambivalentes da cidade moderna. Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.
ANDRADE, Luciana Teixeira de; JAYME, Juliana Gonçalves; ALMEIDA, Rachel de Castro. Espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles. Cadernos Metrópole, São Paulo, n. 21, p. 131-153, 1º. Sem. 2009. Disponível em: <http:// revistas.pucsp.br/metropole/article/download/5959/4313>. Acesso em: jan. 2020.
ANDRES, Roberto. Era uma vez um leitão. O Tempo, 14 jun. 2018. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/opiniao/roberto-andres/era-uma-vez-um-leitao-1.18559 83>. Acesso em: jan. 2020.
ARANTES, Antônio Augusto. Guerra dos lugares: mapeando zonas de turbulência. In: ARANTES, Antônio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas: Editora da UNICAMP, 2000. p. 105-130.
ARANTES, Otília Beatriz. Mário Pedrosa: itinerário crítico. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
ARGAN, Giulio. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ARGAN, Giulio. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
AVELLAR, Wilson. Eu rio. Nessa rua tem um rio, 30 out. 2010. Disponível em: <https://nessaruatemumrio.wordpress.com/dia-a-dia/sabado-30-outubro-2010/acao-wilson-de-avellar/>. Acesso em: out. 2019.
BAHIA, Cláudio Lister Marques. Metamorfoses da metrópole. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, Ano 43, n. 2, p. 60-75, jul./dez. 2007. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/Metamorfoses_da_ metropole.PDF>. Acesso em: jan. 2020.
BAPTISTA, Marcio; CARDOSO, Adriana. Rios e cidades: uma longa e sinuosa história... Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n. 2, p. 124-153, jul./dez. 2013. Disponível em: <https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/20-2/05-rios-e-cidades-marcio-baptista-adriana-cardoso.pdf>. Acesso em: jan. 2020.
162
BARREIRA, Irlys Alencar F. A cidade no fluxo do tempo: invenção do passado e patrimônio. Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n. 9, p. 314-339, jan./jun. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/soc/n9/n9a11.pdf>. Acesso em: jan. 2020.
BARROS, Antônio; DUARTE, Jorge. Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2006.
BATCHELOR, David. Minimalismo. São Paulo: Cosac-Naify, 2001.
BECKER, Howard S. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
BECKER, Howard S. Segredos e truques do pesquisador outsider. Entrevista concedida a Alexandre Werneck. Revista Dilemas, Rio de Janeiro, v.1, n. 1, p. 157-171, 2008. Disponível em: <http://www.howardsbecker.com/articles/werneck.pdf>. Acesso em: jan. 2020.
BELO HORIZONTE pede licença para falar de seus problemas: e das soluções que encontrou para eles. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30 abr. 1972. p. 33-34. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib= 089842_08&pagfis=30178&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#>. Acesso em: 18 fev. 2018.
BELO HORIZONTE. Decreto nº 43, de 7 de setembro de 1929. Dispõe sobre denominação de praça, conforme especifica. Diário Oficial do Município, Belo Horizonte, 8 set. 1929. Disponível em: <https://leismunicipais.com.br/a/mg/b/belo-horizonte/decreto/1929/4/43/decreto-n-43-1929-dispoe-sobre-denominacao-de-praca-conforme-especifica-1929-09-07>. Acesso em: 18 fev. 2018.
BELO HORIZONTE. Lei n° 7.165, de 27 de agosto de 1996. Institui o plano diretor do município de Belo Horizonte. Diário Oficial do Município, Belo Horizonte, 28 ago. 1996. Disponível em: <https://prefeitura.pbh.gov.br/sites/default/files/estrutura-de-governo/politica-urbana/Lei_7165_Plano_Diretor.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2018.
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Belo Horizonte: a perfeita junção do espaço urbano e da cidade jardim em Minas Gerais. 2016. Disponível em: <http://www.belohorizonte.mg.gov.br/bh-primeira-vista/arquitetura/belo-horizonte-perfeita-juncao-do-espaco-urbano-e-da-cidade-jardim-em>. Acesso em: 18 fev. 2018.
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Cenas de um Belo Horizonte. Belo Horizonte: PBH, 1996.
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Juscelino Prefeito. Belo Horizonte: Museu Abílio Barreto, 2002.
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Carnaval de Belo Horizonte cresce em 2019 e encanta 4,3 milhões de foliões. Belo Horizonte: PBH, 2019. Disponível em: <https://prefeitura.pbh.gov.br/noticias/carnaval-de-belo-horizonte-cresce-em-2019-e-encanta-43-milhoes-de-folioes>. Acesso em: jan. 2020.
163
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Plano de municipal de saneamento de Belo Horizonte: 2008-2011. Belo Horizonte: PBH, 2008. v. 1. Disponível em: <https://prefeitura.pbh.gov.br/sites/default/files/estrutura-de-governo/obras-e-infraestrutura/2018/documentos/volumei-texto_2008.pdf>. Acesso em: jan. 2020.
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Política de Combate a Inundações de Belo Horizonte. Belo Horizonte: PBH, 2012. Disponível em: <https://docplayer.com.br/18730503-Politica-de-combate-a-inundacoes-de-belo-horizonte.html>. Acesso em jan. 2020.
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Superintendência de Limpeza Urbana. Limpeza urbana na Belo Horizonte centenária. Belo Horizonte: POBH, 2000.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: L&PM, 2013.
BENJAMIN, Walter. Paris antiga, catacumbas, demolições, declínio de Paris. In: BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.
BISHOP, Claire. Antagonismo e estética relacional. Revista Tatuí, Recife, n. 12, p. 109-132, 2012.
BORSAGLI, Alessandro. Rios de Belo Horizonte. In: SCOVINO, Felipe et al. (Org.). Escavar o futuro. Belo Horizonte: Piseagrama, 2014. p. 260-269.
BORSAGLI, Alexandre. Rios invisíveis na metrópole mineira. Revista Rio das Velhas, Ano 2, n. 3, p. 36-38, fev. 2016. Disponível em: <https://issuu.com/cbhriodas velhas/docs/revista_3_2016_02_29_issuu>. Acesso em: jan. 2020.
BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. 1983. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1807511/mod_resource/content/1/Bourdieu_.pdf>. Acesso em: jan. 2020.
BOURRIAUD, Nicolas Estética relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006.
BRAGA, Ernesto. Brincadeira com placa de obra fictícia pode virar caso de polícia. Hoje em Dia, Belo Horizonte, 28 maio 2013. Disponível em: <https://www.hojeem dia.com.br/horizontes/brincadeira-com-placa-de-obra-fict%C3%ADcia-pode-virar-caso-de-pol%C3%ADcia-1.151339>. Acesso em: 08 dez. 2016.
BRASIL, André. Entre ver e não ver: o gesto do prestidigitador. In: GUIMARÃES, Cesar; LEAL, Bruno Sousa; MENDONÇA, Carlos Camargo (Org.). Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: Humanitas, 2006.
BURRO sem rabo. In: AULETE digital. <http://www.aulete.com.br/burro-sem-rabo>. Acesso em: 08 jan. 2020.
CAIAFA, Janice. Aventura nas cidades. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2007.
CAMPBELL, Brígida. Arte para uma cidade sensível. São Paulo: Invisíveis Produções, 2015.
164
CAMPBELL, Brígida. Arte para uma cidade sensível: arte como gatilho sensível para novos imaginários. São Paulo: B. Campbell, 2018.
CANAL MIS BH. Ruas cobrindo o Córrego do Leitão. YouTube, 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=a1haD8Q_0Gw>. Acesso em: 20 set. 2019.
CANALIZAÇÃO do córrego do Leitão explica alagamentos em BH. Notícias R7, 29 jan. 2020. Disponível em: <https://muninetguide.com/scenes-contribute-to-the-growth-and-decline-of-communities/>. Acesso em: 01 fev. 2020.
CANCLINI, Néstor Garcia. A sociedade sem relato: antropologia e estética da iminência.São Paulo: Edusp, 2016.
CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2003.
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: um ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 1997
CANTON, Katia. Do moderno ao contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CARNEIRO, Beatriz Scigliano. Arte contemporânea e ciências sociais: notas para reviravoltas. Ponto-e-Vírgula, n. 3, p. 8-18, mar. 2008. Disponível em: <https:// revistas.pucsp.br/index.php/pontoevirgula/article/viewFile/14204/10428>. Acesso em: jan. 2020.
CARTAXO, Zalinda. Arte nos espaços públicos: a cidade como realidade. O Percevejo Online, v.1, n. 1, p. 1-16, jan./jun. 2009. Disponível em: <http://www.seer. unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/431/381>. Acesso em: jan. 2020.
CASTELLS, Manuel. A questão urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CENTRO DE REFERÊNCIA AUDIOVISUAL. Era uma vez um Leitão. YouTube, 1972. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pBaQrHhzxdg>. Acesso em: 10 set. 2019.
CENTRO DE REFERÊNCIA EM EDUCAÇÃO INTEGRAL. Em Belo Horizonte Instituto Undió realiza ações educativas no território. 2013. Disponível em: <http://educacaointegral.org.br/experiencias/em-belo-horizonte-instituto-undio-realiza-acoes-educativas-no-territorio/>. Acesso em: jan. 2020.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: volume 1: artes de fazer. São Paulo: Vozes, 2008.
CESAR, Marisa Flórido. Sobre(a)ssaltos: catálogo da mostra Rumos. Belo Horizonte: Itaú Cultural Artes Visuais, 2002.
165
CINCO obras do pai da pop art. Blog A, 14 set. 2011. Disponível em: <https://bloga. grupoa.com.br/cinco-obras-do-pai-da-pop-art/>. Acesso em: 10 set. 2019.
CLARK, Lygia. De la serie Bichos. Artsy, 2018. Disponível em: <https://www. artsy.net/artwork/lygia-clark-sin-titulo-de-la-serie-bichos>. Acesso em: 10 set. 2019.
CLARK, Terry Nichols. Scenes contribute to the growth and decline of communities. MuniNetGuide, 2008. Disponível em: <https://muninetguide.com/ scenes-contribute-to-the-growth-and-decline-of-communities/>. Acesso em: 10 set. 2019.
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998.
COCCHIARALE, Fernando. A (outra) arte contemporânea brasileira: intervenções urbanas micropolíticas. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA-UFRJ. Rio de Janeiro, n. 11, p. 67-71, 2004.
CURRAL DEL REY. O vale do Córrego do Leitão entre os anos 1920 e 1930, nas proximidades da área central. 2010. Disponível em: <http://curraldelrei.blogspot. com/2010/08/o-vale-do-corrego-do-leitao-entre-os.html>. Acesso em: 10 set. 2019.
CURRAL DEL REY. Rios invisíveis da metrópole mineira: mapa das bacias hidrográficas de Belo Horizonte. 2018. Disponível em: <http://curraldelrei.blogspot. com/2017/03/rios-invisiveis-da-metropole-mineira.html>. Acesso em: 10 set. 2019.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DEBORD, Guy-Ernest. Teoria da deriva. Gunh Anopeti, 2006. Disponível em: <https://teoriadoespacourbano.files.wordpress.com/2013/03/guy-debord-teoria-da-deriva.pdf>. Acesso em: jan. 2020.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Cidade, memória e geração: a Belo Horizonte de Fernando Sabino. Cadernos de História Belo Horizonte, v. 9, n. 12, p. 35-51, 2007. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/ article/view/2907>. Acesso em: jan. 2020.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
166
DUCHAMP, Marcel. A arte, a fonte e o mijadouro. Contemporânea, 12 jun. 2018. Disponível em: <https://www.blogs.unicamp.br/contemporanea/tag/marcel-duchamp/>. Acesso em: jan. 2020.
ECKERT, Cornélia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho. Etnografia de rua: estudo de antropologia urbana. Iluminuras, v. 4, n. 7, p. 1-22, 2003. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/9160/5258>. Acesso em: 29 jan. 2020.
ECO, Umberto. A poética da obra aberta. In: ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991.
EMILIANA, Cecília. Janeiro de 2020 já é o mês mais chuvoso da história de BH. Estado de Minas, Belo Horizonte, 29 jan. 2020. Disponível em: <https://www.em. com.br/app/noticia/gerais/2020/01/29/interna_gerais,1117794/janeiro-de-2020-ja-e-o-mes-mais-chuvoso-da-historia-de-bh.shtml>. Acesso em: 29 jan. 2020.
FORTUNA, Carlos. A cidade como palco. Precisamos mais teatro! In: (FORTUNA, Carlos et al. Org.). Cidade e espetáculo: a cena teatral luso-brasileira contemporânea. São Paulo: EDUC, 2013. p. 17-22.
FORTUNA, Carlos. Culturas urbanas e espaços públicos: Sobre as cidades e a emergência de um novo paradigma sociológico. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, p.123-148, out. 2002. Disponível em: <https://journals.openedition. org/rccs/1272>. Acesso em: 15 dez. 2019.
FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda do final do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
FREITAS, Artur. Arte de guerrilha: vanguarda e conceitualismo no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Belo Horizonte e o comércio: 100 anos de história. Belo Horizonte: Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997b.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Panorama de Belo Horizonte: atlas histórico. Belo Horizonte, 1997a.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Saneamento básico em Belo Horizonte: trajetória em 100 anos: os serviços de água e esgoto. Belo Horizonte: Rona, 1997c. (Coleção Centenário).
GEERTZ, Clifford. A arte como um sistema cultural. In: GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997a. p. 142-181.
GEERTZ, Clifford. Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropológico. In: GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997b. p. 85-107.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. p. 13-41.
167
GOFFMAN, Erving. A ordem da interacção. In: GOFFMAN, Erving. Os momentos e seus homens. Lisboa: Relógio d‟Água, 1999.
GOMES, Leonardo José Magalhães. Memória de ruas: dicionário toponímico de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Crisálida, 2008.
GOMEZ-PEÑA, Guillermo. Em defesa da arte da performance. In: DAWSEY, John C. (Org.). Antropologia e performance: ensaios napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. p. 441-462.
GUIMARÃES, Cear; LEAL, Bruno S.; MENDONÇA, Carlos C. (Org.). Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: Humanitas, 2006.
GUIMARÃES, Cesar. O que ainda podemos esperar da experiência estética? In: GUIMARÃES, César; LEAL, Bruno; MENDONÇA, Carlos. Experiência estética e comunicação: a partilha de um programa de pesquisa: entre o sensível e o comunicacional. Belo Horizonte: Autêntica: 2010.
GULLAR, Ferreira. Na vertigem do dia. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017.
HADDAD, Amir. Artes públicas, ano zero. Poética da Rua, n. 4, p. 50-53, 2012/2013. Disponível em: <https://issuu.com/maomesmo/docs/poetica04_book>. Acesso em: 15 dez. 2019.
HAPPENING. In: ENCICLOPÉDIA de artes visuais Itaú Cultural. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3647/happening>. Acesso em: 15 dez. 2019.
HARRISON, Charles; WOOD, Paul. Art in theory – 1900-1990: an anthology of changing ideas. United Kingdom: Blackwell, 1999.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola,1999.
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola,1993.
HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
INGOLD, Tim. Pare, olhe, escute! Visão, audição e movimento humanos. Ponto Urbe, São Paulo, Ano 2, n. 3, jul. 2008. Disponível em: <https://journals.open edition.org/pontourbe/1925>. Acesso em: 15 dez. 2019.
INSTALAÇÃO In: ENCICLOPÉDIA de artes visuais Itaú Cultural. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3648/instalacao>. Acesso em: 15 dez. 2019.
168
INSTITUTO ÚNDIO. Nessa rua tem um rio: sede Úndio (em 1966). 2012. Disponível em: <https://nessaruatemumrio.wordpress.com/2010/10/22/sede-undio-em-1966/>. Acesso em: 15 dez. 2019.
INSTITUTO UNDIÓ. Histórico. Disponível em: <https://institutoundio.org/o-undio>. Acesso em: 15 dez. 2019.
ITAÚ CULTURAL. Marta Neves. 2017. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa21712/marta-neves>. Acesso em: 15 dez. 2019.
JACOBS, Jane. Morte e vida nas grandes cidades. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2007.
JAYME, Juliana Gonzaga; TREVISAN, Evelise. Intervenções urbanas, usos e ocupações de espaços na região central de Belo Horizonte. Civitas, Porto Alegre, v. 12, n. 2, p. 359-377, maio-ago. 2012. Disponível em: <http://revistaseletronicas. pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/11933>. Acesso em: 15 dez. 2019.
JESUS, Eduardo de. Arte menor: mal entendidos e arte contemporânea, vida cotidiana e experiência estética. Trabalho apresentado no XXIII Encontro Anual da Compós, 2015, Florianópolis. Disponível em: <http://www.compos.org.br/biblioteca/ completo2015_2774.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2015.
JESUS, Eduardo de. Relações entre arte e tecnologia: traços históricos e desdobramentos atuais. In: OLIVEIRA, Bruno; CUNHA, Maria Helena; RENA, Natasha (Org.). Arte e espaço: uma situação política do século XXI. Belo Horizonte: Duo Editorial, 2016. p. 158-173.
JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: itinerários de uma cidade moderna. In: DUTRA, Eliane de Freitas (Org.). Belo Horizonte: horizontes históricos. Belo Horizonte: C/Arte, 1996. p. 49-118.
KATZ, Helena. É chegada a hora de enfrentar a subnutrição cultural. O Estado de S. Paulo, 10 jan. 2003.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2011.
LEITE, Rogerio Proença. Contrausos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
LEMOS, Celina Borges. Antigas e novas centralidades: a experiência da cultura de consumo no centro tradicional de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora da Escola de Arquitetura da UFMG, 2010.
169
LEWITT, Sol. Parágrafos sobre arte conceitual. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p. 176-181.
LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.
LÍVIA, Ana. Estudo sobre “Objeto” ou “Le Déjeuner en Fourrure” (1936), de Meret Oppenheim. Se a FAU explodir, 13 jul. 2019. Disponível em: <https://medium. com/se-a-fau-explodir/estudo-sobre-objeto-ou-le-d%C3%A9jeuner-en-fourrure-1936-de-meret-oppenheim-d6d5902a3c97. Acesso em: 06 nov. 2019.
LUCIE-SMITH, Edward. Os movimentos artísticos a partir de 1945. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
MAGNANI, José Guilherme C. A antropologia urbana e os desafios da metrópole. São Paulo: FFLCH, 2003. Palestra.
MAGNANI, José Guilherme C. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, p. 11-29, jun., 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v17n49/a02v1749.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2019.
MAGNANI, José Guilherme C. Quando o campo é a cidade. In: MAGNANI, José Guilherme C.; TORRES, Lílian de Lucca (Org.). Na metrópole. São Paulo: Edusp, 2000.
MANN, Peter H. Métodos de investigação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia: ensaio sobre a dádiva: forma e razão de troca nas sociedades arcaicas. São Paulo: Cosac Naif, 2003.
MENDONÇA, Carlos Camargos. Ao homem em ruínas restaram as imagens? In. GUIMARÃES, César; LEAL, Bruno Souza; MENDONÇA, Carlos Camargos (Org.). Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. p. 103-113.
MENDONÇA, Carlos Magno Camargos; MORICEAU, Jean-Luc; PAES, Isabela. Guerrilhas do sensível: estetização e contra-estetização do mundo. Compós, 2015. Disponível em: <http://www.compos.org.br/biblioteca/guerrilhasdosensi-velcompos 2015_2772.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2015.
MERCADO CENTRAL DE BELO HORIZONTE. O Mercado. Disponível em: <https://mercadocentral.com.br/sobre/>. Acesso em: 11 nov. 2015.
MESQUITA, Yuri Mello. Os rios e a cidade: espaço, sociedade e as políticas públicas em relação ao saneamento básico em Belo Horizonte, 1964-1973. Revista Espacialidades, v. 3, n. 2, p. 1-30, 2010. Disponível em: <https://cchla.ufrn.br/ espacialidades/v3n2/yuri[.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2015.
170
MORAES, Antônio Carlos Robert. Flávio de Carvalho: o performático precoce. São Paulo: Brasiliense, 1986.
MORIN, France. A quietude da terra: vida cotidiana, arte contemporânea e Projeto Axé. Salvador: Museu de Arte Moderna da Bahia, 2000.
MUSEU HISTÓRICO ABÍLIO BARRETO. Canalização. In: DICIONÁRIO temático Abílio Barreto. Arquivo Privado Abílio Barreto, Caixa 009, Armário 1. Data: 1894-1946, p. 266-269.
NASCIMENTO, Nilo de Oliveira; BERTRAND-KRAJEWSKI, Jean-Luc; BRITTO, Ana Lúcia. Águas urbanas e urbanismo na passagem do século XIX ao XX: o trabalho de Saturnino de Brito. Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n.1, p.102-133, jan./jun. 2013. Disponível em: <https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/20/6-_aguas_ urbanas_e_urbanismo_nilo_de_oliveira.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2015.
O´DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
OITICICA, Hélio. Parangolés. Coletivo MS, 10 set. 2011. Disponível em: <https:// coletivoms.wordpress.com/2011/09/10/helio-oiticica-parangoles/>. Acesso em: 11 nov. 2015.
OLIVEIRA, Lúcia Maciel Barbosa de. A cidade como experimentação. Revista Observatório Itaú Cultural, v. 5, p. 76-83, 2008. Disponível em: <http://saavedra fajardo.um.es/WEB/archivos/Coimbra/27/Coimbra27-05.pdf> Acesso em: 06 nov. 2015.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Ensaios sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 39, n.1, p.13-37, 1996. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111579> Acesso em: 06 nov. 2019.
PALLAMIN, Vera Maria. Arte urbana: São Paulo: Região central (1945-1998): obras de caráter temporário e permanente. São Paulo: Annablume, 2000.
PAPE, Lygia. A multitude of forms. Studio International, 16 abr. 2017. Disponível em: <https://www.studiointernational.com/index.php/lygia-pape-a-multitude-of-forms-met-breuer>. Acesso em: 06 nov. 2019.
PEDROSA, Mário. Arte ambiental, arte pós-moderna: Hélio Oiticica. In: ARANTES, Otília (Org.). Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 355-358.
PEIRANO, Mariza. A análise antropológica dos rituais. In: PEIRANO, Mariza (Org.). O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume Darumá, 2002b. p. 17-40.
PEIRANO, Mariza. Etnografia, ou a teoria vivida. Ponto Urbe, n. 2, 2008. Disponível em: <https://journals.openedition.org/pontourbe/1890> Acesso em: 06 nov. 2019.
171
PEIRANO, Mariza. Rituais como estratégia analítica e abordagem antropológica. In: PEIRANO, Mariza (Org.). O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume Darumá, 2002a. p. 7-14.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 27, n. 53, p. 11-23, jun. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/v27n53/a02v5327.pdf>. Acesso em: 06 fev. 2017.
PISEAGRAMA. Nem pegadinha, nem arte: política. Piseagrama, Belo Horizonte, 02 jan. 2015. Disponível em: <https://piseagrama.org/nem-pegadinha-nem-arte-politica>. Acesso em: 12 nov. 2019.
PISEAGRAMA. Sobre. Disponível em: <https://piseagrama.org/sobre/>. Acesso em: 12 nov. 2019.
PORTES, Thereza. Impactos de ações de mediação cultural: nessa rua tem um rio. In: LIBÂNIO, Clarice de Assis (Org.). Arte, cultura e transformação social: caderno de experiências. Belo Horizonte: Favela é isso aí, 2015. p. 48-51.
PRIMEIRA fase do Projeto de Requalificação do Pelourinho, Salvador. Cronologia do Pensamento Urbanístico, 2008. Disponível em: <http://www.cronologiado urbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1592>. Acesso em: 22 set. 2019.
PROJETO MANUELZÃO. Exposição „Á Margem‟ tem sua primeira mesa redonda. 06 abr. 2017. Disponível em: <https://manuelzao.ufmg.br/exposicao-a-margem-tem-sua-primeira-mesa-redonda/>. Acesso em: 22 set. 2019.
PROJETO MANUELZÃO. Obra dos sonhos. 06 jun. 2013. Disponível em: <https://manuelzao.ufmg.br/obra-dos-sonhos/>. Acesso em: 22 set. 2019.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; ECKERT, Cornélia. Etnografia da duração: antropologia das memórias coletivas nas coleções etnográficas. Porto Alegre: Marcavisual, 2013.
ROCHA, Gilmar. Belo Horizonte sincretista: pequeno ensaio sobre a morfologia mental de uma cidade centenária. Cadernos de História, Belo Horizonte v. 9, n. 12, p. 175-201, 2007. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernos historia/article/view/2913>. Acesso em: 06 fev. 2019.
ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. 2006. Disponível em: <http://www. pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2012.
172
SALGUEIRO, Heliana Angotti. O ecletismo em Minas Gerais: Belo Horizonte, 1894-1930. In: FABRIS, Annateresa (Org.). Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo: Nobel, 1987.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
SCHECHNER, Richard. “Pontos de contato” revisitados. In: DAWSEY, John C. (Org.) Antropologia e performance: ensaios napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. p. 37-65.
SELIGMANN-SILVA, Marcio. Flusser e a cidade como Gesamtkunstwerk (obra de arte total). Galaxia, São Paulo, n. 39, p. 124-135, set./dez. 2018. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/gal/n39/1519-311X-gal-39-0124.pdf>. Acesso em: 15 set. 2019.
SILVA, Hélio R. S. A situação etnográfica: andar e ver. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 15, no. 32, p. 171- 188, jul./dez. 2009. . Disponível em: <http:// www.scielo.br/pdf/ha/v15n32/v15n32a08.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2019.
SILVA, Luís Flávio. Outras imagens, outros textos. In: NEVES, Marta. Marta Neves. Belo Horizonte: Galeria Circo Bonfim, 2001.
SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, out. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/mana/v11 n2/27459.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2016.
STANGOS, Nikos. Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
STOTT, Tim. Uma entrevista com Grant H. Kester. Revista Poièsis, Niterói, n. 23, p. 75-84, jul. 2014. Disponível em: <http://www.poiesis.uff.br/p23/p23-pdf/p23-entrevista.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2019.
TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
TAYLOR, Diana. Traduzindo performance Kester. In: DAWSEY, John C. (Org.). Antropologia e performance: ensaios napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. p. 9-17.
TURNER, Victor. O processo ritual estrutura e antiestrutura. São Paulo: Vozes, 1974.
VELHO, Gilberto. O desafio da proximidade. In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina (Org.). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro, Zahar, 2003.
VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antônio da Silva. Quando a rua vira casa. 4. ed. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2017.
VOILAT, Georges. En remontant la rue Vilin 1992. Um filme de Robert Bober. YouTube, 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8HfvFHQ-j6s>. Acesso em: 06 nov. 2019.
173
WSTANE, Carla. Gestão de águas urbanas: mobilização social em torno de rios invisíveis. 2013. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Belo Horizonte, 2013.
XEPA. Incontinência: ação de enxugar nove barrar de gelo. 11 dez. 2010. Disponível em: <https://coletivoxepa.blogspot.com/2010/12/incontinencia-acao-de-enxugar-9-barras.html?m=0>. Acesso em: 06 nov. 2019.
XEPA. Dispersão sem fuga ou, andar na contraforma. 10 out 2011. Disponível em: <https://coletivoxepa.blogspot.com/2011/10/dispersao-sem-fuga-ou-andar-na.html? m=0>. Acesso em: 06 nov. 2019.
ZANINI, Walter. Vanguardas, desmaterialização, tecnologias na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2018.