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2007/06/17
A CIA, O IRAQUE E AS FALHAS DA INFORMAÇÃO
Francisco Gomes[1]
Introdução
“A História recordará a luta americana contra o terrorismo e a
operação militar no Iraque como iniciativas honrosas e
notará que a execução daquelas campanhas pelos nossos
soldados foi um esforço de excelência comparável a
qualquer outra diligência celebrada nas crónicas de
guerra.”[2] Foi assim que o General Tommy Franks,
responsável do Comando Central dos Estado Unidos
durante a intervenção iraquiana, pressagiou a memória
histórica da guerra contra o regime de Saddam Hussein.
Porém, quatro anos após a entrada das tropas americanas
no território iraquiano, o julgamento histórico da invasão de
2003 parece estar longe da dimensão lendária prevista por
Franks, parecendo, em vez disso, ter sido uma das
campanhas mais negligentemente preparadas em toda a
tradição militar daquela país. Segundo Ricks, foi uma campanha planeada para poucas batalhas e
não para o tipo de adversidades que têm caracterizado a era pós-Saddam.[3] Como é hoje evidente,
os custos resultantes desta falta de preparação têm sido significativos, afectando não só os
governos dos países envolvidos mas também todos os soldados e civis que sofrem diariamente
com as realidades do conflito no Iraque.
Muitas décadas passarão antes que compreendamos com rigor todos os factores que motivaram a
guerra iraquiana. Todavia, um aspecto do conflito que reúne particular consenso entre os autores,
comentadores e observadores que o têm analisado é a influência determinante que a qualidade
dubitável da informação usada pela administração Bush, particularmente aquela referente à
pretensa existência de armas de destruição maciça (ADM), teve no processo de decisão e
planeamento que antecedeu o conflito. Como é notado por Jervis, “As falhas de informação quanto
às ADM iraquianas estão no centro da controvérsia política instalada.”[4] A sua perspectiva é
partilhada por Pillar, que argumenta que o conflito iraquiano afectou negativamente a integração das
agências de informação e o processo político americano.[5]
Dada a importância central da informação no processo político que conduziu às profundas
transformações que hoje caracterizam o Médio Oriente, em geral, e a região iraquiana, em particular,
o objectivo deste trabalho é analisar o modo como a informação foi utilizada pela chefia americana
na preparação do seu ataque ao governo de Bagdade. Mais especificamente, o estudo visa
identificar as falhas cometidas pela Central Intelligence Agency (CIA), a instituição líder dos Estados
Unidos na recolha e análise de informação geoestratégica, e pela equipa Bush na integração da
informação na sua abordagem ao governo de Saddam. Este tipo de análise é relevante por duas
razões diferentes: por um lado, confirma a relação profunda entre a informação e o processo político,
expondo a dependência que existe entre as decisões dos estados e a informação disponível no
momento histórico em que são tomadas; por outro lado, permite compreender algumas das razões
para o uso desacertado da informação no planeamento das operações contra o Iraque, permitindo a
compreensão de alguns dos factores que contribuíram mais significativamente para o seu aparente
fracasso.
Este trabalho está dividido em duas secções e uma conclusão. Na primeira secção elaboramos
uma breve análise histórica da CIA, concedendo particular atenção aos parâmetro legislativos que
têm orientado a sua acção desde a sua fundação até à era actual. Na segunda secção identificamos
e analisamos as cinco falhas principais que, na nossa perspectiva, comprometeram o uso da
informação na preparação da campanha militar no Iraque, nomeadamente a desactualização da
informação empregue, a rejeição de informação contrária, o excesso de confiança das agências de
informação americanas nas premissas estratégicas da administração Bush, a qualidade inferior
das fontes de humanas usadas e a politização da informação recolhida. Na conclusão avançamos
algumas sugestões para o uso mais adequado da informação no planeamento futuro de operações
militares.
Secção I: CIA: Breve Consideração Histórica
Desde a sua constituição como estado independente nos finais do século XVIII, os Estados Unidos
sempre mantiveram uma rede activa de recolha e análise de informações que visava a preparação
de conhecimento que pudesse ser utilizado politicamente na promoção dos interesses americanos.
No entanto, foi só em Junho de 1942, seis meses após o ataque japonês à base naval de Pearl
Harbor, que o Presidente Franklin Roosevelt, preocupado com a capacidade dos Estados Unidos
competirem na arena internacional contra outras nações, autorizou a criação do Gabinete de
Serviços Estratégicos (GSE), ao qual foi delegada a missão de recolher e analisar informações
necessárias ao funcionamento dos chefes do estado maior das forças armadas americanas e de
executar operações especiais no contexto doméstico e estrangeiro segundo indicações
governamentais.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o GSE forneceu uma porção considerável da informação
utilizada pelo governo dos Estados Unidos no planeamento das suas campanhas militares, quer no
teatro do pacífico quer no contexto europeu. No entanto, após a conclusão daquele conflito, um
número considerável de políticos e militares americanos começaram a questionar a utilidade de um
serviço de informações estratégicas em tempos de paz. O debate referente a este assunto
intensificou-se, e, em Outubro de 1945, oito meses após a assinatura da paz em Ialta, o GSE foi
eliminado, sendo as suas funções comutadas para os departamentos da defesa e da guerra.
Apesar da eliminação institucional do GSE, os eventos da segunda grande guerra haviam
corroborado a importância política de uma agência dedicada à recolha e análise de informações. Foi
nesse espírito que, pouco tempo após a sua inesperada ascendência a chefe de estado americano,
Harry Truman começou a analisar um estudo que fora encomendado pelo seu predecessor ao
General William Donovan no qual o autor defendera a criação de uma organização responsável pela
obtenção de informação, quer por meios explícitos quer por métodos implícitos, pelo fornecimento
de dados relevantes à administração americana e pelo identificação de objectivos estrategicamente
importantes para os interesses nacionais dos Estados Unidos. Adicionalmente, Donovan advogara
que a hipotética organização não deveria ser responsável pela conduta de actividades policiais no
contexto doméstico, mas deveria possuir as capacidades legais e logísticas necessárias à conduta
de operações secretas em regiões estrangeiras.[6] Baseado largamente nas recomendações de
Donovan, o Presidente Truman criou o Grupo Central de Informação (GCI) em Janeiro de 1946
através de uma directiva assinada a bordo do Vaca Sagrada, na altura, o avião oficial do presidente
americano.[7] A decisão de Truman foi oficializada pelo Congresso a 18 de Setembro do ano
seguinte através do Acto de Segurança Nacional de 1947, que estabeleceu o Conselho de
Segurança Nacional (CSN) e, em substituição do GCI, criou a Agência Central de Informação (ou
Central Intelligence Agency, CIA).
O Acto de Segurança Nacional de 1947 era distintamente vago quanto aos parâmetros que deveriam
orientar o funcionamento da CIA. De modo geral, a referida legislação incumbia a organização pela
coordenação das actividades relacionadas com a recolha e análise de informação, pela
disseminação aos departamentos governamentais relevantes da informação recolhida e pela
prossecução de acções necessárias à protecção de estabilidade americana.[8] Esta imprecisão só
foi corrigida mais tarde, em 1948, através da Directiva 10/02 do CSN, e depois, em 1949, através do
Acto da CIA.
A Directiva 10/02 do CSN constituiu a primeira tentativa oficial para designar o âmbito jurídico que
fundamentaria as operações da CIA. Segundo aquele documento, a CIA era responsável “pelo
planeamento e execução de operações secretas aprovadas pelo governo americano contra
governos ou organizações hostis ou a favor de estados considerados aliados dos Estados Unidos,
mas de um modo em que a responsabilidade por tais operações não pudesse ser atribuída ao
governo americano, e, se descobertas, pudessem ser plausivelmente negadas pelo mesmo,” sendo
que a expressão “operações secretas” referia-se a “todo o tipo de actividades ilícitas, incluindo
propaganda, guerra económica, acções preventivas directas, demolição, medidas de evacuação,
sabotagem, anti-sabotagem, medidas subversivas contra estados inimigos, assistência secreta a
movimentos de resistência, de guerrilha e de libertação e apoio a organizações anticomunistas em
países ameaçados do mundo livre.”[9]
O Acto da CIA reafirmou as normas jurídicas estabelecidas pela Directiva 10/02 do CSN,
complementando-as com três aspectos diferentes. Primeiro, autorizou a CIA a empregar todos os
procedimentos confidenciais, administrativos e fiscais necessários à prossecução dos seus
objectivos. Segundo, isentava a organização de revelar oficialmente as suas funções, número de
pessoas empregues, a identidade dos seus trabalhadores, os seus títulos e os seus salários.
Terceiro, abolia a maior parte das potenciais restrições ao uso pela organização de fundos federais.
Conjuntamente, estas três medidas ampliaram significativamente a liberdade de actuação da CIA,
conferindo à organização um estatuto jurídico especial que era muito favorável não só ao seu
financiamento mas também à conduta das suas actividades, particularmente as de carácter ilícito.
Estimulada por condições jurídicas favoráveis e por um clima político de Guerra Fria que predispôs
muitos na administração americana a acreditar que os Estado Unidos só ganhariam a competição
internacional contra a União Soviética se empregassem tácticas moral e eticamente tão duvidáveis
quanto as do seu adversário, a CIA assumiu um papel muito activo na arena política internacional,
intervindo em cenários. Estas acções, que se desenvolveram maioritariamente entre os finais da
década de quarenta e o início da década de setenta, incluíram, entre outras iniciativas, o derrube do
regime Mossadegh do Irão em 1953, o golpe de estado contra o governo democrático da Guatemala
em 1954, a invasão falhada da ilha de Cuba em 1961, o golpe de estado contra a administração
Qassim do Iraque em 1963 (que possibilitou a ascendência política de Saddam Hussein, então visto
como um aliado americano), o derrube do governo de Salvador Allende no Chile em 1973 e o
fornecimento de armas aos movimentos Frente Nacional de Libertação Angola (FNLA) e União
Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) durante as guerras de libertação angolanas
entre 1961 e 1973.[10]
Entre os meados da década de setenta e o início da década de oitenta, a revelação pública de várias
operações ilegais promovidas pela administração de Richard Nixon através do uso directo e
indirecto da CIA estimulou um período de reflexão nos níveis mais altos do governo americano sobre
a liberdade de actuação da agência dentro e fora do território americano. Para os críticos da CIA, as
actividades reveladas, que incluíam o assalto à sede de campanha do Partido Democrata no Hotel
Watergate em Junho de 1972, a incursão não-autorizada de tropas americanas em Laos e no
Camboja e a participação da CIA no assassinato de vários lideres políticos estrangeiros, entre os
quais o congolês Patrice Lumumba, o vietnamita Ngo Dinh Diem e o chileno Rene Schneider,
demonstravam que a organização excedera o seu âmbito de actuação, assumindo um nível de
independência institucional que não estava previstos nem na Directiva 10/02 do CSN de 1948 nem
no Acto da CIA de 1949. Ciente desta insatisfação, o Presidente Gerald Ford, que assumira a chefia
política americana após a demissão de Richard Nixon, aprovou a criação de um comité
independente de investigação com a missão de averiguar se as actividades da CIA tinham ou não
violado os direitos civis do povo americano e excedido os parâmetros legislativos que regiam a
organização. Na sequência dessa iniciativa, o Congresso americano aprovou nova legislação
proibindo a CIA de participar directa ou indirectamente no assassinato de líderes estrangeiros e
delegando todas as responsabilidades relacionadas com a investigação de actividades duvidosas
de cidadãos americanos ao Gabinete Federal de Investigação (ou Federal Bureau of Investigation,
FBI). Nos anos que se seguiram, estas restrições foram complementadas com duas outras
iniciativas legislativas diferentes. Por um lado, em Outubro de 1978, o Congresso ratificou o Acto de
Supervisão de Informação Externa, limitando a capacidade da CIA recolher e analisar informações
referentes às actividades de entidades externas, definidas na legislação como qualquer
administração, organização ou grupo que não seja maioritariamente composto por cidadãos
americanos ou directamente controlado pelo governo dos Estados Unidos.[11] Por outro lado, em
Setembro de 1980, o Congresso aprovou o Acto da Supervisão da Informação, reafirmando as
directivas mencionadas acima e complementando-as com o requerimento de que a CIA reportasse
frequentemente aos comités da informação, das relações externas e das forças armadas do Senado
e da Casa dos Representantes, informando-os sobre todas as suas actividades.[12]
Apesar do renovado e mais restrito contexto jurídico de actuação, as pressões políticas geradas pelo
clima de Guerra Fria continuaram a motivar os lideres americanos a influenciar as condições
políticas de regiões consideradas fundamentais à prossecução dos interesses dos Estados Unidos
e a empregar os recursos humanos e logísticos da CIA nessas tarefas. Foi nesse sentido que, em
Dezembro de 1985, a presidência de Ronald Reagan autorizou a CIA a vender armamento ao
governo iraniano e usar os capitais resultantes dessas transacções para financiar os Contras, uma
guerrilha nicaraguense envolvida em lutas de oposição ao governo sandinista. As vendas de
armamento e o resultante fluxo do capital para a Nicarágua prolongaram-se durante cerca de onze
meses, até Novembro de 1986. Nessa data, as operações foram reveladas ao público, sendo
posteriormente comprovado que a acção da CIA violava o Acto de Controle da Exportação de Armas,
mais especificamente a provisão daquela legislação que proibia o governo americano de vender
material bélico a nações que não o usassem para fins unicamente defensivos, dado que o Irão
estava a transferir as armas adquiridas dos Estados Unidos ao Hezbollah, uma organização
terrorista então envolvida em lutas contra a nação de Israel.[13]
A revelação das ligações da CIA ao Irão e aos Contras reavivaram o debate que emergira anos
antes, durante a administração Nixon, entre os apoiantes e os crítico da organização, dando origem
a uma nova ronda de legislação visando restringir o campo de acção daquela agência e o fortificar
nível de fiscalização ao qual estava submetida. Consequentemente, antes do final de 1986, o
Congresso homologou o Acto de Privacidade das Comunicações Electrónicas, que proibia o governo
americano e qualquer uma das agências de informação que lhe estivessem associadas de
ilicitamente colocar escutas nas ligações telefónicas de cidadãos americanos e de secretamente
sondar qualquer outro tipo de comunicações electrónicas envolvendo membros do público
americano. Mais tarde, em 1991, três anos após a eleição presidencial de George Herbert Walker
Bush, o primeiro antigo director da CIA a tornar-se chefe de estado americano, o Congresso aprovou
o Acto de Autorização da Informação, no qual definia “operações secretas” como acções
desenvolvidas em países ou regiões nas quais os Estados Unidos não estivessem directa e
explicitamente envolvidos a qualquer nível de actividade. Adicionalmente, a legislação estabelecia
que a execução de tais acções requeria a “aprovação expressa do presidente” e o “conhecimento”
dos comités da informação do Senado e da Casa dos Representantes.[14]
Os ataques de 11 de Setembro de 2001 iniciaram uma nova fase na vida política americana.
Inspirado pela necessidade de proteger os Estados Unidos da crescente ameaça do terrorismo
internacional, o governo Bush implementou um número significativo de reformas visando não só
aumentar a capacidade de resposta do governo federal a potenciais ameaças aos cidadãos
americanos mas também melhorar as condições de actuação das agencias de segurança,
particularmente a sua capacidade de recolher, analisar e processar informação considerável
relevante para a defesa dos Estados Unidos. Foi nesse sentido que, em Outubro de 2001, o
Congresso aprovou por votações de largas margem o Acto Patriota, abolindo muitas das restrições
jurídicas colocadas à CIA desde o período Nixon e expandindo a sua autonomia e campo de
actuação.[15] Após um período de exaltação nacionalista de apoio às iniciativas da presidência
Bush, diversos autores e comentadores políticos começaram a criticar as medidas da
administração, particularmente a autonomia conferida pelo referido acto às agências de informação.
Para estes indivíduos, a legislação colocava em risco a viabilidade dos Estados Unidos como
estado democrático, pois não só violava os direitos cívicos dos cidadãos, permitindo ao governo
federal um nível abusivo de interferência na sua vida privada, mas também conferia ao presidente
um mandato para quase exclusivamente definir a política externa americana, destituindo, assim, o
Congresso de muitos dos poderes de supervisão que lhe tinham sido atribuídos pela constituição
americana e por várias provisões legislativas aprovadas ao longo da historia política do país.[16]
Apesar do crescente número de vozes que criticavam as liberdades conferidas pela presidência
Bush às agências de informação, em Dezembro de 2004 o Congresso aprovou o Acto de Prevenção
ao Terrorismo e Reforma da Informação. De modo geral, o acto de 2004 determinava a remodelação
da estrutura organizativa da CIA, quer ao nível da administração quer ao nível das divisões
integradas na agência. Ao nível da administração, a legislação determinava que a CIA seria liderada
por um director, auxiliado nas suas funções pelo subdirector, pelo assistente do subdirector e pelo
director-associado para os assuntos militares. Ao nível das divisões integradas na agência, a
legislação determinava que a CIA incluiria na sua organização as direcções da informação, da
ciência e tecnologia e de apoio, os gabinetes de assuntos militares, de aconselhmento e do
inspector geral, o centro de estudo de informação e o serviço de operações clandestinas.
Após Dezembro de 2004, os parâmetros legislativos que regem as actividades da CIA estabilizaram,
e, apesar do agravamento das situações militares no Afeganistão e no Iraque e das resultantes
reivindicações para a reforma da estrutura militar e de informação americana, a agência tem
conseguido manter um nível considerável de equilíbrio. Sessenta anos após a sua criação, a CIA
permanece, juntamente com o MI6 britânico e a Mossad israelita, uma organização de referência na
conjuntura internacional, envolta numa aura de misticismo e, por vezes, de controvérsia. Para o bem
e para o mal, aqueles atributos têm definido a natureza dos serviços que a CIA tem desempenhado
ao longo da sua história, tendo sempre como pano de fundo a continuada defesa dos interesses
americanos e a projecção da influencia geopolítica dos Estados Unidos no mundo.
Secção II: Os Erros do Iraque
Como foi argumentado na introdução, o uso da informação no planeamento da intervenção
americana no Iraque foi definido por cinco erros fundamentais, nomeadamente desactualização da
informação empregue, a rejeição de informação contrária, o excesso de confiança das agências de
informação americanas nas premissas estratégicas da administração Bush, a qualidade inferior
das fontes de humanas usadas e a politização da informação recolhida. Nesta secção
consideramos separadamente cada uma destas falhas.
Desactualização da informação
Embora vários representantes da administração tenham continuamente argumentado que a decisão
de intervir militarmente no Iraque foi baseada em informações recentes sobre o regime de Saddam
que revelavam concludentemente um número de actividades adversas à estabilidade da
comunidade internacional, particularmente um programa de desenvolvimento de ADM, Richard Kerr,
um antigo subdirector da CIA, observa que os dados que fundamentaram o ataque a Bagdade,
especialmente aqueles referentes ao programa de armamento, foram recolhidos durante a década
de noventa, no período compreendido entre o inicio da primeira Guerra do Golfo e a saída dos
inspectores internacionais daquele país em 1998. Após aquela data, Kerr explica que “os Estados
Unidos possuíam apenas quatro fontes de informação no território iraquiano, nenhuma das quais
tinha acesso ao âmago do regime, permanecendo na sua periferia e longe dos programas de
desenvolvimento de armamento.”[17]
A perspectiva de Kerr é partilhada por Daalder e Lindsay, que, num estudo sobre a política externa da
administração Bush, argumentam que a maioria do conhecimento que as agências de informação
americanas reivindicaram possuir sobre o regime iraquiano era não só limitado mas também
insuficiente para extrair quaisquer conclusões quanto à existência de ADM.[18] Segundo aqueles
autores, as agências de informação compensaram esta falta de informação actualizada recorrendo
aos dados que tinham recolhido antes da primeira guerra no Golfo e à informação relatada pelos
inspectora da Organização das Nações Unidas (ONU) antes da sua expulsão do Iraque, fazendo
depois uma análise prospectiva das potencias capacidades balísticas iraquianas em 2003, na altura
da invasão.[19]
O problema com este tipo de abordagem é que amplificava irrealistamente as capacidades
balísticas do regime de Saddam, ignorando enormemente a eficácia dos ataques realizados aos
seus centros de produção de armamento durante a primeira guerra do Golfo e durante a Operação
Raposa do Deserto, realizada em 1998, durante a presidência Clinton. Como é observado pelo
Coronel Alan King, oficial da Terceira Divisão de Infantaria durante a campanha de 1998, “A primeira
guerra do Golfo e a Operação Raposa do Deserto tiveram um efeito devastador no programa de
armas iraquiano, destruindo um grande número das centrais de produção de armamento daquele
país e afectando psicologicamente a sua chefia política.”[20] A sua opinião é partilhada por Kenneth
Pollack, autor e observador político americano, para quem a Operação Raposa no Deserto
“ultrapassou as expectativas da administração Clinton, tendo um efeito surpreendentemente
devastador nas capacidades militares do governo de Saddam”[21], e por David Kay, líder do Iraq
Study Group, uma organização governamental criada após a intervenção americana no Iraque para
estudar os problemas relacionados com a campanha, que nota que, após a Operação Raposa no
Deserto, a liderança iraquiana “consciencializou-se de que o seu programa de armamento nunca
atingiria as proporções que desejava”[22], acrescentado que, após aquele altura, “o desenvolvimento
de ADM naquele país perdeu todo o seu ímpeto.”[23] Apesar da sua relevância, estes dados não
estavam reflectivos na informação disponibilizada pela agências de informação americanas à
equipa Bush no período que antecedeu o ataque ao regime de Bagdade. Logo, quando as tropas
americanas entraram no território iraquiano na primavera de 2003 em busca de ADM estavam, na
realidade, procurando uma situação que, de acordo com os vários indivíduos, incluindo os
referenciados acima, não mais existia.
Rejeição de informação contrária
Durante a Segunda Guerra Mundial, as agências de informação secreta britânicas estavam
particularmente cientes da necessidade de assegurar o rigor da informação que possuíam
relativamente ao regime de Adolf Hitler e às capacidades militares Nazi. Nesse sentido, sempre que
aquelas organizações recebiam alguma informação relativamente a uma potencial arma que aquele
governo pudesse estar a desenvolver, informava as agências de informação dos estados aliados
usando os termos mais neutros possíveis e ocultando sempre o tipo específico de arma ao qual as
suas suspeitas aludiam. Para os britânicos, esta era uma estratégia que asseguraria que as acções
dos serviços de informação das outras nações aliadas não seriam condicionadas pelas suspeitas
britânicas, garantindo, assim, a potencial emergência de informação adicional e talvez contrária
aquela que tinham recolhido.[24]
No caso da operação americana contra o regime de Saddam, a necessidade de garantir o
aparecimento de informação objectiva, ainda que possivelmente contraditória, sobre o verdadeiro
potencial do governo de Bagdade não parece ter sido uma preocupação fundamental para a CIA,
que, segundo Jervis, criou um tipo de ambiente institucional que inibiu os seus agentes de
investigarem aspectos da vida sociopolítica iraquiana que pusessem em causa a existência naquele
estado de ADM.[25] A sua ideia é partilhada por Daalder e Lindsay, que observam que, “Em vez de
explorar informações que colocassem em dúvida o progresso iraquiano [no desenvolvimento de
ADM], a CIA enfatizou os dados que sugeriam o mais negro dos cenários possíveis.”[26] Dois
exemplos corroboram as perspectivas destes autores, especificamente os debates gerados ao nível
da administração Bush quanto à hipotética posse iraquiana de veículos aéreos não-tripulados
capazes de serem empregues em missões militares contra os Estados Unidos e aos usos
potenciais de alguns milhares de tubos de alumínio que tinham sido adquiridos pelo governo de
Saddam pouco antes da invasão de 2003.
Relativamente à questão dos veículos aéreos não-tripulados, em Outubro de 2002, o Presidente
Bush reivindicou, num discurso proferido em Cincinnati, que o Iraque possuía veículos aéreos não-
tripulados que poderiam ser equipados com agentes químicos ou biológicos e posteriormente
empregues num ataque aos Estados Unidos.[27] No entanto, este tipo de inferência fora rejeitado
meses antes pelos serviços de informação da Força Aérea americana, que, em relatos dirigidos à
administração, aferira que os esforços iraquianos de produzirem tecnologia daquela natureza tinham
estagnado. Como foi observado por Bob Boyd, um dos mais experientes analistas de informação da
Força Aérea, “Nós tínhamos a certeza absoluta que a questão dos veículos aéreos não-tripulados
era um ponto morto.”[28] No entanto, as conclusões da Força Aérea não tiveram um impacto
significativo nem na postura da chefia política nem na atitude da CIA, que continuou a argumentar
que existiam boas probabilidades do regime iraquiano utilizar veículos aéreos não-tripulados em
ataques aos interesses americanos e a omitir a ivestigação desenvolvida por aquele ramo das
Forças Armadas, como ocorreu com a Estimativa de Informação Nacional,[29] o relatório que a
agência publicou pouco após o discursos do presidente, no qual nem são referidas as conclusões
da Força Aérea relativamente aos veículos aéreos não-tripulados iraquianos.[30]
Quanto aos tubos de alumínio, nas fases de preparação das operações no Iraque, a CIA reivindicou
que uma das provas que o regime de Saddam possuía ADM era o facto daquele governo ter
recentemente adquirido milhares de tubos de alumínio, há muito entendido como uma componente
fundamental do processo de centrifugação do urânio que antecede o desenvolvimento daquele tipo
armas. Contudo, as inferências da CIA estavam em profunda oposição às pesquisas realizadas pela
Divisão de Informação do Departamento de Estado, que indicavam que o tipo de tubos obtido pelo
governo de Bagdade não possuía as características técnicas necessárias à produção de urânio
centrifugado.[31] Esta conclusão era partilhada pelo Centro de Informações Terrestre do Exército e
pelo Departamento de Energia, que, na mesma altura, indicaram que os tubos de alumínio adquirido
pelo regime de Saddam não eram próprios para a produção de armas nucleares, pelo que “não
constituíam prova irrefutável das intenções nucleares iraquianas.”[32] Apesar destas indicações, a
CIA continuou a insistir na ideia que os tubos de alumínio corroboravam o potencial da ameaça
nuclear iraquiana, apoiando erroneamente a retórica inflamatória da equipa Bush.
Excesso de confiança nas premissas da administração
Imediatamente após os ataques de 11 de Setembro, alguns dos membros da administração Bush
colocaram o regime de Saddam Hussein no centro das preocupações estratégicas dos Estados
Unidos. Como é observado por Daalder e Lindsay, poucos minutos após o ataque às torres
gémeas, Paul Wolfowitz, que na altura ocupava o cargo de Subsecretário da Defesa, comentou com
os seus assessores que ele acreditava que Saddam estava por detrás dos eventos daquele fatídico
dia.[33] A observação foi repetida seis dias mais tarde, a 17 de Setembro de 2001, durante uma
reunião com sua equipa de trabalho, durante a qual ele notou, “Eu acredito que o Iraque esteve
envolvido nos eventos de 11 de Setembro.”[34]
A visão de Wolfowitz não foi imediatamente partilhada pela restante liderança americana, cujas
atenções concentraram-se em Osama Bin Laden e no regime talibã no Afeganistão. Porém, pouco
tempo após o derrube do regime ditatorial daquele estado, o Iraque emergiu novamente no radar
político da presidência Bush. Em Dezembro de 2001, o líder do executivo americano reuniu-se com o
General Tommy Franks para discutir as opções militares quanto àquela nação árabe.[35] Menos de
um mês depois, a CIA recebeu cerca de cento e cinquenta milhões de dólares para o
desenvolvimento de acções secretas contra o governo de Saddam e o Pentágono recebeu directivas
para preparar um plano de ataque a Bagdade.[36] Em Março de 2002 existiam poucas dúvidas em
Washington relativamente às intenções da administração Bush relativamente ao governo de
Saddam e, no verão do mesmo ano, essas intenções foram confirmadas numa reunião privada
entre Condoleezza Rice, então Conselheira de Segurança Nacional, e Richard Haas, na altura
assessor do General Colin Powell, então Secretário de Estado, na qual Rice notou, “Não se
preocupe sobre a questão da invasão do Iraque. Essa decisão já foi tomada.”[37]
Entre o verão de 2002 e a primavera de 2003, a administração Bush esteve activamente envolvida
numa campanha doméstica e internacional de relações publicas visando a legitimação das suas
suspeitas relativamente ao governo de Saddam e a criação de uma aliança de nações dispostas a
cooperar com os Estados Unidos numa potencial ofensiva contra aquele regime. De modo geral, os
esforços diplomáticos americanos eram baseados em dois argumentos diferentes, nomeadamente
que o Iraque estava associado à rede terrorista Al Queda, tendo participado na preparação dos
ataques de 11 de Setembro, e que o governo de Bagdade possuía ADM, constituindo, por isso, uma
ameaça à estabilidade do Médio Oriente e aos interesses dos povos ocidentais. Apesar da ênfase
colocada pela administração americana nestes dois aspectos, os seus esforços não convenceram
a comunidade internacional, que lhe negou o apoio diplomático que os Estados Unidos
ambicionavam. No entanto, os seus impactos foram muito profundos nas agências de informação
americanas, condicionando decisivamente a sua postura quanto à crise iraquiana. Como foi
observado num relatório publicado pelo Senado em Julho de 2004, na preparação do ataque ao
Iraque, as agências de informação não reflectiram adequadamente sobre as ligações iraquianas à
Al Queda e sobre as capacidades nucleares daquele regime. Consequentemente, a informação foi
recolhida e tratada no sentido de reforçar aquelas duas ideias.[38]
As ilações do relatório senatorial são confirmadas pela mudança de atitude verificada na CIA
relativamente ao governo de Saddam entre o Outono de 2001 e o verão de 2002. Enquanto em 2001,
aquela agência preparou um estudo sobre o Iraque no qual afirmava que aquela nação
“presumivelmente” mantinha um programa de pesquisa na área do armamento, “poderia” estar a
tentar comprar material que “possivelmente” ajudaria a reconstrução do seu programa nuclear, mas
que “não exist[iam] informações incontestáveis” de que aquele estado possuía armas químicas ou
as instalações para as produzir,[39] em 2002, as indeterminações que existiam parecem ter sido
praticamente ignoradas, pois naquela ocasião, a CIA notou, “O Iraque possui armas químicas e
biológicas (…) está a reconstruir o seu programa nuclear (…) e possui um programa de armas
biológicas activo e numa fase de desenvolvimento muito superior àquela em que estava antes da
primeira Guerra do Golfo.”[40]
Uma vez que hoje sabemos que, entre o primeiro e o segundo relatório, não emergiram dados que
justifiquem a extensão da mudança testemunhada na abordagem da CIA ao Iraque, aquele
comportamento revela um excesso de confiança em premissas que, embora baseassem a retórica
da administração, não correspondiam à realidade do regime de Saddam. Como é notado por Jervis,
na preparação das operações contra Bagdade, a CIA revelou pouca criatividade analítica,
tendencialmente confirmando as expectativas de muitos da equipa Bush de que Saddam estava
ligado à Al Queda, possuía ADM e estava em condições de usar esses recursos contra os Estados
Unidos.[41]
Qualidade das fontes de informação humanas
Diversos estudos publicados após a queda do regime de Saddam sugerem que o uso de fontes
humanas na recolha de informação sobre o regime iraquiano foi condicionado por três problemas
diferentes. Em primeiro lugar, o número de fontes consultadas no processo de recolha de dados
sobre o governo de Saddam. Como é referido por um relatório apresentado pela Casa dos Comuns
britânica a 14 de Julho de 2004, por um lado, os serviços de informação americanos não possuíam
fontes humanas credíveis que estivessem suficientemente próximas da chefia iraquiana para
oferecer uma descrição credível das suas capacidades militares; por outro lado, os serviços de
informação britânicos apenas possuíam cinco fontes seguras no território iraquiano, nenhuma das
quais tinha contacto directo com o governo daquele estado.[42] Estas conclusões são secundadas
por Jervis, que argumenta que o conhecimento que as agências de informação americanas e
britânicas possuíam acerca das capacidades balísticas de Saddam Hussein era escasso e
baseado num número muito limitado de fontes humanas.
Em segundo lugar, a credibilidade das fontes usadas. Como é argumentado por Fairweather, uma
das fontes de informação do governo americano era o Congresso Nacional Iraquiano, uma
organização iraquiana no exílio chefiada por Ahmed Chalabi, e que, como foi admitido pelo seu líder
numa entrevista ao jornal britânico Daily Telegraph, propositadamente forneceu informação errada
ao governo dos Estados Unidos no sentido de o estimular a destruir o regime de Saddam.[43] Os
argumentos de Fairweather são corroborados pelo estudo senatorial referido acima, segundo o qual
“muita da informação disponibilizada pela CIA para a preparação da apresentação do Secretário
Powell [ao Conselho de Segurança da ONU] era propositadamente ambígua e incorrecta.”[44] Na
realidade, como é explicado por Ricks, os dados avançados pela CIA para a apresentação de Powell
eram essencialmente baseados no depoimento de uma fonte secreta denominada Curveball, que,
durante a preparação da intervenção no Iraque, estava sob a custódia do governo alemão e só foi
autorizado a contactar com representantes da CIA uma única vez e na presença de um tradutor. Em
Novembro de 2005, o LA Times revelou que Curveball era, na realidade, o irmão de um dos
conselheiros principais de Chalabi e também um alcoólico anti-americano com um passado de
instabilidade mental, dados que, segundo Ricks, haviam sido ocultados do secretário de estado
americano.[45]
Em terceiro lugar, a formação dos agentes envolvidos nos contactos com as fontes de informação.
Como é explicado por Jervis, muitos dos agentes da CIA envolvidos na preparação das operações
no Iraque não sabiam árabe, nunca tinham vivido no Iraque, não estavam familiarizados com a
cultura, história ou política iraquiana e não conheciam a enorme complexidade inerente à tarefa de
estudar o comportamento de um regime tão opressivo e intrincado como era o de Saddam Hussein.
[46] Segundo o autor, estas faltas de conhecimento impediram a criação de uma base sólida de
informação sobre o governo Iraquiano que pudesse ser utilizada de modo organizado e sistemático
na formulação de conclusões acerca das suas ligações internacionais, ambições geoestratégicas e
verdadeiras capacidades militares, especialmente as referentes à produção de ADM.
Politização da informação
A credibilidade de qualquer agência de informação depende intrinsecamente da sua capacidade de
assegurar a objectividade das suas conclusões. Para que isso aconteça, é necessário que exista
uma distinção clara entre o processo político e o processo de recolha e tratamento de informação.
Essa distinção não é sempre clara. Pelo contrário, como foi explicado por George Tenet num
depoimento perante um comité do senado antes da sua confirmação como director da CIA, “A
separação entre a informação e a política é como um nevoeiro: não conseguimos agarrá-la nas
nossas mãos ou pregá-la numa parede, mas existe, é real e afecta as pessoas.”[47] Contudo, a sua
preservação é fundamental para o funcionamento independente das agências de informação e para
a integração eficaz dos frutos do seu trabalho nos processos de decisão política. No caso específico
da intervenção no Iraque, a separação entre a informação e o processo político foi comprometida de
dois modos diferentes.
Por um lado, como foi referido anteriormente, as premissas geoestratégicas da administração Bush,
nomeadamente a convicção de que o regime de Saddam estava associado à rede terrorista Al
Queda e possuía ADM que poderiam ser usadas em potenciais ataques a alvos americanos,
condicionaram o processo de recolha e tratamento dos dados acerca do governo de Bagdade,
estimulando a CIA a enfatizar a relevância da informação que corroborava as suspeitas da
administração e a desconsiderar aquela que sugeria inferências contrárias. Como é observado por
Jervis, a determinada altura no processo de preparação da guerra no Iraque, tornou-se difícil para as
agências de informação sugerirem que as suspeitas de que o Iraque possuía ADM deveriam ser
reconsideradas.[48] Um dos exemplos mais patentes deste tipo de postura ocorreu poucos dias
antes da apresentação do Secretário de Estado Colin Powell perante o Conselho de Segurança da
ONU. Na ocasião, um agente da CIA sugeriu ao então Director George Tenet que a agência
investigasse mais cuidadosamente a validade dos dados avançados por Curveball, ao que Tenet
replicou, “Lembre-se que esta guerra vai acontecer independentemente da validade daquilo que
Curveball disse ou deixou de dizer. Além disso, os que mandam nem estão interessados em saber
o que é que o Curveball disse ou deixou de dizer.”[49]
Por outro lado, a administração Bush intencionalmente aliou a imagem pública da CIA ao seu
esforço internacional para promover a campanha militar contra o regime de Saddam Hussein. Como
é observado por Pillar, “A comunidade de informação americana foi puxada para a arena política e
integrada na defesa pública da estratégia da equipa Bush relativamente ao Iraque.”[50] Porventura, a
ocasião em que a ligação entre a CIA e o governo americano assumiu uma dimensão mais evidente
foi novamente durante na apresentação de Powell ao Conselho de Segurança da ONU para a qual
George Tenet foi convidado a sentar-se exactamente atrás do Secretário de Estado de modo a ficar
incluído no mesmo plano televisivo que o general. Para o governo americano, a presença de Tenet
nas costas Powell conferiria credulidade adicional aos dados avançados na apresentação e
projectaria uma imagem de união nos níveis mais altos da administração dos Estados Unidos. A
ausência de provas concludentes quanto à ligação entre o Iraque e a Al Queda e à existência de ADM
produziu consequências inevitáveis na imagem domestica e internacional da presidência Bush, que,
devido à politização efectuada dos serviços de informação americanos, prejudicou também a
integridade institucional da CIA.
Conclusão
A informação é essencial para o funcionamento de um estado, contudo a relação entre a informação
e os órgãos de decisão política não é simples. Pelo contrário, existem diversos factores que podem
influenciar não só a qualidade da informação recolhida, mas também a fiabilidade do seu
processamento e a eficácia do seu uso. As consequências destas influências podem ser ínfimas,
ocasionando dinâmicas de pouca ou nenhuma consequência, ou significantes, alterando
expressivamente o contexto geopolítico em que emergem.
A intervenção no Iraque relançou o debate acerca da problemática relação entre a informação e o
processo governativo. Contudo aquela operação não constitui um exemplo isolado do uso
desacertado da informação na história americana. Por exemplo, em Fevereiro de 1898, outra falha
de informação enganosamente responsabilizou uma mina espanhola pelo afundo de um barco
comercial americano atracado no porto de Havana, precipitando a Guerra Hispano-Americana.[51]
Noutra ocasião, em Agosto de 1964, uma falha de informação erroneamente culpabilizou três navios
norte vietnamitas por num ataque a um navio americano estacionado no Golfo de Tonkin, conduzindo
o Congresso a aprovar um resolução autorizando o emprego das forças militares dos Estados
Unidos na península vietnamita e iniciando uma fase mais intensa da guerra já instalada naquela
região.[52] No entanto, ao contrário daquelas duas conflitos, que são, até certo ponto, abonadas
pelas características geopolíticas dos seus tempos, a guerra no Iraque foi fundamentada em
argumentos que nem reuniram o consenso da comunidade de nações nem foram corroboradas
empiricamente, quer na fase pré-guerra quer após a tomada de Bagdade. Estas condições
envolveram as operações militares americanas naquele estado numa aura de controvérsia que
motivou vários académicos, observadores e políticos a criticarem a administração Bush,
culpabilizando-a pela instabilidade que o colapso do regime de Saddam criou no contexto iraquiano
e no Médio Oriente. A contribuição dessas acusações para a resolução dos grandes problemas que
hoje continuam a afectar o povo iraquiano tem sido limitada.
Este trabalho não pretendeu participar na culpabilização que tem definido a crise iraquiana da era
pós-Saddam. Pelo contrário, o estudo elaborou uma análise sumária da CIA, a principal e mais
importante agência de informação americana, e dos parâmetros legislativos que têm condicionado
ao longo dos anos o papel que aquela agência tem desempenhado na recolha e análise de
informação para o governo dos Estados Unidos. Adicionalmente, o trabalho identificou os cinco erros
principais que, na nossa perspectiva, condicionaram as acções da CIA na preparação da campanha
contra o regime de Bagdade, especificamente a desactualização da informação, a rejeição de
informação contrária, o excesso de confiança nas premissas da administração Bush, a qualidade
inferior das fontes humanas usadas e a politização da informação. Conjuntamente, estes factores
deturparam a cooperação entre a CIA e a administração Bush, impedindo uma avaliação rigorosa
das capacidades e intenções do governo de Saddam Hussein, impossibilitando a integração eficaz
da informação nos processos de decisão e permitindo a criação das condições politicas e militares
que têm estimulado a instabilidade do período pós-guerra. A compreensão destes e de outros
elementos que comprometem o uso da informação no processo governativo das nações é uma
iniciativa essencial para evitar a repetição dos erros cometidos no Iraque e a emergência de outros
cenários de conflito gerados e agravados por falhas importantes das agências de informação. É
neste sentido que esperamos que este trabalho tenha feito uma contribuição positiva.
[1] Secretaria Regional do Turismo e Cultura, Região Autónoma da Madeira, Junho 2007.
[2] Franks (2004), p.12.
[3] Ricks (2006), p.115.
[4] Jervis (2006), p.3.
[5] Pillar (2006), p.15.
[6] Froy, Thomas, “Truman on CIA”, Washington, DC, 22 de Setembro de 1993 (www.cia.gov).
[7] CIA, “CIA Frequently Asked Questions”, Washington, DC, 16 de Julho de 2006, (www.cia. gov).
[8] CIA, “Central Intelligence Agency: History”, Washington, DC, 27 de Março de 2003, (www.fas. org/
irp/cia/ciahist.htm).
[9] US Department of State, “Foreign Relations of the United States, 1945-1950: Emergence of the
Intelligence Establishment”, Documento 292, Secção V, Washington, DC, 7 de Janeiro de 1987.
[10] Ver, por exemplo, Farren (2003) e Stich (2006).
[11] CIA, “Central Intelligence Agency: History”, Washington, DC, 27 de Março de 2003, (www.fas. org/
irp/cia/ciahist.htm).
[12] Idem.
[13] Ver, por exemplo, Marshall (1992) e Martin (2001).
[14] CIA, “Central Intelligence Agency: History”, Washington, DC, 27 de Março de 2003, (www.fas. org/
irp/cia/ciahist.htm).
[15] Ver, por exemplo, Ewing (2005).
[16] Ver, por exemplo, Baker (2005), Landis (2006) e Risen (2007).
[17] Transcrito em Risen, James, “In Sketchy Date, Trying to Gauge Iraq Threat”, in New York Times,
20 de Julho de 2003, p.13.
[18] Daalder e Lindsay (2005), p.154.
[19] Idem.
[20] Transcrito em Ricks (2006), p.21.
[21] Pollack (2002), p.89.
[22] Transcrito em Ricks (2006), p.21.
[23] Idem.
[24] Jervis (2006), p.25.
[25] Idem.
[26] Daalder e Lindsay (2005), p.156.
[27] Bush, George, “Presidente Bush Outlines Iraqui Threat”, Cincinnati, OH, 7 de Outubro de 2002
(www.whitehouse.gov/news/releases /2002/10/20021007-8.html).
[28] Transcrito em Rogers, David, “Air Force Doubts Drone Threat”, Wall Street Journal, 10 de
Setembro de 2003.
[29] National Intelligence Estimate
[30] Daalder e Lindsay (2005), p.156.
[31] Transcrito em Idem, p.157.
[32] Jervis (2006), p.38.
[33] Daalder e Lindsay (2005), p.128.
[34] Woodward (2002), p.99.
[35] Barnes, Fred, “The Commander”, in Weekly Standard, 2 de Junho de 2003, p.23.
[36] Page, Susan, “Iraq Course Set From Tight White House Circle”, in USA Today, 11 de Setembro
de 2002, pp.5A-6A.
[37] Transcrito em Lemann, Nicholas, “How It Came to War”, in New Yorker, 31 de Março de 2003,
p.39.
[38] Senate Select Committee on Intelligence, “Review of Intelligence on Weapons of Mass
Destruction”, Washingtom, DC, 7 de Julho de 2004, p.22.
[39] Transcrito em Daalder e Lindsay (2005), p.154.
[40] “National Intelligence Estimate: Iraq’s Continuing Programs for Weapons of Mass Destruction”,
Outubro de 2002, disponibilizado ao público a 18 de Julho de 2003, pp.1-2
(www.fas.org/irp/cia/product/iraq-wmd.html).
[41] Jervis (2006), pp.15-18.
[42] Committee of Privy Councillors to the House of Commons, Review of Intelligence on Weapons of
Mass Destruction, 14 de Julho de 2004.
[43] Fairweather, Jack, “Chalabi Stands by Faulty Intelligence that Toppled Saddam Hussein”, in Daily
Telegraph, 19 de Fevereiro de 2004.
[44] Transcrito em Ricks (2006), p.90.
[45] Ricks (2006), pp.90-91.
[46] Jervis (2006), p.40.
[47] Transcrito em Gentry (1993), p.243.
[48] Jervis (2006), p.36.
[49] Senate Select Committee on Intelligence, “Review of Intelligence on Weapons of Mass
Destruction”, Washington, DC, 7 de Julho de 2004, p.249.
49 Pillar (2006), p.20.
50 Ver, por exemplo, Moise (2004) e Rice (2003).
51 Ver, por exemplo, Freidel (2002) e Trask (1997).
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