a “cidade medieval” de goiÁs: o conjunto arquitetÔnico

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Revista Mosaico, v. 11, p. 231-247, 2018. e-ISSN 1983-7801. 231 * Recebido em: 23.01.2018. Aprovado em: 08.08.2018. ** Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professor na Universidade Estadual de Goiás (UEG), nos cursos de História e Arquitetura e Urbanismo. Docente do programa de mestrado inter- disciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER). Realizou pós-doutorado em Poéticas Visuais e Processos de Criação pela FAV/UFG. Esse artigo é resultado do projeto de pesquisa “Medievalismo em Goiás”, viabilizado pela Pró-reitoria de Pesquisa da Universidade Estadual de Goiás e pela Bolsa de Incentivo a Pesquisa (BIP) da instituição. E-mail: [email protected] Artigo A “CIDADE MEDIEVAL” DE GOIÁS: O CONJUNTO ARQUITETÔNICO LAGO IDEIA MOLHADA EM HIDROLÂNDIA - GOIÁS* Ademir Luiz da Silva** Resumo: o presente artigo pretende problematizar o cenário de inspiração medieval construído pelo ex-prefeito da cidade de Aparecida de Goiânia, Goiás, Freud de Melo em sua propriedade no município de Hidrolândia (GO), onde funciona(va) o Hotel Fazenda Lago Ideia Molhada, um conjunto arquitetônico composto por 37 castelos, uma interpre- tação livre em tamanho supostamente natural da Arca de Noé, mais de 300 esculturas de animais e monstros lendários dentre outras coisas. Partimos fundamentalmente dos conceitos de Medievalidades e Pastiche, procurando analisar esse conjunto de obras em seu sentido simbólico, artístico e cultural. Palavras-chave: Medievalidades. Pastiche. Bestiário. Arquitetura medieval. Goiás. GOIÁ’S “MEDIEVAL CITY”: THE LAKE IDEIA MOLHADA ARCHITECTURAL SET IN HIDROLÂNDIA – GOIÁS Abstract: this article aims to discuss the medieval inspiration scenario built by the former mayor of the city Aparecida de Goiânia, Goiás, Brazil, Freud de Melo on his property in the municipality of Hidrolândia (GO), where work(ed) the Farm Hotel Lake “Ideia Molhada”, an architectural complex composed of 37 castles, a supposedly natural size free interpretation of Noah’s Ark, over 300 sculptures of animals and legendary mons- ters among other things. We fundamentally start from the concepts of Medieval and Pastiche, trying to analyze this set of works in its symbolic, artistic and cultural sense. Keywords: Medievalidades. Pastiche. Bestiary. Medieval architecture. Goias. DOI 10.18224/mos.v11i2.6180

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Page 1: A “CIDADE MEDIEVAL” DE GOIÁS: O CONJUNTO ARQUITETÔNICO

Revista Mosaico, v. 11, p. 231-247, 2018. e-ISSN 1983-7801. 231

* Recebido em: 23.01.2018. Aprovado em: 08.08.2018. ** Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professor na Universidade Estadual de

Goiás (UEG), nos cursos de História e Arquitetura e Urbanismo. Docente do programa de mestrado inter-disciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER). Realizou pós-doutorado em Poéticas Visuais e Processos de Criação pela FAV/UFG. Esse artigo é resultado do projeto de pesquisa “Medievalismo em Goiás”, viabilizado pela Pró-reitoria de Pesquisa da Universidade Estadual de Goiás e pela Bolsa de Incentivo a Pesquisa (BIP) da instituição. E-mail: [email protected]

Art

igo

A “CIDADE MEDIEVAL” DE GOIÁS: O CONJUNTO ARQUITETÔNICO LAGO IDEIA MOLHADA EM HIDROLÂNDIA - GOIÁS*

Ademir Luiz da Silva**

Resumo: o presente artigo pretende problematizar o cenário de inspiração medieval construído pelo ex-prefeito da cidade de Aparecida de Goiânia, Goiás, Freud de Melo em sua propriedade no município de Hidrolândia (GO), onde funciona(va) o Hotel Fazenda Lago Ideia Molhada, um conjunto arquitetônico composto por 37 castelos, uma interpre-tação livre em tamanho supostamente natural da Arca de Noé, mais de 300 esculturas de animais e monstros lendários dentre outras coisas. Partimos fundamentalmente dos conceitos de Medievalidades e Pastiche, procurando analisar esse conjunto de obras em seu sentido simbólico, artístico e cultural.

Palavras-chave: Medievalidades. Pastiche. Bestiário. Arquitetura medieval. Goiás.

GOIÁ’S “MEDIEVAL CITY”: THE LAKE IDEIA MOLHADA ARCHITECTURAL SET IN HIDROLÂNDIA – GOIÁS

Abstract: this article aims to discuss the medieval inspiration scenario built by the former mayor of the city Aparecida de Goiânia, Goiás, Brazil, Freud de Melo on his property in the municipality of Hidrolândia (GO), where work(ed) the Farm Hotel Lake “Ideia Molhada”, an architectural complex composed of 37 castles, a supposedly natural size free interpretation of Noah’s Ark, over 300 sculptures of animals and legendary mons-ters among other things. We fundamentally start from the concepts of Medieval and Pastiche, trying to analyze this set of works in its symbolic, artistic and cultural sense.

Keywords: Medievalidades. Pastiche. Bestiary. Medieval architecture. Goias.

DOI 10.18224/mos.v11i2.6180

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“Recentemente, e de muitos lados, começaram a falar de nossa época como de uma Nova Idade Média. O problema é saber se se trata de uma profecia ou de uma constatação”.

Umberto Eco, “A Nova Idade Média”

FREUD EXPLICA: UM PROJETO DE IDADE MÉDIA NO INTERIOR DE GOIÁS

O complexo arquitetônico do Hotel Fazenda Lago Ideia Molhada chama atenção pelo inusitado. Trata-se de um conjunto de edificações, torres, pontes, esculturas e muros de pedra que evo-cam a estética que o imaginário popular relaciona com construções medievais. Espalham-se

ao redor (e dentro) de um lago artificial, numa propriedade particular com cerca de vinte e cinco alqueires de área, sendo boa parte de cerrado preservado. Localiza-se a menos de cinquenta quilô-metros de Goiânia, capital do estado de Goiás, no município de Hidrolândia1, no quilometro dezoito da estrada que vai até a cidade de Bela Vista. É um cenário composto para evocar tempos antigos, sonhos aventurescos e fantasia.

Com a premissa de resgatar uma pretensa Era de Ouro do romantismo medieval, o complexo turístico fez sucesso durante seus primeiros anos, recebendo muitos hóspedes e visitantes do Brasil e do mundo. Figurou em reportagens televisivas e serviu de cenário para realizações cinematográficas2. Atualmente, passados alguns anos da inauguração, revelando-se um empreendimento financeiro pouco lucrativo, o Hotel Fazenda Lago Ideia Molhada encontra-se no ostracismo. Não exatamente abandonado ou em ruínas, mas nitidamente pouco cuidado. A maior exceção fica por conta da sede da fazenda. Ali ainda há alguns poucos funcionários para receber os eventuais visitantes, para os quais se disponibiliza café da manhã e almoço. Geralmente pequenos grupos de ciclistas, praticantes de bicicross e trilhas, além de curiosos interessados apenas em fazer algumas filmagens ou fotografias e irem embora, sem interesse no pernoite. Em todo caso, aparentemente, considerando o sucateamento dos quartos, que se encontram sujos, sem móveis, tomados por mato e morcegos, as hospedagens estão suspensas.

O idealizador do projeto foi o Freud de Mello3, ex-prefeito da cidade de Aparecida de Goiânia, município da Região Metropolitana da Capital. No livro Aparecida de Goiânia – do zero ao infinito, publicado em 2002, ele apresenta seu curriculum vitae na terceira pessoa.

Freud de Melo é ex-prefeito de Aparecida de Goiânia, advogado aposentado como integrante do quadro fiscal do Estado, empresário urbano e rural, jornalista; colaborador da maioria dos jornais editados em Goiás: professor de legislação tributária e cartorária, escrevente de cartórios, secretário de câmera, assessor de prefeituras; construtor de empreendimentos curiosos como a Cidade Medieval, que edifica há 17 anos na zona rural do município de Hidrolândia – GO, cons-tituída de 37 castelos de arquitetura européia, todos feitos em pedra, complexo no qual se ergueu o maior contingente de monumentos do reino animal localizados no Brasil, constituindo-se no maior de seu gênero4 (MELO, 2002, p. 5).

Alguns elementos chamam atenção neste texto. O primeiro é a falta de informações pessoais. Em seu curriculum vitae Freud de Melo procurou destacar a amplitude de suas áreas de atuação e, principalmente, suas excentricidades, tomando-as como tal. O que prova o fato de ter definido o com-plexo em Hidrolândia como um de seus “empreendimentos curiosos”. Não existe, portanto, pretensão de normalidade. O exotismo, nesse caso, é compreendido como mérito. Também chama atenção o fato de Freud de Melo ter chamado seu projeto de “Cidade Medieval”. Independentemente se cumpriu ou não o objetivo de ter construído uma cidade medieval no cerrado, fica estabelecido que foi essa a intenção original. Nota-se a informação de que o conjunto arquitetônico estava sendo construído há dezessete anos. Tendo o livro citado sido lançado em 2002, podemos estabelecer como o início das obras o ano de 1985. Provavelmente, os planos são ainda mais antigos.

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Figura 1: Freud de Melo no interior de seu túmulo. Fonte: <http://www.istoe.com.br/reportagens/32322_O+MUNDO+BIZARRO+DO+DR+FREUD>

Encontramos mais informações sobre Freud de Melo em seu blog oficial.

FREUD DE MELO, nascido em Cachoeira de Goiás aos 25 dias do mês de agosto de 1935, filho de Mário de Melo e Enestina Alves Pereira, tendo um único irmão Tanner de Melo, é ex-prefeito de Aparecida de Goiânia, advogado, aposentado como integrante do quadro fiscal do Estado, empresário urbano e rural, jornalista; colaborador da maioria dos jornais editados em Goiás; professor de legislação tributária e cartorária, escrevente de cartórios; secretário de câmara, assessor de prefeituras; Casado com Leonor Ribeiro da Silva Melo, poetisa e advogada, tendo os seguintes filhos: Mara, Márcia, Miryan, Mário José e Margareth de Fátima e Melo (Disponível em: <http://freuddemelo.blog.com>. Acesso em: 08 fev. 2016).

Na segunda página do blog há um breve texto comercial anunciando sua “Cidade Medieval”:

HOTEL FAZENDA LAGO IDÉIA MOLHADA, com 37 castelos medievais de época, piscinas, pesque-pague, restaurantes, choperia, Via Sacra, o maior monumento do Brasil, uma Arca de Noé com mais de 300 Animais, dentre outros serviços. Temos quartos para diária de final de semana e também atendemos os turistas que desejam apenas passar o dia. Para reservas e preços ligar (62) 3283-1154Temos bons preços, venha curtir a Semana Santa na Tranquilidade do Hotel. (Disponível em: <http://freuddemelo.blog.com/hotelfazenda/>. Acesso em: 08 fev. 2015).

Segue-se um mapa de localização (Figura 02) e uma longa sequência de fotos ilustrativas. Essas imagens não possuem registro de autoria. Importante destacar que no rodapé do site encontramos a seguinte mensagem: “Hotel Fazenda – Página em construção”.

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Figura 02: Mapa para se chegar ao Lago Ideia Molhada Fonte: <http://freuddemelo.blog.com/files/2011/03/Imagem-342.jpg>

Como interpretar tais edificações? Freud de Melo, embora seja um homem afeito a mídia e ao debate público, não apresenta respostas definitivas ou aprofundadas sobre a poética por trás de sua Cidade Medieval. Em entrevista concedida a jornalista Angélica Wiederhecker, publicada na edição 1552, de 30 de junho de 1999, da revista Isto É, Freud de Melo

nega que suas iniciativas sejam obra de um megalômano. “Não tenho por objetivo me promover, pois poderia até mesmo cair no ridículo”. Mas tem na ponta da língua os números de seu em-preendimento medieval, transformado num hotel fazenda sob o sugestivo nome de Lago Ideia Molhada. Lá, foram consumidos 110 mil sacos de cimento e 35 mil caminhões de areia, cascalho e pedras. Fazendeiro abastado, ele é dono de cerca de 500 alqueires na região (Disponível em: <http://www.istoe.com.br/reportagens/32322_O+MUNDO+BIZARRO+DO+DR+FREUD>. Acesso em: 19 jan. 2016).

Embora negue que tenha pretensões de usar sua “Cidade Medieval” com o objetivo de se pro-mover, Freud de Melo não deixa de acrescentar que "gosto de coisas antigas. Algumas proeminentes figuras do espiritismo dizem que eu teria sido um rei ou senhor feudal. Acreditam que eu tenha uma personalidade reinante" (Idem). Essa explicação mística, baseada em vidas passadas e nobreza natural, surgem como principal justificativa para o empreendimento. Tal resposta inusitada não escapa da ironia da autora da reportagem, que intitulou o perfil como “O mundo bizarro do Dr. Freud”, não se furtando a traçar relações cômicas entre o Freud goiano Freud (que se fala como se escreve) e o Freud austríaco: “Talvez Freud (o Sigmund) explicasse os delírios noturnos de seu quase homônimo” (Idem).

Ainda de acordo com o levantamento da jornalista Angélica Wiederhecker, segundo Freud “todos os projetos são seus, inspirados em livros que mostram castelos europeus, e têm direito a túneis secretos e ponte levadiça. Freud explica que seu hobby é construir” (Idem). Independente-

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mente de juízos de valor quanto a essa iniciativa em particular, o certo que “o castelo que se tornou personagem mítica da sociedade feudal e da civilização européia foi o castelo medieval” (LE GOFF, 2009, p. 89).

De acordo com Aldo Rossi,

ao levantarmos questões sobre a individualidade e a estrutura de um fato urbano singular, surgiu uma série de perguntas cujo conjunto parece constituir um sistema capaz de analisar uma obra de arte. (...) Deixando de lado seus aspectos psicológicos, creio que fatos urbanos são complexos em si e que nos é possível analisá-los, mas dificilmente defini-los (2001, p. 18).

Contudo, é possível rastrear algumas pistas. A primeira delas, de aspecto mais geral e teórico, refere-se ao uso da expressão “Cidade Medieval” para identificar o complexo. “Em geral havia três modelos básicos da cidade medieval que correspondiam à sua origem histórica, suas peculiaridades geográficas e seu modo de desenvolvimento. Por trás daqueles modelos urbanos, ainda havia os antigos modelos rurais” (MUMFORD, 2008, p. 360). Nesse sentido, chama atenção o fato de que o Hotel Fazenda Lago Ideia Molhada é, acima de tudo, uma fazenda. Não existem muros cercando-o. Há cercas de arame como em qualquer outra propriedade rural da região. Talvez pela extensão da propriedade, talvez por ser desnecessário em termos práticos, uma vez que hoje em dia não se espera por ondas de invasores bárbaros que só poderiam ser contidos por altos e inexpugnáveis muros. Contudo,

Aqueles que põem de lado as plantas orgânicas, como indignas do nome de planta, confundem o mero formalismo e a regularidade com finalidade, e a irregularidade com a confusão intelectual ou incompetência técnica. As cidades medievais confutam essa ilusão formalística. Apesar de toda a sua variedade, compõem um padrão universal; e seus próprios afastamentos e irregularidades, em geral, não são apenas válidos, porém, muitas vezes, sutis na sua mistura de necessidade e visão estética (MUMFORD, 2008, p. 362).

Outras chaves interpretativas para a gênese da ideia da Ideia Molhada, essas de caráter pessoal, são duas rochas localizadas próxima da sede da fazenda. Na primeira lemos “Lago ideia molhada (Hotel Fazenda): uma homenagem a arquitetura castelar medieval (Freud de Melo)”. O destaque para a palavra “homenagem” esclarece definitivamente que não há nenhuma intenção irônica no projeto. Trata-se de uma apologia aos tempos medievais. Dessa forma, a iniciativa de Freud de Melo aproxima-se do que Fredric Jameson, em seus estudos sobre a pós-modernidade, chamou de pastiche. Segundo o autor,

O pastiche, como a paródia, é a imitação de um estilo peculiar ou único, o uso de uma máscara estilística, a fala numa língua morta: mas é a prática neutra dessa mímica, sem a motivação ulterior da paródia, sem o impulso satírico, sem o riso, sem aquele sentimento ainda latente, de que existe algo normal, comparado ao qual aquilo que está sendo imitado é muito cômico (JAMESON, 1995, p. 29).

Destaca-se que, para Jameson, a paródia se diferencia do pastiche por apresentar pretensões críticas explicitadas mediante um tom explicitamente cômico da abordagem acerca do tema parodiado. Por meio de exageros fragrantes e caricaturas óbvias se desfiguram o tema original ao ponto de che-gar a “verdades” sobre ele. O pastiche não possui tais pretensões, resumindo-se em uma reprodução pasteurizada, e, para Jameson, desprovida de sentido do tema inspirador. É, basicamente, “um plágio alusivo e fugidio de tramas mais antigas” (JAMESON, 1993, p. 32). Muitas vezes, como parece ser o caso, apresenta-se como homenagem.

Próxima da primeira rocha encontramos uma outra (figura 3), onde lemos: “Carmo Bernar-des, escritor regionalista inimitável e sertanista nato inspirou a construção deste Lago Ideia Molhada, (nosso reconhecimento). Freud de Melo”.

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Figuras 3, 4 e 5: Autor do artigo junto à placa-homenagem (3); armadura no interior do Castelo do Vinagre (5); exterior do Castelo do Vinagre, sede da fazenda (5).

Fonte: Fotos de Roberta do Carmo Ribeiro (3 e 4) e Cayrene Maria Souza Cardoso (5).

O escritor Carmo Bernardes nasceu na cidade de Patos, em Minas Gerais, no dia 02 de janei-ro de 1915. Mudou-se para Goiás, ainda criança, em 1920. Depois de passar por várias profissões, tornou-se jornalista na cidade de Anápolis, durante a década de 1950. Estreou na literatura em 1966, com o volume de contos Vida Mundo. Seguiu-se mais de uma dezena de livros, incluindo o romance Jurubatuba, de 1972, e o libelo ecológico Jângala – Complexo Araguaia, de 1994. De acordo com a 4º edição do Dicionário do Escritor Goiano, organizado por José Mendonça Teles, Carmo Bernardes “em 1959 entrou para o serviço público, trabalhando como jornalista na Universidade Federal de Goiás. Em 1964, foi indiciado nos IPMs da subversão e respondeu a processo nos tribunais políticos. Retornando à atividade pública, foi assessor especial do Governo do Estado e da Assembleia Legislativa de Goiás” (2011, p. 62). Não é possível saber exatamente de que forma Carmo Bernardes inspirou Freud de Melo na construção dos castelos de Hidrolândia, mas é possível especular que foi na atividade política que os dois se aproximaram e trocaram experiências e interesses, dentre eles a literatura, a preocupação com a fauna e a flora, aspecto que seria muito presente no Lago Ideia Molhada, e, certamente, o mundo medieval. Carmo Bernardes, tendo falecido no dia 25 de abril de 1996, em Goiânia, provavelmente acompanhou, ao lado do amigo, parte considerável das obras.

Assistiram a (re) construção não da Idade Média em si, o que é impossível, mas de uma visão personalista de Idade Média que compartilhavam. Não poderia ser diferente, uma vez que

se somos incapazes de unificar o passado, presente e futuro da sentença, então somos também incapazes de unificar o passado, o presente e o futuro de nossa própria experiência biográfica,

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ou de nossa vida psíquica. Com a ruptura da cadeia de significação, o esquizofrênico se reduz à experiência dos puros significantes materiais, ou, em outras palavras, a uma série de puros presentes, não relacionados no tempo (JAMESON, 2007, p. 53).

As gerações as quais pertencem Freud de Melo e Carmo Bernardes estiveram fortemente expostas a uma visão romantizada da Idade Média. No cinema e na literatura, cowboys e cavaleiros andantes dividiam o título de principais heróis da juventude da época. A construção desse imaginário remete-se a um longo e complexo processo que remonta há centenas de anos.

NOVAS IDADES MÉDIAS: “MEDIEVALIDADES” & “REMINISCÊNCIAS MEDIEVAIS”

A ideia de Idade Média nasceu de um preconceito. Quando Vasari, no século XVI, numa coletânea biográfica de artistas, popularizou o termo Renascimento, estava cristalizando séculos de negação de todo um período da história humana. Ainda no século XIV, Petrarca, sentindo-se pio-neiro de novos tempos, referia-se aos séculos imediatamente anteriores como tenebrae, o Tempo das Trevas. Em 1469, o bispo Giovanni Andrea, em sua função de bibliotecário papal, cunhou o termo media tempestas, o Tempo Médio. Meio caminho entre o período clássico e o vivido. Rabelais, no século XV, referiu-se a uma “espessa noite gótica”. O definitivo estabelecimento do conceito veio em 1688 com o manual escolar de Christopher Keller, também conhecido como Cellarius, no qual definia uma cronologia com fins didáticos para a História Universal, dividida em Antiguidade, Idade Média e Modernidade. Sendo que

O termo expressava um desprezo indisfarçado pelos séculos localizados entre a Antiguidade Clássica e o próprio século XVI. Este se via como o Renascimento da civilização grego-romana, e portanto tudo que estivera entre esses picos de criatividade artístico-literária (de seu próprio ponto de vista, é claro) não passava de um hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo interme-diário, de uma idade média (FRANCO JÚNIOR, 1999, p. 17).

Apenas no século XIX, com o movimento romântico, o preconceito contra o medievo recuou. “O ponto de partida fora a questão da identidade nacional, que ganhara força significativa com a Re-volução Francesa” (FRANCO JÚNIOR, 1999, p. 19). O tema Idade Média, reconhecido como fonte de vitalidade e paixão, passou a ocupar o imaginário literário da época enquanto necessário contraponto ao racionalismo iluminista. Grandes autores ocuparam-se de obras de ambientação medieval, tais como o alemão Goethe, autor de Fausto, e o francês Victor Hugo, autor de O corcunda de Notre Dame. Além disso, após ser dado como esgotado e transformado em sátira por Cervantes em D. Quixote de La Mancha, o gênero novela de cavalaria voltou a gerar obras importantes como Ivanhoé, do escocês Walter Scott, e os doze poemas narrativos Os idílios do rei, do inglês Alfred Tennyson, retomando o ciclo de lendas sobre o rei Artur e seus Cavaleiros da Távola Redonda. Esses livros foram, e ainda são, bastante populares, sendo reeditados constantemente, em edições de luxo ricamente ilustradas, edições pulp, de bolso, adaptações infanto-juvenis entre outras coisas.

A noção de Idade do Meio retorna de tempos em tempos. Na década de 1970, Umberto Eco, antes de se tornar famoso como autor do romance histórico O Nome da Rosa, travou uma polêmica com o teórico italiano Roberto Vacca acerca do que seria exatamente a condição de uma Nova Idade Média que se anunciava no mundo contemporâneo. Eco explica que “quando Roberto Vacca falou da Idade Média próxima vindoura, ele estava pensando na derrocada dos grandes sistemas tecnológi-cos, derrocada que instauraria uma nova Idade Média feudal ou pré-feudal, fundada na penúria e na luta pela sobrevivência” (ECO, 1989, p. 83). Portanto, para Vacca a Nova Idade Média advém de uma sucessão de tragédias que acabam estabelecendo uma espécie de “projeto de apocalipse”, no qual se perde o acesso às conquistas tecnológicas da sociedade moderna. Condição que faria retroceder as conquistas morais e éticas.

Eco é menos dramático e, conforme define no artigo “A Nova Idade Média”, o medievo, enquanto estado de espírito, jamais se diluiu completamente nas sociedades contemporâneas. O que ele faz é mapear as permanências, onde identifica nas relações entre Estado e Igreja, nas formas de pensamen-

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to, na cultura popular, no neonomadismo, em resquícios do pensamento medieval. “A Idade Média conservou a seu modo a herança do passado não para hibernação, mas para contínua retradução e reutilização, foi uma imensa operação de bricolage em equilíbrio instável entre nostalgia, esperança e desespero” (ECO, 1984, p. 99).

Umberto Eco, em outro artigo, intitulado “Dez modos de sonhar a Idade Média”, arrola uma lista de perspectivas contemporâneas acerca do medievo. Destaco quatro delas.

1. A Idade Média como maneira e pretexto. A de Tasso, para sermos mais claros, a do melodrama. Não existe real interesse por uma época, a época é vivida como “lugar” mitológico onde reviver personagens contemporâneos.

2. A Idade Média como lugar bárbaro, terra virgem de sentimentos elementares, época e paisagem fora de toda e qualquer lei (...) O medievo é eleito como espaço escuro, dark ages por excelência. Mas naquele escuro se quer ver uma outra luz. (...)

4. Idade Média romântica que prefere a escuridão do castelo desmoronando num cenário de tempes-tade cortada por relâmpagos, habitada por fantasmas de esposas violadas e assassinadas na noite de núpcias. Medievo ossiânico e neo-gótico, parente próximo das crueldades orientais de Vatheck. Medievo oitocentista, mas ainda o medievo de uma certa space opera, em que o torreão substitui a astronave. (...)

9. A Idade Média da Tradição. Local onde tomou forma (quero dizer: de modo iconograficamente estável) o culto de um saber bem mais antigo, o do misticismo hebraico e árabe, a da gnose. É a Idade Média sincretista, que vê na lenda do Graal, nos acontecimentos históricos dos Cavaleiros do Templo e a partir destes, passando pela fabulação alquímica, nos Iluminados da Baviera, até na atual maçonaria de rito escocês, o desenrolar de uma única e contínua história de iniciação. Acrítica e antifilosófica, está Idade Média vive de alusões e de ilusões (ECO, 1989, p. 81-2).

São sonhos da Idade Média que também evocam pesadelos. O medievo é ao mesmo tempo o período da barbárie, do conflito, do avanço das forças obscuras que solapam a criatividade, a democracia e a individualidade, e o tempo de heróis corajosos que enfrentam dragões e moram em castelos ao mesmo tempo obscuros e fascinantes. Castelos mágicos que arrebatam a imaginação. “Aos preconceitos anteriores, juntava-se o da idealização, já antecipado por Lessing (1729 – 1781): ‘noite da Idade Média, que seja! Mas uma noite resplandecente de estrelas” (FRANCO JÚNIOR, 1999, p. 20).

Apósa literatura, o cinema foi fundamental para compor o imaginário da Idade Média. Os pro-fessores José Rivair Macedo e Lênia Márcia Mongelli, organizadores do livro A Idade Média no Cinema, fruto do curso de extensão “A Idade Média no Cinema” ministrado em 2001 na Universidade de São Paulo (USP), acreditam que a grande questão seria o estabelecimento dos limites entre realidade e ficção na mente do espectador. O livro citado apresenta trabalhos acerca dos filmes A Paixão Segundo Joana d’Ark, O Sétimo Selo, O Incrível Exército de Brancaleone, Henrique V, As Aventuras de Erik, o Viking e Kristin Lavransdatte. Mongelli, autora da apresentação, destaca a necessidade de realizar uma “síntese teórica, que passa em revista, em linhas gerais, a tradição européia e a hollywoodiana dos filmes épicos e históricos, buscando a cada passo, sintetizar os problemas analíticos e interpretativos” (MACEDO; MONGELLI, 2009, p. 12) acerca da filmografia sobre a Idade Média. Para Macedo, conforme escreveu na introdução do volume, “o que está em discussão é a necessária distinção entre uma Idade Média pro-priamente histórica, objeto de estudo dos medievalistas, e uma Idade Média vista em retrospecto, isto é, uma certa ideia do passado medieval visto pela posteridade” (MACEDO; MONGELLI, 2009, p. 14).

“De fato, a Idade Média é a matriz da civilização ocidental cristã” (FRANCO JÚNIOR, 1999, p. 170), mas num tudo que se advoga como medieval o é realmente. O que torna fundamental esta-belecer distinções entre o que seria factível ou não de ser definir como tal. Segundo Macedo, existe uma clara diferença entre os conceitos de “Reminiscências Medievais” e “Medievalidades”. Para ele,

por “reminiscências medievais” devem-se entender as formas de apropriação dos vestígios do que um dia pertenceu ao Medievo, alterados e/ou transformados com o passar do tempo. Nessa categoria encontram-se, por exemplo, as festas, os costumes populares, as tradições orais de cunho folclórico que remontam aos séculos anteriores ao XV e que preservam algo ainda do momento em que foram criados, mesmo tendo sofrido acréscimos, adaptações ou alterações no decurso do tempo (2009, p. 15).

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Podemos observar essas “Reminiscências Medievais” na manutenção de manifestações populares como as Cavalhadas, a Festa do Divino, as Folias de Reis etc. Elas apresentam-se como incorporações de práticas eminentemente medievais sobrevivendo no mundo contemporâneo. Por outro lado,

Defrontamo-nos com uma das manifestações mais tangíveis da “medievalidade”, em que a Idade Média aparece apenas como uma referência, e por vezes uma referência fugidia, estereotipada. Assim, certos índices de historicidade estarão presentes em manifestações lúdicas, obras artís-ticas ou técnicas de recriação histórica (...), mas a Idade Média poderá vir a ser uma realidade muito mais imprecisa na inspiração de temas (magos, feiticeiros, dragões, monstros, guerreiros, assaltos a fortalezas) produzidas pelos meios de comunicação de massa e pela indústria cultural (2009, p. 16-7).

A popularidade de séries televisivas como Guerras dos Tronos. Grupos musicais de Heavy Metal que adotam capacetes e armaduras no figurino, brandindo espadas durante os shows. Festivais de RPG (Rolling Play Games) nos quais os participantes vestem-se como “personagens” medievais, tais como magos, guerreiros, monges e princesas. Tudo isso são exemplos de medievalidades. Retomando Fredric Jameson, identificamos aqui a cultura do pastiche, típica da pós-modernidade, que dilui as fronteiras entre a cultura erudita e a de massa (2007).

Da mesma forma, é verificável na paisagem urbana de diversas metrópolescontemporâneas construções que evocam os tempos medievais. Podem ser desde casas de festas infantis que se apresentam como “castelos encantados” até residências particulares com seteiras5 em seus muros. Em Goiás, a “cidade medieval” de Freud de Melo é um dos exemplos mais célebres dessas “medie-validades” arquitetônicas, sobretudo pelas dimensões e quantidade de elementos envolvidos no conjunto. Foi resultado da forma particular de Freud de Melo “sonhar a Idade Média”, influenciado pela maneira com que conheceu esse período da história humana nos livros que leu e nos filmes que assistiu em sua juventude. Gosto e imaginário que dividia com o amigo um pouco mais velho Carmo Bernardes.

A iniciativa de Freud de Melo, embora seja pouco usual, sobretudo no Brasil, não é única. Na Eu-ropa há uma tradição já de alguns séculos de se reviver os tempos medievais por meio da reconstrução de castelos. Uma espécie de anacronismo consciente. Segundo o historiador francês Jacques Le Goff,

O castelo é evidentemente ressuscitado pelo Romantismo. Victor Hugo, viajando pelo Reno, comove-se diante da silhueta nostálgica dos castelos, enquanto o movimento de restauração (...) incita a reconstituição, frequentemente fantasista dos castelos medievais que decoram o Vale Médio do Reno (...). Trata-se de uma mistura do medievalismo romântico e do espírito burguês biedermeier do século XIX. O que está reconstrução privilegia é o seu aspecto tea-tral; este castelo se destina, aliás, a acolher espetáculos principescos que mesclam natureza e arquitetura. A decoração interior exalta a cavalaria medieval graças a quadros históricos que mostram armas e armaduras (2009, p. 101-2).

O elemento burguês citado por Le Goff é fundamental para compreendermos o fenômeno conforme ele se apresenta em nosso estudo de caso. Freud de Melo, para usar a expressão popular norte-americana, foi um “self made man”, um homem que se fez por si mesmo. Saiu de uma juventude pobre para uma maturidade onde adquiriu considerável fortuna e fama local. Prosperou a sua maneira erepitiria o mesmo em seu maior projeto pessoal, convertando o que deveria ser uma representação épica do passado da humanidade numa espécie de parque temático, de estética inegavelmente kitsch6. O objetivo aqui, mais do que criar a obra, é criar a fama advinda da obra. A lógica é simples: o homem rico constrói, e constrói grandes obras. “Para o cavaleiro, e para o grande burguês que se obriga a imitá-lo a fim de parecer gentil-homem, as riquezas do mundo devem queimar-se e consumir-se na festa” (DUBY, 1979, p. 251). Essa festa é a festa da hospedagem, da visita, do passeio. Por isso, o Lago Ideia Molhada é um Hotel Fazenda e não uma propriedade fechada. Nesse contexto, mostrar e capitalizar o feito é tão importante quando fazê-lo. “O castelo do século XV, já há muito tempo associado à festa, torna-se um verdadeiro espaço teatral, o teatro da vida ou do mundo (theatrum vitae ou theatrum mundi)” (LE GOFF, 2009, p. 100).

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Por isso, remetendo ao conceito de Imagibilidade, apresentado pelo teórico do urbanismo Kevin Lynch, podemos pensar esse espaço como uma paisagem ao mesmo tempo prática e simbólica.

Uma paisagem carregada de significados mágicos pode inibir as atividades práticas (...). Se é desejável que um ambiente evoque imagens ricas e vívidas, também é desejável que elas sejam comunicáveis e adaptáveis às necessidades práticas em permanente mutação e que possam desenvolver-se novos agrupamentos, novos significados, uma nova poesia. O objetivo poderia ser o de um ambiente que suscite imagens e, ao mesmo tempo, seja aberto (LYNCH, 2014, p. 159-60).

Para um turista, a função primordial do hotel é suspender as atividades práticas. Sobretudo

em se tratando de um hotel fazenda, no qual a proposta de retorno à natureza significa a reconquista do idílio edênico, no qual o ser humano, ainda imaculado pela mancha do Pecado Original, vivia em comunhão com a natureza, sem trabalhar, envelhecer ou sentir dor. Em um hotel temático, como é o caso do complexo Lago Ideia Molhada, as sugestões de imagens simbólicas fazem parte do pacote de atrações. Um pacato de “medievalidades”, que evita estereótipos desagradáveis como a Peste Negra ou a Inquisição. Nele, por meio de sua arquitetura, um sonho de Idade Média pode ser vivido. Mas qual Idade Média?

ARQUITETURA DE INSPIRAÇÃO ROMÂNICA MEDIEVAL

Em sua construção, Freud de Melo foi ao mesmo tempo financiador, arquiteto e mestre de obras. Por filiação, deve-se admitir que recuperou uma prática de época, uma vez que “o arquiteto medieval adquiriu seus conhecimentos não através de treinamento teórico, mas no trabalho prático, no decorrer do qual obtinha alguns conhecimentos de matemática e geometria que o habilitavam a elaborar proje-tos, fazer plantas e desenhos. Deixava muitos dos detalhes para serem resolvidos enquanto o edifício estava sendo construídos” (LOYN, 1997, p. 32). A concepção flagrantemente amadora das plantas indica que a concepção dos prédios foi mais improvisada do que tecnicamente concebidas. A posição de Freud de Melo à frente do empreendimento lhe permitia tomas decisões à base da intuição, pois

progressivamente, os poderes de criação foram delegados em especialistas, os mestres de obra, cuja fortuna então começa. Estes homens erguiam-se agora muito acima dos simples artesãos que era seu encargo dirigir. Já não carregavam pedras. Manejavam o compasso. Apresentavam aos cônegos, minuciosamente desenhado sobre pergaminho, o alçado do futuro edifício. (...) Os mestres de pedreiros, com a régua e o compasso nas mãos, dizem aos outros: ‘corta por aqui’. Não trabalham, e contudo recebem as maiores soldadas (DUBY, 1979, p. 179-80).

Não é possível estabelecer que houve apenas uma arquitetura castelar medieval. Nos cerca de mil anos que as convenções de contagem de tempo atribuem ao medievo, testemunhou-se o desenvol-vimento de diversos estilos e técnicas construtivas diferentes, assim como a integração entre elas. Na verdade, “para descrever um estilo em arquitetura, é preciso descrever suas características próprias. Mas as características, por si só, não constituem o estilo. É necessário que haja uma ideia central atuando em todas elas” (PEVSNER, 2002, p. 46).

Considerando os aspectos gerais do conjunto do Lago Ideia Molhada, podemos admitir que o estilo dominante se aproxima do românico. Esse estilo arquitetônico surgiu no ducado da Normandia, no século X, inspirado na arquitetura da Roma Republicana (509 a. C. – 27 a. C), que se caracterizava pela austeridade e robustez, exibindo paredes grossas e janelas minúsculas, por onde passava pouquíssi-ma luz. “O Cristianismo foi buscar muitas de suas formas arquitetônicas nos edifícios romanos pagãos, modificando-os de acordo com suas necessidades litúrgicas, e as basílicas e as igrejas de plano central dos primórdios do período cristão continuaram sendo edificadas, até os dias de hoje” (LOYN, 1997, p. 29).

Observamos essa herança nos castelos de Freud de Melo, onde dominam formas rígidas e pesadas. Paredes e colunas grossas dão o tom. Mais linhas retas do que curvas ou ogivais. Como na chamada Idade Média Central, “o novo princípio consistia em separar os vãos através de altas colunas, que se erguiam do chão até um teto inteiramente plano: a arte de projetar uma abóboda, com efeito, estava quase perdida” (PEVSNER, 2002, p. 52).

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Figuras 6, 7, 8 e 9: Castelo de Bill Gates (6); castelo pequeno (7); muro de pedra recoberto por fragmentos de mármore(8); castelo às margens do lago Ideia Molhada (9). Fonte: Fotos de Cayrene Maria Souza Cardoso.

O estilo românico primava por privilegiar o aspecto defensivo. É pensado para resistir aos ataques dos inimigos externos. Isso porque cada senhor tinha a obrigação de defender seu território virtualmente sozinho. “A queda de Roma significa que cada localidade estava isolada de todas as outras e tinha que tornar-se autossuficiente para poder sobreviver (...) Seu centro não era uma cidade, mas um castelo rural (...). A cidade medieval era cercada por grossos muros; a defesa militar era completada por torres de vigia e fossos externos” (PALEN, s/d, p. 40-2).

Seu hotel fazenda, como uma batalha de paintball, é uma celebração da guerra heróica, da batalha justa, constituindo-se em um cenário que se quer perfeito para ela. A batalha não virá, salvo em eventuais encenações teatrais, com atores interpretando os cavaleiros belige-rantes, mas cria-se a expectativa mediante o aspecto das construções. Esse “desejo de guerra” é um forte elemento da fantasia ligada ao mundo medieval, pois “de modo geral, a imagem do castelo medieval ainda viva no imaginário ocidental lembra que naquela época a guerra era onipresente, e o herói, ao lado do santo designado pela graça de Deus, um guerreiro que se distinguia antes pelo prestígio de sua residência estreitamente ligada à guerra que por suas proezas” (LE GOFF, 2009, p. 105). Anota-se que não há registro da presença de Freud de Melo em combates ou escaramuças conhecidas, salvo às realizadas nas trincheiras da política, com ampla cobertura da imprensa e com canetas e discursos fazendo o papel de armas.

Essas fortalezas existem ali para compor a guerra enquanto possibilidade de cenário para o heroísmo, não para analisar ou refletir sobre seu potencial destrutivo, que obriga ao soldado atos extremos ou questionáveis. Essa não é uma noção exatamente nova. Ainda com o rei Carlos V “pela primeira vez, a proteção militar perdeu sua característica prática de defesa, assumindo a feição de alegoria arquitetônica” (SENNETT, 2001, p. 150). Numa alegoria não se espera uma analise bruta da realidade.

Mas não só de guerra vivia o homem medieval. Recordando Adalberto de Laon (977 – 1030) em seu célebre poema sobre as três ordens da Idade Média, enquanto uns trabalhavam, “os laboratores” ou camponeses, outros lutavam, os nobres ou “belatores”, enquanto ainda outros rezavam, os “oratores” ou clérigos. Os quartos do Hotel Fazenda Lago Ideia Molhada, em muitos aspectos, assemelham-se aos

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antigos claustros dos monges medievais. Rústicos e pétreos, provavelmente foram pensados, também, para receber hospedes interessados em fazer retiros espirituais.

A prática de abstenção e retiro de oração, o espírito de proteção e guarda deixaram sua marca em toda estrutura da cidade medieval. Enquanto o complexo medieval esteve intacto uma cor-rente constante de homens e mulheres desiludidos do mundo deixou o mercado e o campo de batalha, à procura da tranquila rotina contemplativa do mosteiro e do convento (MUMFORD, 2008, p. 321-2).

Mesmo nesse ambiente que almeja inspirar religiosidade “turística”, a lembrança constante do elemento bélico é visível. O imaginário medieval prevê normalmente que a visão de uma cidade medieval destacava suas construções religiosas, sempre as mais altas numa paisagem eminentemente horizontal. Freud de Melo, diferentemente, privilegiou em seu complexo arquitetônico os prédios seculares, os castelos dos reis e fortificações. Se por um lado, “nas proximidades do ano de 1200, a Igreja romana é uma fortaleza cercada” (DUBY, 1979, p. 116 - 117), por outro “as torres e campanários das igrejas atraíam os olhos para o céu; suas massas se elevavam, indiscutivelmente primeiras, em disposição hierárquica, acima de todos os símbolos menores do poder e riqueza terrena” (MUMFORD, 2008, p. 333). Nesse contexto, vendo-se como soberano em seus domínios, Freud de Melo explicitou sua opção estética e simbólica. “Não contando com a espiritualidade da catedral, o castelo medieval proclama o seu poder simbólico e impõe-se como imagem inconsciente da força e do poder” (LE GOFF, 2009, p. 94).

Nesse cenário, traços do contemporâneo se fazem presentes de forma inapelável e, de alguma maneira, inconveniente, dificultando a criação do clima proposto. A pesquisadora Cayrene Maria Souza Cardoso, que colaborou na elaboração desse trabalho, destaca o uso de materiais modernos como grades de metal e vidros industrializados nas janelas, bem como fragmentos de mármore, ci-mento e brita, entre outras coisas. Isso pode ser relevado se considerarmos que “de modo geral, pode-se identificar uma evolução lenta, mas constante, do castelo medieval que passa da posição de fortaleza à de residência” (LE GOFF, 2009, p. 90), fazendo com que os confortos da nascente cultura burguesa se tornassem primordiais, mas não há como negar que tal explicação é artificial e pouco convincente. O castelo do Vinagre, a sede do complexo, cumpre essa função de residência. Mais moderna e mais funcional, pode receber com conforto os turistas. Não por acaso é o único edifício do complexo que, atualmente, recebe manutenção regular.

O IMAGINÁRIO MEDIEVAL EM ESCULTURAS

Um dos aspectos mais ricos da estética do complexo arquitetônico Lago Ideia Molhada se refere às esculturas de diferentes matizes que se espalham por seu espaço. São representações, destacadamente, em pedra e concreto de figuras humanas, animais da fauna conhecida, bestas mitológicas entre outras. A visualização dessas esculturas é parte integrante da experiência “medieval” proposta pelo complexo para seu visitante. Nesse contexto, caminhar pelo campo ganha importância, considerando que

o povo medieval estava acostumado à vida ao ar livre (...). No que diz respeito aos espaços abertos utilizáveis, a cidade medieval típica teve, no seu início e através da maior porção de sua existência, um padrão muito elevado para a massa da população do que qualquer outra forma posterior de cidade, até os primeiros subúrbios românticos do século XIX (MUMFORD, 2008, p. 346).

São muitos, potencialmente infinitos, os caminhos e direções que podem ser tomadas. Não existe uma ordem pré-estabelecida para se começar a caminhar. Uma possibilidade que se apresenta como promissora é seguir as treze estações da Via Sacra que circunda o lago. Acompanhando-a, potencialmente, pode-se visualizar a maior parte das esculturas do complexo, de perto ou de mais distante, com exceção de algumas que estão estrategicamente escondidas na paisagem, pensadas exatamente para surpreender o passante. Nesse cenário, a Via Sacra ganha importância por ampli-ficar a experiência da caminhada. Seguir as estações, observando-as em três dimensões e tamanho

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natural, e não nos habituais e pasteurizados quadros que costumam enfeitar as paredes das igrejas católicas, emula a sensação de testemunho de uma crucificação real, ainda que as figuras humanas não sejam necessariamente realistas. A sugestão da dor e do sofrimento físico gerado por esse tipo de execução ganha outra dimensão. Relembra os célebres autos encenados nas cidades medievais nas festas do calendário litúrgico. Neles, muitas vezes, o sofrimento não era totalmente teatral, nem para os atores, nem para a plateia. Eram comuns flagelações e perfurações. “Na era medieval, a Imitação de Cristo permitia às pessoas uma consciência corporal maior, tornando-se mais inclinadas a assumir sentimentos e sofrimentos de terceiros” (SENNETT, 2001, p. 183).

Deve ser destacada a forma como as esculturas se integram à arquitetura. Mesmo quando não fazem necessariamente parte de um prédio, ajudam a compor o projeto paisagístico do arre-dor. O objetivo é integrar tais figuras ao ambiente, uma vez que “a cidade medieval não era um mero complexo social estimulante; era igualmente um ambiente biológico mais próspero do que se poderia suspeitar ao ver seus restos arruinados” (MUMFORD, 2008, p. 355).

Um olhar distraído, ou demasiado severo, pode considerar aleatório e amadorístico tanto a distribuição espacialquanto a técnica empregada na confecção das esculturas. De fato, são peças rús-ticas. Mas, num cenário como esse, “não devemos esperar que tais esculturas tenham um aspecto tão natural, gracioso e leve quanto as obras clássicas. Elas são tão mais impressionantes por causa de sua solenidade maciça. Torna-se muito mais fácil ver de um relance o que está representado” (GOMBRICH, 1983, p. 130). Mais do que valor artístico o que se espera alcançar com as esculturas é a comunicação de uma ideia. “Devemos compreender como eram grandes as possibilidades que se abriram diante dos artistas, logo que finalmente puseram de lado toda a ambição de representar as coisas tal como as vemos” (GOMBRICH, 1983, p. 134). Que essa ideia seja pessoal, de certo modo ingênuo, calcada em preconceitos ditados no âmbito das medievalidades, não é o fundamental. Inegavelmente, a ar-quitetura, a escultura, e por que não o urbanismo da “cidade medieval” de Freud de Melo desenham uma mensagem válida, que é comunicada mediante essa homenagem à arte medieval.

O objetivo supremo da arte é exprimir o essencial. Tudo o que não é essencial é alheio à arte (...). Esses fins supremos da arquitetura também não são os da escultura? O escultor, que toma seus modelos emprestados das formas da vida sensível, dos vegetais, dos animais, do homem e da mulher, é decerto admiravelmente bem infinita variedade de toda essa beleza; mas essa variedade mesma pode se tornar um perigo para ele. Ele só alcança a grande expressão da luz e da sombra, exatamente como faz o arquiteto. Em última análise, é a luz e a sombra portanto que o escultor, como o arquiteto, trabalha e modela (RODIN, 2002, p. 3-4).

Para Freud de Melo o período medieval, para além de ser uma época marcada pelos atos huma-nos, que vão das aventuras cavaleirescas até o imaginário religioso sustentados pela ação de homens santos, é o tempo de ouro do respeito à criação Divina. Não por acaso seu complexo arquitetônico é apresentado como um monumento ecológico, uma ode a preservação ambiental. Para tanto, esmera-se na representação do elemento animal. A fauna, realista ou fantástica, é um os temas principais das esculturas.

O escritor argentino Jorge Luis Borges, em O livro dos seres imaginários, em meio a descrição de inúmeras criaturas fantásticas, recolhidas das mais diversas mitologias, apresenta o que chamou de animais sonhados por C. S. Lewis, Kafka e Poe. São sofisticadas construções literárias sobre a relação do ser humano com a ideia de fera, de besta, abrangendo desde metáforas religiosas até perspectivas psicanalíticas. Na concepção estética do Lago Ideia Molhada, no que concerne a decoração com es-culturas, temos o que se pode chamar de animais sonhados por Freud de Melo.

“A cultura medieval européia primou-se por compendiar ricas e ilustrativas coletâneas de informações e ensinamentos sobre o mundo animal, vulgarmente conhecidas como bestiários” (FONSECA, 2003, p. 161). Observamos hoje a popularização e vulgarização da filosofia que impregnava tais obras, via produtos de mídia, que vão desde filmes até desenhos animados e jogos de computador. Não há porque duvidar que Freud de Melo tenha tido contato com essas informações e se deixado inf luenciar por elas, levando-as aos mestres de obra que confecciona-ram suas esculturas.

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Observamos tal perspectiva na variedade de bestas representadas. Não existe preocupação com realismo ou proporções. Se na Arca de Noé, uma das atrações mais importantes do complexo, os animais conhecidos se destacam, uma vez que essa atração respeita a mitologia bíblica que a inspira, por outro lado também encontramos, por exemplo, uma gigantesca serpente inspirada no monstro do Lago Ness, da Escócia. O bestiário, na condição de obra de referência para os medievais, “no tocante aos animais, ao lado da representação daqueles que eram realmente conhecidos, as histórias naturais e a protéicazoológica dos bestiários medievais comportavam descrições de animais exóticos, fabulosos e fictícios” (FONSECA, 2003, p. 164).

Figuras 10, 11 e 12: Via Sacra, estação da crucificação (10); escultura de serpente (11); escultura de leão, escondida pela folhagem (12). Fonte: Fotos de Ademir Luiz da Silva (10) e Danillo de Souza Moura (11 e 12).

O pesquisador Danillo de Souza Moura, que colaborou na realização desse trabalho, observou que a composição da Arca de Noé encena o momento da saída dos animais da embarcação. Formam uma fila indiana ordeira e, mediante a representação dos movimentos, sem pressa. O tamanho dessas esculturas é padronizado, mesmo para o caso de animais com dimensões diferentes, indicando que estão todos igualmente importantes para o equilíbrio ecológico. Ao final da rampa, espalham-se calmamente pelo terreno. Possivelmente, a intenção de Freud de Melo era sugerir que o local no qual aportaram é seguro e que o perigo passou. O terreno encharcado dá a noção de que se trata do final do dilúvio. No alto da arca, a figura de Noé orquestra o desembarque, indicando a direção segura para os animais. Nota-se preocupação com os detalhes de proporção e indumentária, destacando o cajado, que concede majestade e liderança a figura.

O interior da arca, agora desocupado pelos animais, que se espalham pelo convés, e descem a rampa, é usado como auditório para receber convenções no hotel fazenda. Na atual situação de semi-abandono pela qual passa o complexo, são poucas as cadeiras disponíveis (Figura 15).

Chama atenção a grande quantidade de esculturas de leão que se espalham pelo complexo. As feras de pedra guardam a entrada dos principais castelos e, não fica claro se de modo intencional ou por falta de manutenção, se escondem na vegetação, como se estivessem esperando para atacar incautos desavisados (figura 12). A premência do leão no imaginário ocidental é amplamente difun-dida e reconhecida. Tornou-se símbolo de coragem, força, nobreza e majestade. Muitos reis tinham leões como símbolos de heráldica e alguns chegaram a incorporar a simbologia do “rei dos animais” no próprio nome, como foi o caso do monarca inglês Ricardo I (1157 – 1199), chamado de Coração de

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Leão. “Os bestiários sempre reservaram um lugar de honra para o leão, rei dos animais. Usualmente, iniciavam o compêndio das suas criaturas pela sua figura. A posição de nobreza emblemática desse animal era explorada para corresponder simbolicamente a um dos conteúdos mais caros à cristandade, qual seja, a ressurreição de Cristo” (FONSECA, 2003, p. 174).

Figuras 13, 14, 15 e 16: Saída dos animais da Arca de Noé (13); Noé no alto da arca (14); interior da arca, usado como auditório do hotel (15); o convés da arca (16).Fonte: Fotos de Danillo de Souza Moura (13, 14 e 15) e Ademir Luiz da Silva (16).

A logo do Lago Ideia Molhada mostra um escudo ladeado por dois leões (figura 2). Sugere um brasão familiar medieval. O que não deixa dúvidas de que, assim como Ricardo Coração de Leão, Freud de Melo não se acanha em incorporar o simbolismo relacionado aos leões à sua imagem pessoal. Vê-se como um visionário e um tipo de nobre medieval orgulhosamente anacrônico, em sua postura que se quer ilibada e na magnitude de projetos de construção. Sua Idade Média não é a da Igreja, mas a do “século”. É mais castelo do que catedral. “De fato, foram os príncipes que tomaram então a vez da Igreja na condução dos grandes programas artísticos e instalaram nas suas cortes a vanguarda da criação e da pesquisa” (DUBY, 1979, p. 198).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao planejar e efetivar a construção de sua “ideia molhada”, Freud de Melo transformou tal conjunto arquitetônico em parte inerente e inseparável de sua identidade pública. Tornou-se impos-sível, pelo menos em âmbito local, referir-se ao ex-prefeito de Aparecida de Goiânia sem referenciar em algum momento os monumentos que ele ergueu para si mesmo: seu túmulo à prova de catalepsia e, sobretudo, seus castelos “medievais”. Ao fazer isto, pretendeu, literalmente, materializar sua estirpe, tornando-a principesca, nobre e grandiosa, digna de exaltação e lembrança. A visitação aos castelos foi planejada para ser inesquecível, sempre relacionando o Criador com a Criação. Não há castelos sem Freud, não há Freud sem castelos.

Interpretando criticamente o complexo arquitetônico Lago Ideia Molhada em sua totalidade, é impossível não o enxergar como uma manifestação das medievalidades que impregnam nossa

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cultura, quanto ao que se reconhece popularmente como sendo o período medieval, uma época tão rica e complexa quanto marcada por estereótipos. Mas, sem dúvida, o anacronismo destas mesmas construções não impede que estejam definitivamente estabelecidas como pastiches. Os castelos de Freud não são mais medievais do que o cenário construído para um filme que se passa no século XII ou um castelo encantado de paredes rosas onde se encomendam festas infantis.

Em todo caso, a iniciativa de Freud diz muito sobre ele mesmo e suas expectativas, mas também revela muito sobre os tempos que correm. Se há incontáveis exemplos de medievalida-des, também podemos identificar casos onde genuínas reminiscências medievais ocorrem e se perpetuam. Por tudo isto, retomando a epígrafe deste trabalho, não é possível estabelecer defini-tivamente se estamos mesmo vivendo uma Nova Idade Média, tampouco se jamais abandonamos totalmente o medievo.

Nos dois cenários a Cidade Medieval de Freud de Melo é uma curiosidade instigante, um sinal dos tempos. Se esses tempos são cínicos a ponto de transformar em parque temático todo um período da experiência histórica humana ou, pelo contrário, romântico a ponto de se recusar a parar de homenageá-lo, é outra questão. Em todo caso, “essa longa Idade Média não é tão sombria como queriam os humanistas e os homens das Luzes, nem dourada como imaginavam os român-ticos e os católicos do século XIX. Como todo período da história, ela é feita de sombras e luzes” (LE GOFF, 2010, p. 15).

Notas1 O povoamento original do território de Goiás por diferentes grupos indígenas data de cerca de 11 mil anos

atrás, conforme artigo “O Centro-Oeste antes de Cabral”, publicado no nº 44 da Revista USP 1999/2000. A ocupação da região por colonizadores começou em 1896, com a doação de terras para a construção de uma capela em honra a Santo Antônio. Ao redor da ermida ergueu-se o distrito de Santo Antônio das Grimpas, pertencente ao município de Piracanjuba. A emancipação ocorreu em novembro de 1930, com o nome de Hidrolândia. Em 1936 a autonomia foi perdida, passando a pertencer ao território de Goiânia. Nova e definitiva emancipação ocorreu em 05 de novembro de 1948. No senso mais recente, de 2010, sua população foi estimada na casa de 17 habitantes.

2 Em 2007 uma equipe de estudantes de audiovisual da Faculdade Cambury, de Goiânia, utilizou o Hotel Fazenda Lago Ideia Molhada como locação para as filmagens de uma releitura em curta-metragem do clássico do cinema expressionista alemão Nosferatu (1922), dirigido originalmente por Friedrich Wi-lhelm Murnau. A versão goiana, com 9 minutos, encontra-se disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GCWNaFnzw2o>.

3 Freud de Melo foi afastado da prefeitura de Aparecida de Goiânia acusado de improbidade administrativa e desvio de recursos públicos. Também foi acusado de mandante do assassinato do descendente de chineses Micky Huang, namorado de uma de suas quatro filhas. Foi inocentado do crime em duas instâncias de julgamento.

4 Outro aspecto importante da personalidade pública assumida por Freud de Melo é o destaque dado para seu medo patológico de ser enterrado vivo. Na sequência de seu curriculum vitae lemos que: “é autor edi-ficante do único túmulo existente em todo o mundo, com condições de sobrevida das pessoas, contendo capela, sepulcro, sistema elétrico móvel, trilhos, acesso, rampa de movimentação, ventilação, respiração, interligação de megafone, alimentos de sobrevivência, celular, TV e outros apetrechos necessários para que a pessoa tida e havida como morta por possível catalepsia ou mal súbito ainda desconhecido volte ao convívio dos seus semelhantes, com a maior segurança possível”. A ciência registra casos como esse como “Tafofobia”, que seria o medo fóbico de ser sepultado vivo.

5 Na arquitetura militar, a seteira é uma sequência de aberturas ou rebaixamentos na alvenaria das muralhas, que permitiam que os arqueiros lançassem flechas contra inimigos que sitiavam o castelo. Foi um recurso muito usado na Idade Média, transformando-se em uma marca visual do período, embora tenha sido criado em tempos anteriores.

6 Nos estudos da estética, o conceito de Kitsch, um termo de origem alemã, é usualmente utilizado para designar objetos e construções considerados vulgares, exagerados e sentimentais, que copiam sem maiores critérios referências da cultura clássica ou erudita, visando o consumo de massa. É comum que o Kitsch seja apresentado e vendido como sendo sofisticado e de bom gosto, embora tais características, via de regra, sejam associações externas que seu público consumidor estabelece, não correspondendo a realidade, caso tais produtos fossem analisados de modo mais cuidadoso.

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Referências

BORGES, Jorge Luis. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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