a clínica, o corpo, o cuidado e a humanização entre laços ... · cuidadoras, o cuidado, o...

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A clínica, o corpo, o cuidado e a humanização entre laços e perspicácias: a educação da saúde nas práticas profissionais e a Política Nacional de Humanização Clinics, body, care, and humanization between bonds and perspicacities: education of the health in professional practice and the Brazilian National Humanization Policy La clínica, el cuerpo, el cuidado y  la humanización entre lazos y perspicacias: la educación de la salud en las prácticas  profesionales y la Política Nacional Brasileña de Humanización Emerson Elias Merhy 1 Ricardo Burg Ceccim 2 Resumo Trata-se de um ensaio sobre os desafios de uma estratégia brasileira adotada pelo sistema de saúde para melhorar a qualidade de sua resposta gerencial e assistencial, a Política Nacional de Humanização. Independentemente de análise política, conceitual ou de resultados, o ensaio tenta uma humanização da saúde, do corpo e das práticas terapêuticas pelo confronto com suas reificações seja pela soberania dos sistemas profissionais sobre as práticas, pela disciplinarização que legitima as condutas do tipo diagnóstico-prescrição ou, mais contemporaneamente, a disseminação – em forma de sociedade do controle – de mecanismos que em nome da longevidade da vida estancam a sua produção de singularidade. Além dos componentes da gestão e da atenção, a constituição de sentidos (educação da saúde) e uma profunda alteridade (participação e interferência do outro) precisam se presentificar. Lança-se mão das noções de corpo de órgãos e de Corpo sem Órgão para problematizar a passagem de uma clínica referida aos sintomas para uma clínica da ausência de sintomas (do silêncio dos órgãos sadios à dispensa dos órgãos sob controle) em detrimento de uma clínica da produção 1 Médico, doutor em saúde coletiva, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas, coordenador da Linha de Pesquisa Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde, Programa de Pós-Graduação em Clínica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2 Enfermeiro, doutor em psicologia clínica, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenador do Núcleo de Educação, Avaliação e Produção Pedagógica em Saúde – EducaSaúde, do Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma Universidade.

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A cliacutenica o corpo o cuidado e a humanizaccedilatildeo entre laccedilos e perspicaacutecias a educaccedilatildeo da

sauacutede nas praacuteticas profissionais e a Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo

Clinics body care and humanization between bonds and perspicacities education of

the health in professional practice and the Brazilian National Humanization Policy

La cliacutenica el cuerpo el cuidado y la humanizacioacuten entre lazos y perspicacias la

educacioacuten de la salud en las praacutecticas profesionales y la Poliacutetica Nacional Brasilentildea de

Humanizacioacuten

Emerson Elias Merhy1

Ricardo Burg Ceccim2

Resumo

Tratashyse de um ensaio sobre os desafios de uma estrateacutegia brasileira adotada pelo sistema de

sauacutede para melhorar a qualidade de sua resposta gerencial e assistencial a Poliacutetica Nacional

de Humanizaccedilatildeo Independentemente de anaacutelise poliacutetica conceitual ou de resultados o ensaio

tenta uma humanizaccedilatildeo da sauacutede do corpo e das praacuteticas terapecircuticas pelo confronto com

suas reificaccedilotildees seja pela soberania dos sistemas profissionais sobre as praacuteticas pela

disciplinarizaccedilatildeo que legitima as condutas do tipo diagnoacutesticoshyprescriccedilatildeo ou mais

contemporaneamente a disseminaccedilatildeo ndash em forma de sociedade do controle ndash de mecanismos

que em nome da longevidade da vida estancam a sua produccedilatildeo de singularidade Aleacutem dos

componentes da gestatildeo e da atenccedilatildeo a constituiccedilatildeo de sentidos (educaccedilatildeo da sauacutede) e uma

profunda alteridade (participaccedilatildeo e interferecircncia do outro) precisam se presentificar Lanccedilashyse

matildeo das noccedilotildees de corpo de oacutergatildeos e de Corpo sem Oacutergatildeo para problematizar a passagem de

uma cliacutenica referida aos sintomas para uma cliacutenica da ausecircncia de sintomas (do silecircncio dos

oacutergatildeos sadios agrave dispensa dos oacutergatildeos sob controle) em detrimento de uma cliacutenica da produccedilatildeo

1 Meacutedico doutor em sauacutede coletiva professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas coordenador da Linha de Pesquisa Micropoliacutetica do Trabalho e o Cuidado em Sauacutede Programa de PoacutesshyGraduaccedilatildeo em Cliacutenica Meacutedica Universidade Federal do Rio de Janeiro2 Enfermeiro doutor em psicologia cliacutenica professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul coordenador do Nuacutecleo de Educaccedilatildeo Avaliaccedilatildeo e Produccedilatildeo Pedagoacutegica em Sauacutede ndash EducaSauacutede do Programa de PoacutesshyGraduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da mesma Universidade

de encontros e de sensaccedilotildees afirmativas do viver (que precisa dos oacutergatildeos mas para

atravessaacuteshylos em maior potecircncia de vida)

Palavras Chave

Trabalho em sauacutede Corpo sem Oacutergatildeos cuidado medicalizaccedilatildeo afirmaccedilatildeo da vida educaccedilatildeo

da sauacutede

Abstract

This is an essay about the challenges of a Brazilian strategy adopted by the health system to

improve the quality of its managerial and assistance response the National Humanization

Policy Independent of the political conceptual or results analysis the essay tries a

humanization of health of the body and of the therapeutic practices by means of the

confrontation with its reifications be it through the sovereignty of the professional systems

about the practices through the disciplinarization that legitimizes the diagnosisprognosisshylike

conducts or more contemporaneously the dissemination ndash in the shape of a control society ndash

of the mechanisms that in the name of life longevity staunch its production of singularity

Besides the management and care components the constitution of meanings (education of

health) and a deep alterity (participation and interference of the other one) needs to be made

present The notions of body of organs and Body without Organs are used to question the

passage from a clinics referred to the symptoms towards a clinics of the absence of symptoms

(from the silence of the healthy organs to the exemption of the organs under control) in lieu of

a clinics of the production of meetings and affirmative sensations of living (that needs the

organs but to cross them in a bigger strength of life

Keyshywords

Work in health Body without Organs care medicalization affirmation of life education of

health

2

Resumen

Se trata de un ensayo sobre los desafiacuteos de una estrategia brasilentildea adoptada por el sistema de

salud para mejorar la calidad de su respuesta gerencial y asistencial la Poliacutetica Nacional de

Humanizacioacuten Independientemente de la anaacutelisis poliacutetica conceptual o de resultados el

ensayo intenta la humanizacioacuten de la salud del cuerpo y de las praacutecticas terapeacuteuticas por el

confronto con sus reificaciones sea por la soberaniacutea de los sistemas profesionales sobre las

praacutecticas por la disciplinarizacioacuten que legitima las conductas del tipo diagnoacutesticoshy

prescripcioacuten o mas contemporaacuteneamente la diseminacioacuten ndash en forma de sociedad del control

ndash de mecanismos que en nombre de la longevidad de la vida estancan a su produccioacuten de

singularidad Mas allaacute de los componentes de la gestioacuten y de la atencioacuten la constituicioacuten de

los sentidos (educacioacuten de la salud) y una profunda alteridad (participacioacuten e interferencia del

otro) precisan se presentificar Se lanza mano de las nociones del cuerpo de oacuterganos y del

cuerpo sin oacutergano para problematizar el pasaje de una cliacutenica referida a los siacutentomas para una

cliacutenica de ausencia de siacutentomas (del silencio de los oacuterganos sadios a la dispensa de los

oacuterganos bajo control) en detrimento de una cliacutenica de produccioacuten de encuentros y de

sensaciones afirmativas del vivir (que precisa de los oacuterganos pero para atravesarlos en mayor

potencia de vida)

Palabras Clave

Trabajo en salud Cuerpo sin Oacuterganos cuidado medicalizacioacuten afirmacioacuten de la vida

educacioacuten de la salud

Introduccedilatildeo

Quando observamos a praacutetica cotidiana de cuidar nos estabelecimentos de sauacutede ou

quando queremos falar sobre essa praacutetica somos levados via de regra a apontar o quanto os

contatos que aiacute se realizam estatildeo marcados pela presenccedila de forccedilas externas antecedentes ao

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encontro numa espeacutecie de ausecircncia de interaccedilatildeo presenccedila apenas do mundo da

macropoliacutetica onde conhecimentos teacutecnicos protocolares disciplinares e dependentes

fundamentalmente do domiacutenio de saberes formais prescrevem certos modos de atuar tratashyse

do trabalho capturado por seu gerenciamentoprotocolizaccedilatildeocorporativizaccedilatildeo Costumamos

apontar diante disso que o profissional de sauacutede ao atuar no cotidiano dos serviccedilos junto

aos usuaacuterios estaacute submetido a ordenamentos que definem de forma imperativa suas formas

de agir no cuidado Dizemos que uma ordem profissional ou as condiccedilotildees de trabalho satildeo de

tal modo capturadoras que o profissional natildeo consegue agir por si de nenhuma maneira

Apontamos tambeacutem por exemplo que as imposiccedilotildees do mercado em sauacutede por meio da

induacutestria de medicamentos entre outras disposiccedilotildees definem o que eacute o cuidar E assim vai

Entretanto quando nos debruccedilamos com mais acuidade sobre o cotidiano das praacuteticas vemos

que os profissionais mesmo aqueles de igual categoria profissional atuam de modo distinto

no interior da mesma situaccedilatildeo de atenccedilatildeo agrave sauacutede Conseguimos perceber que uma dada

equipe de sauacutede eacute bem diferente de outra na maneira de cuidar parecendo ndash muitas vezes ndash

que umas cuidam e outras natildeo ou que determinados profissionais se ocupam do cuidado e

outros natildeo

Alguns observadores ou analistas diante disso passam a apontar entatildeo que uma

micropoliacutetica se opotildee ndash ou pode resistir ndash agrave macropoliacutetica pois aiacute atua ndash resiste ndash uma ordem

do encontro ou as condiccedilotildees da interaccedilatildeo Muitos observadoresanalistas poreacutem anunciam

por micropoliacutetica uma noccedilatildeo esvaziada de criaccedilatildeo e portanto sem potecircncia de resistecircncia

Uma micropoliacutetica apontada como se macropoliacutetica de menor escala a do espaccedilo

microssocial representante portanto das mesmas forccedilas de captura Para os primeiros a

micropoliacutetica eacute a resistecircncia agraves capturas a luta pelo direito agrave criaccedilatildeo a exposiccedilatildeo e vivecircncia

em ato de uma relaccedilatildeo Para os outros tratashyse das decisotildees ideoloacutegicas dos modos culturais

locais das regras de exerciacutecio da profissatildeo ou do trabalho onde as diferenccedilas quase

individualizantes teriam um peso mais significativo

Contudo natildeo satildeo as regras de exerciacutecio da profissatildeo ou do trabalho e nem as

diferenccedilas de escala que marcam o territoacuterio da micropoliacutetica mas os coshyengendramentos de

si e de mundos Interrogamos que territoacuterios de ser satildeo criados que rupturas satildeo

introduzidas que acolhimentos satildeo ofertados Satildeo territoacuterios aquilo a que constituiacutemos

quando estabelecemos uma relaccedilatildeo Entatildeo o que tem e o que natildeo tem pertencimento a esses

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territoacuterios constituiacutedos Satildeo atores em relaccedilatildeo que constituem territoacuterios territoacuterios que datildeo

ou natildeo passagem aos devires ou para campos de possiacuteveis (campos de virtualidades que

podem ser atualizadas em realidades) Satildeo os encontros de atores com atores a partir dos

seus planos de existecircncia que datildeo substancialidade para o campo da poliacutetica em qualquer

cotidiano Eacute pela dimensatildeo micropoliacutetica portanto que detectamos ndash na prestaccedilatildeo do cuidado

ndash uma produccedilatildeo poliacutetica dos Seres natildeo apenas o registro de assistecircncias

A centralidade da atenccedilatildeo de sauacutede no usuaacuterio defendida por aqueles chamados logo

acima por os primeiros (observadores ou analistas das condiccedilotildees de interaccedilatildeo ou da ordem

dos encontros) diz de uma orientaccedilatildeo do cuidado para com o outro natildeo para com os fatores

externos ao encontro como a teacutecnica a rotina o protocolo a profissatildeo ou a instituiccedilatildeo Essa

centralidade no usuaacuterio logo eacute a centralidade no encontro centralidade no contato com a

alteridade O cuidado implicando a constitutividade de relaccedilotildees de alteridade portanto

implicando encontros para aleacutem das forccedilas a que chamamos por externas Aiacute o cotidiano do

cuidado passa a ser visto como um campo singular da produccedilatildeo de sauacutede e natildeo como um

campo particular da prestaccedilatildeo de assistecircncia de sauacutede O cotidiano adquire natureza de

produccedilatildeo de realidades trabalho vivo em ato constituidor de mundo territoacuterio de disputa

com as ditas forccedilas externas por forccedilas de criaccedilatildeo (Negri 2002 Merhy 1997 Ceccim e

Capozzolo 2004)

Os desafios apontados pela Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo na Sauacutede desde sua

identificaccedilatildeo com o conjunto dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede ndash

HumanizaSUS colocaram em cena as tentativas de mudar os modos de se produzir o cuidado

em sauacutede na cotidianidade do seu acontecimento portanto no campo singular da produccedilatildeo de

sauacutede Vecircm se somar a outras tantas iniciativas que jaacute vecircm operando por esse caminho e que

tecircm mostrado resultados interessantes na disputa por modos mais efetivos de intervenccedilatildeo

cuidadora no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede Podeshyse citar a Integralidade as Praacuteticas

Cuidadoras o Cuidado o Acolhimento como Rede de Conversaccedilatildeo a Terapecircutica como

Projeto de Felicidade a Afirmaccedilatildeo de Biopotecircncias ou a Afirmaccedilatildeo da Vida entre outras

designaccedilotildees Intervenccedilotildees essas muitas vezes substitutivas das modalidades hegemocircnicas e

por vezes desinstitucionalizadoras dos ordenamentos profissionais e do trabalho As

modalidades hegemocircnicas satildeo constituiacutedas sob o manto das accedilotildees profissionalshycentradas nas

quais o outro eacute um caso a ser enfrentado por tecnologias duras (as intervenccedilotildees mais

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invasivas) ou leveshyduras (as intervenccedilotildees cabalmente protocolares) de cuidado as quais

apenas o profissional deteacutem e justamente por elas se justifica (Merhy 1998 Ceccim 2004)

Novas intervenccedilotildees ndash ou intervenccedilotildees substitutivas ndash surgem das maneiras coletivas de se

construir configuraccedilotildees tecnoloacutegicas de cuidar

O desafio das apostas representadas pelo HumanizaSUS eacute maior por sua proposta de

reconstruir accedilotildees institucionais tendo os apoiadores das accedilotildees de mudanccedila a funccedilatildeo de

penetrar lugares recheados por intencionalidade e conseguir trazer o conjunto dos produtores

diretos do cuidado para uma situaccedilatildeo de debate dos seus agires fazendoshyos operar

intervenccedilotildees em si mesmos conduzindo as situaccedilotildees de trabalho para a construccedilatildeo do campo

singular da produccedilatildeo de sauacutede ou seja ativando a produccedilatildeo de encontro e a produccedilatildeo do

cuidar singular

Nessas apostas duplos encontros (trabalhadoresshytrabalhadores e trabalhadoresshy

usuaacuterios) exigem das formulaccedilotildees do HumanizaSUS processos de conduccedilatildeo que levem a

momentos de intensa singularizaccedilatildeo e quase nada de particularizaccedilatildeo ou seja natildeo basta que

apoiadores cheguem a esses encontros armados com ferramentas para neles atuar tomando o

outro como um caso a ser enfrentado e jaacute conhecido a priori instalando as praacuteticas

humanizadas Haacute que se colocar as ferramentas do agir do apoiador a serviccedilo de encontrosshy

acontecimento Esse desafio implica natildeo soacute colocar em anaacutelise a todo o tempo o modo de se

construir os encontros mas centralmente de expor para a visibilidade puacuteblica os agires

pedagoacutegicos e cuidadores que esses encontros contecircm

Para compreender isso em profundidade haacute que ficar atento Muitos que tambeacutem

apostam na mudanccedila das praacuteticas de sauacutede a vecircem como possibilidades inscritas em

encontros onde uns sabem criticamente o que os outros devem fazer e entatildeo natildeo contemplam

o desafio de ressingularizaccedilatildeo das praacuteticas mas a instalaccedilatildeo de boas praacuteticas Nessa forma de

entender e agir cada encontro eacute um momento particular de uma estrateacutegia geral que jaacute estaacute

dada a priori para ser realizada no momento em que o encontro acontece Natildeo eacute diferente do

modo como o proacuteprio modo hegemocircnico de se produzir sauacutede eacute realizado Esse modo que eacute

sempre o agir de um profissional de sauacutede que se legitima por ser o portador do saber em

sauacutede que o outro deve adotar ou incorporar vecirc o acontecimento do encontro mesmo que o

diga como cada caso eacute um caso como momento particular para o qual jaacute tem tudo preparado

Estamos diferindo singular (criaccedilatildeo) de particular (aperfeiccediloamento)

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Nos desafios do HumanizaSUS isso natildeo eacute apenas dilema e muito menos dialeacutetica

pois levado agraves uacuteltimas consequumlecircncias na praacutetica satildeo a sua proacutepria negaccedilatildeo como estrateacutegia

assessora natildeo a construccedilatildeo de superaccedilotildees Haacute aiacute uma implicaccedilatildeo fundamental toda arma que

o trabalhador tiver para operar encontros tem que estar a serviccedilo dos movimentos em ato de

que um encontro eacute portador natildeo o contraacuterio Suas ferramentas tecnoloacutegicas soacute seratildeo

efetivamente tecnologias singularizadoras como encontrosshyacontecimento Por isso natildeo haacute

nada faacutecil por ser feito haacute tensotildees e paradoxos mas que satildeo necessaacuterios para dar substacircncia a

aposta que o HumanizaSUS declara

Nesse texto trazemos para a discussatildeo algumas ideacuteias que podem ajudar a

compreenderproblematizar esse componente de singularidade que haacute nesse lugar onde o

cuidado eacute produzido e que natildeo permite que uma abordagem mais generalizadora lhe decirc conta

Tentamos mostrar que exatamente ali onde mais haacute captura eacute onde mais ocorrem

transversalidades capazes de linhas de fuga e capazes de operar transformaccedilotildees na delicadeza

de cada encontro ou nas proacuteprias linhas de fuga muitas vezes uacutenicas pois soacute para aqueles que

ali estatildeo operando os furos nas capturas fazem sentido Para o debate tomamos como grande

estiacutemulo o desafio apresentado por Deleuze quando nos convida a pensar a constituiccedilatildeo da

sociedade de controle (Deleuze 1992) nos vaacuterios planos da existecircncia e que

problematizaremos olhando para o mundo do trabalho em sauacutede e para a produccedilatildeo do

cuidado ali onde ele natildeo eacute esperado na capilaridade das relaccedilotildees cotidianas natildeo nas

assistecircncias profissionais na sua instacircncia formal de intervenccedilatildeo como procedimento

restaurador de funccedilotildees orgacircnicas

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede eacute um momento intensamente intercessor eacute a

produccedilatildeo de um dizershyse respeito em que a interaccedilatildeo promove praacuteticas de si nascidas para

cada agente em relaccedilatildeo produccedilatildeo de um ambienteshytempo comum ou cada vez mais comum

entre dois Um encontro onde de um jeito ou de outro dele esperam seus agentes a mesma

coisa que seja eficaz para resolver ou aplacar sofrimentos tidos como problemas de sauacutede Eacute

um momento que tem em si certos misteacuterios pela riqueza dos processos relacionais que

contecircm por ocorrer segundo razotildees muito diferenciadas e por natildeo ser apreendido por nenhum

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saber exclusivo

Que acontecimento eacute esse que se abre de modo tatildeo diacutespar como oportunidade para

processos de subjetivaccedilatildeo os mais variados num agir micropoliacutetico e pedagoacutegico intensos O

que pode ser construiacutedo em encontros muito diferenciados e operados por cuidadores de

muitas distintas formaccedilotildees e inserccedilotildees juntos ou natildeo Um encontro cuidador pode ser o

disparador de autopoieses Aqui nesse texto estamos dando partida a esse plano da

humanizaccedilatildeo ndash a construccedilatildeo de praacuteticas de sauacutede cuja contemporaneidade esteja na

atualizaccedilatildeo de processos intensivos de viver a vida Viver a vida natildeo apenas sobreviver ou

acima de tudo estar vivo apesar da ausecircncia de prazer de compartilhamento de potecircncia de

si e de produccedilatildeo de entornos criativos e audazes A potecircncia de si e de produccedilatildeo de entornos

criativos e audazes eacute o viver intensamente a invenccedilatildeo do vivo ou seja daquilo que afirma a

criaccedilatildeo ou que potildee a vida como obra de arte da existecircncia Nessa condiccedilatildeo o cuidar do outro

eacute operado por distintas modalidades de saber e fazer natildeo culmina com as praacuteticas particulares

das profissotildees das tecnologias do cuidado ou dos protocolos prolongashyse pela invenccedilatildeo de si

dos entornos de mundos Esta eacute uma pontuaccedilatildeo necessaacuteria no momento atual em que

vivemos onde a conformaccedilatildeo do campo da sauacutede nas sociedades mais ocidentalizadas vive

uma contemporaneidade do fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo e suas consequumlecircncias entre as quais

um perfil de prestaccedilatildeo do cuidado de formaccedilatildeo para o mesmo e de gestatildeo dos sistemas de

sauacutede para a oferta do cuidado no diashyashydia dos estabelecimentos de sauacutede

Trazemos para cena como primeira aproximaccedilatildeo a noccedilatildeo de que os encontros satildeo

micropoliacuteticos por estarem sempre abertos sob alteridades intercessoras (Merhy et al 1997

Ceccim 2005) sob distintas possibilidades de subjetivaccedilatildeo que podem caminhar de um

processo biopoliacutetico para um processo de biopotecircncia (Pelbart 2003) e da serializaccedilatildeo agrave

singularizaccedilatildeo (Guattari 2007 Guattari e Rolnik 1986) Aleacutem disso ndash e ao mesmo tempo ndash

os encontros na micropoliacutetica satildeo intensamente pedagoacutegicos operam ante as praacuteticas

inculcadorashomogenizadoras com trocas entre domiacutenios de saberes e fazeres construindo

um universo de processos educativos em ato em um fluxo contiacutenuo e intenso de convocaccedilotildees

desterritorializaccedilotildees e invenccedilotildees Uma segunda aproximaccedilatildeo eacute a de que processos de mudanccedila

satildeo estrateacutegias de resistecircncia e criaccedilatildeo vividos como paradoxo num mundo habitado pela

profusatildeo de praacuteticas cliacutenicas e pela profunda fragilizaccedilatildeo da vida (despotencializada para

conduzir processos de mudanccedila)

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Em torno dessas duas aproximaccedilotildees propomos constatar laccedilos e perspicaacutecias

colocamos a humanizaccedilatildeo em sauacutede sob essas lentes Humanizaccedilatildeo praacuteticas cuidadoras

integralidade projetos de felicidade redes de conversaccedilatildeo singularizaccedilatildeo biopotecircncia ou

afirmaccedilatildeo da vida convergem Entre laccedilos e perspicaacutecias o paradoxo e a disruptura

O corpo como sede dos oacutergatildeos e o corpo como encontro

Natildeo eacute estranho falarmos e identificarmos no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede

que as praacuteticas de cuidado estatildeo orientadas pela cliacutenica de um corpo sede dos oacutergatildeos ou por

uma cliacutenica do corpo de oacutergatildeos essa eacute a maneira com que cada uma das profissotildees de sauacutede

algumas desenhadas jaacute no seacuteculo XIX nas sociedades ocidentais pratica a cliacutenica e pensa o

cuidado Eacute com base nessa condiccedilatildeo que as profissotildees buscam distinguirshyse e organizar o seu

padratildeo de intervenccedilotildees para provocar a cura o que pode ocorrer em detrimento do promover a

terapecircutica (o sentirshyse cuidado) Mesmo que cada uma das profissotildees de sauacutede procure dar

sua marca ao campo de suas accedilotildees e mesmo que procurem oporshyse entre si na disputa por

territoacuterios privativos de intervenccedilatildeo isso muitas vezes natildeo ultrapassa a condiccedilatildeo de uma

praacutetica discursiva porque tratar com qualidade cuidar com integralidade ou escutar com

sensibilidade natildeo satildeo oposiccedilotildees e nem fragmentos autoshysuficientes Para provocar a cura natildeo

concorrem saberes em oposiccedilatildeo ou fragmentados e para promover a terapecircutica natildeo

convergem saberes parciais ou focados em padrotildees particulares

A distinccedilatildeo radical entre as profissotildees na esfera do cuidado do acolhimento do outro

da oferta de encontro para compreender processos de produccedilatildeo de sauacutede em realidade natildeo se

verifica O que se verifica eacute a fragmentaccedilatildeo da cura e do cuidado e a busca pelos usuaacuterios das

accedilotildees de sauacutede de praacuteticas natildeo apenas profissionais a fim de sentiremshyse cuidados eou

sentiremshyse curados Muitas vezes sob a denuacutencia profissional da natildeo adesatildeo agrave prescriccedilatildeo

natildeo adesatildeo agraves orientaccedilotildees natildeo adesatildeo agrave terapecircutica estaacute a denuacutencia da oferta fragmentada

particularizada e corrompida da cliacutenica

Seja na enfermagem na farmaacutecia na fisioterapia na fonoaudiologia na medicina na

nutriccedilatildeo na odontologia na psicologia na terapia ocupacional ou na recente educaccedilatildeo fiacutesica

o que temos visto eacute um modo de olhar os campos do tratamento cuidado e escuta como

fundamentados nas doenccedilas compreendidas como processos instalados de maneira patoloacutegica

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num corpo bioloacutegico de oacutergatildeos (a patologia disfuncionalizandoshyo) A intervenccedilatildeo

profissional aparece como a restauraccedilatildeo das funccedilotildees Quando se fala do lugar da sauacutede

puacuteblica que procura compreender a instalaccedilatildeo dos processos de adoecimento no plano das

populaccedilotildees para produzir intervenccedilotildees no acircmbito coletivo visando o controle dos

adoecimentos vecircshyse que o pano de fundo tambeacutem eacute essa mesma compreensatildeo do fenocircmeno

sauacutedeshydoenccedila a instalaccedilatildeo de patologias nos corpos bioloacutegicos Ainda que sejam introduzidos

novos elementos nesse olhar como por exemplo a distribuiccedilatildeo desigual do processo sauacutede e

doenccedila entre os vaacuterios grupos populacionais demarcados socialmente o ideal eacute o do

equiliacutebrio entre as funccedilotildees dos oacutergatildeos

A combinaccedilatildeo de saberes entre a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos e a epidemiologia deram

substacircncia como conhecimentoshyferramenta tecnoloacutegica para a conformaccedilatildeo de campos

produtivos em todos os lugares de construccedilatildeo dos processos de tratamento cuidado e escuta

inclusive de maneira dessemelhante uma vez que eacute muito grande a variabilidade de

composiccedilatildeo dos recursos de saber dentro de cada profissatildeo e mesmo dentro de cada campo de

accedilatildeo como ocorre por exemplo entre a medicina e a sauacutede puacuteblica Para construir o encontro

produtor de cuidado entretanto as maneiras muito distintas de cada saber ainda mais quando

aprisionados em profissotildees em oposiccedilatildeo ndash quanto aos campos do exerciacutecio profissional caem

em contradiccedilatildeo inviabilizam a integralidade negam a humanizaccedilatildeo

Ricardo Bruno Mendes Gonccedilalves (1994) nos levou a ver que mesmo dentro do

mesmo campo das accedilotildees profissionais de prestaccedilatildeo de cuidado o da medicina e o da

enfermagem por exemplo haacute diferenccedilas gritantes na composiccedilatildeo dos seus processos

produtivos a ponto de termos situaccedilotildees tatildeo diferenciadas de praacuteticas cliacutenicas de medicina e de

enfermagem por parte dos seus profissionais que ateacute parecem existir distintas ldquomedicinasrdquo e

ldquoenfermagensrdquo em seus fundamentos de base Mendes Gonccedilalves revela a existecircncia de

praacuteticas de meacutedicos nas quais a abordagem dos indiviacuteduos eacute tanto uma ritualiacutestica teacutecnica

onde a relaccedilatildeo meacutedicoshypaciente eacute elaborada mediante um complexo jogo de falas e escutas

como por uma relaccedilatildeo reduzida a um processo comunicativo do tipo queixashyconduta onde a

fala eacute miacutenima servindo somente como revelaccedilatildeo oral da sintomatologia que seraacute alvo de uma

intervenccedilatildeo via procedimentos curativos ou exploratoacuterios imediatos Contudo na base de

ambas as praacuteticas estaacute o mesmo foco o corpo bioloacutegico que se patologiza no plano individual

eou coletivo Por dentro dos saberes que estatildeo sendo operados como ferramentas para tais

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accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

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no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

18

alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

20

morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

21

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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MENDESshyGONCcedilALVES Ricardo Bruno Tecnologia e organizaccedilatildeo social das praacuteticas de sauacutede caracteriacutesticas tecnoloacutegicas de processo de trabalho na rede estadual de centros de sauacutede de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Hucitec 1994

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32

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de encontros e de sensaccedilotildees afirmativas do viver (que precisa dos oacutergatildeos mas para

atravessaacuteshylos em maior potecircncia de vida)

Palavras Chave

Trabalho em sauacutede Corpo sem Oacutergatildeos cuidado medicalizaccedilatildeo afirmaccedilatildeo da vida educaccedilatildeo

da sauacutede

Abstract

This is an essay about the challenges of a Brazilian strategy adopted by the health system to

improve the quality of its managerial and assistance response the National Humanization

Policy Independent of the political conceptual or results analysis the essay tries a

humanization of health of the body and of the therapeutic practices by means of the

confrontation with its reifications be it through the sovereignty of the professional systems

about the practices through the disciplinarization that legitimizes the diagnosisprognosisshylike

conducts or more contemporaneously the dissemination ndash in the shape of a control society ndash

of the mechanisms that in the name of life longevity staunch its production of singularity

Besides the management and care components the constitution of meanings (education of

health) and a deep alterity (participation and interference of the other one) needs to be made

present The notions of body of organs and Body without Organs are used to question the

passage from a clinics referred to the symptoms towards a clinics of the absence of symptoms

(from the silence of the healthy organs to the exemption of the organs under control) in lieu of

a clinics of the production of meetings and affirmative sensations of living (that needs the

organs but to cross them in a bigger strength of life

Keyshywords

Work in health Body without Organs care medicalization affirmation of life education of

health

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Resumen

Se trata de un ensayo sobre los desafiacuteos de una estrategia brasilentildea adoptada por el sistema de

salud para mejorar la calidad de su respuesta gerencial y asistencial la Poliacutetica Nacional de

Humanizacioacuten Independientemente de la anaacutelisis poliacutetica conceptual o de resultados el

ensayo intenta la humanizacioacuten de la salud del cuerpo y de las praacutecticas terapeacuteuticas por el

confronto con sus reificaciones sea por la soberaniacutea de los sistemas profesionales sobre las

praacutecticas por la disciplinarizacioacuten que legitima las conductas del tipo diagnoacutesticoshy

prescripcioacuten o mas contemporaacuteneamente la diseminacioacuten ndash en forma de sociedad del control

ndash de mecanismos que en nombre de la longevidad de la vida estancan a su produccioacuten de

singularidad Mas allaacute de los componentes de la gestioacuten y de la atencioacuten la constituicioacuten de

los sentidos (educacioacuten de la salud) y una profunda alteridad (participacioacuten e interferencia del

otro) precisan se presentificar Se lanza mano de las nociones del cuerpo de oacuterganos y del

cuerpo sin oacutergano para problematizar el pasaje de una cliacutenica referida a los siacutentomas para una

cliacutenica de ausencia de siacutentomas (del silencio de los oacuterganos sadios a la dispensa de los

oacuterganos bajo control) en detrimento de una cliacutenica de produccioacuten de encuentros y de

sensaciones afirmativas del vivir (que precisa de los oacuterganos pero para atravesarlos en mayor

potencia de vida)

Palabras Clave

Trabajo en salud Cuerpo sin Oacuterganos cuidado medicalizacioacuten afirmacioacuten de la vida

educacioacuten de la salud

Introduccedilatildeo

Quando observamos a praacutetica cotidiana de cuidar nos estabelecimentos de sauacutede ou

quando queremos falar sobre essa praacutetica somos levados via de regra a apontar o quanto os

contatos que aiacute se realizam estatildeo marcados pela presenccedila de forccedilas externas antecedentes ao

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encontro numa espeacutecie de ausecircncia de interaccedilatildeo presenccedila apenas do mundo da

macropoliacutetica onde conhecimentos teacutecnicos protocolares disciplinares e dependentes

fundamentalmente do domiacutenio de saberes formais prescrevem certos modos de atuar tratashyse

do trabalho capturado por seu gerenciamentoprotocolizaccedilatildeocorporativizaccedilatildeo Costumamos

apontar diante disso que o profissional de sauacutede ao atuar no cotidiano dos serviccedilos junto

aos usuaacuterios estaacute submetido a ordenamentos que definem de forma imperativa suas formas

de agir no cuidado Dizemos que uma ordem profissional ou as condiccedilotildees de trabalho satildeo de

tal modo capturadoras que o profissional natildeo consegue agir por si de nenhuma maneira

Apontamos tambeacutem por exemplo que as imposiccedilotildees do mercado em sauacutede por meio da

induacutestria de medicamentos entre outras disposiccedilotildees definem o que eacute o cuidar E assim vai

Entretanto quando nos debruccedilamos com mais acuidade sobre o cotidiano das praacuteticas vemos

que os profissionais mesmo aqueles de igual categoria profissional atuam de modo distinto

no interior da mesma situaccedilatildeo de atenccedilatildeo agrave sauacutede Conseguimos perceber que uma dada

equipe de sauacutede eacute bem diferente de outra na maneira de cuidar parecendo ndash muitas vezes ndash

que umas cuidam e outras natildeo ou que determinados profissionais se ocupam do cuidado e

outros natildeo

Alguns observadores ou analistas diante disso passam a apontar entatildeo que uma

micropoliacutetica se opotildee ndash ou pode resistir ndash agrave macropoliacutetica pois aiacute atua ndash resiste ndash uma ordem

do encontro ou as condiccedilotildees da interaccedilatildeo Muitos observadoresanalistas poreacutem anunciam

por micropoliacutetica uma noccedilatildeo esvaziada de criaccedilatildeo e portanto sem potecircncia de resistecircncia

Uma micropoliacutetica apontada como se macropoliacutetica de menor escala a do espaccedilo

microssocial representante portanto das mesmas forccedilas de captura Para os primeiros a

micropoliacutetica eacute a resistecircncia agraves capturas a luta pelo direito agrave criaccedilatildeo a exposiccedilatildeo e vivecircncia

em ato de uma relaccedilatildeo Para os outros tratashyse das decisotildees ideoloacutegicas dos modos culturais

locais das regras de exerciacutecio da profissatildeo ou do trabalho onde as diferenccedilas quase

individualizantes teriam um peso mais significativo

Contudo natildeo satildeo as regras de exerciacutecio da profissatildeo ou do trabalho e nem as

diferenccedilas de escala que marcam o territoacuterio da micropoliacutetica mas os coshyengendramentos de

si e de mundos Interrogamos que territoacuterios de ser satildeo criados que rupturas satildeo

introduzidas que acolhimentos satildeo ofertados Satildeo territoacuterios aquilo a que constituiacutemos

quando estabelecemos uma relaccedilatildeo Entatildeo o que tem e o que natildeo tem pertencimento a esses

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territoacuterios constituiacutedos Satildeo atores em relaccedilatildeo que constituem territoacuterios territoacuterios que datildeo

ou natildeo passagem aos devires ou para campos de possiacuteveis (campos de virtualidades que

podem ser atualizadas em realidades) Satildeo os encontros de atores com atores a partir dos

seus planos de existecircncia que datildeo substancialidade para o campo da poliacutetica em qualquer

cotidiano Eacute pela dimensatildeo micropoliacutetica portanto que detectamos ndash na prestaccedilatildeo do cuidado

ndash uma produccedilatildeo poliacutetica dos Seres natildeo apenas o registro de assistecircncias

A centralidade da atenccedilatildeo de sauacutede no usuaacuterio defendida por aqueles chamados logo

acima por os primeiros (observadores ou analistas das condiccedilotildees de interaccedilatildeo ou da ordem

dos encontros) diz de uma orientaccedilatildeo do cuidado para com o outro natildeo para com os fatores

externos ao encontro como a teacutecnica a rotina o protocolo a profissatildeo ou a instituiccedilatildeo Essa

centralidade no usuaacuterio logo eacute a centralidade no encontro centralidade no contato com a

alteridade O cuidado implicando a constitutividade de relaccedilotildees de alteridade portanto

implicando encontros para aleacutem das forccedilas a que chamamos por externas Aiacute o cotidiano do

cuidado passa a ser visto como um campo singular da produccedilatildeo de sauacutede e natildeo como um

campo particular da prestaccedilatildeo de assistecircncia de sauacutede O cotidiano adquire natureza de

produccedilatildeo de realidades trabalho vivo em ato constituidor de mundo territoacuterio de disputa

com as ditas forccedilas externas por forccedilas de criaccedilatildeo (Negri 2002 Merhy 1997 Ceccim e

Capozzolo 2004)

Os desafios apontados pela Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo na Sauacutede desde sua

identificaccedilatildeo com o conjunto dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede ndash

HumanizaSUS colocaram em cena as tentativas de mudar os modos de se produzir o cuidado

em sauacutede na cotidianidade do seu acontecimento portanto no campo singular da produccedilatildeo de

sauacutede Vecircm se somar a outras tantas iniciativas que jaacute vecircm operando por esse caminho e que

tecircm mostrado resultados interessantes na disputa por modos mais efetivos de intervenccedilatildeo

cuidadora no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede Podeshyse citar a Integralidade as Praacuteticas

Cuidadoras o Cuidado o Acolhimento como Rede de Conversaccedilatildeo a Terapecircutica como

Projeto de Felicidade a Afirmaccedilatildeo de Biopotecircncias ou a Afirmaccedilatildeo da Vida entre outras

designaccedilotildees Intervenccedilotildees essas muitas vezes substitutivas das modalidades hegemocircnicas e

por vezes desinstitucionalizadoras dos ordenamentos profissionais e do trabalho As

modalidades hegemocircnicas satildeo constituiacutedas sob o manto das accedilotildees profissionalshycentradas nas

quais o outro eacute um caso a ser enfrentado por tecnologias duras (as intervenccedilotildees mais

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invasivas) ou leveshyduras (as intervenccedilotildees cabalmente protocolares) de cuidado as quais

apenas o profissional deteacutem e justamente por elas se justifica (Merhy 1998 Ceccim 2004)

Novas intervenccedilotildees ndash ou intervenccedilotildees substitutivas ndash surgem das maneiras coletivas de se

construir configuraccedilotildees tecnoloacutegicas de cuidar

O desafio das apostas representadas pelo HumanizaSUS eacute maior por sua proposta de

reconstruir accedilotildees institucionais tendo os apoiadores das accedilotildees de mudanccedila a funccedilatildeo de

penetrar lugares recheados por intencionalidade e conseguir trazer o conjunto dos produtores

diretos do cuidado para uma situaccedilatildeo de debate dos seus agires fazendoshyos operar

intervenccedilotildees em si mesmos conduzindo as situaccedilotildees de trabalho para a construccedilatildeo do campo

singular da produccedilatildeo de sauacutede ou seja ativando a produccedilatildeo de encontro e a produccedilatildeo do

cuidar singular

Nessas apostas duplos encontros (trabalhadoresshytrabalhadores e trabalhadoresshy

usuaacuterios) exigem das formulaccedilotildees do HumanizaSUS processos de conduccedilatildeo que levem a

momentos de intensa singularizaccedilatildeo e quase nada de particularizaccedilatildeo ou seja natildeo basta que

apoiadores cheguem a esses encontros armados com ferramentas para neles atuar tomando o

outro como um caso a ser enfrentado e jaacute conhecido a priori instalando as praacuteticas

humanizadas Haacute que se colocar as ferramentas do agir do apoiador a serviccedilo de encontrosshy

acontecimento Esse desafio implica natildeo soacute colocar em anaacutelise a todo o tempo o modo de se

construir os encontros mas centralmente de expor para a visibilidade puacuteblica os agires

pedagoacutegicos e cuidadores que esses encontros contecircm

Para compreender isso em profundidade haacute que ficar atento Muitos que tambeacutem

apostam na mudanccedila das praacuteticas de sauacutede a vecircem como possibilidades inscritas em

encontros onde uns sabem criticamente o que os outros devem fazer e entatildeo natildeo contemplam

o desafio de ressingularizaccedilatildeo das praacuteticas mas a instalaccedilatildeo de boas praacuteticas Nessa forma de

entender e agir cada encontro eacute um momento particular de uma estrateacutegia geral que jaacute estaacute

dada a priori para ser realizada no momento em que o encontro acontece Natildeo eacute diferente do

modo como o proacuteprio modo hegemocircnico de se produzir sauacutede eacute realizado Esse modo que eacute

sempre o agir de um profissional de sauacutede que se legitima por ser o portador do saber em

sauacutede que o outro deve adotar ou incorporar vecirc o acontecimento do encontro mesmo que o

diga como cada caso eacute um caso como momento particular para o qual jaacute tem tudo preparado

Estamos diferindo singular (criaccedilatildeo) de particular (aperfeiccediloamento)

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Nos desafios do HumanizaSUS isso natildeo eacute apenas dilema e muito menos dialeacutetica

pois levado agraves uacuteltimas consequumlecircncias na praacutetica satildeo a sua proacutepria negaccedilatildeo como estrateacutegia

assessora natildeo a construccedilatildeo de superaccedilotildees Haacute aiacute uma implicaccedilatildeo fundamental toda arma que

o trabalhador tiver para operar encontros tem que estar a serviccedilo dos movimentos em ato de

que um encontro eacute portador natildeo o contraacuterio Suas ferramentas tecnoloacutegicas soacute seratildeo

efetivamente tecnologias singularizadoras como encontrosshyacontecimento Por isso natildeo haacute

nada faacutecil por ser feito haacute tensotildees e paradoxos mas que satildeo necessaacuterios para dar substacircncia a

aposta que o HumanizaSUS declara

Nesse texto trazemos para a discussatildeo algumas ideacuteias que podem ajudar a

compreenderproblematizar esse componente de singularidade que haacute nesse lugar onde o

cuidado eacute produzido e que natildeo permite que uma abordagem mais generalizadora lhe decirc conta

Tentamos mostrar que exatamente ali onde mais haacute captura eacute onde mais ocorrem

transversalidades capazes de linhas de fuga e capazes de operar transformaccedilotildees na delicadeza

de cada encontro ou nas proacuteprias linhas de fuga muitas vezes uacutenicas pois soacute para aqueles que

ali estatildeo operando os furos nas capturas fazem sentido Para o debate tomamos como grande

estiacutemulo o desafio apresentado por Deleuze quando nos convida a pensar a constituiccedilatildeo da

sociedade de controle (Deleuze 1992) nos vaacuterios planos da existecircncia e que

problematizaremos olhando para o mundo do trabalho em sauacutede e para a produccedilatildeo do

cuidado ali onde ele natildeo eacute esperado na capilaridade das relaccedilotildees cotidianas natildeo nas

assistecircncias profissionais na sua instacircncia formal de intervenccedilatildeo como procedimento

restaurador de funccedilotildees orgacircnicas

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede eacute um momento intensamente intercessor eacute a

produccedilatildeo de um dizershyse respeito em que a interaccedilatildeo promove praacuteticas de si nascidas para

cada agente em relaccedilatildeo produccedilatildeo de um ambienteshytempo comum ou cada vez mais comum

entre dois Um encontro onde de um jeito ou de outro dele esperam seus agentes a mesma

coisa que seja eficaz para resolver ou aplacar sofrimentos tidos como problemas de sauacutede Eacute

um momento que tem em si certos misteacuterios pela riqueza dos processos relacionais que

contecircm por ocorrer segundo razotildees muito diferenciadas e por natildeo ser apreendido por nenhum

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saber exclusivo

Que acontecimento eacute esse que se abre de modo tatildeo diacutespar como oportunidade para

processos de subjetivaccedilatildeo os mais variados num agir micropoliacutetico e pedagoacutegico intensos O

que pode ser construiacutedo em encontros muito diferenciados e operados por cuidadores de

muitas distintas formaccedilotildees e inserccedilotildees juntos ou natildeo Um encontro cuidador pode ser o

disparador de autopoieses Aqui nesse texto estamos dando partida a esse plano da

humanizaccedilatildeo ndash a construccedilatildeo de praacuteticas de sauacutede cuja contemporaneidade esteja na

atualizaccedilatildeo de processos intensivos de viver a vida Viver a vida natildeo apenas sobreviver ou

acima de tudo estar vivo apesar da ausecircncia de prazer de compartilhamento de potecircncia de

si e de produccedilatildeo de entornos criativos e audazes A potecircncia de si e de produccedilatildeo de entornos

criativos e audazes eacute o viver intensamente a invenccedilatildeo do vivo ou seja daquilo que afirma a

criaccedilatildeo ou que potildee a vida como obra de arte da existecircncia Nessa condiccedilatildeo o cuidar do outro

eacute operado por distintas modalidades de saber e fazer natildeo culmina com as praacuteticas particulares

das profissotildees das tecnologias do cuidado ou dos protocolos prolongashyse pela invenccedilatildeo de si

dos entornos de mundos Esta eacute uma pontuaccedilatildeo necessaacuteria no momento atual em que

vivemos onde a conformaccedilatildeo do campo da sauacutede nas sociedades mais ocidentalizadas vive

uma contemporaneidade do fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo e suas consequumlecircncias entre as quais

um perfil de prestaccedilatildeo do cuidado de formaccedilatildeo para o mesmo e de gestatildeo dos sistemas de

sauacutede para a oferta do cuidado no diashyashydia dos estabelecimentos de sauacutede

Trazemos para cena como primeira aproximaccedilatildeo a noccedilatildeo de que os encontros satildeo

micropoliacuteticos por estarem sempre abertos sob alteridades intercessoras (Merhy et al 1997

Ceccim 2005) sob distintas possibilidades de subjetivaccedilatildeo que podem caminhar de um

processo biopoliacutetico para um processo de biopotecircncia (Pelbart 2003) e da serializaccedilatildeo agrave

singularizaccedilatildeo (Guattari 2007 Guattari e Rolnik 1986) Aleacutem disso ndash e ao mesmo tempo ndash

os encontros na micropoliacutetica satildeo intensamente pedagoacutegicos operam ante as praacuteticas

inculcadorashomogenizadoras com trocas entre domiacutenios de saberes e fazeres construindo

um universo de processos educativos em ato em um fluxo contiacutenuo e intenso de convocaccedilotildees

desterritorializaccedilotildees e invenccedilotildees Uma segunda aproximaccedilatildeo eacute a de que processos de mudanccedila

satildeo estrateacutegias de resistecircncia e criaccedilatildeo vividos como paradoxo num mundo habitado pela

profusatildeo de praacuteticas cliacutenicas e pela profunda fragilizaccedilatildeo da vida (despotencializada para

conduzir processos de mudanccedila)

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Em torno dessas duas aproximaccedilotildees propomos constatar laccedilos e perspicaacutecias

colocamos a humanizaccedilatildeo em sauacutede sob essas lentes Humanizaccedilatildeo praacuteticas cuidadoras

integralidade projetos de felicidade redes de conversaccedilatildeo singularizaccedilatildeo biopotecircncia ou

afirmaccedilatildeo da vida convergem Entre laccedilos e perspicaacutecias o paradoxo e a disruptura

O corpo como sede dos oacutergatildeos e o corpo como encontro

Natildeo eacute estranho falarmos e identificarmos no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede

que as praacuteticas de cuidado estatildeo orientadas pela cliacutenica de um corpo sede dos oacutergatildeos ou por

uma cliacutenica do corpo de oacutergatildeos essa eacute a maneira com que cada uma das profissotildees de sauacutede

algumas desenhadas jaacute no seacuteculo XIX nas sociedades ocidentais pratica a cliacutenica e pensa o

cuidado Eacute com base nessa condiccedilatildeo que as profissotildees buscam distinguirshyse e organizar o seu

padratildeo de intervenccedilotildees para provocar a cura o que pode ocorrer em detrimento do promover a

terapecircutica (o sentirshyse cuidado) Mesmo que cada uma das profissotildees de sauacutede procure dar

sua marca ao campo de suas accedilotildees e mesmo que procurem oporshyse entre si na disputa por

territoacuterios privativos de intervenccedilatildeo isso muitas vezes natildeo ultrapassa a condiccedilatildeo de uma

praacutetica discursiva porque tratar com qualidade cuidar com integralidade ou escutar com

sensibilidade natildeo satildeo oposiccedilotildees e nem fragmentos autoshysuficientes Para provocar a cura natildeo

concorrem saberes em oposiccedilatildeo ou fragmentados e para promover a terapecircutica natildeo

convergem saberes parciais ou focados em padrotildees particulares

A distinccedilatildeo radical entre as profissotildees na esfera do cuidado do acolhimento do outro

da oferta de encontro para compreender processos de produccedilatildeo de sauacutede em realidade natildeo se

verifica O que se verifica eacute a fragmentaccedilatildeo da cura e do cuidado e a busca pelos usuaacuterios das

accedilotildees de sauacutede de praacuteticas natildeo apenas profissionais a fim de sentiremshyse cuidados eou

sentiremshyse curados Muitas vezes sob a denuacutencia profissional da natildeo adesatildeo agrave prescriccedilatildeo

natildeo adesatildeo agraves orientaccedilotildees natildeo adesatildeo agrave terapecircutica estaacute a denuacutencia da oferta fragmentada

particularizada e corrompida da cliacutenica

Seja na enfermagem na farmaacutecia na fisioterapia na fonoaudiologia na medicina na

nutriccedilatildeo na odontologia na psicologia na terapia ocupacional ou na recente educaccedilatildeo fiacutesica

o que temos visto eacute um modo de olhar os campos do tratamento cuidado e escuta como

fundamentados nas doenccedilas compreendidas como processos instalados de maneira patoloacutegica

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num corpo bioloacutegico de oacutergatildeos (a patologia disfuncionalizandoshyo) A intervenccedilatildeo

profissional aparece como a restauraccedilatildeo das funccedilotildees Quando se fala do lugar da sauacutede

puacuteblica que procura compreender a instalaccedilatildeo dos processos de adoecimento no plano das

populaccedilotildees para produzir intervenccedilotildees no acircmbito coletivo visando o controle dos

adoecimentos vecircshyse que o pano de fundo tambeacutem eacute essa mesma compreensatildeo do fenocircmeno

sauacutedeshydoenccedila a instalaccedilatildeo de patologias nos corpos bioloacutegicos Ainda que sejam introduzidos

novos elementos nesse olhar como por exemplo a distribuiccedilatildeo desigual do processo sauacutede e

doenccedila entre os vaacuterios grupos populacionais demarcados socialmente o ideal eacute o do

equiliacutebrio entre as funccedilotildees dos oacutergatildeos

A combinaccedilatildeo de saberes entre a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos e a epidemiologia deram

substacircncia como conhecimentoshyferramenta tecnoloacutegica para a conformaccedilatildeo de campos

produtivos em todos os lugares de construccedilatildeo dos processos de tratamento cuidado e escuta

inclusive de maneira dessemelhante uma vez que eacute muito grande a variabilidade de

composiccedilatildeo dos recursos de saber dentro de cada profissatildeo e mesmo dentro de cada campo de

accedilatildeo como ocorre por exemplo entre a medicina e a sauacutede puacuteblica Para construir o encontro

produtor de cuidado entretanto as maneiras muito distintas de cada saber ainda mais quando

aprisionados em profissotildees em oposiccedilatildeo ndash quanto aos campos do exerciacutecio profissional caem

em contradiccedilatildeo inviabilizam a integralidade negam a humanizaccedilatildeo

Ricardo Bruno Mendes Gonccedilalves (1994) nos levou a ver que mesmo dentro do

mesmo campo das accedilotildees profissionais de prestaccedilatildeo de cuidado o da medicina e o da

enfermagem por exemplo haacute diferenccedilas gritantes na composiccedilatildeo dos seus processos

produtivos a ponto de termos situaccedilotildees tatildeo diferenciadas de praacuteticas cliacutenicas de medicina e de

enfermagem por parte dos seus profissionais que ateacute parecem existir distintas ldquomedicinasrdquo e

ldquoenfermagensrdquo em seus fundamentos de base Mendes Gonccedilalves revela a existecircncia de

praacuteticas de meacutedicos nas quais a abordagem dos indiviacuteduos eacute tanto uma ritualiacutestica teacutecnica

onde a relaccedilatildeo meacutedicoshypaciente eacute elaborada mediante um complexo jogo de falas e escutas

como por uma relaccedilatildeo reduzida a um processo comunicativo do tipo queixashyconduta onde a

fala eacute miacutenima servindo somente como revelaccedilatildeo oral da sintomatologia que seraacute alvo de uma

intervenccedilatildeo via procedimentos curativos ou exploratoacuterios imediatos Contudo na base de

ambas as praacuteticas estaacute o mesmo foco o corpo bioloacutegico que se patologiza no plano individual

eou coletivo Por dentro dos saberes que estatildeo sendo operados como ferramentas para tais

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accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

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no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

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alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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33

Resumen

Se trata de un ensayo sobre los desafiacuteos de una estrategia brasilentildea adoptada por el sistema de

salud para mejorar la calidad de su respuesta gerencial y asistencial la Poliacutetica Nacional de

Humanizacioacuten Independientemente de la anaacutelisis poliacutetica conceptual o de resultados el

ensayo intenta la humanizacioacuten de la salud del cuerpo y de las praacutecticas terapeacuteuticas por el

confronto con sus reificaciones sea por la soberaniacutea de los sistemas profesionales sobre las

praacutecticas por la disciplinarizacioacuten que legitima las conductas del tipo diagnoacutesticoshy

prescripcioacuten o mas contemporaacuteneamente la diseminacioacuten ndash en forma de sociedad del control

ndash de mecanismos que en nombre de la longevidad de la vida estancan a su produccioacuten de

singularidad Mas allaacute de los componentes de la gestioacuten y de la atencioacuten la constituicioacuten de

los sentidos (educacioacuten de la salud) y una profunda alteridad (participacioacuten e interferencia del

otro) precisan se presentificar Se lanza mano de las nociones del cuerpo de oacuterganos y del

cuerpo sin oacutergano para problematizar el pasaje de una cliacutenica referida a los siacutentomas para una

cliacutenica de ausencia de siacutentomas (del silencio de los oacuterganos sadios a la dispensa de los

oacuterganos bajo control) en detrimento de una cliacutenica de produccioacuten de encuentros y de

sensaciones afirmativas del vivir (que precisa de los oacuterganos pero para atravesarlos en mayor

potencia de vida)

Palabras Clave

Trabajo en salud Cuerpo sin Oacuterganos cuidado medicalizacioacuten afirmacioacuten de la vida

educacioacuten de la salud

Introduccedilatildeo

Quando observamos a praacutetica cotidiana de cuidar nos estabelecimentos de sauacutede ou

quando queremos falar sobre essa praacutetica somos levados via de regra a apontar o quanto os

contatos que aiacute se realizam estatildeo marcados pela presenccedila de forccedilas externas antecedentes ao

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encontro numa espeacutecie de ausecircncia de interaccedilatildeo presenccedila apenas do mundo da

macropoliacutetica onde conhecimentos teacutecnicos protocolares disciplinares e dependentes

fundamentalmente do domiacutenio de saberes formais prescrevem certos modos de atuar tratashyse

do trabalho capturado por seu gerenciamentoprotocolizaccedilatildeocorporativizaccedilatildeo Costumamos

apontar diante disso que o profissional de sauacutede ao atuar no cotidiano dos serviccedilos junto

aos usuaacuterios estaacute submetido a ordenamentos que definem de forma imperativa suas formas

de agir no cuidado Dizemos que uma ordem profissional ou as condiccedilotildees de trabalho satildeo de

tal modo capturadoras que o profissional natildeo consegue agir por si de nenhuma maneira

Apontamos tambeacutem por exemplo que as imposiccedilotildees do mercado em sauacutede por meio da

induacutestria de medicamentos entre outras disposiccedilotildees definem o que eacute o cuidar E assim vai

Entretanto quando nos debruccedilamos com mais acuidade sobre o cotidiano das praacuteticas vemos

que os profissionais mesmo aqueles de igual categoria profissional atuam de modo distinto

no interior da mesma situaccedilatildeo de atenccedilatildeo agrave sauacutede Conseguimos perceber que uma dada

equipe de sauacutede eacute bem diferente de outra na maneira de cuidar parecendo ndash muitas vezes ndash

que umas cuidam e outras natildeo ou que determinados profissionais se ocupam do cuidado e

outros natildeo

Alguns observadores ou analistas diante disso passam a apontar entatildeo que uma

micropoliacutetica se opotildee ndash ou pode resistir ndash agrave macropoliacutetica pois aiacute atua ndash resiste ndash uma ordem

do encontro ou as condiccedilotildees da interaccedilatildeo Muitos observadoresanalistas poreacutem anunciam

por micropoliacutetica uma noccedilatildeo esvaziada de criaccedilatildeo e portanto sem potecircncia de resistecircncia

Uma micropoliacutetica apontada como se macropoliacutetica de menor escala a do espaccedilo

microssocial representante portanto das mesmas forccedilas de captura Para os primeiros a

micropoliacutetica eacute a resistecircncia agraves capturas a luta pelo direito agrave criaccedilatildeo a exposiccedilatildeo e vivecircncia

em ato de uma relaccedilatildeo Para os outros tratashyse das decisotildees ideoloacutegicas dos modos culturais

locais das regras de exerciacutecio da profissatildeo ou do trabalho onde as diferenccedilas quase

individualizantes teriam um peso mais significativo

Contudo natildeo satildeo as regras de exerciacutecio da profissatildeo ou do trabalho e nem as

diferenccedilas de escala que marcam o territoacuterio da micropoliacutetica mas os coshyengendramentos de

si e de mundos Interrogamos que territoacuterios de ser satildeo criados que rupturas satildeo

introduzidas que acolhimentos satildeo ofertados Satildeo territoacuterios aquilo a que constituiacutemos

quando estabelecemos uma relaccedilatildeo Entatildeo o que tem e o que natildeo tem pertencimento a esses

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territoacuterios constituiacutedos Satildeo atores em relaccedilatildeo que constituem territoacuterios territoacuterios que datildeo

ou natildeo passagem aos devires ou para campos de possiacuteveis (campos de virtualidades que

podem ser atualizadas em realidades) Satildeo os encontros de atores com atores a partir dos

seus planos de existecircncia que datildeo substancialidade para o campo da poliacutetica em qualquer

cotidiano Eacute pela dimensatildeo micropoliacutetica portanto que detectamos ndash na prestaccedilatildeo do cuidado

ndash uma produccedilatildeo poliacutetica dos Seres natildeo apenas o registro de assistecircncias

A centralidade da atenccedilatildeo de sauacutede no usuaacuterio defendida por aqueles chamados logo

acima por os primeiros (observadores ou analistas das condiccedilotildees de interaccedilatildeo ou da ordem

dos encontros) diz de uma orientaccedilatildeo do cuidado para com o outro natildeo para com os fatores

externos ao encontro como a teacutecnica a rotina o protocolo a profissatildeo ou a instituiccedilatildeo Essa

centralidade no usuaacuterio logo eacute a centralidade no encontro centralidade no contato com a

alteridade O cuidado implicando a constitutividade de relaccedilotildees de alteridade portanto

implicando encontros para aleacutem das forccedilas a que chamamos por externas Aiacute o cotidiano do

cuidado passa a ser visto como um campo singular da produccedilatildeo de sauacutede e natildeo como um

campo particular da prestaccedilatildeo de assistecircncia de sauacutede O cotidiano adquire natureza de

produccedilatildeo de realidades trabalho vivo em ato constituidor de mundo territoacuterio de disputa

com as ditas forccedilas externas por forccedilas de criaccedilatildeo (Negri 2002 Merhy 1997 Ceccim e

Capozzolo 2004)

Os desafios apontados pela Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo na Sauacutede desde sua

identificaccedilatildeo com o conjunto dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede ndash

HumanizaSUS colocaram em cena as tentativas de mudar os modos de se produzir o cuidado

em sauacutede na cotidianidade do seu acontecimento portanto no campo singular da produccedilatildeo de

sauacutede Vecircm se somar a outras tantas iniciativas que jaacute vecircm operando por esse caminho e que

tecircm mostrado resultados interessantes na disputa por modos mais efetivos de intervenccedilatildeo

cuidadora no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede Podeshyse citar a Integralidade as Praacuteticas

Cuidadoras o Cuidado o Acolhimento como Rede de Conversaccedilatildeo a Terapecircutica como

Projeto de Felicidade a Afirmaccedilatildeo de Biopotecircncias ou a Afirmaccedilatildeo da Vida entre outras

designaccedilotildees Intervenccedilotildees essas muitas vezes substitutivas das modalidades hegemocircnicas e

por vezes desinstitucionalizadoras dos ordenamentos profissionais e do trabalho As

modalidades hegemocircnicas satildeo constituiacutedas sob o manto das accedilotildees profissionalshycentradas nas

quais o outro eacute um caso a ser enfrentado por tecnologias duras (as intervenccedilotildees mais

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invasivas) ou leveshyduras (as intervenccedilotildees cabalmente protocolares) de cuidado as quais

apenas o profissional deteacutem e justamente por elas se justifica (Merhy 1998 Ceccim 2004)

Novas intervenccedilotildees ndash ou intervenccedilotildees substitutivas ndash surgem das maneiras coletivas de se

construir configuraccedilotildees tecnoloacutegicas de cuidar

O desafio das apostas representadas pelo HumanizaSUS eacute maior por sua proposta de

reconstruir accedilotildees institucionais tendo os apoiadores das accedilotildees de mudanccedila a funccedilatildeo de

penetrar lugares recheados por intencionalidade e conseguir trazer o conjunto dos produtores

diretos do cuidado para uma situaccedilatildeo de debate dos seus agires fazendoshyos operar

intervenccedilotildees em si mesmos conduzindo as situaccedilotildees de trabalho para a construccedilatildeo do campo

singular da produccedilatildeo de sauacutede ou seja ativando a produccedilatildeo de encontro e a produccedilatildeo do

cuidar singular

Nessas apostas duplos encontros (trabalhadoresshytrabalhadores e trabalhadoresshy

usuaacuterios) exigem das formulaccedilotildees do HumanizaSUS processos de conduccedilatildeo que levem a

momentos de intensa singularizaccedilatildeo e quase nada de particularizaccedilatildeo ou seja natildeo basta que

apoiadores cheguem a esses encontros armados com ferramentas para neles atuar tomando o

outro como um caso a ser enfrentado e jaacute conhecido a priori instalando as praacuteticas

humanizadas Haacute que se colocar as ferramentas do agir do apoiador a serviccedilo de encontrosshy

acontecimento Esse desafio implica natildeo soacute colocar em anaacutelise a todo o tempo o modo de se

construir os encontros mas centralmente de expor para a visibilidade puacuteblica os agires

pedagoacutegicos e cuidadores que esses encontros contecircm

Para compreender isso em profundidade haacute que ficar atento Muitos que tambeacutem

apostam na mudanccedila das praacuteticas de sauacutede a vecircem como possibilidades inscritas em

encontros onde uns sabem criticamente o que os outros devem fazer e entatildeo natildeo contemplam

o desafio de ressingularizaccedilatildeo das praacuteticas mas a instalaccedilatildeo de boas praacuteticas Nessa forma de

entender e agir cada encontro eacute um momento particular de uma estrateacutegia geral que jaacute estaacute

dada a priori para ser realizada no momento em que o encontro acontece Natildeo eacute diferente do

modo como o proacuteprio modo hegemocircnico de se produzir sauacutede eacute realizado Esse modo que eacute

sempre o agir de um profissional de sauacutede que se legitima por ser o portador do saber em

sauacutede que o outro deve adotar ou incorporar vecirc o acontecimento do encontro mesmo que o

diga como cada caso eacute um caso como momento particular para o qual jaacute tem tudo preparado

Estamos diferindo singular (criaccedilatildeo) de particular (aperfeiccediloamento)

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Nos desafios do HumanizaSUS isso natildeo eacute apenas dilema e muito menos dialeacutetica

pois levado agraves uacuteltimas consequumlecircncias na praacutetica satildeo a sua proacutepria negaccedilatildeo como estrateacutegia

assessora natildeo a construccedilatildeo de superaccedilotildees Haacute aiacute uma implicaccedilatildeo fundamental toda arma que

o trabalhador tiver para operar encontros tem que estar a serviccedilo dos movimentos em ato de

que um encontro eacute portador natildeo o contraacuterio Suas ferramentas tecnoloacutegicas soacute seratildeo

efetivamente tecnologias singularizadoras como encontrosshyacontecimento Por isso natildeo haacute

nada faacutecil por ser feito haacute tensotildees e paradoxos mas que satildeo necessaacuterios para dar substacircncia a

aposta que o HumanizaSUS declara

Nesse texto trazemos para a discussatildeo algumas ideacuteias que podem ajudar a

compreenderproblematizar esse componente de singularidade que haacute nesse lugar onde o

cuidado eacute produzido e que natildeo permite que uma abordagem mais generalizadora lhe decirc conta

Tentamos mostrar que exatamente ali onde mais haacute captura eacute onde mais ocorrem

transversalidades capazes de linhas de fuga e capazes de operar transformaccedilotildees na delicadeza

de cada encontro ou nas proacuteprias linhas de fuga muitas vezes uacutenicas pois soacute para aqueles que

ali estatildeo operando os furos nas capturas fazem sentido Para o debate tomamos como grande

estiacutemulo o desafio apresentado por Deleuze quando nos convida a pensar a constituiccedilatildeo da

sociedade de controle (Deleuze 1992) nos vaacuterios planos da existecircncia e que

problematizaremos olhando para o mundo do trabalho em sauacutede e para a produccedilatildeo do

cuidado ali onde ele natildeo eacute esperado na capilaridade das relaccedilotildees cotidianas natildeo nas

assistecircncias profissionais na sua instacircncia formal de intervenccedilatildeo como procedimento

restaurador de funccedilotildees orgacircnicas

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede eacute um momento intensamente intercessor eacute a

produccedilatildeo de um dizershyse respeito em que a interaccedilatildeo promove praacuteticas de si nascidas para

cada agente em relaccedilatildeo produccedilatildeo de um ambienteshytempo comum ou cada vez mais comum

entre dois Um encontro onde de um jeito ou de outro dele esperam seus agentes a mesma

coisa que seja eficaz para resolver ou aplacar sofrimentos tidos como problemas de sauacutede Eacute

um momento que tem em si certos misteacuterios pela riqueza dos processos relacionais que

contecircm por ocorrer segundo razotildees muito diferenciadas e por natildeo ser apreendido por nenhum

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saber exclusivo

Que acontecimento eacute esse que se abre de modo tatildeo diacutespar como oportunidade para

processos de subjetivaccedilatildeo os mais variados num agir micropoliacutetico e pedagoacutegico intensos O

que pode ser construiacutedo em encontros muito diferenciados e operados por cuidadores de

muitas distintas formaccedilotildees e inserccedilotildees juntos ou natildeo Um encontro cuidador pode ser o

disparador de autopoieses Aqui nesse texto estamos dando partida a esse plano da

humanizaccedilatildeo ndash a construccedilatildeo de praacuteticas de sauacutede cuja contemporaneidade esteja na

atualizaccedilatildeo de processos intensivos de viver a vida Viver a vida natildeo apenas sobreviver ou

acima de tudo estar vivo apesar da ausecircncia de prazer de compartilhamento de potecircncia de

si e de produccedilatildeo de entornos criativos e audazes A potecircncia de si e de produccedilatildeo de entornos

criativos e audazes eacute o viver intensamente a invenccedilatildeo do vivo ou seja daquilo que afirma a

criaccedilatildeo ou que potildee a vida como obra de arte da existecircncia Nessa condiccedilatildeo o cuidar do outro

eacute operado por distintas modalidades de saber e fazer natildeo culmina com as praacuteticas particulares

das profissotildees das tecnologias do cuidado ou dos protocolos prolongashyse pela invenccedilatildeo de si

dos entornos de mundos Esta eacute uma pontuaccedilatildeo necessaacuteria no momento atual em que

vivemos onde a conformaccedilatildeo do campo da sauacutede nas sociedades mais ocidentalizadas vive

uma contemporaneidade do fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo e suas consequumlecircncias entre as quais

um perfil de prestaccedilatildeo do cuidado de formaccedilatildeo para o mesmo e de gestatildeo dos sistemas de

sauacutede para a oferta do cuidado no diashyashydia dos estabelecimentos de sauacutede

Trazemos para cena como primeira aproximaccedilatildeo a noccedilatildeo de que os encontros satildeo

micropoliacuteticos por estarem sempre abertos sob alteridades intercessoras (Merhy et al 1997

Ceccim 2005) sob distintas possibilidades de subjetivaccedilatildeo que podem caminhar de um

processo biopoliacutetico para um processo de biopotecircncia (Pelbart 2003) e da serializaccedilatildeo agrave

singularizaccedilatildeo (Guattari 2007 Guattari e Rolnik 1986) Aleacutem disso ndash e ao mesmo tempo ndash

os encontros na micropoliacutetica satildeo intensamente pedagoacutegicos operam ante as praacuteticas

inculcadorashomogenizadoras com trocas entre domiacutenios de saberes e fazeres construindo

um universo de processos educativos em ato em um fluxo contiacutenuo e intenso de convocaccedilotildees

desterritorializaccedilotildees e invenccedilotildees Uma segunda aproximaccedilatildeo eacute a de que processos de mudanccedila

satildeo estrateacutegias de resistecircncia e criaccedilatildeo vividos como paradoxo num mundo habitado pela

profusatildeo de praacuteticas cliacutenicas e pela profunda fragilizaccedilatildeo da vida (despotencializada para

conduzir processos de mudanccedila)

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Em torno dessas duas aproximaccedilotildees propomos constatar laccedilos e perspicaacutecias

colocamos a humanizaccedilatildeo em sauacutede sob essas lentes Humanizaccedilatildeo praacuteticas cuidadoras

integralidade projetos de felicidade redes de conversaccedilatildeo singularizaccedilatildeo biopotecircncia ou

afirmaccedilatildeo da vida convergem Entre laccedilos e perspicaacutecias o paradoxo e a disruptura

O corpo como sede dos oacutergatildeos e o corpo como encontro

Natildeo eacute estranho falarmos e identificarmos no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede

que as praacuteticas de cuidado estatildeo orientadas pela cliacutenica de um corpo sede dos oacutergatildeos ou por

uma cliacutenica do corpo de oacutergatildeos essa eacute a maneira com que cada uma das profissotildees de sauacutede

algumas desenhadas jaacute no seacuteculo XIX nas sociedades ocidentais pratica a cliacutenica e pensa o

cuidado Eacute com base nessa condiccedilatildeo que as profissotildees buscam distinguirshyse e organizar o seu

padratildeo de intervenccedilotildees para provocar a cura o que pode ocorrer em detrimento do promover a

terapecircutica (o sentirshyse cuidado) Mesmo que cada uma das profissotildees de sauacutede procure dar

sua marca ao campo de suas accedilotildees e mesmo que procurem oporshyse entre si na disputa por

territoacuterios privativos de intervenccedilatildeo isso muitas vezes natildeo ultrapassa a condiccedilatildeo de uma

praacutetica discursiva porque tratar com qualidade cuidar com integralidade ou escutar com

sensibilidade natildeo satildeo oposiccedilotildees e nem fragmentos autoshysuficientes Para provocar a cura natildeo

concorrem saberes em oposiccedilatildeo ou fragmentados e para promover a terapecircutica natildeo

convergem saberes parciais ou focados em padrotildees particulares

A distinccedilatildeo radical entre as profissotildees na esfera do cuidado do acolhimento do outro

da oferta de encontro para compreender processos de produccedilatildeo de sauacutede em realidade natildeo se

verifica O que se verifica eacute a fragmentaccedilatildeo da cura e do cuidado e a busca pelos usuaacuterios das

accedilotildees de sauacutede de praacuteticas natildeo apenas profissionais a fim de sentiremshyse cuidados eou

sentiremshyse curados Muitas vezes sob a denuacutencia profissional da natildeo adesatildeo agrave prescriccedilatildeo

natildeo adesatildeo agraves orientaccedilotildees natildeo adesatildeo agrave terapecircutica estaacute a denuacutencia da oferta fragmentada

particularizada e corrompida da cliacutenica

Seja na enfermagem na farmaacutecia na fisioterapia na fonoaudiologia na medicina na

nutriccedilatildeo na odontologia na psicologia na terapia ocupacional ou na recente educaccedilatildeo fiacutesica

o que temos visto eacute um modo de olhar os campos do tratamento cuidado e escuta como

fundamentados nas doenccedilas compreendidas como processos instalados de maneira patoloacutegica

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num corpo bioloacutegico de oacutergatildeos (a patologia disfuncionalizandoshyo) A intervenccedilatildeo

profissional aparece como a restauraccedilatildeo das funccedilotildees Quando se fala do lugar da sauacutede

puacuteblica que procura compreender a instalaccedilatildeo dos processos de adoecimento no plano das

populaccedilotildees para produzir intervenccedilotildees no acircmbito coletivo visando o controle dos

adoecimentos vecircshyse que o pano de fundo tambeacutem eacute essa mesma compreensatildeo do fenocircmeno

sauacutedeshydoenccedila a instalaccedilatildeo de patologias nos corpos bioloacutegicos Ainda que sejam introduzidos

novos elementos nesse olhar como por exemplo a distribuiccedilatildeo desigual do processo sauacutede e

doenccedila entre os vaacuterios grupos populacionais demarcados socialmente o ideal eacute o do

equiliacutebrio entre as funccedilotildees dos oacutergatildeos

A combinaccedilatildeo de saberes entre a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos e a epidemiologia deram

substacircncia como conhecimentoshyferramenta tecnoloacutegica para a conformaccedilatildeo de campos

produtivos em todos os lugares de construccedilatildeo dos processos de tratamento cuidado e escuta

inclusive de maneira dessemelhante uma vez que eacute muito grande a variabilidade de

composiccedilatildeo dos recursos de saber dentro de cada profissatildeo e mesmo dentro de cada campo de

accedilatildeo como ocorre por exemplo entre a medicina e a sauacutede puacuteblica Para construir o encontro

produtor de cuidado entretanto as maneiras muito distintas de cada saber ainda mais quando

aprisionados em profissotildees em oposiccedilatildeo ndash quanto aos campos do exerciacutecio profissional caem

em contradiccedilatildeo inviabilizam a integralidade negam a humanizaccedilatildeo

Ricardo Bruno Mendes Gonccedilalves (1994) nos levou a ver que mesmo dentro do

mesmo campo das accedilotildees profissionais de prestaccedilatildeo de cuidado o da medicina e o da

enfermagem por exemplo haacute diferenccedilas gritantes na composiccedilatildeo dos seus processos

produtivos a ponto de termos situaccedilotildees tatildeo diferenciadas de praacuteticas cliacutenicas de medicina e de

enfermagem por parte dos seus profissionais que ateacute parecem existir distintas ldquomedicinasrdquo e

ldquoenfermagensrdquo em seus fundamentos de base Mendes Gonccedilalves revela a existecircncia de

praacuteticas de meacutedicos nas quais a abordagem dos indiviacuteduos eacute tanto uma ritualiacutestica teacutecnica

onde a relaccedilatildeo meacutedicoshypaciente eacute elaborada mediante um complexo jogo de falas e escutas

como por uma relaccedilatildeo reduzida a um processo comunicativo do tipo queixashyconduta onde a

fala eacute miacutenima servindo somente como revelaccedilatildeo oral da sintomatologia que seraacute alvo de uma

intervenccedilatildeo via procedimentos curativos ou exploratoacuterios imediatos Contudo na base de

ambas as praacuteticas estaacute o mesmo foco o corpo bioloacutegico que se patologiza no plano individual

eou coletivo Por dentro dos saberes que estatildeo sendo operados como ferramentas para tais

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accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

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no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

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alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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33

encontro numa espeacutecie de ausecircncia de interaccedilatildeo presenccedila apenas do mundo da

macropoliacutetica onde conhecimentos teacutecnicos protocolares disciplinares e dependentes

fundamentalmente do domiacutenio de saberes formais prescrevem certos modos de atuar tratashyse

do trabalho capturado por seu gerenciamentoprotocolizaccedilatildeocorporativizaccedilatildeo Costumamos

apontar diante disso que o profissional de sauacutede ao atuar no cotidiano dos serviccedilos junto

aos usuaacuterios estaacute submetido a ordenamentos que definem de forma imperativa suas formas

de agir no cuidado Dizemos que uma ordem profissional ou as condiccedilotildees de trabalho satildeo de

tal modo capturadoras que o profissional natildeo consegue agir por si de nenhuma maneira

Apontamos tambeacutem por exemplo que as imposiccedilotildees do mercado em sauacutede por meio da

induacutestria de medicamentos entre outras disposiccedilotildees definem o que eacute o cuidar E assim vai

Entretanto quando nos debruccedilamos com mais acuidade sobre o cotidiano das praacuteticas vemos

que os profissionais mesmo aqueles de igual categoria profissional atuam de modo distinto

no interior da mesma situaccedilatildeo de atenccedilatildeo agrave sauacutede Conseguimos perceber que uma dada

equipe de sauacutede eacute bem diferente de outra na maneira de cuidar parecendo ndash muitas vezes ndash

que umas cuidam e outras natildeo ou que determinados profissionais se ocupam do cuidado e

outros natildeo

Alguns observadores ou analistas diante disso passam a apontar entatildeo que uma

micropoliacutetica se opotildee ndash ou pode resistir ndash agrave macropoliacutetica pois aiacute atua ndash resiste ndash uma ordem

do encontro ou as condiccedilotildees da interaccedilatildeo Muitos observadoresanalistas poreacutem anunciam

por micropoliacutetica uma noccedilatildeo esvaziada de criaccedilatildeo e portanto sem potecircncia de resistecircncia

Uma micropoliacutetica apontada como se macropoliacutetica de menor escala a do espaccedilo

microssocial representante portanto das mesmas forccedilas de captura Para os primeiros a

micropoliacutetica eacute a resistecircncia agraves capturas a luta pelo direito agrave criaccedilatildeo a exposiccedilatildeo e vivecircncia

em ato de uma relaccedilatildeo Para os outros tratashyse das decisotildees ideoloacutegicas dos modos culturais

locais das regras de exerciacutecio da profissatildeo ou do trabalho onde as diferenccedilas quase

individualizantes teriam um peso mais significativo

Contudo natildeo satildeo as regras de exerciacutecio da profissatildeo ou do trabalho e nem as

diferenccedilas de escala que marcam o territoacuterio da micropoliacutetica mas os coshyengendramentos de

si e de mundos Interrogamos que territoacuterios de ser satildeo criados que rupturas satildeo

introduzidas que acolhimentos satildeo ofertados Satildeo territoacuterios aquilo a que constituiacutemos

quando estabelecemos uma relaccedilatildeo Entatildeo o que tem e o que natildeo tem pertencimento a esses

4

territoacuterios constituiacutedos Satildeo atores em relaccedilatildeo que constituem territoacuterios territoacuterios que datildeo

ou natildeo passagem aos devires ou para campos de possiacuteveis (campos de virtualidades que

podem ser atualizadas em realidades) Satildeo os encontros de atores com atores a partir dos

seus planos de existecircncia que datildeo substancialidade para o campo da poliacutetica em qualquer

cotidiano Eacute pela dimensatildeo micropoliacutetica portanto que detectamos ndash na prestaccedilatildeo do cuidado

ndash uma produccedilatildeo poliacutetica dos Seres natildeo apenas o registro de assistecircncias

A centralidade da atenccedilatildeo de sauacutede no usuaacuterio defendida por aqueles chamados logo

acima por os primeiros (observadores ou analistas das condiccedilotildees de interaccedilatildeo ou da ordem

dos encontros) diz de uma orientaccedilatildeo do cuidado para com o outro natildeo para com os fatores

externos ao encontro como a teacutecnica a rotina o protocolo a profissatildeo ou a instituiccedilatildeo Essa

centralidade no usuaacuterio logo eacute a centralidade no encontro centralidade no contato com a

alteridade O cuidado implicando a constitutividade de relaccedilotildees de alteridade portanto

implicando encontros para aleacutem das forccedilas a que chamamos por externas Aiacute o cotidiano do

cuidado passa a ser visto como um campo singular da produccedilatildeo de sauacutede e natildeo como um

campo particular da prestaccedilatildeo de assistecircncia de sauacutede O cotidiano adquire natureza de

produccedilatildeo de realidades trabalho vivo em ato constituidor de mundo territoacuterio de disputa

com as ditas forccedilas externas por forccedilas de criaccedilatildeo (Negri 2002 Merhy 1997 Ceccim e

Capozzolo 2004)

Os desafios apontados pela Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo na Sauacutede desde sua

identificaccedilatildeo com o conjunto dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede ndash

HumanizaSUS colocaram em cena as tentativas de mudar os modos de se produzir o cuidado

em sauacutede na cotidianidade do seu acontecimento portanto no campo singular da produccedilatildeo de

sauacutede Vecircm se somar a outras tantas iniciativas que jaacute vecircm operando por esse caminho e que

tecircm mostrado resultados interessantes na disputa por modos mais efetivos de intervenccedilatildeo

cuidadora no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede Podeshyse citar a Integralidade as Praacuteticas

Cuidadoras o Cuidado o Acolhimento como Rede de Conversaccedilatildeo a Terapecircutica como

Projeto de Felicidade a Afirmaccedilatildeo de Biopotecircncias ou a Afirmaccedilatildeo da Vida entre outras

designaccedilotildees Intervenccedilotildees essas muitas vezes substitutivas das modalidades hegemocircnicas e

por vezes desinstitucionalizadoras dos ordenamentos profissionais e do trabalho As

modalidades hegemocircnicas satildeo constituiacutedas sob o manto das accedilotildees profissionalshycentradas nas

quais o outro eacute um caso a ser enfrentado por tecnologias duras (as intervenccedilotildees mais

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invasivas) ou leveshyduras (as intervenccedilotildees cabalmente protocolares) de cuidado as quais

apenas o profissional deteacutem e justamente por elas se justifica (Merhy 1998 Ceccim 2004)

Novas intervenccedilotildees ndash ou intervenccedilotildees substitutivas ndash surgem das maneiras coletivas de se

construir configuraccedilotildees tecnoloacutegicas de cuidar

O desafio das apostas representadas pelo HumanizaSUS eacute maior por sua proposta de

reconstruir accedilotildees institucionais tendo os apoiadores das accedilotildees de mudanccedila a funccedilatildeo de

penetrar lugares recheados por intencionalidade e conseguir trazer o conjunto dos produtores

diretos do cuidado para uma situaccedilatildeo de debate dos seus agires fazendoshyos operar

intervenccedilotildees em si mesmos conduzindo as situaccedilotildees de trabalho para a construccedilatildeo do campo

singular da produccedilatildeo de sauacutede ou seja ativando a produccedilatildeo de encontro e a produccedilatildeo do

cuidar singular

Nessas apostas duplos encontros (trabalhadoresshytrabalhadores e trabalhadoresshy

usuaacuterios) exigem das formulaccedilotildees do HumanizaSUS processos de conduccedilatildeo que levem a

momentos de intensa singularizaccedilatildeo e quase nada de particularizaccedilatildeo ou seja natildeo basta que

apoiadores cheguem a esses encontros armados com ferramentas para neles atuar tomando o

outro como um caso a ser enfrentado e jaacute conhecido a priori instalando as praacuteticas

humanizadas Haacute que se colocar as ferramentas do agir do apoiador a serviccedilo de encontrosshy

acontecimento Esse desafio implica natildeo soacute colocar em anaacutelise a todo o tempo o modo de se

construir os encontros mas centralmente de expor para a visibilidade puacuteblica os agires

pedagoacutegicos e cuidadores que esses encontros contecircm

Para compreender isso em profundidade haacute que ficar atento Muitos que tambeacutem

apostam na mudanccedila das praacuteticas de sauacutede a vecircem como possibilidades inscritas em

encontros onde uns sabem criticamente o que os outros devem fazer e entatildeo natildeo contemplam

o desafio de ressingularizaccedilatildeo das praacuteticas mas a instalaccedilatildeo de boas praacuteticas Nessa forma de

entender e agir cada encontro eacute um momento particular de uma estrateacutegia geral que jaacute estaacute

dada a priori para ser realizada no momento em que o encontro acontece Natildeo eacute diferente do

modo como o proacuteprio modo hegemocircnico de se produzir sauacutede eacute realizado Esse modo que eacute

sempre o agir de um profissional de sauacutede que se legitima por ser o portador do saber em

sauacutede que o outro deve adotar ou incorporar vecirc o acontecimento do encontro mesmo que o

diga como cada caso eacute um caso como momento particular para o qual jaacute tem tudo preparado

Estamos diferindo singular (criaccedilatildeo) de particular (aperfeiccediloamento)

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Nos desafios do HumanizaSUS isso natildeo eacute apenas dilema e muito menos dialeacutetica

pois levado agraves uacuteltimas consequumlecircncias na praacutetica satildeo a sua proacutepria negaccedilatildeo como estrateacutegia

assessora natildeo a construccedilatildeo de superaccedilotildees Haacute aiacute uma implicaccedilatildeo fundamental toda arma que

o trabalhador tiver para operar encontros tem que estar a serviccedilo dos movimentos em ato de

que um encontro eacute portador natildeo o contraacuterio Suas ferramentas tecnoloacutegicas soacute seratildeo

efetivamente tecnologias singularizadoras como encontrosshyacontecimento Por isso natildeo haacute

nada faacutecil por ser feito haacute tensotildees e paradoxos mas que satildeo necessaacuterios para dar substacircncia a

aposta que o HumanizaSUS declara

Nesse texto trazemos para a discussatildeo algumas ideacuteias que podem ajudar a

compreenderproblematizar esse componente de singularidade que haacute nesse lugar onde o

cuidado eacute produzido e que natildeo permite que uma abordagem mais generalizadora lhe decirc conta

Tentamos mostrar que exatamente ali onde mais haacute captura eacute onde mais ocorrem

transversalidades capazes de linhas de fuga e capazes de operar transformaccedilotildees na delicadeza

de cada encontro ou nas proacuteprias linhas de fuga muitas vezes uacutenicas pois soacute para aqueles que

ali estatildeo operando os furos nas capturas fazem sentido Para o debate tomamos como grande

estiacutemulo o desafio apresentado por Deleuze quando nos convida a pensar a constituiccedilatildeo da

sociedade de controle (Deleuze 1992) nos vaacuterios planos da existecircncia e que

problematizaremos olhando para o mundo do trabalho em sauacutede e para a produccedilatildeo do

cuidado ali onde ele natildeo eacute esperado na capilaridade das relaccedilotildees cotidianas natildeo nas

assistecircncias profissionais na sua instacircncia formal de intervenccedilatildeo como procedimento

restaurador de funccedilotildees orgacircnicas

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede eacute um momento intensamente intercessor eacute a

produccedilatildeo de um dizershyse respeito em que a interaccedilatildeo promove praacuteticas de si nascidas para

cada agente em relaccedilatildeo produccedilatildeo de um ambienteshytempo comum ou cada vez mais comum

entre dois Um encontro onde de um jeito ou de outro dele esperam seus agentes a mesma

coisa que seja eficaz para resolver ou aplacar sofrimentos tidos como problemas de sauacutede Eacute

um momento que tem em si certos misteacuterios pela riqueza dos processos relacionais que

contecircm por ocorrer segundo razotildees muito diferenciadas e por natildeo ser apreendido por nenhum

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saber exclusivo

Que acontecimento eacute esse que se abre de modo tatildeo diacutespar como oportunidade para

processos de subjetivaccedilatildeo os mais variados num agir micropoliacutetico e pedagoacutegico intensos O

que pode ser construiacutedo em encontros muito diferenciados e operados por cuidadores de

muitas distintas formaccedilotildees e inserccedilotildees juntos ou natildeo Um encontro cuidador pode ser o

disparador de autopoieses Aqui nesse texto estamos dando partida a esse plano da

humanizaccedilatildeo ndash a construccedilatildeo de praacuteticas de sauacutede cuja contemporaneidade esteja na

atualizaccedilatildeo de processos intensivos de viver a vida Viver a vida natildeo apenas sobreviver ou

acima de tudo estar vivo apesar da ausecircncia de prazer de compartilhamento de potecircncia de

si e de produccedilatildeo de entornos criativos e audazes A potecircncia de si e de produccedilatildeo de entornos

criativos e audazes eacute o viver intensamente a invenccedilatildeo do vivo ou seja daquilo que afirma a

criaccedilatildeo ou que potildee a vida como obra de arte da existecircncia Nessa condiccedilatildeo o cuidar do outro

eacute operado por distintas modalidades de saber e fazer natildeo culmina com as praacuteticas particulares

das profissotildees das tecnologias do cuidado ou dos protocolos prolongashyse pela invenccedilatildeo de si

dos entornos de mundos Esta eacute uma pontuaccedilatildeo necessaacuteria no momento atual em que

vivemos onde a conformaccedilatildeo do campo da sauacutede nas sociedades mais ocidentalizadas vive

uma contemporaneidade do fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo e suas consequumlecircncias entre as quais

um perfil de prestaccedilatildeo do cuidado de formaccedilatildeo para o mesmo e de gestatildeo dos sistemas de

sauacutede para a oferta do cuidado no diashyashydia dos estabelecimentos de sauacutede

Trazemos para cena como primeira aproximaccedilatildeo a noccedilatildeo de que os encontros satildeo

micropoliacuteticos por estarem sempre abertos sob alteridades intercessoras (Merhy et al 1997

Ceccim 2005) sob distintas possibilidades de subjetivaccedilatildeo que podem caminhar de um

processo biopoliacutetico para um processo de biopotecircncia (Pelbart 2003) e da serializaccedilatildeo agrave

singularizaccedilatildeo (Guattari 2007 Guattari e Rolnik 1986) Aleacutem disso ndash e ao mesmo tempo ndash

os encontros na micropoliacutetica satildeo intensamente pedagoacutegicos operam ante as praacuteticas

inculcadorashomogenizadoras com trocas entre domiacutenios de saberes e fazeres construindo

um universo de processos educativos em ato em um fluxo contiacutenuo e intenso de convocaccedilotildees

desterritorializaccedilotildees e invenccedilotildees Uma segunda aproximaccedilatildeo eacute a de que processos de mudanccedila

satildeo estrateacutegias de resistecircncia e criaccedilatildeo vividos como paradoxo num mundo habitado pela

profusatildeo de praacuteticas cliacutenicas e pela profunda fragilizaccedilatildeo da vida (despotencializada para

conduzir processos de mudanccedila)

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Em torno dessas duas aproximaccedilotildees propomos constatar laccedilos e perspicaacutecias

colocamos a humanizaccedilatildeo em sauacutede sob essas lentes Humanizaccedilatildeo praacuteticas cuidadoras

integralidade projetos de felicidade redes de conversaccedilatildeo singularizaccedilatildeo biopotecircncia ou

afirmaccedilatildeo da vida convergem Entre laccedilos e perspicaacutecias o paradoxo e a disruptura

O corpo como sede dos oacutergatildeos e o corpo como encontro

Natildeo eacute estranho falarmos e identificarmos no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede

que as praacuteticas de cuidado estatildeo orientadas pela cliacutenica de um corpo sede dos oacutergatildeos ou por

uma cliacutenica do corpo de oacutergatildeos essa eacute a maneira com que cada uma das profissotildees de sauacutede

algumas desenhadas jaacute no seacuteculo XIX nas sociedades ocidentais pratica a cliacutenica e pensa o

cuidado Eacute com base nessa condiccedilatildeo que as profissotildees buscam distinguirshyse e organizar o seu

padratildeo de intervenccedilotildees para provocar a cura o que pode ocorrer em detrimento do promover a

terapecircutica (o sentirshyse cuidado) Mesmo que cada uma das profissotildees de sauacutede procure dar

sua marca ao campo de suas accedilotildees e mesmo que procurem oporshyse entre si na disputa por

territoacuterios privativos de intervenccedilatildeo isso muitas vezes natildeo ultrapassa a condiccedilatildeo de uma

praacutetica discursiva porque tratar com qualidade cuidar com integralidade ou escutar com

sensibilidade natildeo satildeo oposiccedilotildees e nem fragmentos autoshysuficientes Para provocar a cura natildeo

concorrem saberes em oposiccedilatildeo ou fragmentados e para promover a terapecircutica natildeo

convergem saberes parciais ou focados em padrotildees particulares

A distinccedilatildeo radical entre as profissotildees na esfera do cuidado do acolhimento do outro

da oferta de encontro para compreender processos de produccedilatildeo de sauacutede em realidade natildeo se

verifica O que se verifica eacute a fragmentaccedilatildeo da cura e do cuidado e a busca pelos usuaacuterios das

accedilotildees de sauacutede de praacuteticas natildeo apenas profissionais a fim de sentiremshyse cuidados eou

sentiremshyse curados Muitas vezes sob a denuacutencia profissional da natildeo adesatildeo agrave prescriccedilatildeo

natildeo adesatildeo agraves orientaccedilotildees natildeo adesatildeo agrave terapecircutica estaacute a denuacutencia da oferta fragmentada

particularizada e corrompida da cliacutenica

Seja na enfermagem na farmaacutecia na fisioterapia na fonoaudiologia na medicina na

nutriccedilatildeo na odontologia na psicologia na terapia ocupacional ou na recente educaccedilatildeo fiacutesica

o que temos visto eacute um modo de olhar os campos do tratamento cuidado e escuta como

fundamentados nas doenccedilas compreendidas como processos instalados de maneira patoloacutegica

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num corpo bioloacutegico de oacutergatildeos (a patologia disfuncionalizandoshyo) A intervenccedilatildeo

profissional aparece como a restauraccedilatildeo das funccedilotildees Quando se fala do lugar da sauacutede

puacuteblica que procura compreender a instalaccedilatildeo dos processos de adoecimento no plano das

populaccedilotildees para produzir intervenccedilotildees no acircmbito coletivo visando o controle dos

adoecimentos vecircshyse que o pano de fundo tambeacutem eacute essa mesma compreensatildeo do fenocircmeno

sauacutedeshydoenccedila a instalaccedilatildeo de patologias nos corpos bioloacutegicos Ainda que sejam introduzidos

novos elementos nesse olhar como por exemplo a distribuiccedilatildeo desigual do processo sauacutede e

doenccedila entre os vaacuterios grupos populacionais demarcados socialmente o ideal eacute o do

equiliacutebrio entre as funccedilotildees dos oacutergatildeos

A combinaccedilatildeo de saberes entre a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos e a epidemiologia deram

substacircncia como conhecimentoshyferramenta tecnoloacutegica para a conformaccedilatildeo de campos

produtivos em todos os lugares de construccedilatildeo dos processos de tratamento cuidado e escuta

inclusive de maneira dessemelhante uma vez que eacute muito grande a variabilidade de

composiccedilatildeo dos recursos de saber dentro de cada profissatildeo e mesmo dentro de cada campo de

accedilatildeo como ocorre por exemplo entre a medicina e a sauacutede puacuteblica Para construir o encontro

produtor de cuidado entretanto as maneiras muito distintas de cada saber ainda mais quando

aprisionados em profissotildees em oposiccedilatildeo ndash quanto aos campos do exerciacutecio profissional caem

em contradiccedilatildeo inviabilizam a integralidade negam a humanizaccedilatildeo

Ricardo Bruno Mendes Gonccedilalves (1994) nos levou a ver que mesmo dentro do

mesmo campo das accedilotildees profissionais de prestaccedilatildeo de cuidado o da medicina e o da

enfermagem por exemplo haacute diferenccedilas gritantes na composiccedilatildeo dos seus processos

produtivos a ponto de termos situaccedilotildees tatildeo diferenciadas de praacuteticas cliacutenicas de medicina e de

enfermagem por parte dos seus profissionais que ateacute parecem existir distintas ldquomedicinasrdquo e

ldquoenfermagensrdquo em seus fundamentos de base Mendes Gonccedilalves revela a existecircncia de

praacuteticas de meacutedicos nas quais a abordagem dos indiviacuteduos eacute tanto uma ritualiacutestica teacutecnica

onde a relaccedilatildeo meacutedicoshypaciente eacute elaborada mediante um complexo jogo de falas e escutas

como por uma relaccedilatildeo reduzida a um processo comunicativo do tipo queixashyconduta onde a

fala eacute miacutenima servindo somente como revelaccedilatildeo oral da sintomatologia que seraacute alvo de uma

intervenccedilatildeo via procedimentos curativos ou exploratoacuterios imediatos Contudo na base de

ambas as praacuteticas estaacute o mesmo foco o corpo bioloacutegico que se patologiza no plano individual

eou coletivo Por dentro dos saberes que estatildeo sendo operados como ferramentas para tais

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accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

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no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

17

construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

18

alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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territoacuterios constituiacutedos Satildeo atores em relaccedilatildeo que constituem territoacuterios territoacuterios que datildeo

ou natildeo passagem aos devires ou para campos de possiacuteveis (campos de virtualidades que

podem ser atualizadas em realidades) Satildeo os encontros de atores com atores a partir dos

seus planos de existecircncia que datildeo substancialidade para o campo da poliacutetica em qualquer

cotidiano Eacute pela dimensatildeo micropoliacutetica portanto que detectamos ndash na prestaccedilatildeo do cuidado

ndash uma produccedilatildeo poliacutetica dos Seres natildeo apenas o registro de assistecircncias

A centralidade da atenccedilatildeo de sauacutede no usuaacuterio defendida por aqueles chamados logo

acima por os primeiros (observadores ou analistas das condiccedilotildees de interaccedilatildeo ou da ordem

dos encontros) diz de uma orientaccedilatildeo do cuidado para com o outro natildeo para com os fatores

externos ao encontro como a teacutecnica a rotina o protocolo a profissatildeo ou a instituiccedilatildeo Essa

centralidade no usuaacuterio logo eacute a centralidade no encontro centralidade no contato com a

alteridade O cuidado implicando a constitutividade de relaccedilotildees de alteridade portanto

implicando encontros para aleacutem das forccedilas a que chamamos por externas Aiacute o cotidiano do

cuidado passa a ser visto como um campo singular da produccedilatildeo de sauacutede e natildeo como um

campo particular da prestaccedilatildeo de assistecircncia de sauacutede O cotidiano adquire natureza de

produccedilatildeo de realidades trabalho vivo em ato constituidor de mundo territoacuterio de disputa

com as ditas forccedilas externas por forccedilas de criaccedilatildeo (Negri 2002 Merhy 1997 Ceccim e

Capozzolo 2004)

Os desafios apontados pela Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo na Sauacutede desde sua

identificaccedilatildeo com o conjunto dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede ndash

HumanizaSUS colocaram em cena as tentativas de mudar os modos de se produzir o cuidado

em sauacutede na cotidianidade do seu acontecimento portanto no campo singular da produccedilatildeo de

sauacutede Vecircm se somar a outras tantas iniciativas que jaacute vecircm operando por esse caminho e que

tecircm mostrado resultados interessantes na disputa por modos mais efetivos de intervenccedilatildeo

cuidadora no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede Podeshyse citar a Integralidade as Praacuteticas

Cuidadoras o Cuidado o Acolhimento como Rede de Conversaccedilatildeo a Terapecircutica como

Projeto de Felicidade a Afirmaccedilatildeo de Biopotecircncias ou a Afirmaccedilatildeo da Vida entre outras

designaccedilotildees Intervenccedilotildees essas muitas vezes substitutivas das modalidades hegemocircnicas e

por vezes desinstitucionalizadoras dos ordenamentos profissionais e do trabalho As

modalidades hegemocircnicas satildeo constituiacutedas sob o manto das accedilotildees profissionalshycentradas nas

quais o outro eacute um caso a ser enfrentado por tecnologias duras (as intervenccedilotildees mais

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invasivas) ou leveshyduras (as intervenccedilotildees cabalmente protocolares) de cuidado as quais

apenas o profissional deteacutem e justamente por elas se justifica (Merhy 1998 Ceccim 2004)

Novas intervenccedilotildees ndash ou intervenccedilotildees substitutivas ndash surgem das maneiras coletivas de se

construir configuraccedilotildees tecnoloacutegicas de cuidar

O desafio das apostas representadas pelo HumanizaSUS eacute maior por sua proposta de

reconstruir accedilotildees institucionais tendo os apoiadores das accedilotildees de mudanccedila a funccedilatildeo de

penetrar lugares recheados por intencionalidade e conseguir trazer o conjunto dos produtores

diretos do cuidado para uma situaccedilatildeo de debate dos seus agires fazendoshyos operar

intervenccedilotildees em si mesmos conduzindo as situaccedilotildees de trabalho para a construccedilatildeo do campo

singular da produccedilatildeo de sauacutede ou seja ativando a produccedilatildeo de encontro e a produccedilatildeo do

cuidar singular

Nessas apostas duplos encontros (trabalhadoresshytrabalhadores e trabalhadoresshy

usuaacuterios) exigem das formulaccedilotildees do HumanizaSUS processos de conduccedilatildeo que levem a

momentos de intensa singularizaccedilatildeo e quase nada de particularizaccedilatildeo ou seja natildeo basta que

apoiadores cheguem a esses encontros armados com ferramentas para neles atuar tomando o

outro como um caso a ser enfrentado e jaacute conhecido a priori instalando as praacuteticas

humanizadas Haacute que se colocar as ferramentas do agir do apoiador a serviccedilo de encontrosshy

acontecimento Esse desafio implica natildeo soacute colocar em anaacutelise a todo o tempo o modo de se

construir os encontros mas centralmente de expor para a visibilidade puacuteblica os agires

pedagoacutegicos e cuidadores que esses encontros contecircm

Para compreender isso em profundidade haacute que ficar atento Muitos que tambeacutem

apostam na mudanccedila das praacuteticas de sauacutede a vecircem como possibilidades inscritas em

encontros onde uns sabem criticamente o que os outros devem fazer e entatildeo natildeo contemplam

o desafio de ressingularizaccedilatildeo das praacuteticas mas a instalaccedilatildeo de boas praacuteticas Nessa forma de

entender e agir cada encontro eacute um momento particular de uma estrateacutegia geral que jaacute estaacute

dada a priori para ser realizada no momento em que o encontro acontece Natildeo eacute diferente do

modo como o proacuteprio modo hegemocircnico de se produzir sauacutede eacute realizado Esse modo que eacute

sempre o agir de um profissional de sauacutede que se legitima por ser o portador do saber em

sauacutede que o outro deve adotar ou incorporar vecirc o acontecimento do encontro mesmo que o

diga como cada caso eacute um caso como momento particular para o qual jaacute tem tudo preparado

Estamos diferindo singular (criaccedilatildeo) de particular (aperfeiccediloamento)

6

Nos desafios do HumanizaSUS isso natildeo eacute apenas dilema e muito menos dialeacutetica

pois levado agraves uacuteltimas consequumlecircncias na praacutetica satildeo a sua proacutepria negaccedilatildeo como estrateacutegia

assessora natildeo a construccedilatildeo de superaccedilotildees Haacute aiacute uma implicaccedilatildeo fundamental toda arma que

o trabalhador tiver para operar encontros tem que estar a serviccedilo dos movimentos em ato de

que um encontro eacute portador natildeo o contraacuterio Suas ferramentas tecnoloacutegicas soacute seratildeo

efetivamente tecnologias singularizadoras como encontrosshyacontecimento Por isso natildeo haacute

nada faacutecil por ser feito haacute tensotildees e paradoxos mas que satildeo necessaacuterios para dar substacircncia a

aposta que o HumanizaSUS declara

Nesse texto trazemos para a discussatildeo algumas ideacuteias que podem ajudar a

compreenderproblematizar esse componente de singularidade que haacute nesse lugar onde o

cuidado eacute produzido e que natildeo permite que uma abordagem mais generalizadora lhe decirc conta

Tentamos mostrar que exatamente ali onde mais haacute captura eacute onde mais ocorrem

transversalidades capazes de linhas de fuga e capazes de operar transformaccedilotildees na delicadeza

de cada encontro ou nas proacuteprias linhas de fuga muitas vezes uacutenicas pois soacute para aqueles que

ali estatildeo operando os furos nas capturas fazem sentido Para o debate tomamos como grande

estiacutemulo o desafio apresentado por Deleuze quando nos convida a pensar a constituiccedilatildeo da

sociedade de controle (Deleuze 1992) nos vaacuterios planos da existecircncia e que

problematizaremos olhando para o mundo do trabalho em sauacutede e para a produccedilatildeo do

cuidado ali onde ele natildeo eacute esperado na capilaridade das relaccedilotildees cotidianas natildeo nas

assistecircncias profissionais na sua instacircncia formal de intervenccedilatildeo como procedimento

restaurador de funccedilotildees orgacircnicas

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede eacute um momento intensamente intercessor eacute a

produccedilatildeo de um dizershyse respeito em que a interaccedilatildeo promove praacuteticas de si nascidas para

cada agente em relaccedilatildeo produccedilatildeo de um ambienteshytempo comum ou cada vez mais comum

entre dois Um encontro onde de um jeito ou de outro dele esperam seus agentes a mesma

coisa que seja eficaz para resolver ou aplacar sofrimentos tidos como problemas de sauacutede Eacute

um momento que tem em si certos misteacuterios pela riqueza dos processos relacionais que

contecircm por ocorrer segundo razotildees muito diferenciadas e por natildeo ser apreendido por nenhum

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saber exclusivo

Que acontecimento eacute esse que se abre de modo tatildeo diacutespar como oportunidade para

processos de subjetivaccedilatildeo os mais variados num agir micropoliacutetico e pedagoacutegico intensos O

que pode ser construiacutedo em encontros muito diferenciados e operados por cuidadores de

muitas distintas formaccedilotildees e inserccedilotildees juntos ou natildeo Um encontro cuidador pode ser o

disparador de autopoieses Aqui nesse texto estamos dando partida a esse plano da

humanizaccedilatildeo ndash a construccedilatildeo de praacuteticas de sauacutede cuja contemporaneidade esteja na

atualizaccedilatildeo de processos intensivos de viver a vida Viver a vida natildeo apenas sobreviver ou

acima de tudo estar vivo apesar da ausecircncia de prazer de compartilhamento de potecircncia de

si e de produccedilatildeo de entornos criativos e audazes A potecircncia de si e de produccedilatildeo de entornos

criativos e audazes eacute o viver intensamente a invenccedilatildeo do vivo ou seja daquilo que afirma a

criaccedilatildeo ou que potildee a vida como obra de arte da existecircncia Nessa condiccedilatildeo o cuidar do outro

eacute operado por distintas modalidades de saber e fazer natildeo culmina com as praacuteticas particulares

das profissotildees das tecnologias do cuidado ou dos protocolos prolongashyse pela invenccedilatildeo de si

dos entornos de mundos Esta eacute uma pontuaccedilatildeo necessaacuteria no momento atual em que

vivemos onde a conformaccedilatildeo do campo da sauacutede nas sociedades mais ocidentalizadas vive

uma contemporaneidade do fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo e suas consequumlecircncias entre as quais

um perfil de prestaccedilatildeo do cuidado de formaccedilatildeo para o mesmo e de gestatildeo dos sistemas de

sauacutede para a oferta do cuidado no diashyashydia dos estabelecimentos de sauacutede

Trazemos para cena como primeira aproximaccedilatildeo a noccedilatildeo de que os encontros satildeo

micropoliacuteticos por estarem sempre abertos sob alteridades intercessoras (Merhy et al 1997

Ceccim 2005) sob distintas possibilidades de subjetivaccedilatildeo que podem caminhar de um

processo biopoliacutetico para um processo de biopotecircncia (Pelbart 2003) e da serializaccedilatildeo agrave

singularizaccedilatildeo (Guattari 2007 Guattari e Rolnik 1986) Aleacutem disso ndash e ao mesmo tempo ndash

os encontros na micropoliacutetica satildeo intensamente pedagoacutegicos operam ante as praacuteticas

inculcadorashomogenizadoras com trocas entre domiacutenios de saberes e fazeres construindo

um universo de processos educativos em ato em um fluxo contiacutenuo e intenso de convocaccedilotildees

desterritorializaccedilotildees e invenccedilotildees Uma segunda aproximaccedilatildeo eacute a de que processos de mudanccedila

satildeo estrateacutegias de resistecircncia e criaccedilatildeo vividos como paradoxo num mundo habitado pela

profusatildeo de praacuteticas cliacutenicas e pela profunda fragilizaccedilatildeo da vida (despotencializada para

conduzir processos de mudanccedila)

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Em torno dessas duas aproximaccedilotildees propomos constatar laccedilos e perspicaacutecias

colocamos a humanizaccedilatildeo em sauacutede sob essas lentes Humanizaccedilatildeo praacuteticas cuidadoras

integralidade projetos de felicidade redes de conversaccedilatildeo singularizaccedilatildeo biopotecircncia ou

afirmaccedilatildeo da vida convergem Entre laccedilos e perspicaacutecias o paradoxo e a disruptura

O corpo como sede dos oacutergatildeos e o corpo como encontro

Natildeo eacute estranho falarmos e identificarmos no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede

que as praacuteticas de cuidado estatildeo orientadas pela cliacutenica de um corpo sede dos oacutergatildeos ou por

uma cliacutenica do corpo de oacutergatildeos essa eacute a maneira com que cada uma das profissotildees de sauacutede

algumas desenhadas jaacute no seacuteculo XIX nas sociedades ocidentais pratica a cliacutenica e pensa o

cuidado Eacute com base nessa condiccedilatildeo que as profissotildees buscam distinguirshyse e organizar o seu

padratildeo de intervenccedilotildees para provocar a cura o que pode ocorrer em detrimento do promover a

terapecircutica (o sentirshyse cuidado) Mesmo que cada uma das profissotildees de sauacutede procure dar

sua marca ao campo de suas accedilotildees e mesmo que procurem oporshyse entre si na disputa por

territoacuterios privativos de intervenccedilatildeo isso muitas vezes natildeo ultrapassa a condiccedilatildeo de uma

praacutetica discursiva porque tratar com qualidade cuidar com integralidade ou escutar com

sensibilidade natildeo satildeo oposiccedilotildees e nem fragmentos autoshysuficientes Para provocar a cura natildeo

concorrem saberes em oposiccedilatildeo ou fragmentados e para promover a terapecircutica natildeo

convergem saberes parciais ou focados em padrotildees particulares

A distinccedilatildeo radical entre as profissotildees na esfera do cuidado do acolhimento do outro

da oferta de encontro para compreender processos de produccedilatildeo de sauacutede em realidade natildeo se

verifica O que se verifica eacute a fragmentaccedilatildeo da cura e do cuidado e a busca pelos usuaacuterios das

accedilotildees de sauacutede de praacuteticas natildeo apenas profissionais a fim de sentiremshyse cuidados eou

sentiremshyse curados Muitas vezes sob a denuacutencia profissional da natildeo adesatildeo agrave prescriccedilatildeo

natildeo adesatildeo agraves orientaccedilotildees natildeo adesatildeo agrave terapecircutica estaacute a denuacutencia da oferta fragmentada

particularizada e corrompida da cliacutenica

Seja na enfermagem na farmaacutecia na fisioterapia na fonoaudiologia na medicina na

nutriccedilatildeo na odontologia na psicologia na terapia ocupacional ou na recente educaccedilatildeo fiacutesica

o que temos visto eacute um modo de olhar os campos do tratamento cuidado e escuta como

fundamentados nas doenccedilas compreendidas como processos instalados de maneira patoloacutegica

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num corpo bioloacutegico de oacutergatildeos (a patologia disfuncionalizandoshyo) A intervenccedilatildeo

profissional aparece como a restauraccedilatildeo das funccedilotildees Quando se fala do lugar da sauacutede

puacuteblica que procura compreender a instalaccedilatildeo dos processos de adoecimento no plano das

populaccedilotildees para produzir intervenccedilotildees no acircmbito coletivo visando o controle dos

adoecimentos vecircshyse que o pano de fundo tambeacutem eacute essa mesma compreensatildeo do fenocircmeno

sauacutedeshydoenccedila a instalaccedilatildeo de patologias nos corpos bioloacutegicos Ainda que sejam introduzidos

novos elementos nesse olhar como por exemplo a distribuiccedilatildeo desigual do processo sauacutede e

doenccedila entre os vaacuterios grupos populacionais demarcados socialmente o ideal eacute o do

equiliacutebrio entre as funccedilotildees dos oacutergatildeos

A combinaccedilatildeo de saberes entre a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos e a epidemiologia deram

substacircncia como conhecimentoshyferramenta tecnoloacutegica para a conformaccedilatildeo de campos

produtivos em todos os lugares de construccedilatildeo dos processos de tratamento cuidado e escuta

inclusive de maneira dessemelhante uma vez que eacute muito grande a variabilidade de

composiccedilatildeo dos recursos de saber dentro de cada profissatildeo e mesmo dentro de cada campo de

accedilatildeo como ocorre por exemplo entre a medicina e a sauacutede puacuteblica Para construir o encontro

produtor de cuidado entretanto as maneiras muito distintas de cada saber ainda mais quando

aprisionados em profissotildees em oposiccedilatildeo ndash quanto aos campos do exerciacutecio profissional caem

em contradiccedilatildeo inviabilizam a integralidade negam a humanizaccedilatildeo

Ricardo Bruno Mendes Gonccedilalves (1994) nos levou a ver que mesmo dentro do

mesmo campo das accedilotildees profissionais de prestaccedilatildeo de cuidado o da medicina e o da

enfermagem por exemplo haacute diferenccedilas gritantes na composiccedilatildeo dos seus processos

produtivos a ponto de termos situaccedilotildees tatildeo diferenciadas de praacuteticas cliacutenicas de medicina e de

enfermagem por parte dos seus profissionais que ateacute parecem existir distintas ldquomedicinasrdquo e

ldquoenfermagensrdquo em seus fundamentos de base Mendes Gonccedilalves revela a existecircncia de

praacuteticas de meacutedicos nas quais a abordagem dos indiviacuteduos eacute tanto uma ritualiacutestica teacutecnica

onde a relaccedilatildeo meacutedicoshypaciente eacute elaborada mediante um complexo jogo de falas e escutas

como por uma relaccedilatildeo reduzida a um processo comunicativo do tipo queixashyconduta onde a

fala eacute miacutenima servindo somente como revelaccedilatildeo oral da sintomatologia que seraacute alvo de uma

intervenccedilatildeo via procedimentos curativos ou exploratoacuterios imediatos Contudo na base de

ambas as praacuteticas estaacute o mesmo foco o corpo bioloacutegico que se patologiza no plano individual

eou coletivo Por dentro dos saberes que estatildeo sendo operados como ferramentas para tais

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accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

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no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

18

alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

21

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

30

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33

invasivas) ou leveshyduras (as intervenccedilotildees cabalmente protocolares) de cuidado as quais

apenas o profissional deteacutem e justamente por elas se justifica (Merhy 1998 Ceccim 2004)

Novas intervenccedilotildees ndash ou intervenccedilotildees substitutivas ndash surgem das maneiras coletivas de se

construir configuraccedilotildees tecnoloacutegicas de cuidar

O desafio das apostas representadas pelo HumanizaSUS eacute maior por sua proposta de

reconstruir accedilotildees institucionais tendo os apoiadores das accedilotildees de mudanccedila a funccedilatildeo de

penetrar lugares recheados por intencionalidade e conseguir trazer o conjunto dos produtores

diretos do cuidado para uma situaccedilatildeo de debate dos seus agires fazendoshyos operar

intervenccedilotildees em si mesmos conduzindo as situaccedilotildees de trabalho para a construccedilatildeo do campo

singular da produccedilatildeo de sauacutede ou seja ativando a produccedilatildeo de encontro e a produccedilatildeo do

cuidar singular

Nessas apostas duplos encontros (trabalhadoresshytrabalhadores e trabalhadoresshy

usuaacuterios) exigem das formulaccedilotildees do HumanizaSUS processos de conduccedilatildeo que levem a

momentos de intensa singularizaccedilatildeo e quase nada de particularizaccedilatildeo ou seja natildeo basta que

apoiadores cheguem a esses encontros armados com ferramentas para neles atuar tomando o

outro como um caso a ser enfrentado e jaacute conhecido a priori instalando as praacuteticas

humanizadas Haacute que se colocar as ferramentas do agir do apoiador a serviccedilo de encontrosshy

acontecimento Esse desafio implica natildeo soacute colocar em anaacutelise a todo o tempo o modo de se

construir os encontros mas centralmente de expor para a visibilidade puacuteblica os agires

pedagoacutegicos e cuidadores que esses encontros contecircm

Para compreender isso em profundidade haacute que ficar atento Muitos que tambeacutem

apostam na mudanccedila das praacuteticas de sauacutede a vecircem como possibilidades inscritas em

encontros onde uns sabem criticamente o que os outros devem fazer e entatildeo natildeo contemplam

o desafio de ressingularizaccedilatildeo das praacuteticas mas a instalaccedilatildeo de boas praacuteticas Nessa forma de

entender e agir cada encontro eacute um momento particular de uma estrateacutegia geral que jaacute estaacute

dada a priori para ser realizada no momento em que o encontro acontece Natildeo eacute diferente do

modo como o proacuteprio modo hegemocircnico de se produzir sauacutede eacute realizado Esse modo que eacute

sempre o agir de um profissional de sauacutede que se legitima por ser o portador do saber em

sauacutede que o outro deve adotar ou incorporar vecirc o acontecimento do encontro mesmo que o

diga como cada caso eacute um caso como momento particular para o qual jaacute tem tudo preparado

Estamos diferindo singular (criaccedilatildeo) de particular (aperfeiccediloamento)

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Nos desafios do HumanizaSUS isso natildeo eacute apenas dilema e muito menos dialeacutetica

pois levado agraves uacuteltimas consequumlecircncias na praacutetica satildeo a sua proacutepria negaccedilatildeo como estrateacutegia

assessora natildeo a construccedilatildeo de superaccedilotildees Haacute aiacute uma implicaccedilatildeo fundamental toda arma que

o trabalhador tiver para operar encontros tem que estar a serviccedilo dos movimentos em ato de

que um encontro eacute portador natildeo o contraacuterio Suas ferramentas tecnoloacutegicas soacute seratildeo

efetivamente tecnologias singularizadoras como encontrosshyacontecimento Por isso natildeo haacute

nada faacutecil por ser feito haacute tensotildees e paradoxos mas que satildeo necessaacuterios para dar substacircncia a

aposta que o HumanizaSUS declara

Nesse texto trazemos para a discussatildeo algumas ideacuteias que podem ajudar a

compreenderproblematizar esse componente de singularidade que haacute nesse lugar onde o

cuidado eacute produzido e que natildeo permite que uma abordagem mais generalizadora lhe decirc conta

Tentamos mostrar que exatamente ali onde mais haacute captura eacute onde mais ocorrem

transversalidades capazes de linhas de fuga e capazes de operar transformaccedilotildees na delicadeza

de cada encontro ou nas proacuteprias linhas de fuga muitas vezes uacutenicas pois soacute para aqueles que

ali estatildeo operando os furos nas capturas fazem sentido Para o debate tomamos como grande

estiacutemulo o desafio apresentado por Deleuze quando nos convida a pensar a constituiccedilatildeo da

sociedade de controle (Deleuze 1992) nos vaacuterios planos da existecircncia e que

problematizaremos olhando para o mundo do trabalho em sauacutede e para a produccedilatildeo do

cuidado ali onde ele natildeo eacute esperado na capilaridade das relaccedilotildees cotidianas natildeo nas

assistecircncias profissionais na sua instacircncia formal de intervenccedilatildeo como procedimento

restaurador de funccedilotildees orgacircnicas

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede eacute um momento intensamente intercessor eacute a

produccedilatildeo de um dizershyse respeito em que a interaccedilatildeo promove praacuteticas de si nascidas para

cada agente em relaccedilatildeo produccedilatildeo de um ambienteshytempo comum ou cada vez mais comum

entre dois Um encontro onde de um jeito ou de outro dele esperam seus agentes a mesma

coisa que seja eficaz para resolver ou aplacar sofrimentos tidos como problemas de sauacutede Eacute

um momento que tem em si certos misteacuterios pela riqueza dos processos relacionais que

contecircm por ocorrer segundo razotildees muito diferenciadas e por natildeo ser apreendido por nenhum

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saber exclusivo

Que acontecimento eacute esse que se abre de modo tatildeo diacutespar como oportunidade para

processos de subjetivaccedilatildeo os mais variados num agir micropoliacutetico e pedagoacutegico intensos O

que pode ser construiacutedo em encontros muito diferenciados e operados por cuidadores de

muitas distintas formaccedilotildees e inserccedilotildees juntos ou natildeo Um encontro cuidador pode ser o

disparador de autopoieses Aqui nesse texto estamos dando partida a esse plano da

humanizaccedilatildeo ndash a construccedilatildeo de praacuteticas de sauacutede cuja contemporaneidade esteja na

atualizaccedilatildeo de processos intensivos de viver a vida Viver a vida natildeo apenas sobreviver ou

acima de tudo estar vivo apesar da ausecircncia de prazer de compartilhamento de potecircncia de

si e de produccedilatildeo de entornos criativos e audazes A potecircncia de si e de produccedilatildeo de entornos

criativos e audazes eacute o viver intensamente a invenccedilatildeo do vivo ou seja daquilo que afirma a

criaccedilatildeo ou que potildee a vida como obra de arte da existecircncia Nessa condiccedilatildeo o cuidar do outro

eacute operado por distintas modalidades de saber e fazer natildeo culmina com as praacuteticas particulares

das profissotildees das tecnologias do cuidado ou dos protocolos prolongashyse pela invenccedilatildeo de si

dos entornos de mundos Esta eacute uma pontuaccedilatildeo necessaacuteria no momento atual em que

vivemos onde a conformaccedilatildeo do campo da sauacutede nas sociedades mais ocidentalizadas vive

uma contemporaneidade do fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo e suas consequumlecircncias entre as quais

um perfil de prestaccedilatildeo do cuidado de formaccedilatildeo para o mesmo e de gestatildeo dos sistemas de

sauacutede para a oferta do cuidado no diashyashydia dos estabelecimentos de sauacutede

Trazemos para cena como primeira aproximaccedilatildeo a noccedilatildeo de que os encontros satildeo

micropoliacuteticos por estarem sempre abertos sob alteridades intercessoras (Merhy et al 1997

Ceccim 2005) sob distintas possibilidades de subjetivaccedilatildeo que podem caminhar de um

processo biopoliacutetico para um processo de biopotecircncia (Pelbart 2003) e da serializaccedilatildeo agrave

singularizaccedilatildeo (Guattari 2007 Guattari e Rolnik 1986) Aleacutem disso ndash e ao mesmo tempo ndash

os encontros na micropoliacutetica satildeo intensamente pedagoacutegicos operam ante as praacuteticas

inculcadorashomogenizadoras com trocas entre domiacutenios de saberes e fazeres construindo

um universo de processos educativos em ato em um fluxo contiacutenuo e intenso de convocaccedilotildees

desterritorializaccedilotildees e invenccedilotildees Uma segunda aproximaccedilatildeo eacute a de que processos de mudanccedila

satildeo estrateacutegias de resistecircncia e criaccedilatildeo vividos como paradoxo num mundo habitado pela

profusatildeo de praacuteticas cliacutenicas e pela profunda fragilizaccedilatildeo da vida (despotencializada para

conduzir processos de mudanccedila)

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Em torno dessas duas aproximaccedilotildees propomos constatar laccedilos e perspicaacutecias

colocamos a humanizaccedilatildeo em sauacutede sob essas lentes Humanizaccedilatildeo praacuteticas cuidadoras

integralidade projetos de felicidade redes de conversaccedilatildeo singularizaccedilatildeo biopotecircncia ou

afirmaccedilatildeo da vida convergem Entre laccedilos e perspicaacutecias o paradoxo e a disruptura

O corpo como sede dos oacutergatildeos e o corpo como encontro

Natildeo eacute estranho falarmos e identificarmos no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede

que as praacuteticas de cuidado estatildeo orientadas pela cliacutenica de um corpo sede dos oacutergatildeos ou por

uma cliacutenica do corpo de oacutergatildeos essa eacute a maneira com que cada uma das profissotildees de sauacutede

algumas desenhadas jaacute no seacuteculo XIX nas sociedades ocidentais pratica a cliacutenica e pensa o

cuidado Eacute com base nessa condiccedilatildeo que as profissotildees buscam distinguirshyse e organizar o seu

padratildeo de intervenccedilotildees para provocar a cura o que pode ocorrer em detrimento do promover a

terapecircutica (o sentirshyse cuidado) Mesmo que cada uma das profissotildees de sauacutede procure dar

sua marca ao campo de suas accedilotildees e mesmo que procurem oporshyse entre si na disputa por

territoacuterios privativos de intervenccedilatildeo isso muitas vezes natildeo ultrapassa a condiccedilatildeo de uma

praacutetica discursiva porque tratar com qualidade cuidar com integralidade ou escutar com

sensibilidade natildeo satildeo oposiccedilotildees e nem fragmentos autoshysuficientes Para provocar a cura natildeo

concorrem saberes em oposiccedilatildeo ou fragmentados e para promover a terapecircutica natildeo

convergem saberes parciais ou focados em padrotildees particulares

A distinccedilatildeo radical entre as profissotildees na esfera do cuidado do acolhimento do outro

da oferta de encontro para compreender processos de produccedilatildeo de sauacutede em realidade natildeo se

verifica O que se verifica eacute a fragmentaccedilatildeo da cura e do cuidado e a busca pelos usuaacuterios das

accedilotildees de sauacutede de praacuteticas natildeo apenas profissionais a fim de sentiremshyse cuidados eou

sentiremshyse curados Muitas vezes sob a denuacutencia profissional da natildeo adesatildeo agrave prescriccedilatildeo

natildeo adesatildeo agraves orientaccedilotildees natildeo adesatildeo agrave terapecircutica estaacute a denuacutencia da oferta fragmentada

particularizada e corrompida da cliacutenica

Seja na enfermagem na farmaacutecia na fisioterapia na fonoaudiologia na medicina na

nutriccedilatildeo na odontologia na psicologia na terapia ocupacional ou na recente educaccedilatildeo fiacutesica

o que temos visto eacute um modo de olhar os campos do tratamento cuidado e escuta como

fundamentados nas doenccedilas compreendidas como processos instalados de maneira patoloacutegica

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num corpo bioloacutegico de oacutergatildeos (a patologia disfuncionalizandoshyo) A intervenccedilatildeo

profissional aparece como a restauraccedilatildeo das funccedilotildees Quando se fala do lugar da sauacutede

puacuteblica que procura compreender a instalaccedilatildeo dos processos de adoecimento no plano das

populaccedilotildees para produzir intervenccedilotildees no acircmbito coletivo visando o controle dos

adoecimentos vecircshyse que o pano de fundo tambeacutem eacute essa mesma compreensatildeo do fenocircmeno

sauacutedeshydoenccedila a instalaccedilatildeo de patologias nos corpos bioloacutegicos Ainda que sejam introduzidos

novos elementos nesse olhar como por exemplo a distribuiccedilatildeo desigual do processo sauacutede e

doenccedila entre os vaacuterios grupos populacionais demarcados socialmente o ideal eacute o do

equiliacutebrio entre as funccedilotildees dos oacutergatildeos

A combinaccedilatildeo de saberes entre a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos e a epidemiologia deram

substacircncia como conhecimentoshyferramenta tecnoloacutegica para a conformaccedilatildeo de campos

produtivos em todos os lugares de construccedilatildeo dos processos de tratamento cuidado e escuta

inclusive de maneira dessemelhante uma vez que eacute muito grande a variabilidade de

composiccedilatildeo dos recursos de saber dentro de cada profissatildeo e mesmo dentro de cada campo de

accedilatildeo como ocorre por exemplo entre a medicina e a sauacutede puacuteblica Para construir o encontro

produtor de cuidado entretanto as maneiras muito distintas de cada saber ainda mais quando

aprisionados em profissotildees em oposiccedilatildeo ndash quanto aos campos do exerciacutecio profissional caem

em contradiccedilatildeo inviabilizam a integralidade negam a humanizaccedilatildeo

Ricardo Bruno Mendes Gonccedilalves (1994) nos levou a ver que mesmo dentro do

mesmo campo das accedilotildees profissionais de prestaccedilatildeo de cuidado o da medicina e o da

enfermagem por exemplo haacute diferenccedilas gritantes na composiccedilatildeo dos seus processos

produtivos a ponto de termos situaccedilotildees tatildeo diferenciadas de praacuteticas cliacutenicas de medicina e de

enfermagem por parte dos seus profissionais que ateacute parecem existir distintas ldquomedicinasrdquo e

ldquoenfermagensrdquo em seus fundamentos de base Mendes Gonccedilalves revela a existecircncia de

praacuteticas de meacutedicos nas quais a abordagem dos indiviacuteduos eacute tanto uma ritualiacutestica teacutecnica

onde a relaccedilatildeo meacutedicoshypaciente eacute elaborada mediante um complexo jogo de falas e escutas

como por uma relaccedilatildeo reduzida a um processo comunicativo do tipo queixashyconduta onde a

fala eacute miacutenima servindo somente como revelaccedilatildeo oral da sintomatologia que seraacute alvo de uma

intervenccedilatildeo via procedimentos curativos ou exploratoacuterios imediatos Contudo na base de

ambas as praacuteticas estaacute o mesmo foco o corpo bioloacutegico que se patologiza no plano individual

eou coletivo Por dentro dos saberes que estatildeo sendo operados como ferramentas para tais

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accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

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no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

13

disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

18

alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

21

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

23

diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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Nos desafios do HumanizaSUS isso natildeo eacute apenas dilema e muito menos dialeacutetica

pois levado agraves uacuteltimas consequumlecircncias na praacutetica satildeo a sua proacutepria negaccedilatildeo como estrateacutegia

assessora natildeo a construccedilatildeo de superaccedilotildees Haacute aiacute uma implicaccedilatildeo fundamental toda arma que

o trabalhador tiver para operar encontros tem que estar a serviccedilo dos movimentos em ato de

que um encontro eacute portador natildeo o contraacuterio Suas ferramentas tecnoloacutegicas soacute seratildeo

efetivamente tecnologias singularizadoras como encontrosshyacontecimento Por isso natildeo haacute

nada faacutecil por ser feito haacute tensotildees e paradoxos mas que satildeo necessaacuterios para dar substacircncia a

aposta que o HumanizaSUS declara

Nesse texto trazemos para a discussatildeo algumas ideacuteias que podem ajudar a

compreenderproblematizar esse componente de singularidade que haacute nesse lugar onde o

cuidado eacute produzido e que natildeo permite que uma abordagem mais generalizadora lhe decirc conta

Tentamos mostrar que exatamente ali onde mais haacute captura eacute onde mais ocorrem

transversalidades capazes de linhas de fuga e capazes de operar transformaccedilotildees na delicadeza

de cada encontro ou nas proacuteprias linhas de fuga muitas vezes uacutenicas pois soacute para aqueles que

ali estatildeo operando os furos nas capturas fazem sentido Para o debate tomamos como grande

estiacutemulo o desafio apresentado por Deleuze quando nos convida a pensar a constituiccedilatildeo da

sociedade de controle (Deleuze 1992) nos vaacuterios planos da existecircncia e que

problematizaremos olhando para o mundo do trabalho em sauacutede e para a produccedilatildeo do

cuidado ali onde ele natildeo eacute esperado na capilaridade das relaccedilotildees cotidianas natildeo nas

assistecircncias profissionais na sua instacircncia formal de intervenccedilatildeo como procedimento

restaurador de funccedilotildees orgacircnicas

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede

A produccedilatildeo em ato do cuidado em sauacutede eacute um momento intensamente intercessor eacute a

produccedilatildeo de um dizershyse respeito em que a interaccedilatildeo promove praacuteticas de si nascidas para

cada agente em relaccedilatildeo produccedilatildeo de um ambienteshytempo comum ou cada vez mais comum

entre dois Um encontro onde de um jeito ou de outro dele esperam seus agentes a mesma

coisa que seja eficaz para resolver ou aplacar sofrimentos tidos como problemas de sauacutede Eacute

um momento que tem em si certos misteacuterios pela riqueza dos processos relacionais que

contecircm por ocorrer segundo razotildees muito diferenciadas e por natildeo ser apreendido por nenhum

7

saber exclusivo

Que acontecimento eacute esse que se abre de modo tatildeo diacutespar como oportunidade para

processos de subjetivaccedilatildeo os mais variados num agir micropoliacutetico e pedagoacutegico intensos O

que pode ser construiacutedo em encontros muito diferenciados e operados por cuidadores de

muitas distintas formaccedilotildees e inserccedilotildees juntos ou natildeo Um encontro cuidador pode ser o

disparador de autopoieses Aqui nesse texto estamos dando partida a esse plano da

humanizaccedilatildeo ndash a construccedilatildeo de praacuteticas de sauacutede cuja contemporaneidade esteja na

atualizaccedilatildeo de processos intensivos de viver a vida Viver a vida natildeo apenas sobreviver ou

acima de tudo estar vivo apesar da ausecircncia de prazer de compartilhamento de potecircncia de

si e de produccedilatildeo de entornos criativos e audazes A potecircncia de si e de produccedilatildeo de entornos

criativos e audazes eacute o viver intensamente a invenccedilatildeo do vivo ou seja daquilo que afirma a

criaccedilatildeo ou que potildee a vida como obra de arte da existecircncia Nessa condiccedilatildeo o cuidar do outro

eacute operado por distintas modalidades de saber e fazer natildeo culmina com as praacuteticas particulares

das profissotildees das tecnologias do cuidado ou dos protocolos prolongashyse pela invenccedilatildeo de si

dos entornos de mundos Esta eacute uma pontuaccedilatildeo necessaacuteria no momento atual em que

vivemos onde a conformaccedilatildeo do campo da sauacutede nas sociedades mais ocidentalizadas vive

uma contemporaneidade do fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo e suas consequumlecircncias entre as quais

um perfil de prestaccedilatildeo do cuidado de formaccedilatildeo para o mesmo e de gestatildeo dos sistemas de

sauacutede para a oferta do cuidado no diashyashydia dos estabelecimentos de sauacutede

Trazemos para cena como primeira aproximaccedilatildeo a noccedilatildeo de que os encontros satildeo

micropoliacuteticos por estarem sempre abertos sob alteridades intercessoras (Merhy et al 1997

Ceccim 2005) sob distintas possibilidades de subjetivaccedilatildeo que podem caminhar de um

processo biopoliacutetico para um processo de biopotecircncia (Pelbart 2003) e da serializaccedilatildeo agrave

singularizaccedilatildeo (Guattari 2007 Guattari e Rolnik 1986) Aleacutem disso ndash e ao mesmo tempo ndash

os encontros na micropoliacutetica satildeo intensamente pedagoacutegicos operam ante as praacuteticas

inculcadorashomogenizadoras com trocas entre domiacutenios de saberes e fazeres construindo

um universo de processos educativos em ato em um fluxo contiacutenuo e intenso de convocaccedilotildees

desterritorializaccedilotildees e invenccedilotildees Uma segunda aproximaccedilatildeo eacute a de que processos de mudanccedila

satildeo estrateacutegias de resistecircncia e criaccedilatildeo vividos como paradoxo num mundo habitado pela

profusatildeo de praacuteticas cliacutenicas e pela profunda fragilizaccedilatildeo da vida (despotencializada para

conduzir processos de mudanccedila)

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Em torno dessas duas aproximaccedilotildees propomos constatar laccedilos e perspicaacutecias

colocamos a humanizaccedilatildeo em sauacutede sob essas lentes Humanizaccedilatildeo praacuteticas cuidadoras

integralidade projetos de felicidade redes de conversaccedilatildeo singularizaccedilatildeo biopotecircncia ou

afirmaccedilatildeo da vida convergem Entre laccedilos e perspicaacutecias o paradoxo e a disruptura

O corpo como sede dos oacutergatildeos e o corpo como encontro

Natildeo eacute estranho falarmos e identificarmos no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede

que as praacuteticas de cuidado estatildeo orientadas pela cliacutenica de um corpo sede dos oacutergatildeos ou por

uma cliacutenica do corpo de oacutergatildeos essa eacute a maneira com que cada uma das profissotildees de sauacutede

algumas desenhadas jaacute no seacuteculo XIX nas sociedades ocidentais pratica a cliacutenica e pensa o

cuidado Eacute com base nessa condiccedilatildeo que as profissotildees buscam distinguirshyse e organizar o seu

padratildeo de intervenccedilotildees para provocar a cura o que pode ocorrer em detrimento do promover a

terapecircutica (o sentirshyse cuidado) Mesmo que cada uma das profissotildees de sauacutede procure dar

sua marca ao campo de suas accedilotildees e mesmo que procurem oporshyse entre si na disputa por

territoacuterios privativos de intervenccedilatildeo isso muitas vezes natildeo ultrapassa a condiccedilatildeo de uma

praacutetica discursiva porque tratar com qualidade cuidar com integralidade ou escutar com

sensibilidade natildeo satildeo oposiccedilotildees e nem fragmentos autoshysuficientes Para provocar a cura natildeo

concorrem saberes em oposiccedilatildeo ou fragmentados e para promover a terapecircutica natildeo

convergem saberes parciais ou focados em padrotildees particulares

A distinccedilatildeo radical entre as profissotildees na esfera do cuidado do acolhimento do outro

da oferta de encontro para compreender processos de produccedilatildeo de sauacutede em realidade natildeo se

verifica O que se verifica eacute a fragmentaccedilatildeo da cura e do cuidado e a busca pelos usuaacuterios das

accedilotildees de sauacutede de praacuteticas natildeo apenas profissionais a fim de sentiremshyse cuidados eou

sentiremshyse curados Muitas vezes sob a denuacutencia profissional da natildeo adesatildeo agrave prescriccedilatildeo

natildeo adesatildeo agraves orientaccedilotildees natildeo adesatildeo agrave terapecircutica estaacute a denuacutencia da oferta fragmentada

particularizada e corrompida da cliacutenica

Seja na enfermagem na farmaacutecia na fisioterapia na fonoaudiologia na medicina na

nutriccedilatildeo na odontologia na psicologia na terapia ocupacional ou na recente educaccedilatildeo fiacutesica

o que temos visto eacute um modo de olhar os campos do tratamento cuidado e escuta como

fundamentados nas doenccedilas compreendidas como processos instalados de maneira patoloacutegica

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num corpo bioloacutegico de oacutergatildeos (a patologia disfuncionalizandoshyo) A intervenccedilatildeo

profissional aparece como a restauraccedilatildeo das funccedilotildees Quando se fala do lugar da sauacutede

puacuteblica que procura compreender a instalaccedilatildeo dos processos de adoecimento no plano das

populaccedilotildees para produzir intervenccedilotildees no acircmbito coletivo visando o controle dos

adoecimentos vecircshyse que o pano de fundo tambeacutem eacute essa mesma compreensatildeo do fenocircmeno

sauacutedeshydoenccedila a instalaccedilatildeo de patologias nos corpos bioloacutegicos Ainda que sejam introduzidos

novos elementos nesse olhar como por exemplo a distribuiccedilatildeo desigual do processo sauacutede e

doenccedila entre os vaacuterios grupos populacionais demarcados socialmente o ideal eacute o do

equiliacutebrio entre as funccedilotildees dos oacutergatildeos

A combinaccedilatildeo de saberes entre a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos e a epidemiologia deram

substacircncia como conhecimentoshyferramenta tecnoloacutegica para a conformaccedilatildeo de campos

produtivos em todos os lugares de construccedilatildeo dos processos de tratamento cuidado e escuta

inclusive de maneira dessemelhante uma vez que eacute muito grande a variabilidade de

composiccedilatildeo dos recursos de saber dentro de cada profissatildeo e mesmo dentro de cada campo de

accedilatildeo como ocorre por exemplo entre a medicina e a sauacutede puacuteblica Para construir o encontro

produtor de cuidado entretanto as maneiras muito distintas de cada saber ainda mais quando

aprisionados em profissotildees em oposiccedilatildeo ndash quanto aos campos do exerciacutecio profissional caem

em contradiccedilatildeo inviabilizam a integralidade negam a humanizaccedilatildeo

Ricardo Bruno Mendes Gonccedilalves (1994) nos levou a ver que mesmo dentro do

mesmo campo das accedilotildees profissionais de prestaccedilatildeo de cuidado o da medicina e o da

enfermagem por exemplo haacute diferenccedilas gritantes na composiccedilatildeo dos seus processos

produtivos a ponto de termos situaccedilotildees tatildeo diferenciadas de praacuteticas cliacutenicas de medicina e de

enfermagem por parte dos seus profissionais que ateacute parecem existir distintas ldquomedicinasrdquo e

ldquoenfermagensrdquo em seus fundamentos de base Mendes Gonccedilalves revela a existecircncia de

praacuteticas de meacutedicos nas quais a abordagem dos indiviacuteduos eacute tanto uma ritualiacutestica teacutecnica

onde a relaccedilatildeo meacutedicoshypaciente eacute elaborada mediante um complexo jogo de falas e escutas

como por uma relaccedilatildeo reduzida a um processo comunicativo do tipo queixashyconduta onde a

fala eacute miacutenima servindo somente como revelaccedilatildeo oral da sintomatologia que seraacute alvo de uma

intervenccedilatildeo via procedimentos curativos ou exploratoacuterios imediatos Contudo na base de

ambas as praacuteticas estaacute o mesmo foco o corpo bioloacutegico que se patologiza no plano individual

eou coletivo Por dentro dos saberes que estatildeo sendo operados como ferramentas para tais

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accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

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no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

17

construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

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alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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Referecircncias

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33

saber exclusivo

Que acontecimento eacute esse que se abre de modo tatildeo diacutespar como oportunidade para

processos de subjetivaccedilatildeo os mais variados num agir micropoliacutetico e pedagoacutegico intensos O

que pode ser construiacutedo em encontros muito diferenciados e operados por cuidadores de

muitas distintas formaccedilotildees e inserccedilotildees juntos ou natildeo Um encontro cuidador pode ser o

disparador de autopoieses Aqui nesse texto estamos dando partida a esse plano da

humanizaccedilatildeo ndash a construccedilatildeo de praacuteticas de sauacutede cuja contemporaneidade esteja na

atualizaccedilatildeo de processos intensivos de viver a vida Viver a vida natildeo apenas sobreviver ou

acima de tudo estar vivo apesar da ausecircncia de prazer de compartilhamento de potecircncia de

si e de produccedilatildeo de entornos criativos e audazes A potecircncia de si e de produccedilatildeo de entornos

criativos e audazes eacute o viver intensamente a invenccedilatildeo do vivo ou seja daquilo que afirma a

criaccedilatildeo ou que potildee a vida como obra de arte da existecircncia Nessa condiccedilatildeo o cuidar do outro

eacute operado por distintas modalidades de saber e fazer natildeo culmina com as praacuteticas particulares

das profissotildees das tecnologias do cuidado ou dos protocolos prolongashyse pela invenccedilatildeo de si

dos entornos de mundos Esta eacute uma pontuaccedilatildeo necessaacuteria no momento atual em que

vivemos onde a conformaccedilatildeo do campo da sauacutede nas sociedades mais ocidentalizadas vive

uma contemporaneidade do fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo e suas consequumlecircncias entre as quais

um perfil de prestaccedilatildeo do cuidado de formaccedilatildeo para o mesmo e de gestatildeo dos sistemas de

sauacutede para a oferta do cuidado no diashyashydia dos estabelecimentos de sauacutede

Trazemos para cena como primeira aproximaccedilatildeo a noccedilatildeo de que os encontros satildeo

micropoliacuteticos por estarem sempre abertos sob alteridades intercessoras (Merhy et al 1997

Ceccim 2005) sob distintas possibilidades de subjetivaccedilatildeo que podem caminhar de um

processo biopoliacutetico para um processo de biopotecircncia (Pelbart 2003) e da serializaccedilatildeo agrave

singularizaccedilatildeo (Guattari 2007 Guattari e Rolnik 1986) Aleacutem disso ndash e ao mesmo tempo ndash

os encontros na micropoliacutetica satildeo intensamente pedagoacutegicos operam ante as praacuteticas

inculcadorashomogenizadoras com trocas entre domiacutenios de saberes e fazeres construindo

um universo de processos educativos em ato em um fluxo contiacutenuo e intenso de convocaccedilotildees

desterritorializaccedilotildees e invenccedilotildees Uma segunda aproximaccedilatildeo eacute a de que processos de mudanccedila

satildeo estrateacutegias de resistecircncia e criaccedilatildeo vividos como paradoxo num mundo habitado pela

profusatildeo de praacuteticas cliacutenicas e pela profunda fragilizaccedilatildeo da vida (despotencializada para

conduzir processos de mudanccedila)

8

Em torno dessas duas aproximaccedilotildees propomos constatar laccedilos e perspicaacutecias

colocamos a humanizaccedilatildeo em sauacutede sob essas lentes Humanizaccedilatildeo praacuteticas cuidadoras

integralidade projetos de felicidade redes de conversaccedilatildeo singularizaccedilatildeo biopotecircncia ou

afirmaccedilatildeo da vida convergem Entre laccedilos e perspicaacutecias o paradoxo e a disruptura

O corpo como sede dos oacutergatildeos e o corpo como encontro

Natildeo eacute estranho falarmos e identificarmos no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede

que as praacuteticas de cuidado estatildeo orientadas pela cliacutenica de um corpo sede dos oacutergatildeos ou por

uma cliacutenica do corpo de oacutergatildeos essa eacute a maneira com que cada uma das profissotildees de sauacutede

algumas desenhadas jaacute no seacuteculo XIX nas sociedades ocidentais pratica a cliacutenica e pensa o

cuidado Eacute com base nessa condiccedilatildeo que as profissotildees buscam distinguirshyse e organizar o seu

padratildeo de intervenccedilotildees para provocar a cura o que pode ocorrer em detrimento do promover a

terapecircutica (o sentirshyse cuidado) Mesmo que cada uma das profissotildees de sauacutede procure dar

sua marca ao campo de suas accedilotildees e mesmo que procurem oporshyse entre si na disputa por

territoacuterios privativos de intervenccedilatildeo isso muitas vezes natildeo ultrapassa a condiccedilatildeo de uma

praacutetica discursiva porque tratar com qualidade cuidar com integralidade ou escutar com

sensibilidade natildeo satildeo oposiccedilotildees e nem fragmentos autoshysuficientes Para provocar a cura natildeo

concorrem saberes em oposiccedilatildeo ou fragmentados e para promover a terapecircutica natildeo

convergem saberes parciais ou focados em padrotildees particulares

A distinccedilatildeo radical entre as profissotildees na esfera do cuidado do acolhimento do outro

da oferta de encontro para compreender processos de produccedilatildeo de sauacutede em realidade natildeo se

verifica O que se verifica eacute a fragmentaccedilatildeo da cura e do cuidado e a busca pelos usuaacuterios das

accedilotildees de sauacutede de praacuteticas natildeo apenas profissionais a fim de sentiremshyse cuidados eou

sentiremshyse curados Muitas vezes sob a denuacutencia profissional da natildeo adesatildeo agrave prescriccedilatildeo

natildeo adesatildeo agraves orientaccedilotildees natildeo adesatildeo agrave terapecircutica estaacute a denuacutencia da oferta fragmentada

particularizada e corrompida da cliacutenica

Seja na enfermagem na farmaacutecia na fisioterapia na fonoaudiologia na medicina na

nutriccedilatildeo na odontologia na psicologia na terapia ocupacional ou na recente educaccedilatildeo fiacutesica

o que temos visto eacute um modo de olhar os campos do tratamento cuidado e escuta como

fundamentados nas doenccedilas compreendidas como processos instalados de maneira patoloacutegica

9

num corpo bioloacutegico de oacutergatildeos (a patologia disfuncionalizandoshyo) A intervenccedilatildeo

profissional aparece como a restauraccedilatildeo das funccedilotildees Quando se fala do lugar da sauacutede

puacuteblica que procura compreender a instalaccedilatildeo dos processos de adoecimento no plano das

populaccedilotildees para produzir intervenccedilotildees no acircmbito coletivo visando o controle dos

adoecimentos vecircshyse que o pano de fundo tambeacutem eacute essa mesma compreensatildeo do fenocircmeno

sauacutedeshydoenccedila a instalaccedilatildeo de patologias nos corpos bioloacutegicos Ainda que sejam introduzidos

novos elementos nesse olhar como por exemplo a distribuiccedilatildeo desigual do processo sauacutede e

doenccedila entre os vaacuterios grupos populacionais demarcados socialmente o ideal eacute o do

equiliacutebrio entre as funccedilotildees dos oacutergatildeos

A combinaccedilatildeo de saberes entre a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos e a epidemiologia deram

substacircncia como conhecimentoshyferramenta tecnoloacutegica para a conformaccedilatildeo de campos

produtivos em todos os lugares de construccedilatildeo dos processos de tratamento cuidado e escuta

inclusive de maneira dessemelhante uma vez que eacute muito grande a variabilidade de

composiccedilatildeo dos recursos de saber dentro de cada profissatildeo e mesmo dentro de cada campo de

accedilatildeo como ocorre por exemplo entre a medicina e a sauacutede puacuteblica Para construir o encontro

produtor de cuidado entretanto as maneiras muito distintas de cada saber ainda mais quando

aprisionados em profissotildees em oposiccedilatildeo ndash quanto aos campos do exerciacutecio profissional caem

em contradiccedilatildeo inviabilizam a integralidade negam a humanizaccedilatildeo

Ricardo Bruno Mendes Gonccedilalves (1994) nos levou a ver que mesmo dentro do

mesmo campo das accedilotildees profissionais de prestaccedilatildeo de cuidado o da medicina e o da

enfermagem por exemplo haacute diferenccedilas gritantes na composiccedilatildeo dos seus processos

produtivos a ponto de termos situaccedilotildees tatildeo diferenciadas de praacuteticas cliacutenicas de medicina e de

enfermagem por parte dos seus profissionais que ateacute parecem existir distintas ldquomedicinasrdquo e

ldquoenfermagensrdquo em seus fundamentos de base Mendes Gonccedilalves revela a existecircncia de

praacuteticas de meacutedicos nas quais a abordagem dos indiviacuteduos eacute tanto uma ritualiacutestica teacutecnica

onde a relaccedilatildeo meacutedicoshypaciente eacute elaborada mediante um complexo jogo de falas e escutas

como por uma relaccedilatildeo reduzida a um processo comunicativo do tipo queixashyconduta onde a

fala eacute miacutenima servindo somente como revelaccedilatildeo oral da sintomatologia que seraacute alvo de uma

intervenccedilatildeo via procedimentos curativos ou exploratoacuterios imediatos Contudo na base de

ambas as praacuteticas estaacute o mesmo foco o corpo bioloacutegico que se patologiza no plano individual

eou coletivo Por dentro dos saberes que estatildeo sendo operados como ferramentas para tais

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accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

11

no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

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alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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Em torno dessas duas aproximaccedilotildees propomos constatar laccedilos e perspicaacutecias

colocamos a humanizaccedilatildeo em sauacutede sob essas lentes Humanizaccedilatildeo praacuteticas cuidadoras

integralidade projetos de felicidade redes de conversaccedilatildeo singularizaccedilatildeo biopotecircncia ou

afirmaccedilatildeo da vida convergem Entre laccedilos e perspicaacutecias o paradoxo e a disruptura

O corpo como sede dos oacutergatildeos e o corpo como encontro

Natildeo eacute estranho falarmos e identificarmos no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede

que as praacuteticas de cuidado estatildeo orientadas pela cliacutenica de um corpo sede dos oacutergatildeos ou por

uma cliacutenica do corpo de oacutergatildeos essa eacute a maneira com que cada uma das profissotildees de sauacutede

algumas desenhadas jaacute no seacuteculo XIX nas sociedades ocidentais pratica a cliacutenica e pensa o

cuidado Eacute com base nessa condiccedilatildeo que as profissotildees buscam distinguirshyse e organizar o seu

padratildeo de intervenccedilotildees para provocar a cura o que pode ocorrer em detrimento do promover a

terapecircutica (o sentirshyse cuidado) Mesmo que cada uma das profissotildees de sauacutede procure dar

sua marca ao campo de suas accedilotildees e mesmo que procurem oporshyse entre si na disputa por

territoacuterios privativos de intervenccedilatildeo isso muitas vezes natildeo ultrapassa a condiccedilatildeo de uma

praacutetica discursiva porque tratar com qualidade cuidar com integralidade ou escutar com

sensibilidade natildeo satildeo oposiccedilotildees e nem fragmentos autoshysuficientes Para provocar a cura natildeo

concorrem saberes em oposiccedilatildeo ou fragmentados e para promover a terapecircutica natildeo

convergem saberes parciais ou focados em padrotildees particulares

A distinccedilatildeo radical entre as profissotildees na esfera do cuidado do acolhimento do outro

da oferta de encontro para compreender processos de produccedilatildeo de sauacutede em realidade natildeo se

verifica O que se verifica eacute a fragmentaccedilatildeo da cura e do cuidado e a busca pelos usuaacuterios das

accedilotildees de sauacutede de praacuteticas natildeo apenas profissionais a fim de sentiremshyse cuidados eou

sentiremshyse curados Muitas vezes sob a denuacutencia profissional da natildeo adesatildeo agrave prescriccedilatildeo

natildeo adesatildeo agraves orientaccedilotildees natildeo adesatildeo agrave terapecircutica estaacute a denuacutencia da oferta fragmentada

particularizada e corrompida da cliacutenica

Seja na enfermagem na farmaacutecia na fisioterapia na fonoaudiologia na medicina na

nutriccedilatildeo na odontologia na psicologia na terapia ocupacional ou na recente educaccedilatildeo fiacutesica

o que temos visto eacute um modo de olhar os campos do tratamento cuidado e escuta como

fundamentados nas doenccedilas compreendidas como processos instalados de maneira patoloacutegica

9

num corpo bioloacutegico de oacutergatildeos (a patologia disfuncionalizandoshyo) A intervenccedilatildeo

profissional aparece como a restauraccedilatildeo das funccedilotildees Quando se fala do lugar da sauacutede

puacuteblica que procura compreender a instalaccedilatildeo dos processos de adoecimento no plano das

populaccedilotildees para produzir intervenccedilotildees no acircmbito coletivo visando o controle dos

adoecimentos vecircshyse que o pano de fundo tambeacutem eacute essa mesma compreensatildeo do fenocircmeno

sauacutedeshydoenccedila a instalaccedilatildeo de patologias nos corpos bioloacutegicos Ainda que sejam introduzidos

novos elementos nesse olhar como por exemplo a distribuiccedilatildeo desigual do processo sauacutede e

doenccedila entre os vaacuterios grupos populacionais demarcados socialmente o ideal eacute o do

equiliacutebrio entre as funccedilotildees dos oacutergatildeos

A combinaccedilatildeo de saberes entre a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos e a epidemiologia deram

substacircncia como conhecimentoshyferramenta tecnoloacutegica para a conformaccedilatildeo de campos

produtivos em todos os lugares de construccedilatildeo dos processos de tratamento cuidado e escuta

inclusive de maneira dessemelhante uma vez que eacute muito grande a variabilidade de

composiccedilatildeo dos recursos de saber dentro de cada profissatildeo e mesmo dentro de cada campo de

accedilatildeo como ocorre por exemplo entre a medicina e a sauacutede puacuteblica Para construir o encontro

produtor de cuidado entretanto as maneiras muito distintas de cada saber ainda mais quando

aprisionados em profissotildees em oposiccedilatildeo ndash quanto aos campos do exerciacutecio profissional caem

em contradiccedilatildeo inviabilizam a integralidade negam a humanizaccedilatildeo

Ricardo Bruno Mendes Gonccedilalves (1994) nos levou a ver que mesmo dentro do

mesmo campo das accedilotildees profissionais de prestaccedilatildeo de cuidado o da medicina e o da

enfermagem por exemplo haacute diferenccedilas gritantes na composiccedilatildeo dos seus processos

produtivos a ponto de termos situaccedilotildees tatildeo diferenciadas de praacuteticas cliacutenicas de medicina e de

enfermagem por parte dos seus profissionais que ateacute parecem existir distintas ldquomedicinasrdquo e

ldquoenfermagensrdquo em seus fundamentos de base Mendes Gonccedilalves revela a existecircncia de

praacuteticas de meacutedicos nas quais a abordagem dos indiviacuteduos eacute tanto uma ritualiacutestica teacutecnica

onde a relaccedilatildeo meacutedicoshypaciente eacute elaborada mediante um complexo jogo de falas e escutas

como por uma relaccedilatildeo reduzida a um processo comunicativo do tipo queixashyconduta onde a

fala eacute miacutenima servindo somente como revelaccedilatildeo oral da sintomatologia que seraacute alvo de uma

intervenccedilatildeo via procedimentos curativos ou exploratoacuterios imediatos Contudo na base de

ambas as praacuteticas estaacute o mesmo foco o corpo bioloacutegico que se patologiza no plano individual

eou coletivo Por dentro dos saberes que estatildeo sendo operados como ferramentas para tais

10

accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

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no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

18

alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

20

morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

21

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

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num corpo bioloacutegico de oacutergatildeos (a patologia disfuncionalizandoshyo) A intervenccedilatildeo

profissional aparece como a restauraccedilatildeo das funccedilotildees Quando se fala do lugar da sauacutede

puacuteblica que procura compreender a instalaccedilatildeo dos processos de adoecimento no plano das

populaccedilotildees para produzir intervenccedilotildees no acircmbito coletivo visando o controle dos

adoecimentos vecircshyse que o pano de fundo tambeacutem eacute essa mesma compreensatildeo do fenocircmeno

sauacutedeshydoenccedila a instalaccedilatildeo de patologias nos corpos bioloacutegicos Ainda que sejam introduzidos

novos elementos nesse olhar como por exemplo a distribuiccedilatildeo desigual do processo sauacutede e

doenccedila entre os vaacuterios grupos populacionais demarcados socialmente o ideal eacute o do

equiliacutebrio entre as funccedilotildees dos oacutergatildeos

A combinaccedilatildeo de saberes entre a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos e a epidemiologia deram

substacircncia como conhecimentoshyferramenta tecnoloacutegica para a conformaccedilatildeo de campos

produtivos em todos os lugares de construccedilatildeo dos processos de tratamento cuidado e escuta

inclusive de maneira dessemelhante uma vez que eacute muito grande a variabilidade de

composiccedilatildeo dos recursos de saber dentro de cada profissatildeo e mesmo dentro de cada campo de

accedilatildeo como ocorre por exemplo entre a medicina e a sauacutede puacuteblica Para construir o encontro

produtor de cuidado entretanto as maneiras muito distintas de cada saber ainda mais quando

aprisionados em profissotildees em oposiccedilatildeo ndash quanto aos campos do exerciacutecio profissional caem

em contradiccedilatildeo inviabilizam a integralidade negam a humanizaccedilatildeo

Ricardo Bruno Mendes Gonccedilalves (1994) nos levou a ver que mesmo dentro do

mesmo campo das accedilotildees profissionais de prestaccedilatildeo de cuidado o da medicina e o da

enfermagem por exemplo haacute diferenccedilas gritantes na composiccedilatildeo dos seus processos

produtivos a ponto de termos situaccedilotildees tatildeo diferenciadas de praacuteticas cliacutenicas de medicina e de

enfermagem por parte dos seus profissionais que ateacute parecem existir distintas ldquomedicinasrdquo e

ldquoenfermagensrdquo em seus fundamentos de base Mendes Gonccedilalves revela a existecircncia de

praacuteticas de meacutedicos nas quais a abordagem dos indiviacuteduos eacute tanto uma ritualiacutestica teacutecnica

onde a relaccedilatildeo meacutedicoshypaciente eacute elaborada mediante um complexo jogo de falas e escutas

como por uma relaccedilatildeo reduzida a um processo comunicativo do tipo queixashyconduta onde a

fala eacute miacutenima servindo somente como revelaccedilatildeo oral da sintomatologia que seraacute alvo de uma

intervenccedilatildeo via procedimentos curativos ou exploratoacuterios imediatos Contudo na base de

ambas as praacuteticas estaacute o mesmo foco o corpo bioloacutegico que se patologiza no plano individual

eou coletivo Por dentro dos saberes que estatildeo sendo operados como ferramentas para tais

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accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

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no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

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alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

19

para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

21

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

27

vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

30

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accedilotildees estaacute o olhar que torna sempre visiacutevel apenas o corpo de oacutergatildeos e que anima a

construccedilatildeo de certas formas do agir cliacutenico em detrimento de outras O particular suprime a

demanda pelo singular protegeshyse o exerciacutecio das profissotildees em detrimento do acolhimento

do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam)

Essa constataccedilatildeo ou a construccedilatildeo dessa modelagem de praacuteticas natildeo eacute oacutebvia nem

imediata Essa modelagem foi processada nas sociedades ocidentais (europeacuteias centralmente)

durante seacuteculos e foi se desenhando como a maneira mais comum de se olhar para o

adoecimento humano como processo de patologizaccedilatildeo do corpo bioloacutegico Modelagem que

se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres acumulandoregistrando um potencial de

imposiccedilatildeo de valor Dois pensadores pelo menos nos mostram isso de forma muito efetiva

Michel Foucault com ldquoO Nascimento da Cliacutenicardquo (2004) e Madel Luz com ldquoNatural

Racional Social Razatildeo Meacutedica e Racionalidade Cientiacutefica Modernardquo (2004)

Com esses autores podemos ver como foi dura a disputa entre os diferentes ldquopraacuteticosrdquo

do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades regimes de verdade

legitimidade Disputas que ocorreram no plano epistemoloacutegico no interior das organizaccedilotildees e

estabelecimentos considerados lugares de cuidado em sauacutede e na vida em sociedade ateacute o

alcance da institucionalizaccedilatildeo do modo ldquocertordquo de ver a vida e o mundo humano Esse modo

certo passou a sershynos revelado em oposiccedilatildeo aos modos distintos fossem as formas legiacutetimas

antecedentes ou as formas designadas por contraposiccedilatildeo como desarrazoadas

Roberto Machado (2006) fala da trajetoacuteria investigativa de Foucault como uma

arqueologia do olhar pois Foucault revela como esse processo se fez no momento histoacuterico e

social em que se instala ali na cotidianidade do fazer certa forma de olhar o corpo adoecido

O corpo de lugar agraves sensaccedilotildees passou a lugar fiacutesico da existecircncia das lesotildees orgacircnicas

(corporais em qualquer niacutevel oacutergatildeos tecidos ou ceacutelulas) que deveriam ser visualizadas para

possibilitar a compreensatildeo dos processos de adoecimento e desse modo compreender corpo

sauacutede doenccedila tratamento e cura

No longo processo do seacuteculo XVIII para o XIX em vaacuterios lugares da Europa

cuidadores meacutedicos aos quais depois se agregaram cuidadores de enfermagem e enfermeiros

profissionais vatildeo com suas praacuteticas instituindo essa loacutegica simboacutelica e imaginaacuteria

(institucionalizandoshyse dentro dela) a loacutegica de que o processo sauacutede e doenccedila eacute localizaacutevel

11

no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

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alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

30

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33

no corpo de oacutergatildeos expressandoshyse pela disfunccedilatildeo dos mesmos provocada pela ldquolesatildeordquo

detectaacutevel no niacutevel mais basal da constituiccedilatildeo do corpo dos oacutergatildeos agraves ceacutelulas A cliacutenica que aiacute

se acopla eacute aquela que permite ver nos sinais e sintomas o acesso aos quadros lesivos

patoloacutegicos base dos adoecimentos e do conhecimento em sauacutede (o domiacutenio da

anatomocliacutenica agrave fisiopatologia) Esse processo social praacutetico e discursivo quando se institui

de maneira hegemocircnica como modo de se fazer o cuidado em sauacutede e de compreender o

processo sauacutede e doenccedila passa a produzir intensa subjetivaccedilatildeo nos vaacuterios grupos sociais

aleacutem da formaccedilatildeo de seus proacuteprios militantes os novos profissionais de sauacutede em particular

meacutedicos e enfermeiros De modo imaginaacuterio e institucional a sociedade vai se medicalizando

em um processo de muacutetua constituiccedilatildeo entre as sociedades capitalistas europeacuteias e essa nova

forma de se cuidar da sauacutede e da doenccedila como estudou Maria Ceciacutelia Ferro Donnacircngelo

(Donnacircngelo 1975 Donnacircngelo e Pereira 1976) Donnacircngelo nos mostrou que o processo de

medicalizaccedilatildeo se tornou fortemente normalizador dos fenocircmenos individuais e coletivos da

vida em sociedade aleacutem de fornecer novas significaccedilotildees para a existecircncia de vaacuterios

problemas sociais como a fome e a pobreza entre outros convertidos em fisiopatologia e

passiacuteveis de terapecircutica meacutedica A autora contribuiu para distinguir esse processo de outro o

da medicamentalizaccedilatildeo que foi a introduccedilatildeo da prescriccedilatildeo medicamentosa como o agir

terapecircutico predominante

Foucault nos alertou em vaacuterios momentos e de forma densa e profunda corroborado

por autores rigorosos e dedicados como Roberto Machado [ver Danaccedilatildeo da Norma (Machado

et al 1978)] e Madel Luz [ver Instituiccedilatildeo e Estrateacutegia de Hegemonia (Luz 1986)] que esse

processo de construccedilatildeo de um novo territoacuterio de saber no campo da sauacutede ndash o do corpo

bioloacutegico como objeto do saber meacutedico natildeo pode ser lido como um processo de ampliaccedilatildeo do

conhecimento racional e cientiacutefico ndash natildeo significou um ganho de terreno dos homens sobre a

natureza mas a hegemonizaccedilatildeo de uma dentre muitas possibilidades imaginaacuterias e simboacutelicas

de os homens construiacuterem representaccedilatildeo sobre os fenocircmenos da sauacutede e doenccedila produzindo

sentidos com pretensatildeo de verdades Mesmo que esse processo seja construiacutedo de forma

discursiva como sendo a conquista da ciecircncia dos homens haacute que se olhar com certa

perspicaacutecia para essa situaccedilatildeo

Um cruzamento especialmente produtivo agrave racionalidade cientiacutefica moderna se deu

com o sistema de pensamento profissional da sauacutede a instituiccedilatildeo da ciecircncia meacutedica como

12

saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

13

disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

14

modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

15

coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

16

1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

17

construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

18

alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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saber em sauacutede medicalizaccedilatildeo biopoliacutetica ou razatildeo meacutedica Esse cruzamento do

pensamento cientiacutefico com a razatildeo meacutedica colocou o pensamento em sauacutede e suas vaacuterias

racionalidades no operar do cuidado ou da cura sob a mesma loacutegica de saber a do corpo de

oacutergatildeos Ficando como um certo misteacuterio o encontro produtor de cuidado O misteacuterio do

encontro ndash presente no cuidado usuaacuterioshycentrado dependente do contato com a alteridade e

por isso natildeo normalizadonatildeo regulado pelas forccedilas externas ndash estaacute em que mesmo sob

loacutegicas idecircnticas de pensamento racional pode gerar praacuteticas bem distintas O saber natildeo eacute de

fato o elemento determinante das praacuteticas mas seu componente estando submetido aos

processos em ato da cliacutenica que se oferece como acolhimento O misteacuterio do encontro estaacute nos

intercessores que a construccedilatildeo em ato do cuidado potildee em cena A observaccedilatildeo sobre a

integralidade da atenccedilatildeo ou a anaacutelise sobre a humanizaccedilatildeo na produccedilatildeo de sauacutede pode

promover essa visibilidade e ampliar a potecircncia dos encontros tornando o cuidado mais

exigente com aquilo que produz do que discutir quais meios de produccedilatildeo ldquodurosrdquo e

ldquoestruturadosrdquo utiliza ou pode utilizar para o agir em sauacutede Isso deve criar em quem pensa a

mudanccedila das praacuteticas de sauacutede no miacutenimo certa ocupaccedilatildeo da atenccedilatildeo com a educaccedilatildeo

permanente em sauacutede da gestatildeo do sistema de sauacutede com a gestatildeo da educaccedilatildeo dos

profissionais de sauacutede da atenccedilatildeo gestatildeo educaccedilatildeo com a participaccedilatildeo social e natildeo apenas o

desenho da diacuteade gestatildeoshyatenccedilatildeo em sauacutede

O cuidado como componente antishycapitaliacutestico

Apesar de verificarmos que a noccedilatildeo de corpo de oacutergatildeos eacute um dos lugares fundantes

desses longos processos de que vimos falando como construccedilatildeo discursiva e de pretensatildeo de

verdade as nossas sociedades tecircm vivido e continuaratildeo a viver intensos processos de

disruptura da mesma forma que estiveram presentes na instalaccedilatildeo desse saber como

hegemocircnico Olhando com delicadeza podemos ver que existem disputas de praacuteticas e

inuacutemeras linhas de fuga pedindo passagem Eacute como se pudeacutessemos preparar o nosso olhar

para ver natildeo apenas o mundo dado instituiacutedo mas tambeacutem os mundos se dando os

instituintes O que vai acontecendo insidiosamente nos cotidianos satildeo praacuteticas de invenccedilatildeo

do cuidado acopladas em praacuteticas hegemocircnicas Grosso modo podemos nos deparar com

dois movimentos mais visiacuteveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexotildees um

plano racionalshycognitivo e um plano imaginalshyafetivo No primeiro a captura ou

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

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alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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Referecircncias

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disrupturasingularizaccedilatildeo pelo conhecimento a razatildeo a elaboraccedilatildeo interpretativa e no

segundo a captura ou disrupturasingularizaccedilatildeo pelo sensiacutevel a afecccedilatildeo a tomada do

inconsciente (os imaginaacuterios)

O primeiro movimento estaacute marcado por um confronto expliacutecito de campos de saberes

como o que nega a existecircncia do corpo bioloacutegico como foi construiacutedo imaginaacuteria e

simbolicamente ao afirmar que o corpo eacute subjetivaccedilatildeo e natildeo bioloacutegico que ele eacute

potencialidade e representaccedilatildeo de modos de existecircncia que por diferentes modos seratildeo

qualificadas como normais ou natildeo Poreacutem no fundo isso eacute sempre um impor de uns sobre

outros pois modos de existecircncia tomados como anormais ou patoloacutegicos seratildeo sempre

produtos da construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder entre distintos poderosos pois ningueacutem estaacute em

situaccedilatildeo absoluta de impotecircncia Nesse movimento a disputa eacute claramente definida por visotildees

significantes bem distintas Disputashyse natildeo soacute o modo de se construir socialmente o que eacute um

problema para a produccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede mas o modo como enfrentaacuteshylo abrindoshyse

um franco confronto sobre ao que se refere esse campo de problematizaccedilatildeo e a quem interessa

um ou outro olhar Nesse movimento explicitashyse que haacute uma disputa pelo saber fazer e pelo

fundamento da ciecircncia que lhe daacute substacircncia Eacute uma luta no campo da poliacutetica e do

conhecimento

O segundo movimento eacute aquele que se dispara de dentro do campo simboacutelico e

imaginaacuterio o dos afetos e que vai se construindo nas fissuras do hegemocircnico nos seus

vazios nos seus conflitos e contradiccedilotildees Se insurge por onde as respostas natildeo estatildeo prontas

ou natildeo satildeo mais aceitas onde haacute resistecircncia ante o que temos ou ante o instituiacutedo e por isso

ousamos criamos fazemos com o natildeoshysaber com a pergunta com o desejo Lugar

fortemente produtivo e que aparece de modo muito evidente em situaccedilotildees sociais e histoacutericas

nas quais os vaacuterios grupos sociais implicados com o mesmo campo de praacuteticas emergem natildeo

soacute operandoshyo mas disputandoshyo de diferentes lugares situacionais atravessandoshyo por vaacuterios

outros focos de interesses a ponto de minaacuteshylo por dentro na accedilatildeo Tecnologias do imaginaacuterio

(Machado da Silva 2003 Ceccim et al 2008) entretanto operam permanentemente a captura

do afetivo promovendo impulsos para a accedilatildeo eacute quando esforccedilos conceituais viram meras

palavras de ordem e quando sensaccedilotildees satildeo traduzidas em significados para os quais a resposta

estaacute aguardando

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos se desdobram um no outro de

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

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alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

21

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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modo muito evidente Por isso aqui natildeo se daacute um valor claro ou mais positivo a um

qualquer desses processos pois parece que ambos natildeo pedem licenccedila para ocorrer e muito

menos nos satildeo dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro Podem ocupar

lugares diferenciados ou mesmo um emergir no outro Por exemplo no Brasil de hoje esse

segundo movimento eacute muito rico e presente na sociedade como um todo na medida em que a

complexificaccedilatildeo do campo de disputa social proacuteprio da sauacutede vem permitindo a expliacutecita luta

de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo abrindoshyo para a

apariccedilatildeo do primeiro movimento no seu interior

Feacutelix Guattari em ldquoAs trecircs ecologiasrdquo (Guattari 2007) nos daacute um forte exemplo

disso inclusive sob o formato de um manifesto poliacutetico e social que conclama a todos para

uma maacutequina de guerra a produccedilatildeo da vida na diferenccedila no diferirshyse de si mesmo em um

campo de relaccedilotildees sociais e histoacutericas operando subjetivaccedilotildees antishycapitaliacutesticas ativando

territoacuterios desejantes mundo em produccedilatildeo versus o modo de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestico que

opera o viver de uns com a produccedilatildeo da morte dos (e nos) outros Um forte manifesto contra

os modos capitaliacutesticos de se produzir as vidas nas sociedades contemporacircneas capturadas e

serializadas onde a produccedilatildeo do desejo opera a construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais ambientais e

intersubjetivas predatoacuterias Eacute o manifesto pela ressingularizaccedilatildeo permanente de todas as

coisas serviccedilos de sauacutede instituiccedilotildees de formaccedilatildeo cidades Essas relaccedilotildees marcadas

nuclearmente por uma loacutegica ao extremo de uso utilitarista do outro somente poderatildeo ter

como consequumlecircncia a destruiccedilatildeo da possibilidade de qualquer forma de vida na Terra como

um todo a longo prazo Natildeo haacute como manter o vivo sem afirmar a vida

Com Guattari procuramos agregar desde agora um desafio aos movimentos de

mudanccedila seu componente antishycapitaliacutestico eacute o da autopoiese resultante de processos

apoiadores que bancam a autoshyanaacutelise e a autogestatildeo das praacuteticas sociais nos vaacuterios coletivos

em accedilatildeo Esse ldquocomponente antishycapitaliacutesticordquo seria a possiacutevel identificaccedilatildeo da existecircncia de

modos de agir e realizar as accedilotildees sociais que contemplam o disparo e o agenciamento de

novas possibilidades subjetivas nos coletivos sociais implicados com processos de produccedilatildeo

da vida sem restriccedilotildees nas suas singularidades Seria a construccedilatildeo de modos de vida e

trabalho pautados pelas relaccedilotildees solidaacuterias e vivificantes dos modos de ser nos quais a

pluralidade seria expressatildeo da vitalidade desejante e natildeo ameaccedila a uacutenica eacutetica seria a do agir

na direccedilatildeo de favorecer a autopoiese do viver solidaacuterio nas diferenciaccedilotildees individuais e

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coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

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alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

21

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

30

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33

coletivas

A tentativa de ver essas questotildees em foco em situaccedilotildees concretas no momento atual da

sauacutede na sociedade brasileira seraacute daqui para frente o nosso interesse nesse material Para

isso utilizaremos como analisadores que nos permitam expor esses processos concretos o

gerenciamento do cuidado a proposta de uma cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos e a evidecircncia

contemporacircnea de uma cliacutenica do corpo exshyoacutergatildeos (sem oacutergatildeos do mesmo modo que se diz

exangue sem sangue sem forccedilas deacutebil exausto) Haacute o esforccedilo de mostrar como estamos

todos os implicados com o campo da produccedilatildeo do cuidado colocados diante de uma agenda

de lutas sofisticada pelo fato de nela estar em operaccedilatildeo de modo natildeo muito claro e expliacutecito

o confronto entre os vaacuterios modos de subjetivaccedilatildeo capitaliacutestica e o seu contraacuterio ali na

cotidianidade como paradoxo Ali onde haacute captura haacute disruptura e portanto singularizaccedilatildeo

Haacute o ordenamento profissional e a ordem dos encontros haacute as condiccedilotildees do trabalho e as

condiccedilotildees da interaccedilatildeo o paradoxo se torna a oportunidade de inventar as praacuteticas cuidadoras

no plano individual e coletivo em cada estabelecimento de sauacutede ou seu equivalente

Medicalizaccedilatildeo medicamentalizaccedilatildeo e corpo sem oacutergatildeos

Como artifiacutecio facilitador vamos nos debruccedilar sobre os processos de reforma no

campo da produccedilatildeo do cuidado na sociedade americana e na brasileira nas uacuteltimas deacutecadas

Faremos isso de um modo muito incompleto e superficial poreacutem de forma a revelar o que

vimos pautando ateacute agora e suas seacuterias questotildees para os modelos de cuidado em uma cliacutenica

jaacute sem a necessidade dos oacutergatildeos um corpo exshyoacutergatildeos porque pretendido sob o controle de sua

produccedilatildeo um corpo que natildeo requer propriocepccedilatildeo apenas consumo de sauacutede Os militantes

desse corpo as atuais profissotildees de sauacutede

Jaacute nos anos 1990 percebemos que os processos de construccedilatildeo do cuidado em sauacutede

vinham dando sinais de um processo de reestruturaccedilatildeo produtiva de tipo diferente do que

classicamente conheciacuteamos (Ricardo Bruno 1994 Denise Pires 1998 Iriart Waitzkin e

Merhy 1998 Iriart Waitzkin e Merhy 2004) Compreender o que significavam as mudanccedilas

nas formas de se produzir em sauacutede passava tambeacutem pelo proacuteprio entendimento de quais eram

as ferramentas de produccedilatildeo do cuidado Para quem concebe essas ferramentas como

ldquoequipamentosinstrumentosrdquo territoacuterio de tecnologias duras (Merhy et al 1997 Merhy

16

1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

17

construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

18

alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

27

vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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1998) vecircshyse nas reestruturaccedilotildees produtivas os momentos em que certas maacutequinas

substituem outras ou se agregam a outras na produccedilatildeo do cuidado e aiacute olham para esse

processo como o uacutenico lugar a dar conta de inovaccedilotildees nos processos produtivos sem se dar

conta que o elemento mediador de qualquer accedilatildeo tecnoloacutegica eacute o campo dos processos

intercessores que os encontros cuidadores constituem

Eacute o caso dos que falam em incorporaccedilatildeo tecnoloacutegica desde o ponto de vista dos

equipamentos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico ou de tecnologias armadas Nos diagnoacutesticos

por imagem a incorporaccedilatildeo do tomoacutegrafo quando antes tiacutenhamos o raioshyx ou da ressonacircncia

magneacutetica como o recurso mais atual Mesmo reconhecendo que a introduccedilatildeo de novas

maacutequinas trazem novos procedimentos elas natildeo satildeo substitutivas mas agregativas o que sob

certos modos de se produzir o cuidado vai tornar os custos reais desse processo um grande

problema em si Jaacute aqueles que consideram que as ferramentas vatildeo muito aleacutem das

tecnologias duras (ou armadas) como eacute o caso dos saberes tecnoloacutegicos da cliacutenica (tratar

cuidar escutar) e da epidemiologia (interpretar prever) tatildeo bem revelados por Ricardo Bruno

o processo de reestruturaccedilatildeo produtiva vai por caminhos mais sutis Mudanccedilas nas formas de

construir a cliacutenica como forma de produzir o cuidado passam a gerar novos mecanismos

produtivos do cuidado natildeo bastando olhar apenas a presenccedila e introduccedilatildeo de novas maacutequinas

e seus procedimentos coadjuvantes mas tambeacutem a accedilatildeo efetiva dos saberes de construccedilatildeo do

cuidado ferramentas tecnoloacutegicas no processo de trabalho Podeshyse entatildeo falar em

reestruturaccedilatildeo produtiva quando a cliacutenica do profissional de sauacutede adquire o formato de um

processo queixashyconduta ou quando adquire o formato de rede de conversaccedilatildeo (Teixeira

2003) A esses territoacuterios tecnoloacutegicos Merhy denominou como das tecnologias leveshyduras ou

das tecnologias leves

Quando consideramos que as ferramentas tecnoloacutegicas de invenccedilatildeo do cuidado vatildeo

tambeacutem para aleacutem das tecnologias duras e leveshyduras reconhecemos na construccedilatildeo dos

processos relacionais que acontecem no ato de produccedilatildeo do cuidado um lugar intercessor do

agir tecnoloacutegico em sauacutede Desse modo a loacutegica da reestruturaccedilatildeo produtiva pode sair do que

tecnicamente se vecirc como componente do ato produtivo de sauacutede em si e se abrir para as

modificaccedilotildees no campo da gestatildeo do processo de trabalho em sauacutede O proacuteprio mundo da

construccedilatildeo da gestatildeo do cuidado em sauacutede passa a ser visto sob esse acircngulo e entatildeo um novo

territoacuterio de visibilidade aparece no campo da problematizaccedilatildeo o das mudanccedilas produtivas na

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

18

alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

19

para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

20

morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

21

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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construccedilatildeo do cuidado como o que se configura no terreno da gestatildeo do processo de

trabalho produtor de cuidado em sauacutede Sem querer ficar com nenhum desses lugares como o

mais correto ou cientiacutefico deles ficamos com todos e ainda apontamos que agrave semelhanccedila do

que vimos falando sobre a construccedilatildeo da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos agora estamos inseridos

tambeacutem em uma disputa de construccedilatildeo de novas loacutegicas de gestatildeo do cuidado em sauacutede e do

desenho de um novo campo para a cliacutenica a do corpo sem oacutergatildeos e a presenccedila do corpo na

ausecircncia dos oacutergatildeos (corpo exshyoacutergatildeos ou corpo com os oacutergatildeos do lado de fora)

Nos Estados Unidos ndash paiacutes onde de modo evidente a organizaccedilatildeo das praacuteticas de sauacutede

se daacute sob o ordenamento do mercado em sauacutede havendo como acircngulos de interesse tanto o

das profissotildees de sauacutede com forte domiacutenio dos meacutedicos que se posicionam como

ldquocomerciantesshyprodutoresrdquo do cuidado em sauacutede quanto o das empresas de sauacutede e de

medicamentos e equipamentos diagnoacutesticos e terapecircuticos que se vecircem como qualquer

campo de aplicaccedilatildeo do capital industrial e financeiro ndash mostrashyse melhor do que em qualquer

outro paiacutes que haacute uma emergecircncia de novas possibilidades no interior da proacutepria organizaccedilatildeo

capitalista de se produzir o cuidado A apariccedilatildeo do managed care e a construccedilatildeo do viver

como risco de adoecer que nos parecem colocar tudo isso de um modo muito evidente

Ceacutelia B Iriart (Iriart 1999 Iriart e Waitzkin 2000 e 2001) professora e pesquisadora

da Universidade do Novo Meacutexico (EUA) conduziu vaacuterias investigaccedilotildees sobre o processo do

managed care permitindo entendecircshylo como um processo de entrada do capital financeiro no

campo da produccedilatildeo da sauacutede trazendo novos modos de visualizar os processos produtivos no

campo de construccedilatildeo do cuidado por dentro das praacuteticas capitalistas Assim tomar os grupos

na sua dinacircmica de possiacutevel risco de adoecer e cuidar para que isso natildeo ocorra passa a

orientar os focos de interesses desses novos atores sociais ndash representados pelos distintos

grupos sociais implicados com a realizaccedilatildeo do capital financeiro e instituiacutedo no interior das

grandes corporaccedilotildees de gerenciamento dos seguros e planos de sauacutede americanos ndash como um

dos disputadores de peso na construccedilatildeo do cuidado em sauacutede Com o tempo a induacutestria de

medicamentos aliashyse a esse olhar natildeo mais para visar ao corpo doente e a ser curado mas ao

corpo saudaacutevel que deve ser tratado (preventivamente) para natildeo adoecer para natildeo correr o

risco de ter que consumir atos de sauacutede custosos conforme o interesse daquelas corporaccedilotildees

que ao contraacuterio do modelo meacutedicoshyhegemocircnico do corpo de oacutergatildeos natildeo ambiciona o uso

intensivo de atos profissionais de sauacutede em particular dos atos dos meacutedicos especialistas de

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alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

27

vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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33

alto custo

Surgem maciccedilamente medicamentos para manter a normalidade do corpo bioloacutegico o

risco de adoecer passa a ser medicamentalizado Surgem as preocupaccedilotildees de empresas de

seguro e planos de sauacutede pela promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo e pela produccedilatildeo de novos haacutebitos de vida

que pudessem minorar os processos de adoecimento A medicalizaccedilatildeo social fica

intensamente mais sofisticada Antes a patologizaccedilatildeo de certos sofrimentos sob a oacutetica do

modelo meacutedicoshyhegemocircnico da cliacutenica do corpo de oacutergatildeos com a finalidade de se tornarem

objetos de cuidados individuais e coletivos consumidores de inuacutemeros atos profissionais de

sauacutede centrados em tecnologias duras e que tambeacutem se tornavam objetos de estrateacutegias

disciplinares das profissotildees claacutessicas da sauacutede e da sauacutede puacuteblica em geral Agora sob a

cliacutenica de um corpo que natildeo tem oacutergatildeos a serem perscrutados e tratados abreshyse ndash para o

olhar que patologiza os modos de viver a vida individuais e coletivos ndash um corpo exshyoacutergatildeos

(corpo sem sintomas com os oacutergatildeos do lado de fora oacutergatildeos como forccedila externa) Por isso

nessas circunstacircncias sob o foco do proacuteprio capital financeiro as vaacuterias formas de gestatildeo do

cuidado que pode ser produzido pelos mecanismos centrados nas profissotildees e seus

procedimentos disciplinares bem como o objeto patoloacutegico que eacute tomado para si passam a

ser campos de interesse e de accedilatildeo desse novo modo de operar a construccedilatildeo do mercado em

sauacutede tendo no managed care sua forma de expressatildeo mais sofisticada

No bojo desse processo um universo novo de patologias vai sendo construiacutedo natildeo

mais as do corpo de oacutergatildeos que ainda persistem mas agora sob um outro formato a do corpo

exshyoacutergatildeos que subsume a outra ou seja incorporashya submetendoshya Por exemplo haacute um

processo de medicalizaccedilatildeo bem sofisticado comer certos alimentos passa a ser visto como

risco andar ou natildeo tambeacutem brincar de certo jeito ou outro tambeacutem ser uma crianccedila agitada

eacute hiperatividade viver a afliccedilatildeo com a miacutedia das violecircncias eacute siacutendrome do pacircnico fumar eacute

matarshyse entrar na adolescecircncia eacute agudizar riscos e por aiacute vai o potencial de situaccedilotildees

patologizantes

Iriart vem nos alertando sobre esses movimentos e sobre as novas estrateacutegias

produtivas de cuidado inclusive com intensa medicamentalizaccedilatildeo (Iriart 2008) e que nos

coloca diante natildeo soacute da reestruturaccedilatildeo produtiva mas de uma forte transiccedilatildeo tecnoloacutegica do

campo da sauacutede (Merhy e Franco 2006) Para esses processos natildeo eacute indiferente se o cuidado

eacute produzido para curar uma doenccedila para impedir o adoecimento para alterar sensaccedilotildees ou

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para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

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que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

22

das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

23

diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

25

medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

28

na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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33

para mudar comportamentos nem mesmo os caminhos produtivos adotados pelos

trabalhadores de sauacutede para isso acontecer O que regula esse processo em termos de foco de

interesse eacute a produccedilatildeo do lucro da empresa capitalista no mercado de sauacutede

O managed care como uma forma especiacutefica de tomar a gestatildeo do processo de

produccedilatildeo do cuidado como seu objeto operando uma reconstruccedilatildeo do lugar do saber do

profissional e do exerciacutecio da sua autonomia decisoacuteria sobre o agir tecnoloacutegico em sauacutede a ser

produzido passa a ser nuclear para essa transiccedilatildeo tecnoloacutegica Encontra expressatildeo na forccedila

econocircmica e social dos grupos implicados com o capital financeiro Dominar no cotidiano do

processo de trabalho em sauacutede o trabalho vivo em ato da equipe (Merhy 2002) impotildee modos

de adoccedilatildeo dos saberes tecnoloacutegicos na direccedilatildeo do controle do saudaacutevel gerindo os riscos do

adoecer

Eacute interessante observar que os meacutedicos e os enfermeiros continuam a ser estrateacutegicos

mas natildeo atuam mais de maneira central como ocorria na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos

dependente de um padratildeo de procedimentos que requeria hospitais e ambulatoacuterios Agora sob

novo desenho o que se pretende eacute regulaacuteshylos ali onde exerciam de modo fragmentado seus

atos produtivos estatildeo colocados sob a eacutegide produtiva do cuidado gerido em rede sob a oacutetica

dominante de uma cliacutenica do corpo independente de seus oacutergatildeos Agora o que interessa eacute agir

de modo integrado e protocolado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes

vinculados agrave produccedilatildeo dos modos de existecircncia sob o tacatildeo do olhar do risco de adoecer e

morrer A alianccedila estreita entre fazer uma nova forma de gestatildeo do cuidado para impedir a

autonomia do exerciacutecio dos trabalhadores de sauacutede e a cliacutenica exshyoacutergatildeos vem reposicionar e

produzir de modo mais conservador as estrateacutegias disciplinares dos momentos anteriores

Vem agora operar uma cliacutenica sem o limite disciplinar do corpo de oacutergatildeos uma atuaccedilatildeo

dirigida agrave produccedilatildeo do desejo ali onde se modulam as formas de viver Vecircm agregarshyse

estrateacutegias de controle sobre os modos de cuidar de si

Tudo isso ocorre absorvendo ateacute certo ponto o modo de agir do campo da cliacutenica do

corpo de oacutergatildeos agora subsumida e natildeo mais como territoacuterio imperativo de ordenamento das

praacuteticas e das profissotildees de sauacutede Estas vecircm indicando sinais de transiccedilatildeo tambeacutem mesmo

que os desenhos mais definitivos ainda natildeo estejam claros Um dos grandes resultados desse

processo todo eacute gerar modificaccedilotildees profundas no interior da sociedade capitalista dentro dos

mesmos eixos capitaliacutesticos de maneira que o modo de viver de uns se daacute sobre a produccedilatildeo da

20

morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

21

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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morte dosnos outros Os dois movimentos o racional e o afetivo apontados como

caminhos para as mudanccedilas se dobram mas de modo a conservar o eixo imaginaacuterio e

simboacutelico de subjetivaccedilatildeo dos indiviacuteduos e dos coletivos humanos dentro de um projeto

societaacuterio cujo devir pode ser e segundo Guattari seraacute o fim da vida em toda sua amplitude

inclusive a nossa vida sob a forma humana

Seraacute que esse processo vivido tatildeo agudamente pela sociedade americana associado

aos projetos expansivos e neocolonizadores do neoliberalismo se dissemina de maneira

imperativa para o resto dos lugares para fora daquelas fronteiras Essa eacute uma boa questatildeo a

ser visitada Uma vez que natildeo se estima a superaccedilatildeo resultante do jogo de forccedilas da dialeacutetica

nos deparamos com o paradoxo coreografia das forccedilas ou seja viver na ausecircncia dos riscos

o que tambeacutem eacute um morrer ou viver intensamente e portanto viver sob risco e arriscarshyse de

morrer Qual o cuidado de sauacutede que queremos diante do paradoxo do viver

O cuidado resistecircncia e criaccedilatildeo

Em uma de suas leituras sobre a obra de Foucault Deleuze (2005) tira proveito das

ofertas que esse pensador fez sobre a construccedilatildeo de relaccedilotildees de poder nas sociedades

contemporacircneas tomandoshyas como operadoras microfiacutesicas esquadrinhamento em suas

loacutegicas estrateacutegicas o que permitiria esboccedilar tipos de diagramas de poder tais como

soberano disciplinar e de controle Aponta que para aquele autor poder natildeo eacute algo que estaacute

dado desde fora em alguma estrutura mas sempre nas relaccedilotildees em ato agindo entre Portanto

sempre em processos de resistecircncia e criaccedilatildeo

Haacute uma distinccedilatildeo importante nessas biopoliacuteticas ou seja nesse agir sobre os corpos e

suas formas de existecircncia O poder soberano opera como divindade com direitos ilimitados

sobre os suacuteditos o poder disciplinar opera por biopoderes nos quais a emergecircncia das

praacuteticas de sauacutede seratildeo um dos componentes fundamentais (mas natildeo uacutenico eacute soacute lembrar das

escolas e das prisotildees entre outras) sob o manto da sauacutede puacuteblica e da cliacutenica de oacutergatildeos jaacute o

poder de controle opera na regulaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos do viver cotidiano Na sauacutede sob

essas modalidades de exerciacutecios do poder os mecanismos centrais seratildeo de construccedilatildeo de

estrateacutegias que visam agir sobre a construccedilatildeo do viver do morrer e do desejar a partir de seus

locais de intervenccedilatildeo De posse dessas ideacuteiasshyconceito ou imagens podeshyse perguntar seraacute

21

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

30

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33

que hoje o que estaacute em foco na sauacutede eacute a submissatildeo da vida ou eacute a afirmaccedilatildeo da vida

Essa interrogaccedilatildeo permiteshynos trazer de volta a noccedilatildeo do componente antishy

capitaliacutestico das praacuteticas de sauacutede e abrir o olhar para procurar ver exatamente onde operam

estrateacutegias de biopoder e como e quais linhas de fuga pedem passagem ou interessa serem

exploradas para se dar outros sentidos agraves praacuteticas de sauacutede individuais e coletivas De que

modo no interior do agir adepto dos poderes soberano disciplinar e do controle nos seus

imperativos de governar a vida gerir a vida e produzir a vida podeshyse desenhar uma outra

biopoliacutetica que aponte para as suas biopotecircncias possibilitando novas formas de construccedilatildeo

do viver coletivo autopoieacutetico e solidaacuterio dentro de um novo modo eacutetico (da vida como eixo)

e esteacutetico (do conversar em rede e do atuar em conjunto como estrateacutegia) que permitam um

devir totalmente distinto daquele para o qual o componente capitaliacutestico estaacute nos levando

As profissotildees de sauacutede que foram forjadas como operadoras e construtoras de

biopoliacuteticas disciplinarizadoras manejando fortes biopoderes como a cliacutenica do corpo de

oacutergatildeos e as praacuteticas da sauacutede puacuteblica estatildeo no fio da navalha entre um processo de produccedilatildeo

de vida e um processo de controle sobre a produccedilatildeo da vida Podem operar nessa zona de

fronteira entre o limite da captura e o da singularizaccedilatildeo Habitar essa fronteira poderaacute abrir

fissuras com certeza interessantes para se abrir linhas de fuga no campo da sauacutede com as

proacuteprias praacuteticas de sauacutede distanciandoshyse dos modos hegemocircnicos capitaliacutesticos como a

profunda medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo da vida individual e coletiva natildeo mais

produzindo a serializaccedilatildeo nos modos de desejar e produzir a vida

Em lugar de normalizar a vida os trabalhadores de sauacutede podem participar da

produccedilatildeo da vida ali onde cada um pode gerar um cuidar de si natildeo para construir um jeito

protocolar de viver mas para construir seu modo original de viver Essa seria uma cliacutenica do

corpo sem oacutergatildeos onde cada indiviacuteduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em

redes de fluxos em redes intercessoras em efeitos de encontro No fio da navalha entretanto

na zona de fronteira uma outra proposta de corpo sem oacutergatildeos o corpo sem forccedilas deacutebil

desvitalizado (exshyoacutergatildeos) para o qual se oferta o controle da alimentaccedilatildeo o controle da

atividade fiacutesica o controle da sexualidade o controle dos niacuteveis de estresse alimentosshy

remeacutedio exerciacuteciosshysauacutede relacionamentosshycalmante lazeresshydescarga etc sem necessidade

de buscar o comum ou todos satildeo iguais de maneira identitaacuteria ou todos satildeo diferentes de

modos isolados como unidades de cidadania e natildeo coletivos em condiccedilatildeo de reconhecimento

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

28

na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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Referecircncias

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MACHADO Roberto Foucault a ciecircncia e o saber 3 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006

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PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

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das condiccedilotildees que afetam a vida das pessoas por promoccedilatildeo ou bloqueio e perante as quais

tecircm implicaccedilatildeo

Vale a pena aceitar o convite deleuziano para se olhar para os lugares em que

produzimos as relaccedilotildees humanas dandoshylhes visibilidade buscando apurar uma certa

perspicaacutecia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropoliacuteticas que estatildeo agindo no

mundo da produccedilatildeo social do desejo desfazendo os instituiacutedos As praacuteticas de cuidado

ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivecircncias em forma de sensaccedilatildeo

sintoma afliccedilatildeo sofrimento e doenccedila que buscam cuidado profissional de sauacutede Tirando

proveito dessa perspicaacutecia o paradoxo abre novas formas de realizar a biopoliacutetica no campo

da produccedilatildeo do cuidado Natildeo temos duacutevida de que aqui pelo Brasil esse processo eacute muito

rico

O cuidado potecircncias e afirmaccedilatildeo da vida

Vamos abrir nosso campo de visibilidade para o Brasil de hoje nesses anos 2000 e

olhar o campo de disputa nos territoacuterios de produccedilatildeo do cuidado em sauacutede sob vaacuterios acircngulos

mas em particular sob o da gestatildeo do processo de produccedilatildeo do cuidado e das novas estrateacutegias

de accedilatildeo que os trabalhadores de sauacutede vecircm vivenciando e disputando mesmo sem consciecircncia

niacutetida sobre isso

Antes de mais nada vamos reconhecer que aqui neste paiacutes atuam muito mais grupos

de interesses com potecircncias sociais e poliacuteticas para jogar no campo da sauacutede de modo

diversificado do que em alguns outros lugares como por exemplo os Estados Unidos Eacute

como se disseacutessemos parodiando uma certa teoria poliacutetica a nossa sociedade civil singular

do campo da sauacutede eacute muito mais complexa do que se poderia supor tomando como medida a

americana O que nos remete a ver o alargamento de disputas e praacuteticas de institucionalizaccedilatildeo

dos modos de produzir o cuidado que se apresenta de maneira bem mais muacuteltipla e

diversificada

Para nos ajudar vamos olhar situaccedilotildees vivenciadas no cotidiano onde operam as accedilotildees

estrateacutegicas de controle o que pode aguccedilar nossa perspicaacutecia para abrir novas visibilidades

sobre o mundo do trabalho em sauacutede em alguns lugares das redes de cuidado que nos colocam

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diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

30

Referecircncias

CASTELLO Joseacute Poesia na penumbra Literatura Bravo (Satildeo Paulo) set 2007

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CECCIM Ricardo Burg ARMANI Teresa Borgert OLIVEIRA Dora Luacutecia Leidens Correa de BILIBIO Luiz Fernando MORAES Mauriacutecio e DARTORA SANTOS Naiane Imaginaacuterios da formaccedilatildeo em sauacutede no Brasil e os horizontes da regulaccedilatildeo em sauacutede suplementar Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1567shy1578

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DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro e PEREIRA Luiz Sauacutede e sociedade Satildeo Paulo Duas Cidades 1976

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro Medicina e sociedade o meacutedico e seu mercado de trabalho Satildeo Paulo Pioneira 1975

FOUCAULT Michel O nascimento da cliacutenica 6 ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2004

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IRIART Ceacutelia Capital financiero versus complejo meacutedicoshyindustrial los desafiacuteos de las agencias regulatorias Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1619shy1626

31

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LUZ Madel As instituiccedilotildees meacutedicas no Brasil instituiccedilatildeo e estrateacutegia de hegemonia 3 ed Rio de Janeiro Graal 1986

MACHADO da SILVA Juremir As tecnologias do imaginaacuterio Porto Alegre Sulina 2003

MACHADO Roberto Foucault a ciecircncia e o saber 3 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006

MACHADO Roberto LOUREIRO Acircngela LUZ Rogeacuterio e MURICY Katia Danaccedilatildeo da norma a medicina social e constituiccedilatildeo da psiquiatria no Brasil Rio de Janeiro Graal 1978

MENDESshyGONCcedilALVES Ricardo Bruno Tecnologia e organizaccedilatildeo social das praacuteticas de sauacutede caracteriacutesticas tecnoloacutegicas de processo de trabalho na rede estadual de centros de sauacutede de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Hucitec 1994

MERHY Emerson Elias e FRANCO Tuacutelio Batista Reestruturaccedilatildeo produtiva em sauacutede In BRASIL PEREIRA Isabel e FRANCcedilA LIMA Julio Ceacutesar (Coord) Dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional em sauacutede Rio de Janeiro Escola Politeacutecnica Joaquim VenacircncioFiocruz 2006 p 225shy230

MERHY Emerson Elias et al Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em sauacutede a informaccedilatildeo e o diashyashydia de um serviccedilo interrogando e gerindo trabalho em sauacutede In MERHY Emerson Elias e ONOKO Rosana Agir em Sauacutede um desafio para o puacuteblico Satildeo Paulo Hucitec 1997 p 113shy150

MERHY Emerson Elias A perda da dimensatildeo cuidadora na produccedilatildeo de sauacutede uma discussatildeo do modelo assistencial e da intervenccedilatildeo no seu modo de trabalhar a assistecircncia In CAMPOS Cezar Rodrigues MALTA Deborah Carvalho REIS Afonso Teixeira dos SANTOS Alaneir de Faacutetma dos e MERHY Emerdson Elias (Org) Sistema Uacutenico de Sauacutede em Belo Horizonte reescrevendo o puacuteblico Satildeo Paulo Xamatilde 1998 p 103shy120

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32

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NEGRI Antonio O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade Rio de Janeiro DPampA 2002

PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

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33

diante dos vaacuterios analisadores jaacute mencionados tais como a cliacutenica do corpo de oacutergatildeos a

cliacutenica do corpo sem oacutergatildeos a cliacutenica de um corpo exshyoacutergatildeos o gerenciamento do cuidado a

medicalizaccedilatildeo e medicamentalizaccedilatildeo ou as profissotildees de sauacutede interrogadas pela transiccedilatildeo

tecnoloacutegica de produccedilatildeo do cuidado

Uma situaccedilatildeo que natildeo estaacute necessariamente inscrita no interior de uma rede de

serviccedilos de sauacutede nos permite mostrar o desenvolvimento de uma certa perspicaacutecia para olhar

a tensatildeo relativa aos processos de subjetivaccedilatildeo que a medicalizaccedilatildeo do corpo jaacute sem seus

oacutergatildeos vem propiciando Joseacute Castello em um ensaio sobre Joatildeo Cabral de Melo Neto na

Revista Bravo de setembro de 2007 relata que no final da vida esse poeta encontravashyse

muito triste Contava que os meacutedicos diziam para ele que isso era depressatildeo e ele contestava

dizia que era melancolia completando que natildeo haveria remeacutedio capaz de lhe resolver essa

situaccedilatildeo pois natildeo era algo que se cura era algo que se tem

Curioso natildeo Talvez ateacute a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspiraccedilotildees

poeacuteticas O olhar meacutedico continha uma explicaccedilatildeo as sensaccedilotildees do poeta outra revelandoshyse

um plano de disputa sobre o projeto terapecircutico a entabular Situaccedilotildees como essa podem

ocorrer em qualquer lugar ndash em um serviccedilo de sauacutede de prontoshyatendimento em uma equipe

de sauacutede da famiacutelia em um ambulatoacuterio entre professores de uma escola qualquer e assim por

diante ndash natildeo satildeo exceccedilatildeo habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo

De fato esse modo de olhar certas situaccedilotildees e denominaacuteshylas buscando darshylhes certo

significado e natildeo outro propor por exemplo que ser gordo eacute ser doente pelo risco de ser que

ser velho eacute ser doente pelo risco de ser etc etc eacute o caso de termos um olhar armado para ver

doenccedila diante de algumas ldquocoisasrdquo Natildeo eacute um fenocircmeno casual e nem individual eacute uma

construccedilatildeo ampla de processos de subjetivaccedilatildeo do olhar de cada um e de todos ou pelo

menos de muitos Satildeo agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domiacutenio de

recursos de manejo comunicativo e de poder tais como os dos setores empresariais ou de

certos grupos sociais como o dos profissionais de sauacutede Podem ser tambeacutem agenciamentos

mais ocasionais capilares como no caso de explorarmos o poeta que temos em noacutes mais do

que o usuaacuterio de sauacutede que temos em noacutes quando somos trabalhadores do cuidado em sauacutede e

disputamos sentidos mais plurais para nossas praacuteticas

Nesse lugar estaremos disputando aquilo que apontamos ao falar do componente antishy

24

capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

25

medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

26

praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

27

vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

28

na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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Referecircncias

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capitaliacutestico que natildeo eacute o mesmo que ser antishycapitalista uma posiccedilatildeo de oposiccedilatildeo referida

agrave loacutegica econocircmica do capitalismo e agraves sociedades de mercado A luta antishycapitaliacutestica eacute a

luta de oposiccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo do desejo pela imposiccedilatildeo de modelos sociais de modelos de

relacionamento de submissatildeo ao poder das forccedilas externas A luta antishycapitaliacutestica eacute uma

luta micropoliacutetica por isso requer praacuteticas de alteridade de encontro de pertencimento de

projetos em comum O que implica operar tambeacutem em autoshyanaacutelise das praacuteticas individuais e

coletivas colocandoshyse em cheque descobrindo a nossa maneira capitaliacutestica de ser Na

medida em que o outro natildeo vecirc suas questotildees e preocupaccedilotildees colocadas como de comum

pertencimento seu e do serviccedilo de sauacutede que acessa natildeo pode se sentir como pertencendo

agravequele serviccedilo agravequele tratamento agravequele projeto terapecircutico

Ainda na linha de colocar em foco a construccedilatildeo de uma perspicaacutecia para olhar a

cotidianidade do mundo do trabalho em sauacutede valemoshynos de trecircs relatos que agregam

materialidade a nossa discussatildeo Um que vamos denominar ldquoO nu em Barcelona e a nossa

convivecircncia com o nu nas nossas redesrdquo outro por ldquoDanccedilar para fugir da normalizaccedilatildeo do

modo de existecircncia na velhicerdquo e por fim ldquoA tensatildeo da desconstruccedilatildeo do cuidado centrado no

profissional vivida nas redes substitutivas de desospitalizaccedilatildeo do cuidado por algumas de

nossas redesrdquo

O relato do nu em Barcelona eacute parte de uma vivecircncia pessoal vivida por um de noacutes

Emerson Em julho de 2007 dando um curso em Barcelona para alguns profissionais de

sauacutede chamava a atenccedilatildeo o fato de que a maior parte dos trabalhadores em sua maioria

meacutedicos e enfermeiros vivia a atraccedilatildeo pela construccedilatildeo de uma praacutetica alternativa ao modelo

de sauacutede centrado no hospital ou mesmo substitutiva do trabalho isolado em seus

consultoacuterios como diziam Diziam encontrar na atenccedilatildeo primaacuteria agrave sauacutede e na

medicinasauacutede comunitaacuteria respostas para construir outras formas de compreender os

problemas de sauacutede e de atuar sobre eles A comunidade era vista como o novo lugar e o novo

sujeito desse processo alternativo

Emerson eu ficava curioso com o relato dos trabalhadores pois a anaacutelise mais criacutetica do que

tudo isso significava natildeo era componente das suas reflexotildees Natildeo conheciam outras

experiecircncias teoacutericas mais amplas como as produzidas pela Medicina Social latinoshyamericana

ou a Sauacutede Coletiva brasileira que jaacute vinha desenvolvendo uma compreensatildeo criacutetica bem

mais sofisticada sobre essas questotildees inclusive sobre os limites da atenccedilatildeo primaacuteria e da

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

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Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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MERHY Emerson Elias O SUS e seus dilemas mudar a gestatildeo e a loacutegica do processo de trabalho (um ensaio sobre a micropoliacutetica do trabalho vivo) In FLEURY Socircnia (Org) Sauacutede e democracia a luta do Cebes Satildeo Paulo Lemos Editorial 1997 p 125shy142

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MERHY Emerson Elias Sauacutede a cartografia do trabalho vivo 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2002

NEGRI Antonio O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade Rio de Janeiro DPampA 2002

PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

TEIXEIRA Ricardo Rodrigues O acolhimento num serviccedilo de sauacutede entendido como uma rede de conversaccedilotildees In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (Org) Construccedilatildeo da integralidade cotidiano saberes e praacuteticas em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2003 p 89shy111

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medicinasauacutede comunitaacuteria Aleacutem disso aqueles trabalhadores quando lhes era dada a

possibilidade de construir novos modos de atuar diante dos problemas de sauacutede que

consideravam relevantes sempre construiacuteam alternativas de cuidado marcadas pelos modelos

tradicionais fortemente orientadas pelos atos de sauacutede profissionalshycentrados e com grande

conteuacutedo disciplinarizador Por exemplo viam os modos de viver dos imigrantes ndash em geral

norteshyafricanos que foram morar na Catalunha ndash e seus haacutebitos alimentares seus modos de

viver o diashyashydia nos bairros suas formas de estabelecer suas relaccedilotildees de gecircnero e aiacute por

diante sempre sob o olhar do diagnoacutestico Identificavam patologias naquelas relaccedilotildees de vida

e para enfrentar essas situaccedilotildees a que chamavam por adoecimentos propunham ideaacuterios

medicalizantes embasados tanto na cliacutenica do corpo de oacutergatildeos quanto cliacutenica do corpo da

ausecircncia dos oacutergatildeos Um dia andando com eles por uma grande praccedila na cidade em

momento de intenso movimento cruzamos com um homem que vestia uma bota um chapeacuteu

uma mochila e estava nu Ele caminhava tranquumlilo olhava as vitrines natildeo mexia com

ningueacutem e ningueacutem mexia com ele Rapidamente eu perguntei o que iria acontecer se seria

preso ou enviado para um serviccedilo de sauacutede algo assim Eles me disseram que se ningueacutem se

sentisse incomodado nada aconteceria ele simplesmente seguiria adiante Caso algueacutem se

sentisse molestado chamaria por um policial que entatildeo conversaria com ele pedindo que

fosse andar em outro lugar A princiacutepio esse acontecimento natildeo seria visto como uma questatildeo

da sauacutede Natildeo entendi nada Como uma sociedade habitada por profissionais de sauacutede aliaacutes

os mais envolvidos com praacuteticas profissionalizadas portadores de um olhar conservador e

intensamente medicalizador natildeo internaria um homem desses Como natildeo psiquiatrizaacuteshylo ou

sauacutedeshymentalizaacuteshylo Imaginei que aqui no Brasil isso teria grande chance de acontecer

Mesmo sendo um lugar onde haacute uma quantidade significativa de trabalhadores mais

implicados com mudanccedilas e com arsenais mais amplos que a atenccedilatildeo primaacuteria e a

medicinasauacutede comunitaacuteria Sobroushyme a possibilidade de imaginar que haacute no campo das

praacuteticas sociais linhas de fuga que vatildeo bem aleacutem do territoacuterio da proacutepria cliacutenica seja ela qual

for

A construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais que possibilita a construccedilatildeo de convivecircncia cidadatilde

com a diversidade coloca a construccedilatildeo do cuidado muito aleacutem do proacuteprio campo tecnoloacutegico

mais comprometido onde ele opera no campo da sauacutede como que vazando esse platocirc de accedilatildeo

para outros campos das praacuteticas sociais como a poliacutetica por exemplo Com isso uma

perspicaacutecia atravessa o nosso olhar os lugares intercessores existem entre os vaacuterios platocircs de

26

praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

27

vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

28

na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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Referecircncias

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MERHY Emerson Elias A perda da dimensatildeo cuidadora na produccedilatildeo de sauacutede uma discussatildeo do modelo assistencial e da intervenccedilatildeo no seu modo de trabalhar a assistecircncia In CAMPOS Cezar Rodrigues MALTA Deborah Carvalho REIS Afonso Teixeira dos SANTOS Alaneir de Faacutetma dos e MERHY Emerdson Elias (Org) Sistema Uacutenico de Sauacutede em Belo Horizonte reescrevendo o puacuteblico Satildeo Paulo Xamatilde 1998 p 103shy120

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MERHY Emerson Elias Sauacutede a cartografia do trabalho vivo 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2002

NEGRI Antonio O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade Rio de Janeiro DPampA 2002

PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

TEIXEIRA Ricardo Rodrigues O acolhimento num serviccedilo de sauacutede entendido como uma rede de conversaccedilotildees In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (Org) Construccedilatildeo da integralidade cotidiano saberes e praacuteticas em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2003 p 89shy111

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praacuteticas sociais que uma sociedade comporta Quanto mais singularizado o domiacutenio de um

deles sobre os outros mais possiacutevel que o fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo de qualquer tipo tenha

grandes possibilidades de ocupar outro lugar no interior das vaacuterias loacutegicas de accedilotildees sociais

Natildeo que natildeo haja estratagemas disciplinadores e de controle em outros platocircs tambeacutem mas

eles adquirem outros formatos e natildeo exclusivamente o da medicalizaccedilatildeo generalizada Talvez

isso nos remeta a tentar ver esses entres das vaacuterias loacutegicas que operam nos campos de praacuteticas

e talvez vejamos por aiacute fissuras importantes para desterritorializar os modos hegemocircnicos de

se construir certos modos de agir em sauacutede Os outros relatos podem enriquecer essas

perspicaacutecias

Natildeo eacute estranho a ningueacutem que em muitos serviccedilos de sauacutede o chamado grupo da

terceira idade vem ocupando lugar cada vez mais importante Nem eacute estranho que essa

ldquosituaccedilatildeo de velhicerdquo como eacute significada por muitos seja alvo de intensa

medicamentalizaccedilatildeo os membros desse grupo tecircm em geral prescritos todo tipo de remeacutedio

paliativos preventivos curativos A patologizaccedilatildeo da terceira idade eacute um fenocircmeno crescente

inclusive como uma das grandes causas de asilamento como o dos loucos anteriomente Usar

ansioliacutetico para aplacar os sintomas de ldquovelhinhas queixosasrdquo (da vida como um todo) eacute uma

praacutetica tatildeo universal que ocorre praticamente em qualquer lugar em que as mesmas consigam

acesso a algueacutem que tenha autoridade e legalidade para proceder a essa medicamentalizaccedilatildeo

Ouvir o que essas mulheres tecircm a dizer procurar problematizar com elas o viver e a produccedilatildeo

da vida de modo individual e coletivo natildeo costuma estar disponiacutevel ldquoSeria perda de tempordquo

pois talvez pessoas nessa fase da vida natildeo mereccedilam ser olhadas como algueacutem que possa

compensar o gasto de tempo socialmente uacutetil para produzir modos de viver ldquoJaacute estatildeo velhas eacute

soacute esperar a morte que estaacute de espreitardquo O que sobra para elas Sobra a si mesmas e sobram

muitas outras coisas para aleacutem desse platocirc de fabricaccedilatildeo do cuidado como praacutetica disciplinar

ou de controle inconsequumlente Elas podem reinventar a si mesmas e ateacute a significaccedilatildeo coletiva

sobre a velhice como entendemos que ocorreu na experiecircncia construiacuteda por um grupo de

mulheres que recusaram a manutenccedilatildeo do uso do ansioliacutetico como sua chance de manter

alguma convivecircncia com a ldquodor de estar vivendo a vida que tecircmrdquo

Emerson tomei contato pela primeira vez com essa experiecircncia quando vi um grupo de

senhoras invadir um espaccedilo de trabalho em um serviccedilo de sauacutede cantando e danccedilando

convidando a senhoras iguais a elas a se juntarem para fazerem parte daquela atividade e

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vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

30

Referecircncias

CASTELLO Joseacute Poesia na penumbra Literatura Bravo (Satildeo Paulo) set 2007

CECCIM Ricardo Burg e CAPOZZOLO Acircngela Aparecida Educaccedilatildeo dos profissionais de sauacutede e afirmaccedilatildeo da vida a praacutetica cliacutenica como resistecircncia e criaccedilatildeo In MARINS Joatildeo Joseacute et al (org) Educaccedilatildeo meacutedica em transformaccedilatildeo processos de mudanccedila e construccedilatildeo de realidades Satildeo PauloshyRio de Janeiro HucitecshyAbem 2004 p 346shy390

CECCIM Ricardo Burg Equipe de Sauacutede a perspectiva entreshydisciplinar na produccedilatildeo dos atos terapecircuticos In PINHEIRO Roseni MATTOS Ruben Arauacutejo (Org) Cuidado as fronteiras da integralidade Rio de Janeiro Hucitec shy Abrasco 2004 p259shy278

CECCIM Ricardo Burg Onde se lecirc ldquorecursos humanos da sauacutederdquo leiashyse ldquocoletivos organizados de produccedilatildeo da sauacutederdquo desafios para a educaccedilatildeo In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (org) Construccedilatildeo social da demanda direito agrave sauacutede trabalho em equipe participaccedilatildeo e espaccedilos puacuteblicos Rio de Janeiro Abrasco 2005 p 161shy180

CECCIM Ricardo Burg ARMANI Teresa Borgert OLIVEIRA Dora Luacutecia Leidens Correa de BILIBIO Luiz Fernando MORAES Mauriacutecio e DARTORA SANTOS Naiane Imaginaacuterios da formaccedilatildeo em sauacutede no Brasil e os horizontes da regulaccedilatildeo em sauacutede suplementar Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1567shy1578

DELEUZE Gilles Foucault Satildeo Paulo Brasiliense 2005

DELEUZE Gilles Conversaccedilotildees (1972shy1990) Satildeo Paulo Ed 34 1992 p 219shy226

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro e PEREIRA Luiz Sauacutede e sociedade Satildeo Paulo Duas Cidades 1976

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro Medicina e sociedade o meacutedico e seu mercado de trabalho Satildeo Paulo Pioneira 1975

FOUCAULT Michel O nascimento da cliacutenica 6 ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2004

GUATTARI Feacutelix e ROLNIK Suely Micropoliacutetica cartografias do desejo 2 ed Petroacutepolis Vozes 1986

GUATTARI Feacutelix As trecircs ecologias 18 ed Campinas Papirus 2007

HARDT Michael e NEGRI Antonio Multidatildeo Rio de Janeiro Record 2005

IRIART Ceacutelia B Atenccedilatildeo Gerenciada instituinte da reforma neoliberal 1999 Tese (Doutorado em Sauacutede Coletiva) ndash Departamento de Medicina Preventiva e Social Faculdade de Ciecircncias Meacutedicas Universidade Estadual de Campinas Campinas 1999

IRIART Ceacutelia Capital financiero versus complejo meacutedicoshyindustrial los desafiacuteos de las agencias regulatorias Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1619shy1626

31

IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to thirdshyworld countries Monthly Review (New York) v 52 n 1 2000 p21shy35

IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to developing countries International journal of health services planning administration evaluation (Amityville NY) v 31 n 3 2001 p495shy505

IRIART Celia WAITZKIN Howard e MERHY Emerson Elias Atenccedilatildeo gerenciada da microdecisatildeo corporativa agrave microdecisatildeo administrativa um caminho igualmente privatizante In BURMESTER Haino (Ed) Managed care alternativas de gestatildeo em sauacutede Satildeo Paulo ProahsaFGV 1998 p 85shy115

IRIART Celia WAITZKIN Howard B e MERHY Emerson Elias HMOs abroad managed care in Latin America In FORT Meredith MERCER Mary Anne e GISH Oscar (Eds) Sickness and wealth Boston South End Press 2004 p 69shy78

LUZ Madel Therezinha Natural racional social razatildeo meacutedica e racionalidade cientiacutefica moderna 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2004

LUZ Madel As instituiccedilotildees meacutedicas no Brasil instituiccedilatildeo e estrateacutegia de hegemonia 3 ed Rio de Janeiro Graal 1986

MACHADO da SILVA Juremir As tecnologias do imaginaacuterio Porto Alegre Sulina 2003

MACHADO Roberto Foucault a ciecircncia e o saber 3 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006

MACHADO Roberto LOUREIRO Acircngela LUZ Rogeacuterio e MURICY Katia Danaccedilatildeo da norma a medicina social e constituiccedilatildeo da psiquiatria no Brasil Rio de Janeiro Graal 1978

MENDESshyGONCcedilALVES Ricardo Bruno Tecnologia e organizaccedilatildeo social das praacuteticas de sauacutede caracteriacutesticas tecnoloacutegicas de processo de trabalho na rede estadual de centros de sauacutede de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Hucitec 1994

MERHY Emerson Elias e FRANCO Tuacutelio Batista Reestruturaccedilatildeo produtiva em sauacutede In BRASIL PEREIRA Isabel e FRANCcedilA LIMA Julio Ceacutesar (Coord) Dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional em sauacutede Rio de Janeiro Escola Politeacutecnica Joaquim VenacircncioFiocruz 2006 p 225shy230

MERHY Emerson Elias et al Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em sauacutede a informaccedilatildeo e o diashyashydia de um serviccedilo interrogando e gerindo trabalho em sauacutede In MERHY Emerson Elias e ONOKO Rosana Agir em Sauacutede um desafio para o puacuteblico Satildeo Paulo Hucitec 1997 p 113shy150

MERHY Emerson Elias A perda da dimensatildeo cuidadora na produccedilatildeo de sauacutede uma discussatildeo do modelo assistencial e da intervenccedilatildeo no seu modo de trabalhar a assistecircncia In CAMPOS Cezar Rodrigues MALTA Deborah Carvalho REIS Afonso Teixeira dos SANTOS Alaneir de Faacutetma dos e MERHY Emerdson Elias (Org) Sistema Uacutenico de Sauacutede em Belo Horizonte reescrevendo o puacuteblico Satildeo Paulo Xamatilde 1998 p 103shy120

MERHY Emerson Elias O SUS e seus dilemas mudar a gestatildeo e a loacutegica do processo de trabalho (um ensaio sobre a micropoliacutetica do trabalho vivo) In FLEURY Socircnia (Org) Sauacutede e democracia a luta do Cebes Satildeo Paulo Lemos Editorial 1997 p 125shy142

32

MERHY Emerson Elias Sauacutede a cartografia do trabalho vivo 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2002

NEGRI Antonio O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade Rio de Janeiro DPampA 2002

PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

TEIXEIRA Ricardo Rodrigues O acolhimento num serviccedilo de sauacutede entendido como uma rede de conversaccedilotildees In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (Org) Construccedilatildeo da integralidade cotidiano saberes e praacuteticas em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2003 p 89shy111

33

vivecircncia que estavam tendo Na letra de suas muacutesicas era possiacutevel identificar a denuacutencia do

pouco caso que o olhar pobre medicalizante e medicamentalizante lhes provocava e como

suas praacuteticas prejudicavam suas vidas Como o controle que era praticado implicava produccedilatildeo

de morte na vida (aqui nos vemos diante do componente capitaliacutestico de uma maneira bem

clara) Natildeo soacute denunciavam com suas muacutesicas mas tambeacutem mostravam como estavam mais

donas de si e felizes com o que estavam fazendo e como o mundo novo a ser revelado e vivido

era ampliacutessimo e uma excelente aventura a ser vivida Estavam muito alegres e brincalhonas

naquele espaccedilo que invadiram deixando certos profissionais constrangidos e outros tatildeo

alegres quanto elas

A perspicaacutecia que esse relato pede natildeo precisa muita descriccedilatildeo pois parece que

ressignificar e criar novos sentidos para as possibilidades de construir formas novas de viver a

vida em si eacute autopoieacutetica e antishycapitaliacutestica

O terceiro relato vem de uma experiecircncia vivenciada em um estudo da linha de

pesquisa de Micropoliacutetica do trabalho e o cuidado em sauacutede sobre as vaacuterias modalidades de

cuidado domiciliar praticadas nas redes puacuteblicas no Brasil Uma vivecircncia colocou o grupo de

pesquisadores diante de um tipo de disputa de que se sabia a existecircncia mas da qual natildeo se

registrava oportunidade tatildeo clara de contato Eacute a disputa que eacute travada entre os trabalhadores

de sauacutede e os cuidadores natildeo profissionais ou mais amplamente a disputa entre quem cuida e

quem eacute cuidado

Um olhar pouco perspicaz jaacute revela que noacutes mesmos quando estamos em situaccedilatildeo natildeo

de cuidadores mas de seres cuidados como usuaacuterios somos bons lutadores sobre o rumo que

o cuidado deve tomar Aliaacutes qual de noacutes natildeo disputa o cuidado nessa situaccedilatildeo O relato

proveacutem da experiecircncia com uma matildee que cuidava de seu filho em uma situaccedilatildeo de internaccedilatildeo

domiciliar e que a equipe de sauacutede procurava natildeo reconhecer como uma boa cuidadora Ela

disputava o cuidado de modo permanente e constante com a equipe inclusive ao

desterritorializar o seu filho do olhar de doente e acrescia ao seu modo ser ele muito mais

que doentinho era uma crianccedila e era seu filho

Na pesquisa foi apontado como parte da anaacutelise que o trabalho em sauacutede eacute produzido

por meio do encontro (individual ou coletivo) entre trabalhadores e usuaacuterios e que envolve

sempre certo grau de disputa de planos de cuidado Essa disputa se explicita mais ou menos

28

na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

30

Referecircncias

CASTELLO Joseacute Poesia na penumbra Literatura Bravo (Satildeo Paulo) set 2007

CECCIM Ricardo Burg e CAPOZZOLO Acircngela Aparecida Educaccedilatildeo dos profissionais de sauacutede e afirmaccedilatildeo da vida a praacutetica cliacutenica como resistecircncia e criaccedilatildeo In MARINS Joatildeo Joseacute et al (org) Educaccedilatildeo meacutedica em transformaccedilatildeo processos de mudanccedila e construccedilatildeo de realidades Satildeo PauloshyRio de Janeiro HucitecshyAbem 2004 p 346shy390

CECCIM Ricardo Burg Equipe de Sauacutede a perspectiva entreshydisciplinar na produccedilatildeo dos atos terapecircuticos In PINHEIRO Roseni MATTOS Ruben Arauacutejo (Org) Cuidado as fronteiras da integralidade Rio de Janeiro Hucitec shy Abrasco 2004 p259shy278

CECCIM Ricardo Burg Onde se lecirc ldquorecursos humanos da sauacutederdquo leiashyse ldquocoletivos organizados de produccedilatildeo da sauacutederdquo desafios para a educaccedilatildeo In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (org) Construccedilatildeo social da demanda direito agrave sauacutede trabalho em equipe participaccedilatildeo e espaccedilos puacuteblicos Rio de Janeiro Abrasco 2005 p 161shy180

CECCIM Ricardo Burg ARMANI Teresa Borgert OLIVEIRA Dora Luacutecia Leidens Correa de BILIBIO Luiz Fernando MORAES Mauriacutecio e DARTORA SANTOS Naiane Imaginaacuterios da formaccedilatildeo em sauacutede no Brasil e os horizontes da regulaccedilatildeo em sauacutede suplementar Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1567shy1578

DELEUZE Gilles Foucault Satildeo Paulo Brasiliense 2005

DELEUZE Gilles Conversaccedilotildees (1972shy1990) Satildeo Paulo Ed 34 1992 p 219shy226

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro e PEREIRA Luiz Sauacutede e sociedade Satildeo Paulo Duas Cidades 1976

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro Medicina e sociedade o meacutedico e seu mercado de trabalho Satildeo Paulo Pioneira 1975

FOUCAULT Michel O nascimento da cliacutenica 6 ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2004

GUATTARI Feacutelix e ROLNIK Suely Micropoliacutetica cartografias do desejo 2 ed Petroacutepolis Vozes 1986

GUATTARI Feacutelix As trecircs ecologias 18 ed Campinas Papirus 2007

HARDT Michael e NEGRI Antonio Multidatildeo Rio de Janeiro Record 2005

IRIART Ceacutelia B Atenccedilatildeo Gerenciada instituinte da reforma neoliberal 1999 Tese (Doutorado em Sauacutede Coletiva) ndash Departamento de Medicina Preventiva e Social Faculdade de Ciecircncias Meacutedicas Universidade Estadual de Campinas Campinas 1999

IRIART Ceacutelia Capital financiero versus complejo meacutedicoshyindustrial los desafiacuteos de las agencias regulatorias Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1619shy1626

31

IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to thirdshyworld countries Monthly Review (New York) v 52 n 1 2000 p21shy35

IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to developing countries International journal of health services planning administration evaluation (Amityville NY) v 31 n 3 2001 p495shy505

IRIART Celia WAITZKIN Howard e MERHY Emerson Elias Atenccedilatildeo gerenciada da microdecisatildeo corporativa agrave microdecisatildeo administrativa um caminho igualmente privatizante In BURMESTER Haino (Ed) Managed care alternativas de gestatildeo em sauacutede Satildeo Paulo ProahsaFGV 1998 p 85shy115

IRIART Celia WAITZKIN Howard B e MERHY Emerson Elias HMOs abroad managed care in Latin America In FORT Meredith MERCER Mary Anne e GISH Oscar (Eds) Sickness and wealth Boston South End Press 2004 p 69shy78

LUZ Madel Therezinha Natural racional social razatildeo meacutedica e racionalidade cientiacutefica moderna 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2004

LUZ Madel As instituiccedilotildees meacutedicas no Brasil instituiccedilatildeo e estrateacutegia de hegemonia 3 ed Rio de Janeiro Graal 1986

MACHADO da SILVA Juremir As tecnologias do imaginaacuterio Porto Alegre Sulina 2003

MACHADO Roberto Foucault a ciecircncia e o saber 3 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006

MACHADO Roberto LOUREIRO Acircngela LUZ Rogeacuterio e MURICY Katia Danaccedilatildeo da norma a medicina social e constituiccedilatildeo da psiquiatria no Brasil Rio de Janeiro Graal 1978

MENDESshyGONCcedilALVES Ricardo Bruno Tecnologia e organizaccedilatildeo social das praacuteticas de sauacutede caracteriacutesticas tecnoloacutegicas de processo de trabalho na rede estadual de centros de sauacutede de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Hucitec 1994

MERHY Emerson Elias e FRANCO Tuacutelio Batista Reestruturaccedilatildeo produtiva em sauacutede In BRASIL PEREIRA Isabel e FRANCcedilA LIMA Julio Ceacutesar (Coord) Dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional em sauacutede Rio de Janeiro Escola Politeacutecnica Joaquim VenacircncioFiocruz 2006 p 225shy230

MERHY Emerson Elias et al Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em sauacutede a informaccedilatildeo e o diashyashydia de um serviccedilo interrogando e gerindo trabalho em sauacutede In MERHY Emerson Elias e ONOKO Rosana Agir em Sauacutede um desafio para o puacuteblico Satildeo Paulo Hucitec 1997 p 113shy150

MERHY Emerson Elias A perda da dimensatildeo cuidadora na produccedilatildeo de sauacutede uma discussatildeo do modelo assistencial e da intervenccedilatildeo no seu modo de trabalhar a assistecircncia In CAMPOS Cezar Rodrigues MALTA Deborah Carvalho REIS Afonso Teixeira dos SANTOS Alaneir de Faacutetma dos e MERHY Emerdson Elias (Org) Sistema Uacutenico de Sauacutede em Belo Horizonte reescrevendo o puacuteblico Satildeo Paulo Xamatilde 1998 p 103shy120

MERHY Emerson Elias O SUS e seus dilemas mudar a gestatildeo e a loacutegica do processo de trabalho (um ensaio sobre a micropoliacutetica do trabalho vivo) In FLEURY Socircnia (Org) Sauacutede e democracia a luta do Cebes Satildeo Paulo Lemos Editorial 1997 p 125shy142

32

MERHY Emerson Elias Sauacutede a cartografia do trabalho vivo 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2002

NEGRI Antonio O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade Rio de Janeiro DPampA 2002

PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

TEIXEIRA Ricardo Rodrigues O acolhimento num serviccedilo de sauacutede entendido como uma rede de conversaccedilotildees In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (Org) Construccedilatildeo da integralidade cotidiano saberes e praacuteticas em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2003 p 89shy111

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na dependecircncia das possibilidades de exerciacutecio de autonomia do usuaacuterio (ou do cuidador no

caso da atenccedilatildeo domiciliar) Aleacutem disso dependendo da combinaccedilatildeo de tecnologias de

cuidado (duras leveshyduras e leves) e da disposiccedilatildeo de reconhecimento muacutetuo dos agentes

podeshyse produzir conflito ou construccedilatildeo compartilhada do plano de cuidado Para haver uma

produccedilatildeo intercessora eacute fundamental que oos trabalhadores reconheccedilam como legiacutetima a

formulaccedilatildeo de um plano de cuidado por parte do usuaacuterio ou do cuidador e que as tecnologias

que favoreccedilam a comunicaccedilatildeo e a construccedilatildeo de viacutenculos ou de encontros orientem o trabalho

em sauacutede na possibilidade de trazer essa disputa para conversaccedilatildeo (natildeo confronto mas muacutetua

composiccedilatildeo)

Na atenccedilatildeo domiciliar existe uma explicitaccedilatildeo da existecircncia da disputa de planos de

cuidado jaacute que um de seus pressupostos eacute o de que o cuidador assuma parte dos cuidados que

em outro cenaacuterio de trabalho seriam ofertados pelas equipes de sauacutede A figura do cuidador

traz algumas tensotildees e paradoxos para o campo da sauacutede que necessitam ser melhor

compreendidos tanto na cadeia produtiva do cuidado como nos efeitos que assumir ser

cuidador produz sobre sua proacutepria sauacutede e qualidade de vida O paradoxo que nos interessa

entretanto neste momento por meio de uma certa perspicaacutecia no olhar eacute o que tensiona a

produccedilatildeo centrada e descentrada no ato do trabalhador de sauacutede individualmente ou como

equipe que o coloca em uma encruzilhada que pode ser tratada de muitas maneiras com

confrontos e exerciacutecio de relaccedilotildees de poder ou abertura de um processo micropoliacutetico no qual

os encontros que aiacute satildeo disparados pautam processos intercessores e autopoieacuteticos Agenciar

novas subjetivaccedilotildees no caminho antishycapitaliacutestico estaacute aiacute em foco de modo bruto pedindo para

ser processado coletivamente dentro de uma noccedilatildeo intencional e natildeo ocasional dos atos de

sauacutede

Os relatos servem agrave visibilidade para as muitas possibilidades que vatildeo ocorrendo no

cotidiano do processo de trabalho em sauacutede que como regra deixamos escapar ou natildeo vemos

assim deixamos de agir nos paradoxos que o campo de disputa do mundo do trabalho em

sauacutede nos apresenta e aceitamos o convite para as ldquoboas praacuteticasrdquo em lugar da singularizaccedilatildeo

ou ressingularizaccedilatildeo permanente das praacuteticas ou de construccedilatildeo de encontros apoiadores das

accedilotildees de mudanccedila (humanizaccedilatildeo com a linguagem dos princiacutepios e diretrizes do Sistema

Uacutenico de Sauacutede)

29

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

30

Referecircncias

CASTELLO Joseacute Poesia na penumbra Literatura Bravo (Satildeo Paulo) set 2007

CECCIM Ricardo Burg e CAPOZZOLO Acircngela Aparecida Educaccedilatildeo dos profissionais de sauacutede e afirmaccedilatildeo da vida a praacutetica cliacutenica como resistecircncia e criaccedilatildeo In MARINS Joatildeo Joseacute et al (org) Educaccedilatildeo meacutedica em transformaccedilatildeo processos de mudanccedila e construccedilatildeo de realidades Satildeo PauloshyRio de Janeiro HucitecshyAbem 2004 p 346shy390

CECCIM Ricardo Burg Equipe de Sauacutede a perspectiva entreshydisciplinar na produccedilatildeo dos atos terapecircuticos In PINHEIRO Roseni MATTOS Ruben Arauacutejo (Org) Cuidado as fronteiras da integralidade Rio de Janeiro Hucitec shy Abrasco 2004 p259shy278

CECCIM Ricardo Burg Onde se lecirc ldquorecursos humanos da sauacutederdquo leiashyse ldquocoletivos organizados de produccedilatildeo da sauacutederdquo desafios para a educaccedilatildeo In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (org) Construccedilatildeo social da demanda direito agrave sauacutede trabalho em equipe participaccedilatildeo e espaccedilos puacuteblicos Rio de Janeiro Abrasco 2005 p 161shy180

CECCIM Ricardo Burg ARMANI Teresa Borgert OLIVEIRA Dora Luacutecia Leidens Correa de BILIBIO Luiz Fernando MORAES Mauriacutecio e DARTORA SANTOS Naiane Imaginaacuterios da formaccedilatildeo em sauacutede no Brasil e os horizontes da regulaccedilatildeo em sauacutede suplementar Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1567shy1578

DELEUZE Gilles Foucault Satildeo Paulo Brasiliense 2005

DELEUZE Gilles Conversaccedilotildees (1972shy1990) Satildeo Paulo Ed 34 1992 p 219shy226

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro e PEREIRA Luiz Sauacutede e sociedade Satildeo Paulo Duas Cidades 1976

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro Medicina e sociedade o meacutedico e seu mercado de trabalho Satildeo Paulo Pioneira 1975

FOUCAULT Michel O nascimento da cliacutenica 6 ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2004

GUATTARI Feacutelix e ROLNIK Suely Micropoliacutetica cartografias do desejo 2 ed Petroacutepolis Vozes 1986

GUATTARI Feacutelix As trecircs ecologias 18 ed Campinas Papirus 2007

HARDT Michael e NEGRI Antonio Multidatildeo Rio de Janeiro Record 2005

IRIART Ceacutelia B Atenccedilatildeo Gerenciada instituinte da reforma neoliberal 1999 Tese (Doutorado em Sauacutede Coletiva) ndash Departamento de Medicina Preventiva e Social Faculdade de Ciecircncias Meacutedicas Universidade Estadual de Campinas Campinas 1999

IRIART Ceacutelia Capital financiero versus complejo meacutedicoshyindustrial los desafiacuteos de las agencias regulatorias Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1619shy1626

31

IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to thirdshyworld countries Monthly Review (New York) v 52 n 1 2000 p21shy35

IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to developing countries International journal of health services planning administration evaluation (Amityville NY) v 31 n 3 2001 p495shy505

IRIART Celia WAITZKIN Howard e MERHY Emerson Elias Atenccedilatildeo gerenciada da microdecisatildeo corporativa agrave microdecisatildeo administrativa um caminho igualmente privatizante In BURMESTER Haino (Ed) Managed care alternativas de gestatildeo em sauacutede Satildeo Paulo ProahsaFGV 1998 p 85shy115

IRIART Celia WAITZKIN Howard B e MERHY Emerson Elias HMOs abroad managed care in Latin America In FORT Meredith MERCER Mary Anne e GISH Oscar (Eds) Sickness and wealth Boston South End Press 2004 p 69shy78

LUZ Madel Therezinha Natural racional social razatildeo meacutedica e racionalidade cientiacutefica moderna 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2004

LUZ Madel As instituiccedilotildees meacutedicas no Brasil instituiccedilatildeo e estrateacutegia de hegemonia 3 ed Rio de Janeiro Graal 1986

MACHADO da SILVA Juremir As tecnologias do imaginaacuterio Porto Alegre Sulina 2003

MACHADO Roberto Foucault a ciecircncia e o saber 3 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006

MACHADO Roberto LOUREIRO Acircngela LUZ Rogeacuterio e MURICY Katia Danaccedilatildeo da norma a medicina social e constituiccedilatildeo da psiquiatria no Brasil Rio de Janeiro Graal 1978

MENDESshyGONCcedilALVES Ricardo Bruno Tecnologia e organizaccedilatildeo social das praacuteticas de sauacutede caracteriacutesticas tecnoloacutegicas de processo de trabalho na rede estadual de centros de sauacutede de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Hucitec 1994

MERHY Emerson Elias e FRANCO Tuacutelio Batista Reestruturaccedilatildeo produtiva em sauacutede In BRASIL PEREIRA Isabel e FRANCcedilA LIMA Julio Ceacutesar (Coord) Dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional em sauacutede Rio de Janeiro Escola Politeacutecnica Joaquim VenacircncioFiocruz 2006 p 225shy230

MERHY Emerson Elias et al Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em sauacutede a informaccedilatildeo e o diashyashydia de um serviccedilo interrogando e gerindo trabalho em sauacutede In MERHY Emerson Elias e ONOKO Rosana Agir em Sauacutede um desafio para o puacuteblico Satildeo Paulo Hucitec 1997 p 113shy150

MERHY Emerson Elias A perda da dimensatildeo cuidadora na produccedilatildeo de sauacutede uma discussatildeo do modelo assistencial e da intervenccedilatildeo no seu modo de trabalhar a assistecircncia In CAMPOS Cezar Rodrigues MALTA Deborah Carvalho REIS Afonso Teixeira dos SANTOS Alaneir de Faacutetma dos e MERHY Emerdson Elias (Org) Sistema Uacutenico de Sauacutede em Belo Horizonte reescrevendo o puacuteblico Satildeo Paulo Xamatilde 1998 p 103shy120

MERHY Emerson Elias O SUS e seus dilemas mudar a gestatildeo e a loacutegica do processo de trabalho (um ensaio sobre a micropoliacutetica do trabalho vivo) In FLEURY Socircnia (Org) Sauacutede e democracia a luta do Cebes Satildeo Paulo Lemos Editorial 1997 p 125shy142

32

MERHY Emerson Elias Sauacutede a cartografia do trabalho vivo 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2002

NEGRI Antonio O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade Rio de Janeiro DPampA 2002

PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

TEIXEIRA Ricardo Rodrigues O acolhimento num serviccedilo de sauacutede entendido como uma rede de conversaccedilotildees In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (Org) Construccedilatildeo da integralidade cotidiano saberes e praacuteticas em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2003 p 89shy111

33

Fechamento

Fechando o texto gostariacuteamos de tocar em mais um ponto o exerciacutecio profissional ali

no cotidiano do mundo do trabalho em sauacutede como uma reserva de relaccedilotildees de poder O

exerciacutecio profissional muitas vezes se oferece apenas como interesse privado o interesse

exclusivo de quem estaacute executando as accedilotildees de cuidado e que natildeo tecircm nada a ver com a

construccedilatildeo do cuidado como produccedilatildeo conjunta de vidas Nessa direccedilatildeo o privado e o puacuteblico

natildeo satildeo analiticamente olhados somente sob seu ldquocomponente natildeo mercadordquo mas tambeacutem

pelo favorecimento ou interdiccedilatildeo do comum de dois Sem a criaccedilatildeo de espaccedilo comum sem a

evidecircncia da constituiccedilatildeo de encontros sem compromissos puacuteblicos com a sauacutede natildeo ocorre a

humanizaccedilatildeo O agir profissional eacute muito atravessado por essas questotildees e o trabalhador

muitas vezes se vecirc protegido destas exposiccedilotildees sob o manto de um agir legitimado

corporativamente e por um discurso cientiacutefico desse agir como forma de sua legitimaccedilatildeo O

trabalho da humanizaccedilatildeo tem de passar por essa problematizaccedilatildeo Se isso natildeo vier para o foco

de tudo que jaacute escrevemos ateacute agora natildeo agregariacuteamos um elemento chave na reinvenccedilatildeo no

modo de se produzir as accedilotildees de sauacutede (ressingularizaccedilatildeo) neste momento em que nos

parecem necessaacuterias novas possibilidades de desenho para as profissotildees de sauacutede se o que se

pretende eacute caminhar numa transiccedilatildeo tecnoloacutegica favoraacutevel agrave construccedilatildeo de componentes antishy

capitaliacutesticos nas praacuteticas do campo da sauacutede Mesmo uma praacutetica de sauacutede com forte

componente natildeo mercado como o satildeo as accedilotildees no campo da vigilacircncia agrave sauacutede ou similares

que somente existem no interior do SUS podem estar interditando formas de se construir

ldquolinhas de vida inovadoras e natildeo previsiacuteveisrdquo por meio da forte presenccedila de uma praacutetica

operada nos territoacuterios do saber medicalizador

A possibilidade de pensar a humanizaccedilatildeo como biopotecircncia potecircncia de afirmaccedilatildeo da

vida ou a vida como afirmaccedilatildeo de potecircncias eacute chave para desprivatizarmos as accedilotildees de sauacutede

e instaurarmos o comum (Hardt e Negri 2005) A produccedilatildeo do comum culmina na produccedilatildeo

de confianccedila confianccedila que provecirc acolhimento de autopoieses autopoieses que culminam na

produccedilatildeo de diferenccedila (defasagem de si) e portanto singularizaccedilatildeo Sem essa

problematizaccedilatildeo de fato natildeo construiacutemos a possibilidade de um devir agrave humanizaccedilatildeo no bojo

dos princiacutepios e diretrizes do Sistema Uacutenico de Sauacutede que a paute pela produccedilatildeo da sauacutede

como produccedilatildeo de vida um modo autopoieacutetico e solidaacuterio de invenccedilatildeo das praacuteticas de

cuidado

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Referecircncias

CASTELLO Joseacute Poesia na penumbra Literatura Bravo (Satildeo Paulo) set 2007

CECCIM Ricardo Burg e CAPOZZOLO Acircngela Aparecida Educaccedilatildeo dos profissionais de sauacutede e afirmaccedilatildeo da vida a praacutetica cliacutenica como resistecircncia e criaccedilatildeo In MARINS Joatildeo Joseacute et al (org) Educaccedilatildeo meacutedica em transformaccedilatildeo processos de mudanccedila e construccedilatildeo de realidades Satildeo PauloshyRio de Janeiro HucitecshyAbem 2004 p 346shy390

CECCIM Ricardo Burg Equipe de Sauacutede a perspectiva entreshydisciplinar na produccedilatildeo dos atos terapecircuticos In PINHEIRO Roseni MATTOS Ruben Arauacutejo (Org) Cuidado as fronteiras da integralidade Rio de Janeiro Hucitec shy Abrasco 2004 p259shy278

CECCIM Ricardo Burg Onde se lecirc ldquorecursos humanos da sauacutederdquo leiashyse ldquocoletivos organizados de produccedilatildeo da sauacutederdquo desafios para a educaccedilatildeo In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (org) Construccedilatildeo social da demanda direito agrave sauacutede trabalho em equipe participaccedilatildeo e espaccedilos puacuteblicos Rio de Janeiro Abrasco 2005 p 161shy180

CECCIM Ricardo Burg ARMANI Teresa Borgert OLIVEIRA Dora Luacutecia Leidens Correa de BILIBIO Luiz Fernando MORAES Mauriacutecio e DARTORA SANTOS Naiane Imaginaacuterios da formaccedilatildeo em sauacutede no Brasil e os horizontes da regulaccedilatildeo em sauacutede suplementar Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1567shy1578

DELEUZE Gilles Foucault Satildeo Paulo Brasiliense 2005

DELEUZE Gilles Conversaccedilotildees (1972shy1990) Satildeo Paulo Ed 34 1992 p 219shy226

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro e PEREIRA Luiz Sauacutede e sociedade Satildeo Paulo Duas Cidades 1976

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro Medicina e sociedade o meacutedico e seu mercado de trabalho Satildeo Paulo Pioneira 1975

FOUCAULT Michel O nascimento da cliacutenica 6 ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2004

GUATTARI Feacutelix e ROLNIK Suely Micropoliacutetica cartografias do desejo 2 ed Petroacutepolis Vozes 1986

GUATTARI Feacutelix As trecircs ecologias 18 ed Campinas Papirus 2007

HARDT Michael e NEGRI Antonio Multidatildeo Rio de Janeiro Record 2005

IRIART Ceacutelia B Atenccedilatildeo Gerenciada instituinte da reforma neoliberal 1999 Tese (Doutorado em Sauacutede Coletiva) ndash Departamento de Medicina Preventiva e Social Faculdade de Ciecircncias Meacutedicas Universidade Estadual de Campinas Campinas 1999

IRIART Ceacutelia Capital financiero versus complejo meacutedicoshyindustrial los desafiacuteos de las agencias regulatorias Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1619shy1626

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IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to thirdshyworld countries Monthly Review (New York) v 52 n 1 2000 p21shy35

IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to developing countries International journal of health services planning administration evaluation (Amityville NY) v 31 n 3 2001 p495shy505

IRIART Celia WAITZKIN Howard e MERHY Emerson Elias Atenccedilatildeo gerenciada da microdecisatildeo corporativa agrave microdecisatildeo administrativa um caminho igualmente privatizante In BURMESTER Haino (Ed) Managed care alternativas de gestatildeo em sauacutede Satildeo Paulo ProahsaFGV 1998 p 85shy115

IRIART Celia WAITZKIN Howard B e MERHY Emerson Elias HMOs abroad managed care in Latin America In FORT Meredith MERCER Mary Anne e GISH Oscar (Eds) Sickness and wealth Boston South End Press 2004 p 69shy78

LUZ Madel Therezinha Natural racional social razatildeo meacutedica e racionalidade cientiacutefica moderna 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2004

LUZ Madel As instituiccedilotildees meacutedicas no Brasil instituiccedilatildeo e estrateacutegia de hegemonia 3 ed Rio de Janeiro Graal 1986

MACHADO da SILVA Juremir As tecnologias do imaginaacuterio Porto Alegre Sulina 2003

MACHADO Roberto Foucault a ciecircncia e o saber 3 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006

MACHADO Roberto LOUREIRO Acircngela LUZ Rogeacuterio e MURICY Katia Danaccedilatildeo da norma a medicina social e constituiccedilatildeo da psiquiatria no Brasil Rio de Janeiro Graal 1978

MENDESshyGONCcedilALVES Ricardo Bruno Tecnologia e organizaccedilatildeo social das praacuteticas de sauacutede caracteriacutesticas tecnoloacutegicas de processo de trabalho na rede estadual de centros de sauacutede de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Hucitec 1994

MERHY Emerson Elias e FRANCO Tuacutelio Batista Reestruturaccedilatildeo produtiva em sauacutede In BRASIL PEREIRA Isabel e FRANCcedilA LIMA Julio Ceacutesar (Coord) Dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional em sauacutede Rio de Janeiro Escola Politeacutecnica Joaquim VenacircncioFiocruz 2006 p 225shy230

MERHY Emerson Elias et al Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em sauacutede a informaccedilatildeo e o diashyashydia de um serviccedilo interrogando e gerindo trabalho em sauacutede In MERHY Emerson Elias e ONOKO Rosana Agir em Sauacutede um desafio para o puacuteblico Satildeo Paulo Hucitec 1997 p 113shy150

MERHY Emerson Elias A perda da dimensatildeo cuidadora na produccedilatildeo de sauacutede uma discussatildeo do modelo assistencial e da intervenccedilatildeo no seu modo de trabalhar a assistecircncia In CAMPOS Cezar Rodrigues MALTA Deborah Carvalho REIS Afonso Teixeira dos SANTOS Alaneir de Faacutetma dos e MERHY Emerdson Elias (Org) Sistema Uacutenico de Sauacutede em Belo Horizonte reescrevendo o puacuteblico Satildeo Paulo Xamatilde 1998 p 103shy120

MERHY Emerson Elias O SUS e seus dilemas mudar a gestatildeo e a loacutegica do processo de trabalho (um ensaio sobre a micropoliacutetica do trabalho vivo) In FLEURY Socircnia (Org) Sauacutede e democracia a luta do Cebes Satildeo Paulo Lemos Editorial 1997 p 125shy142

32

MERHY Emerson Elias Sauacutede a cartografia do trabalho vivo 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2002

NEGRI Antonio O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade Rio de Janeiro DPampA 2002

PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

TEIXEIRA Ricardo Rodrigues O acolhimento num serviccedilo de sauacutede entendido como uma rede de conversaccedilotildees In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (Org) Construccedilatildeo da integralidade cotidiano saberes e praacuteticas em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2003 p 89shy111

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Referecircncias

CASTELLO Joseacute Poesia na penumbra Literatura Bravo (Satildeo Paulo) set 2007

CECCIM Ricardo Burg e CAPOZZOLO Acircngela Aparecida Educaccedilatildeo dos profissionais de sauacutede e afirmaccedilatildeo da vida a praacutetica cliacutenica como resistecircncia e criaccedilatildeo In MARINS Joatildeo Joseacute et al (org) Educaccedilatildeo meacutedica em transformaccedilatildeo processos de mudanccedila e construccedilatildeo de realidades Satildeo PauloshyRio de Janeiro HucitecshyAbem 2004 p 346shy390

CECCIM Ricardo Burg Equipe de Sauacutede a perspectiva entreshydisciplinar na produccedilatildeo dos atos terapecircuticos In PINHEIRO Roseni MATTOS Ruben Arauacutejo (Org) Cuidado as fronteiras da integralidade Rio de Janeiro Hucitec shy Abrasco 2004 p259shy278

CECCIM Ricardo Burg Onde se lecirc ldquorecursos humanos da sauacutederdquo leiashyse ldquocoletivos organizados de produccedilatildeo da sauacutederdquo desafios para a educaccedilatildeo In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (org) Construccedilatildeo social da demanda direito agrave sauacutede trabalho em equipe participaccedilatildeo e espaccedilos puacuteblicos Rio de Janeiro Abrasco 2005 p 161shy180

CECCIM Ricardo Burg ARMANI Teresa Borgert OLIVEIRA Dora Luacutecia Leidens Correa de BILIBIO Luiz Fernando MORAES Mauriacutecio e DARTORA SANTOS Naiane Imaginaacuterios da formaccedilatildeo em sauacutede no Brasil e os horizontes da regulaccedilatildeo em sauacutede suplementar Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1567shy1578

DELEUZE Gilles Foucault Satildeo Paulo Brasiliense 2005

DELEUZE Gilles Conversaccedilotildees (1972shy1990) Satildeo Paulo Ed 34 1992 p 219shy226

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro e PEREIRA Luiz Sauacutede e sociedade Satildeo Paulo Duas Cidades 1976

DONNAcircNGELO Maria Ceciacutelia Ferro Medicina e sociedade o meacutedico e seu mercado de trabalho Satildeo Paulo Pioneira 1975

FOUCAULT Michel O nascimento da cliacutenica 6 ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2004

GUATTARI Feacutelix e ROLNIK Suely Micropoliacutetica cartografias do desejo 2 ed Petroacutepolis Vozes 1986

GUATTARI Feacutelix As trecircs ecologias 18 ed Campinas Papirus 2007

HARDT Michael e NEGRI Antonio Multidatildeo Rio de Janeiro Record 2005

IRIART Ceacutelia B Atenccedilatildeo Gerenciada instituinte da reforma neoliberal 1999 Tese (Doutorado em Sauacutede Coletiva) ndash Departamento de Medicina Preventiva e Social Faculdade de Ciecircncias Meacutedicas Universidade Estadual de Campinas Campinas 1999

IRIART Ceacutelia Capital financiero versus complejo meacutedicoshyindustrial los desafiacuteos de las agencias regulatorias Ciecircncia amp sauacutede coletiva (Rio de Janeiro) v 13 n 5 2008 p 1619shy1626

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IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to thirdshyworld countries Monthly Review (New York) v 52 n 1 2000 p21shy35

IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to developing countries International journal of health services planning administration evaluation (Amityville NY) v 31 n 3 2001 p495shy505

IRIART Celia WAITZKIN Howard e MERHY Emerson Elias Atenccedilatildeo gerenciada da microdecisatildeo corporativa agrave microdecisatildeo administrativa um caminho igualmente privatizante In BURMESTER Haino (Ed) Managed care alternativas de gestatildeo em sauacutede Satildeo Paulo ProahsaFGV 1998 p 85shy115

IRIART Celia WAITZKIN Howard B e MERHY Emerson Elias HMOs abroad managed care in Latin America In FORT Meredith MERCER Mary Anne e GISH Oscar (Eds) Sickness and wealth Boston South End Press 2004 p 69shy78

LUZ Madel Therezinha Natural racional social razatildeo meacutedica e racionalidade cientiacutefica moderna 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2004

LUZ Madel As instituiccedilotildees meacutedicas no Brasil instituiccedilatildeo e estrateacutegia de hegemonia 3 ed Rio de Janeiro Graal 1986

MACHADO da SILVA Juremir As tecnologias do imaginaacuterio Porto Alegre Sulina 2003

MACHADO Roberto Foucault a ciecircncia e o saber 3 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006

MACHADO Roberto LOUREIRO Acircngela LUZ Rogeacuterio e MURICY Katia Danaccedilatildeo da norma a medicina social e constituiccedilatildeo da psiquiatria no Brasil Rio de Janeiro Graal 1978

MENDESshyGONCcedilALVES Ricardo Bruno Tecnologia e organizaccedilatildeo social das praacuteticas de sauacutede caracteriacutesticas tecnoloacutegicas de processo de trabalho na rede estadual de centros de sauacutede de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Hucitec 1994

MERHY Emerson Elias e FRANCO Tuacutelio Batista Reestruturaccedilatildeo produtiva em sauacutede In BRASIL PEREIRA Isabel e FRANCcedilA LIMA Julio Ceacutesar (Coord) Dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional em sauacutede Rio de Janeiro Escola Politeacutecnica Joaquim VenacircncioFiocruz 2006 p 225shy230

MERHY Emerson Elias et al Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em sauacutede a informaccedilatildeo e o diashyashydia de um serviccedilo interrogando e gerindo trabalho em sauacutede In MERHY Emerson Elias e ONOKO Rosana Agir em Sauacutede um desafio para o puacuteblico Satildeo Paulo Hucitec 1997 p 113shy150

MERHY Emerson Elias A perda da dimensatildeo cuidadora na produccedilatildeo de sauacutede uma discussatildeo do modelo assistencial e da intervenccedilatildeo no seu modo de trabalhar a assistecircncia In CAMPOS Cezar Rodrigues MALTA Deborah Carvalho REIS Afonso Teixeira dos SANTOS Alaneir de Faacutetma dos e MERHY Emerdson Elias (Org) Sistema Uacutenico de Sauacutede em Belo Horizonte reescrevendo o puacuteblico Satildeo Paulo Xamatilde 1998 p 103shy120

MERHY Emerson Elias O SUS e seus dilemas mudar a gestatildeo e a loacutegica do processo de trabalho (um ensaio sobre a micropoliacutetica do trabalho vivo) In FLEURY Socircnia (Org) Sauacutede e democracia a luta do Cebes Satildeo Paulo Lemos Editorial 1997 p 125shy142

32

MERHY Emerson Elias Sauacutede a cartografia do trabalho vivo 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2002

NEGRI Antonio O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade Rio de Janeiro DPampA 2002

PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

TEIXEIRA Ricardo Rodrigues O acolhimento num serviccedilo de sauacutede entendido como uma rede de conversaccedilotildees In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (Org) Construccedilatildeo da integralidade cotidiano saberes e praacuteticas em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2003 p 89shy111

33

IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to thirdshyworld countries Monthly Review (New York) v 52 n 1 2000 p21shy35

IRIART Celia e WAITZKIN Howard How the United States exports managed care to developing countries International journal of health services planning administration evaluation (Amityville NY) v 31 n 3 2001 p495shy505

IRIART Celia WAITZKIN Howard e MERHY Emerson Elias Atenccedilatildeo gerenciada da microdecisatildeo corporativa agrave microdecisatildeo administrativa um caminho igualmente privatizante In BURMESTER Haino (Ed) Managed care alternativas de gestatildeo em sauacutede Satildeo Paulo ProahsaFGV 1998 p 85shy115

IRIART Celia WAITZKIN Howard B e MERHY Emerson Elias HMOs abroad managed care in Latin America In FORT Meredith MERCER Mary Anne e GISH Oscar (Eds) Sickness and wealth Boston South End Press 2004 p 69shy78

LUZ Madel Therezinha Natural racional social razatildeo meacutedica e racionalidade cientiacutefica moderna 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2004

LUZ Madel As instituiccedilotildees meacutedicas no Brasil instituiccedilatildeo e estrateacutegia de hegemonia 3 ed Rio de Janeiro Graal 1986

MACHADO da SILVA Juremir As tecnologias do imaginaacuterio Porto Alegre Sulina 2003

MACHADO Roberto Foucault a ciecircncia e o saber 3 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006

MACHADO Roberto LOUREIRO Acircngela LUZ Rogeacuterio e MURICY Katia Danaccedilatildeo da norma a medicina social e constituiccedilatildeo da psiquiatria no Brasil Rio de Janeiro Graal 1978

MENDESshyGONCcedilALVES Ricardo Bruno Tecnologia e organizaccedilatildeo social das praacuteticas de sauacutede caracteriacutesticas tecnoloacutegicas de processo de trabalho na rede estadual de centros de sauacutede de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Hucitec 1994

MERHY Emerson Elias e FRANCO Tuacutelio Batista Reestruturaccedilatildeo produtiva em sauacutede In BRASIL PEREIRA Isabel e FRANCcedilA LIMA Julio Ceacutesar (Coord) Dicionaacuterio da educaccedilatildeo profissional em sauacutede Rio de Janeiro Escola Politeacutecnica Joaquim VenacircncioFiocruz 2006 p 225shy230

MERHY Emerson Elias et al Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em sauacutede a informaccedilatildeo e o diashyashydia de um serviccedilo interrogando e gerindo trabalho em sauacutede In MERHY Emerson Elias e ONOKO Rosana Agir em Sauacutede um desafio para o puacuteblico Satildeo Paulo Hucitec 1997 p 113shy150

MERHY Emerson Elias A perda da dimensatildeo cuidadora na produccedilatildeo de sauacutede uma discussatildeo do modelo assistencial e da intervenccedilatildeo no seu modo de trabalhar a assistecircncia In CAMPOS Cezar Rodrigues MALTA Deborah Carvalho REIS Afonso Teixeira dos SANTOS Alaneir de Faacutetma dos e MERHY Emerdson Elias (Org) Sistema Uacutenico de Sauacutede em Belo Horizonte reescrevendo o puacuteblico Satildeo Paulo Xamatilde 1998 p 103shy120

MERHY Emerson Elias O SUS e seus dilemas mudar a gestatildeo e a loacutegica do processo de trabalho (um ensaio sobre a micropoliacutetica do trabalho vivo) In FLEURY Socircnia (Org) Sauacutede e democracia a luta do Cebes Satildeo Paulo Lemos Editorial 1997 p 125shy142

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MERHY Emerson Elias Sauacutede a cartografia do trabalho vivo 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2002

NEGRI Antonio O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade Rio de Janeiro DPampA 2002

PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

TEIXEIRA Ricardo Rodrigues O acolhimento num serviccedilo de sauacutede entendido como uma rede de conversaccedilotildees In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (Org) Construccedilatildeo da integralidade cotidiano saberes e praacuteticas em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2003 p 89shy111

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MERHY Emerson Elias Sauacutede a cartografia do trabalho vivo 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2002

NEGRI Antonio O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade Rio de Janeiro DPampA 2002

PELBART Peter Paacutel Vida capital ensaios de biopoliacutetica Satildeo Paulo Iluminuras 2003

PIRES Denise Elvira Pires de Reestruturaccedilatildeo produtiva e trabalho em sauacutede no Brasil Satildeo Paulo Annablume 1998

TEIXEIRA Ricardo Rodrigues O acolhimento num serviccedilo de sauacutede entendido como uma rede de conversaccedilotildees In PINHEIRO Roseni e MATTOS Ruben Araujo de (Org) Construccedilatildeo da integralidade cotidiano saberes e praacuteticas em sauacutede Rio de Janeiro Abrasco 2003 p 89shy111

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