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A COMPREENSÃO DAS RAÍZES HISTÓRICAS E FILOSÓFICAS DA CATEGORIA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE A PARTIR DA FORMAÇÃO DA SUBJETIVDADE MODERNA THE DELIMITATION OF HISTORICAL AND PHILOSOPHICAL FOUNDATIONS OF THE CATEGORY OF RIGHTS OF PERSONNALITY ACCORDING TO THE FORMATION OF THE MODERN SUBJECTIVITY Bernardo Brasil Campinho RESUMO Este trabalho compreender a sociogênese da categoria jurídica dos direitos da personalidade enquanto proteção e garantia do livre desenvolvimento da personalidade, diretriz fundamental do sistema jurídico que se definiu a partir da formação da subjetividade moderna e de suas implicações, de modo a consagrar a articulação do sujeito, do indivíduo e da pessoa, em seu caráter geral e abstrato, com o reconhecimento de diferentes percepções da sua individualidade e com a construção de sua identidade no processo de socialização, resultando na afirmação dos valores essenciais da individualidade, em contraponto ao Estado e á sociedade, articulando-se fortemente com a dignidade da pessoa humana, gerando uma dogmática dos direitos da personalidade, tendo como referência o modelo do direito subjetivo, como ideologia o individualismo, como premissa a articulação entre razão e subjetividade e como parâmetro o diálogo com as diversas formas de sociabilidade PALAVRAS-CHAVES: RAÍZES HISTÓRICAS E FILOSÓFICAS; DIREITOS DA PERSONALIDADE; SUBJETIVIDADE; MODERNIDADE ABSTRACT This article intends to look inside the birth of the legal category of the rights of personality while a protection and guarantee of the free development of the personality, basic principle of the legal system that has its definitions according to the formation of modern subjectivity and its implications, in a way that promotes, the articulation of the subject, the individual, and the person, in their general and abstract character, with the recognition of different perceptions of the individuality and the construction of identity in the process of social formation, resulting in the affirmation of the essential values of the individuality, in opposition to the State and the society, articulating itself with the value of human dignity, creating a legal model of the rights of personality, having as reference the model of subjective rights, as ideology the individualism, as a basic point the articulation between reason and subjectivity and as a parameter the dialog between different forms of social interaction. 4902

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A COMPREENSÃO DAS RAÍZES HISTÓRICAS E FILOSÓFICAS DA CATEGORIA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE A PARTIR DA

FORMAÇÃO DA SUBJETIVDADE MODERNA

THE DELIMITATION OF HISTORICAL AND PHILOSOPHICAL FOUNDATIONS OF THE CATEGORY OF RIGHTS OF PERSONNALITY ACCORDING TO THE FORMATION OF THE MODERN SUBJECTIVITY

Bernardo Brasil Campinho

RESUMO

Este trabalho compreender a sociogênese da categoria jurídica dos direitos da personalidade enquanto proteção e garantia do livre desenvolvimento da personalidade, diretriz fundamental do sistema jurídico que se definiu a partir da formação da subjetividade moderna e de suas implicações, de modo a consagrar a articulação do sujeito, do indivíduo e da pessoa, em seu caráter geral e abstrato, com o reconhecimento de diferentes percepções da sua individualidade e com a construção de sua identidade no processo de socialização, resultando na afirmação dos valores essenciais da individualidade, em contraponto ao Estado e á sociedade, articulando-se fortemente com a dignidade da pessoa humana, gerando uma dogmática dos direitos da personalidade, tendo como referência o modelo do direito subjetivo, como ideologia o individualismo, como premissa a articulação entre razão e subjetividade e como parâmetro o diálogo com as diversas formas de sociabilidade

PALAVRAS-CHAVES: RAÍZES HISTÓRICAS E FILOSÓFICAS; DIREITOS DA PERSONALIDADE; SUBJETIVIDADE; MODERNIDADE

ABSTRACT

This article intends to look inside the birth of the legal category of the rights of personality while a protection and guarantee of the free development of the personality, basic principle of the legal system that has its definitions according to the formation of modern subjectivity and its implications, in a way that promotes, the articulation of the subject, the individual, and the person, in their general and abstract character, with the recognition of different perceptions of the individuality and the construction of identity in the process of social formation, resulting in the affirmation of the essential values of the individuality, in opposition to the State and the society, articulating itself with the value of human dignity, creating a legal model of the rights of personality, having as reference the model of subjective rights, as ideology the individualism, as a basic point the articulation between reason and subjectivity and as a parameter the dialog between different forms of social interaction.

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KEYWORDS: HISTORICAL AND PHILOSOPHICAL FOUNDATIONS; RIGHTS OF PERSONALITY; SUBJECTIVITY; MODERNITY

1. INTRODUÇÃO À CATEGORIA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

O tema deste trabalho de pesquisa diz respeito à influência das configurações da subjetividade e da sociabilidade, enquanto dimensões das relações sociais humanas e a partir dos paradigmas da modernidade[1][1], na construção do âmbito dos direitos da personalidade.

Assim, o problema levantado neste trabalho se refere à maneira como a proteção e a garantia do livre desenvolvimento da personalidade, como uma diretriz fundamental do sistema jurídico, se definiu a partir da formação da subjetividade moderna, de modo a consagrar a articulação do sujeito, do indivíduo e da pessoa, em seu caráter geral e abstrato, com o reconhecimento de diferentes percepções da sua individualidade e com a construção de sua identidade no processo de socialização.

Trata-se de investigação do tipo histórico-jurídica, onde a evolução de determinado instituto jurídico é analisada pela compatibilização de espaço/tempo (GUSTIN, 2002, p.46). O fenômeno histórico, da mesma forma que o histórico – jurídico, deverá ser reconhecido a partir de uma multiplicidade de tempos, de fontes, de redes sociais e conceituais; as fontes históricas devem ser formativas e não informativas para o investigador, ou seja, elas formam espaços de compreensão que extrapolam a informação puramente oficial ou formal (GUSTIN, 2002, p.46b), entendendo o fenômeno histórico-jurídico como inserido em redes socioculturais dinâmicas, contraditórias e cada vez mais complexas.

Este trabalho adota uma abordagem dialética, que penetra o mundo dos fenômenos através de sua ação recíproca, da contradição inerente ao fenômeno e da mudança dialética que ocorre na natureza e na sociedade. A dialética parte do pressuposto de que toda formação social é suficientemente contraditória para ser historicamente superável, privilegiando o fenômeno da transição histórica, que significa a superação de uma fase por outra, predominando na outra mais o novo do que repetições possíveis da fase anterior (DEMO, 1985, p.86).

Por direitos da personalidade devem ser entendidos aqueles direitos subjetivos que estão voltados para garantir os atributos essenciais e inerentes ao ser humano, projetando condições para garantir a sua existência e o seu desenvolvimento em sociedade, tanto no aspecto psicofísico quanto na sua integridade moral e intelectual.

Nas palavras de Gomes (1996, p.130):

Sob a denominação de direitos da personalidade compreendem-se os direitos personalíssimos e os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana que a doutrina moderna preconiza e disciplina no corpo do Código Civil[2][2] como direitos absolutos, desprovidos, porém, da faculdade de disposição. Destinam-se a resguardar a

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eminente dignidade da pessoa humana, preservando-a dos atentados que pode sofrer por parte dos outros indivíduos.

Consideram-se como da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos[3][3] no homem (BITTAR, 2001, p.1).

Em síntese, os conceitos doutrinários apresentados nos trazem a idéia de direitos concernentes à proteção do ser humano tanto em seus valores essenciais, relativos à sua existência, quanto aos elementos necessários ao seu desenvolvimento no meio social. Procura-se tanto a proteção da pessoa considerada em si mesmo, quanto suas projeções no mundo que a cerca (a pessoa para além de si).

A agressão a estes elementos, de cunho físico e moral importa em uma violação da dignidade e da personalidade do ser humano, devendo tais ataques ser repelidos de forma imediata pelo ordenamento jurídico.

Os direitos da personalidade são classificados de formas distintas por vários autores, mas pode se considerar que, em termos gerais, há um entendimento que tais direitos se dividem em: a) relativos à existência física e à integridade corporal: referem-se à estrutura material do corpo humano: direito à vida, à integridade física, à disposição do corpo; b) integridade psíquica: relativo a elementos intrínsecos à personalidade: liberdade, intimidade, sigilo; c) integridade moral: relativos a valores ou atributos da pessoa na sociedade: identidade, honra, manifestações do intelecto.

Como características dos direitos da personalidade podem ser apontadas as seguintes: generalidade: são direitos concedidos a todos, por estar vivo ou pela condição de ser humano; intransmissibilidade: são inseparáveis de seu titular, sendo, portanto, direitos personalíssimos; extrapatrimonialidade: são direitos insuscetíveis de uma avaliação econômica, ainda que haja lesão econômica aos mesmos, não sendo, portanto, mensurados em termos monetários, salvo os direitos do autor e da propriedade intelectual, que possuem regime próprio[4][4]; imprescritibilidade: não há prazo para o seu exercício pelo titular, sua aquisição não resulta do decurso do tempo, as lesões à personalidade não convalescem com o tempo, nem há o perecimento da pretensão ressarcitória ou reparadora; indisponibilidade[5][5]: o titular não tem a possibilidade de dispor dos direitos da personalidade nem podendo a eles renunciar ou até limitá-los, salvo situação prevista em lei[6][6]; impenhorabilidade: são direitos insuscetíveis de constrangimento judicial de qualquer espécie, para pagamento de obrigações (LISBOA, 2003, p.249); incomunicabilidade: são direitos que não podem integrar a comunhão ou condomínio (LISBOA, 2003, p.249b); são oponíveis erga omnes, impondo-se à coletividade o dever de respeitá-los; são direitos vitalícios, subsistindo até a morte do titular, não obstante alguns direitos ultrapassem a existência física das pessoas.

Tradicionalmente, os direitos da personalidade têm sido entendidos como direitos subjetivos privados, como expressou, em termos doutrinários, Jabur (2000, p.82):

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[...] têm âmbito de atuação limitado às relações entre particulares. Qualquer lesão a um bem personalíssimo provinda do Estado atingiria um direito público subjetivo. Não que os instrumentos à disposição de um ou de outro encontrem divergências em alcance ou qualidade [...] A realização do mínimo necessário à personalidade [...] interessa ao titular e não ao Estado, enquanto ente com finalidade social e material distinta. São as aspirações próprias, privadas, do indivíduo que a vida, a integridade física, a honra, a liberdade e a privacidade satisfazem. Elas são necessárias e acopladas ao homem considerado em si mesmo e ficam, por isso, enquadradas no campo da utilitas privada.

Conforme lição de Francisco Amaral, os direitos da personalidade, enquanto direitos subjetivos, conferem ao seu titular o poder de agir em defesa dos bens e valores essenciais da personalidade, que compreendem, no seu aspecto físico o direito à vida e ao próprio corpo, no aspecto intelectual o direito da liberdade de pensamento, o direito do autor e de inventor, e no aspecto moral o direito à liberdade, à honra, ao recato, ao segredo, à imagem, à identidade e ainda o direito de exigir de terceiros o respeito a esses direitos (AMARAL, 2003, p.250).

No entanto, parece ser demasiadamente restritivo entender os direitos da personalidade apenas enquanto direitos subjetivos no âmbito do sistema de Direito Privado, pois a dimensão que a categoria alcançou na contemporaneidade, a partir da crise da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, torna tais direitos como expressão máxima da proteção aos valores essenciais para a existência e desenvolvimento do ser humano, em quaisquer situações, seja entre particulares, seja face ao Estado ou aos demais entes coletivos.

Logo, neste contexto, os direitos da personalidade fornecem um elemento de aporte simultâneo ou um terreno de encontro privilegiado (AMARAL, 2003, p.251) entre o direito privado, as liberdades públicas e o direito constitucional.

Em síntese, a tutela jurídica dos direitos da personalidade desenvolve-se em dois níveis, um, de natureza constitucional, que reúne os princípios que organizam e disciplinam a organização da sociedade, e outro, próprio da legislação ordinária, que desenvolve a concretização destes princípios (AMARAL, 2003, p.257).

É preferível então conceber os direitos da personalidade enquanto direitos subjetivos, mas não como uma categoria isolada no sistema de Direito Privado; deve-se entendê-los como direitos subjetivos[7][9] que se conectam aos direitos humanos, a partir da necessidade de defesa e concretização da dignidade da pessoa humana, tornando-se uma categoria jurídico-dogmática com características e particularidades próprias, que se articula de forma incisiva com os direitos fundamentais e as liberdades públicas, atuando tanto nas relações privadas, além de proteger o indivíduo, tanto na sua esfera íntima quanto na privada, de interferências de segmentos da sociedade civil, e até no âmbito das relações familiares, constituindo direitos voltados para a proteção da individualidade e da singularidade numa sociedade complexa.

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2. O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO-FILOSÓFICO DA RELAÇÃO ENTRE PESSOA, INDIVÍDUO E SUJEITO COMO PROCESSO CONSTITUTIVO DA COMPREENSÃO MODERNA DE PERSONALIDADE NO ÂMBITO DO DIREITO.

A compreensão da tutela da pessoa humana expressa nos direitos da personalidade pressupõe um resgate da noção de sujeito / indivíduo, buscando estabelecer sua articulação com a idéia de pessoa, que seria apropriada pelo Direito, resultando tanto no sujeito de direito, quanto na categoria dos direitos da personalidade.

Assim, se busca a configuração da tutela material da personalidade a partir de seus antecedentes histórico-filosóficos, articulando valores como subjetividade, personalidade e singularidade, entendendo-os de forma mais ampla do que a de meros conceitos técnico-jurídicos, visualizando os seus desdobramentos enquanto noções historicamente articuladas e constituídas de forma dialógica, a partir de contrapontos, refluxos e sínteses.

Com efeito, é impossível dissociar o desenvolvimento da idéia de sujeito (subjetividade) do desenvolvimento da proteção jurídica à personalidade, pois as duas coisas estão intimamente relacionadas e não podem ser dissociadas.

A subjetividade não pode ser reduzida, ainda que em termos da dogmática jurídica, à mera capacidade de ser titular de relações jurídicas. O conceito de subjetividade, em acepção filosófica, que influencia a Dogmática Jurídica, é mais amplo, trabalha com a idéia de individualidade/singularidade, contrapondo o ser humano ao outro e à coletividade. Assim, perde qualquer sentido uma separação entre subjetividade e personalidade, na medida em que a segunda se relaciona à primeira.

Com efeito, a primeira coisa a se fazer é fugir da noção de que a pessoa, na configuração em que hoje a concebemos, a partir de uma articulação com o sujeito/indivíduo, sempre existiu, dessa mesma forma.

Neste sentido, é preciso assinalar, de imediato, o caráter histórico da idéia de pessoa enquanto sujeito/indivíduo, algo que fora construído na tensão de diversas contribuições e experiências, algo que só muito recentemente, dentro da tábua da história, passou a fazer parte do nosso pensamento cotidiano e das nossas vivências, e algo que encerra uma tensão entre a singularidade e o mundo que a cerca, entre a existência fisicamente isolada e a construção moral que a concebe enquanto “eu”. Esta é a perspectiva exposta por Charles Taylor, para quem:

A identidade moderna surgiu porque mudanças na autocompreensão ligadas a um grande leque de práticas – religiosas, políticas, econômicas, familiares, intelectuais, artísticas – convergiram e reforçaram-se mutuamente para produzi-la: por exemplo, as práticas de oração e ritual religioso, de disciplina espiritual como membro de uma comunidade cristã, de auto-exame na condição de um dos regenerados, da política do consentimento, da vida familiar resultante de casamentos baseados no companheirismo, da nova forma de criar os filhos que se desenvolve a partir do século XVIII, da criação

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artística sob as demandas da originalidade, da demarcação e defesa da privacidade, dos mercados e contratos, das associações voluntárias, do cultivo e demonstração de sentimentos, da busca do conhecimento científico. Cada uma dessas práticas, e outras, contribuíram um pouco para o conjunto de idéias em desenvolvimento sobre o sujeito e sua condição moral [...] houve tensões e oposições entre essas práticas e as idéias que elas veiculam, mas elas ajudaram a constituir um espaço comum de compreensão em que nossas idéias atuais do self e do bem se desenvolveram (TAYLOR, 1994, p.268).

Louis Dumont (1985) já observara a dualidade encerrada na noção de indivíduo, na medida em que estaríamos, com o mesmo termo, designando duas coisas distintas: por um lado, um objeto fora de nós, por outro lado um valor. Mauss aprofunda a distinção, fazendo uma análise pontual destes dois sentidos que o termo “indivíduo” encerra:

De um lado, o sujeito empírico que fala, pensa e quer, ou seja, a amostra individual da espécie humana, tal como a encontramos em todas as sociedades; do outro, o ser moral independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não-social, portador de nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar na ideologia moderna do homem e da sociedade (DUMONT, 1985, p.37).

Detendo-nos na contemporaneidade e em sua noção do que seja a pessoa individual, conforme nos explica Norbert Elias, atualmente a função primordial do termo indivíduo consiste em expressar a idéia de que todo ser humano do mundo é ou deve ser uma identidade autônoma, e, ao mesmo tempo, de que cada ser humano é, em certos aspectos, diferente de todos os demais, e talvez, diz o referido autor, deva sê-lo (ELIAS, 1994, p.130).

É na estrutura das sociedades mais desenvolvidas de nossa época que as diferenças entre as pessoas, sua identidade-eu, sejam mais altamente valorizadas do que aquilo que elas têm em comum, sua identidade-nós (ELIAS, 1994, p.130b).

É neste contexto em que surge a categoria jurídica dos direitos da personalidade, sendo uma construção teórica recente (AMARAL, 2003, p.250b) e que traz em si a idéia de novidade inerente à Modernidade.

Recorrendo novamente a Elias, deve-se caracterizar o Estado romano republicano da Antiguidade como exemplo clássico de um estágio de desenvolvimento em que o sentimento de pertencer à família à tribo e ao Estado, ou seja, a identidade-nós de cada pessoa isolada, tinha muito mais peso na balança do que a identidade-eu (ELIAS, 1994, p.130c).

Nestes termos, os direitos da personalidade não são e nem podem ser uma construção proveniente das lições clássicas do Direito Romano. Esta é uma formulação que merece toda uma análise mais detalhada e pontual, pela sua importância para fixar o caminho a ser percorrido na afirmação da pessoa no âmbito do Direito, processo que se mostra preliminar e essencial para fornecer as bases para a categoria dos direitos da personalidade.

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Francisco Amaral chega a identificar já no Código de Hamurábi dispositivos de proteção à integridade física ou moral do ser humano (AMARAL, 2003, p.256), para, em seguida, centrar sua análise histórica em institutos do Direito Romano que dariam suporte a uma proteção à personalidade, como a actio iniuriarium, criada pelo pretor e concedida à vítima de um delito de iniuria, que consistia, em sentido lato, em todo e qualquer ato atentatório o direito e, em sentido estrito, a qualquer agressão física, apontando ainda elementos de tutela jurídica da personalidade em dispositivos da Lex Aquilia[8][10] e da Lex Cornelia[9][11], principalmente no que diz respeito à agressão física e à invasão do domicílio (AMARAL, 2003, p.255-256).

Outros, como Bruno Miragem, procuram o fundamento para a proteção à personalidade na noção de pessoa que existia no Direito Romano, a partir da origem etimológica da palavra, proveniente do latim persona, que designava a máscara do ator para melhor fazer ecoar a voz[10][12], elemento que, tomado emprestado pelos juristas romanos, passou a designar os indivíduos em geral, quando desempenhando um papel na cena jurídica (MIRAGEM, 2004, p.80)[11][13].

No que pese o respeito pela posição destes autores, não é possível, como já dito anteriormente, identificar no Direito Romano, ou na própria Antigüidade Clássica greco-romana (menos ainda nos Impérios Orientais como a Mesopotâmia ao tempo do Código de Hamurábi) uma proteção jurídica à personalidade como hoje se concebe por faltar a este contexto histórico um elemento fundamental: a idéia de indivíduo/sujeito enquanto singularidade distinta do meio social.

Inicialmente, a persona latina se afigura, conforme nos diz Marcel Mauss (1974, p.227) como algo mais do que um fato de organização, mais do que um nome ou um direito reconhecido a um personagem e mais do que uma máscara ritual: é um fato fundamental do direito[12][14]. Mauss trará esta noção de forma mais detalhada na seguinte passagem:

A pessoa: é conditio, status, munus. Conditio é a posição (por exemplo, secunda persona Epaminondae – o segundo personagem depois de Epaminondas). Status é a situação na vida civil. Munus são os cargos honorários na vida civil e militar; tudo se determina pelo nome, que por sua vez é determinado pela situação familiar, pela classe, pelo nascimento (MAUSS, 1974, p.229).

Logo, falta o elemento da generalidade que marca a concepção moderna de pessoa/indivíduo[13][15]. Ainda, no contexto da civilização greco-romana, há que se entender a sociedade enquanto organização calcada no modo-de-produção escravocrata e na dicotomia entre a pólis (o espaço público propriamente, onde se discutiam as questões do Estado e os interesses políticos) e o oikos (o espaço privado, a propriedade[14][16], não só enquanto lugar da vida econômica e da subsistência, mas como o lugar da família, revestido da celebração da memória dos ancestrais e, portanto, de um caráter sagrado e religioso profundo).

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O pertencimento à família, tribo, cidade ou Estado é algo inalienável da condição humana. A identidade grupal ocupa a centralidade de toda a práxis social. Elias nos traz algumas considerações importantes acerca da prevalência da identidade-nós na Antiguidade clássica greco-romana:

A idéia de um indivíduo sem grupo, de uma pessoa tal como seria se fosse despojada de toda a referência ao nós, tal como se afiguraria se a pessoa isolada fosse tão valorizada que todas as relações-nós, como a família, a tribo e o Estado, fossem consideradas relativamente sem importância, essa idéia ainda estava em boa medida abaixo da linha do horizonte na práxis social do mundo antigo

[...] Não havia nenhum equivalente de “indivíduo” nas línguas antigas [...] o fato de pertencer a uma família tribo ou Estado desempenhava um papel inalienável na imagem do homem.

[...] A palavra latina persona poderia afigurar-se um equivalente ao “indivíduo” moderno, mas o conceito latino nada tem do nível de generalidade ou de síntese dos atuais termos “pessoa” ou “indivíduo”.

[...] Naturalmente, os antigos romanos sabiam, tão bem como podemos supor que todas as outras pessoas saibam, que todos têm sua peculiariedades [...] mas está claro que não havia necessidade [...] de um conceito abrangente e universal que significasse que toda a pessoa, independentemente do grupo a que pertencesse, era uma pessoa independente e singular, diferente de todas as demais, e que expressasse, ao mesmo tempo, o alto valor conferido a esta singularidade (ELIAS, 1994, p.130-131).

Neste sentido, a proteção que a actio iniuria e outros elementos citados proporcionava aos cidadãos constituía-se na verdade em proteção da integridade do grupo social e da pólis de determinadas práticas que eram condizentes com a vida em sociedade e não uma proteção à personalidade, algo que de resto não podia ser concebido no contexto histórico da Antigüidade greco-romana, como já colocado.

Os antecedentes filosóficos da compreensão moderna de pessoa e personalidade remontam a Idade Média européia, ao surgimento da idéia de indivíduo, no contexto do cristianismo e do pensamento teológico da Igreja Católica.

Inicialmente, cumpre destacar que a mudança de paradigma que lança elementos que irão contribuir para a formação da subjetividade moderna só foi possível em razão da ruptura do cristianismo em relação ao modelo das demais religiões da Antiguidade, pois o cristianismo se configurou, fundamentalmente, como uma religião de indivíduos, que não definem por uma vinculação a uma nação, a um povo específico ou mesmo a um Estado, mas por sua relação direta com o mesmo e único Deus, na medida em que, enquanto nas outras religiões a divindade se relacionava com a comunidade organizada, o Deus cristão relaciona-se diretamente com os indivíduos que nele crêem (MORAES, 2003, p.111).

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Ainda, se pode então destacar, como Marcel Mauss, que a nossa noção de pessoa humana é, ainda, fundamentalmente uma noção cristã, na medida em que, a partir do cristianismo, ocorre a passagem da noção de persona, homem revestido de um estado, à noção de homem simplesmente, de pessoa humana (MAUSS, 1974, p.235).

Neste contexto, a idéia de sujeito aparece na filosofia medieval, principalmente a partir das contribuições de Santo Agostinho, onde o Homem se configura como sujeito da Graça Divina, apesar de sua natureza pecaminosa.

Tal concepção abarca duas dimensões: enquanto sujeito, ele se submete à vontade Divina; ao mesmo tempo, ele é considerado único e singular, a salvação em Deus se constitui como uma escolha em contraponto ao pecado. A ação humana passa a se distinguir da coletividade e a ganhar sentido próprio. A contribuição de Alain Touraine para a compreensão das raízes da subjetividade no seio do pensamento cristão e medieval se mostra clara a esse respeito, na medida em que:

O apelo a Deus, que parece desviar o homem de si mesmo, pode ter o efeito contrário: ele esmaga o homem diante de Deus, mas também descobre na própria alma o que é a vida em Deus, para retomar a narração feita por Santo Agostinho da sua própria conversão, no livro VII das Confissões. Dualismo que destrói a si mesmo se se torna maniqueu, ao separar completamente um princípio do bem de um princípio do mal, mas ponto de partida para a construção de um sujeito que não coincide com os papéis sociais do ego, que não confunde mais o homem com o cidadão e desta forma reconhece o papel da subjetividade, tão estranha à tradição greco-romana (TOURAINE, 1994, p.48).

Charles Taylor traz a distinção agostiniana entre homem interior e exterior, sendo o último o corporal, o que o homem tem em comum com os outros animais, incluindo nossos sentidos e o armazenamento da memória, ao passo que o interior é a alma (TAYLOR, 1994, p.171).

Ainda segundo Taylor, o interior terá importância na perspectiva de Santo Agostinho na medida em que a estrada que leva do inferior ao superior passa pela atenção que prestamos em nós mesmos enquanto interior, ou seja, Deus deve ser encontrado não apenas no mundo, como também, e mais importante, nos próprios fundamentos da pessoa, devendo ser encontrado na intimidade da presença da própria pessoa diante de si mesma (TAYLOR, 1994, p.171-178).

Assim, o pensamento cristão, a partir de suas formulações filosófico-teológicas, irá trazer dois elementos que na Modernidade se revestiram de um caráter fundamental para a formação das bases jurídicas de promoção e proteção da pessoa humana e, por conseqüência, da categoria dos direitos da personalidade: a igualdade como elemento que une os seres humanos e a dignidade, pertencente a toda a Humanidade, mas, também, ao homem individualmente considerado.

Com relação à dignidade do homem, o cristianismo irá trazer uma concepção distinta do mundo greco-romano: a dignidade, além de ser um atributo de toda a coletividade

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humana, passa a ser também uma qualidade do homem singularmente considerado, como sujeito da graça de Deus. A análise desta mudança paradigmática é feita por Maria Celina Bodin de Moraes, no trecho a seguir destacado:

Foi o cristianismo que, pela primeira vez, concebeu a idéia de uma dignidade pessoal, atribuída a cada indivíduo. O desenvolvimento do pensamento cristão sobre a dignidade humana deu-se sobre um duplo fundamento: o homem é um ser originado por Deus para ser o centro da criação; como ser amado por Deus, foi salvo de sua natureza originária através da noção de liberdade de escolha, o que o torna capaz de tomar decisões contra o seu desejo natural.

[...] Daí se pôde pensar, como fez São Tomás, a dignidade humana sob dois prismas diferentes: a dignidade é inerente ao homem enquanto espécie e ela existe in actu só no homem enquanto indivíduo, passando dessa forma a residir na alma de cada ser humano. A inflexão diz com o fato de que o homem deve agora não mais olhar apenas em direção a Deus, mas deve voltar-se a si mesmo, tomar consciência de sua dignidade e agir de modo compatível (MORAES, 2003, p.111b).

Em verdade, a configuração atual da pessoa enquanto sujeito / indivíduo na experiência social e a consagração da sua proteção pelo Direito são partes de um processo que se efetiva de forma plena na aurora da Modernidade, notadamente entre os séculos XVI e XVIII, a partir de uma série de influências.

Danilo Doneda identifica a promoção do status jurídico da pessoa humana como sendo decorrência imediata de duas tradições, em especial: a do cristianismo (já endereçada anteriormente), que ao exaltar o indivíduo, distinguia-o da coletividade e dotava-o de livre – arbítrio; e a das declarações de direitos surgidas em fins do século XVIII, como substrato para realizar a libertação do homem das várias limitações que lhe eram opostas pelo sistema feudal (DONEDA, 2002, p.37-38). O mencionado autor identifica duas influências importantes na conformação da subjetividade e de suas repercussões jurídicas na Modernidade, apontando, ainda que de forma tênue, uma linha de fundo religioso e outra de influência laica na concretização da idéia de pessoa e na defesa de sua dignidade.

Ainda, a relação entre a influência cristã na promoção da noção de pessoa / sujeito e na defesa de sua dignidade e a influência das contribuições laicas ou seculares se dará de forma dinâmica, ora de forma complementar, ora como um desenvolvimento continuado em certos momentos, mas também ora como uma tensão entre uma visão em que o mundo aparece encantado e outra, em que há o desencantamento e a secularização desempenham um papel preponderante.

Na alvorada do período histórico identificado como Idade Moderna ocorre o primeiro movimento que contribui para o surgimento da subjetividade moderna, ocorrido no interior da cristandade e que se constituiu em uma ruptura no âmbito da religião cristã, a

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reforma protestante, que fora iniciada por Lutero na Alemanha e radicalizada por Calvino.

Com efeito, a ruptura no seio do cristianismo ocidental, opondo os diversos segmentos do protestantismo ao catolicismo romano, vai significar uma redefinição do significado da Igreja e da sua relação com os fiéis[15][17], bem como apontado, notadamente no calvinismo, para a rejeição da mediação entre Deus e os homens na figura de intermediários, levando a uma concepção da fé como uma prática centrada na interioridade. Ainda, a afirmação da vida cotidiana, originada na própria espiritualidade judeu-cristã, recebe, na era moderna, um impulso particular que vem, sobretudo, da Reforma (TAYLOR, 1994, p.279),

Nesse sentido, Dumont aponta para o fato de que Lutero expulsara Deus do mundo ao rejeitar a mediação institucionalizada da Igreja católica, onde Deus estava presente por delegação em homens distinguidos como intermediários, ou seja, os dignatários da Igreja, sacerdotes investidos de poderes sacramentais, monges devotados a um tipo superior de vida (DUMONT, 1985, p.64-65). O sentido disso para a formação da subjetividade moderna é fundamental, pois, conforme nos mostra Taylor:

Quando uma salvação mediada deixa de ser possível, o envolvimento pessoal do fiel adquire importância fundamental. Assim, a salvação pela fé não refletia apenas uma proposição teológica sobre a inutilidade das obras humanas, mas também o novo sentido da importância crucial do envolvimento pessoal. A pessoa já não pertencia ao círculo dos eleitos, ao povo de Deus, por sua ligação a uma ordem mais abrangente que sustentava a vida sacramental, mas por sua adesão pessoal irrestrita (TAYLOR, 1994, p.281).

Dumont aponta ainda uma distinção entre a perspectiva adotada por Lutero e a radicalização da reforma por Calvino, o que será central para a constituição do sujeito moderno, pois:

Para Lutero, Deus ainda é acessível à consciência individual pela fé, o amor e, numa certa medida, pela razão. Em Calvino, o amor cai para o segundo plano, e a razão só se aplica neste mundo. Ao mesmo tempo, o Deus de Calvino é o arquétipo da vontade, no qual pode ver-se a afirmação indireta do homem como vontade e, para além, a afirmação mais forte do indivíduo, oposta, se necessário, ou superior à razão (DUMONT, 1985, p.65).

Os séculos XVII e XVIII trarão, seja no âmbito do pensamento filosófico, seja na trajetória dos movimentos sociais e políticos que marcaram o período (com destaque

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para o Iluminismo), as bases definitivas para a constituição da modernidade e, com a ela, a configuração que conhecemos do sujeito moderno, que servirá de base para a formulação do sujeito de direito e da categoria dos direitos da personalidade.

Sem qualquer receio, pode-se estabelecer que o elemento que marca em definitivo a virada para a compreensão moderna da subjetividade é o pensamento de Descartes, que marca o início do racionalismo moderno. A importância de Descartes se evidencia, inicialmente, do fato de nele aparecerem de forma articulados os dois elementos definidores da Modernidade, o sujeito e a razão, que passam a coabitar no ser humano (TOURAINE, 1994, p.50).

Descartes indagou-se, primeiramente, se havia alguma coisa de que tivesse certeza absoluta, alguma coisa que não fosse possível duvidar em nenhuma circunstância (ELIAS, 1994, p.82). Só depois de passar algum tempo vagando pelas trevas da incerteza e submetendo todas as suas experiências à prova de fogo de sua dúvida radical foi que Descartes vislumbrou um pálido raio de luz no fim do túnel (ELIAS, 1994, p.83), desenvolvendo o seguinte raciocínio:

Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: penso, logo existo], era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o princípio primeiro da filosofia que procurava (DESCARTES, 1996, 91-92).

A opção cartesiana é ver a racionalidade, ou a capacidade de pensar, como uma capacidade que temos de construir ordens que satisfaçam os padrões exigidos pelo conhecimento, ou compreensão ou certeza (TAYLOR, 1994, p.194), de forma que:

Se seguirmos essa linha de raciocínio, então o autodomínio da razão deve agora consistir em que essa capacidade seja o elemento controlador de nossa vida, e não os sentidos; o autodomínio consiste em que nossa vida seja moldada pelas ordens que nossa capacidade de raciocínio construir de acordo com os padrões apropriados (TAYLOR, 1994, p.194b).

Fica evidenciado então, no âmbito do pensamento cartesiano, que o uso da nossa inteligência, do nosso livre-arbítrio, nos aproxima de Deus e nos ajuda a nos compreendermos enquanto indivíduos, bem como orienta nossas ações no mundo.

Diante do exposto, no pensamento cartesiano o sujeito se define pelo controle das razões sobre as paixões, mas é acima de tudo vontade criadora, princípio interior de conduta e não mais de acordo com a ordem do mundo (TOURAINE, 1994, p.52).

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As concepções do eu humano colocados por Descartes em sua obra filosófica são características da passagem de uma concepção dos seres humanos e do mundo alicerçada na religião para concepções secularizadas (ELIAS, 1994, p.83c), levando a um desencantamento do mundo, de forma a emancipar os sujeitos das compreensões ligadas a uma ordem universal centrada na vontade divina, pois:

As deliberações de Descartes [...] indicam, de maneira paradigmática, os problemas peculiares com que as pessoas se viram confrontadas, ao pensarem em si e na certeza de sua auto-imagem, quando o panorama religioso do eu e do mundo se tornou um alvo aberto à dúvida e perdeu a convicção de evidência (ELIAS, 1994, p.83d).

Dessa forma, a confiança de Descartes na razão conduz a uma reflexão sobre o sujeito humano que não é somente criatura, mas igualmente imagem do Criador, tornando o mencionado filósofo no agente principal de transformação do dualismo cristão num pensamento moderno do sujeito (TOURAINE, 1994, p.54-55).

A afirmação da subjetividade na filosofia de Descartes foi fundamental, no plano filosófico, para a formação da idéia de sujeito/indivíduo tão familiar ao pensamento da modernidade ocidental. O século XVII ainda reservaria, no âmbito da filosofia política, as contribuições de Hobbes e Locke, que, embora empiristas e opostos ao racionalismo como colocado pelo pensamento cartesiano, contribuíram, no esteio do que fora colocado pelo filósofo francês, ao aprofundar o processo de subjetivismo em um contexto de desencantamento do mundo da cosmovisão de base religiosa.

Com efeito, o modelo de representação do conhecimento de Descartes foi adotado pelos empiristas, enfatizando ainda mais a visão da dimensão construtiva do nosso conhecimento no mundo, o que, nos termos destacados por Charles Taylor, levou Hobbes, e depois Locke, seguido por seus discípulos do século XVIII, a conceber nossa imagem do mundo quase literalmente como uma montagem de blocos em construção – ou seja, as sensações ou idéias produzidas pela experiência (TAYLOR, 1994, p.256).

Nesse sentido, o homem para Hobbes é o indivíduo, que busca primordialmente a sua honra, entendida essa como o valor atribuído a alguém em função das aparências externas (RIBEIRO, 2003, p.61). Nesse contexto, a imagem do homem desenhada por Hobbes é constituída:

De um dualismo entre as paixões e a razão, entre uma face animal e uma face racional [...] De fato, o que diferencia no Leviatã o homem do animal é a língua e a razão fundamentada na língua [...] a racionalidade é concedida ao homem de uma forma impura[16][21], misturada de animalidade, e só se expandirá em racionalidade pura com a construção de uma commonwealth artificial (DUMONT, 1985, p.99b).

Em Hobbes, a figura do outro, do homem universal, acaba por regular, de fato, o homem e por formá-lo a sua imagem e semelhança (SOARES, 1995, p.229). Mas aqui

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Hobbes se distingue de Descartes, pois se este último coloca as fontes morais dentro de nós, para o filósofo inglês o deslocamento do foco para o cálculo e a antecipação esvaziou o ator de qualidades muito marcadamente psicológicas ou morais, de propriedades axiomaticamente introduzidas (SOARES, 1995, p.230).

Assim, na perspectiva hobbesiana e com base no procedimento metódico nele contido, sustenta-se que antes de conceber o outro segundo a imagem de si acessível, o sujeito racional concebe-se a si próprio, segundo a imagem de homem acessível, produzida da antropologia dedutível, com método, da razão; com efeito, o homem universal constitui a referência modelar para a identidade do sujeito, cuja racionalidade deriva de sua extensão projetiva[17][22] (SOARES, 1995, p.228-229).

A chave da compreensão da subjetividade em Hobbes é formulação de um sujeito universal, como base para a compreensão do objetivo primordial do indivíduo humano: a defesa da vida, ou seja, a perspectiva de autoconservação do indivíduo, que o empurra para o estado civil e constitui a sociedade, ao passo que o conceito universalizável de homem em Hobbes produz o humano, na medida em que viabiliza, graças à mediação política que enseja, a vida coletiva, suporte material de preservação da espécie e condição da pluralidade, o que torna possível a própria suposição da universalidade (SOARES, 1995, p.240).

A importância fundamental do pensamento de Hobbes para a formação da subjetividade moderna consiste, portanto, no fato de que, em primeiro lugar, o contrato, na formulação hobbesiana, produz dois resultados importantes (RIBEIRO, 2003, p.77): “o homem é artífice de sua condição, de seu destino, e não Deus ou a natureza, e, ao mesmo tempo, o homem pode conhecer tanto a sua presente condição miserável quanto os meios de alcançar a paz e a prosperidade”. Nas palavras de Luiz Eduardo Soares:

Está em jogo a formação de um indivíduo sobre o qual se possa dizer, como o fará Hobbes, que, privadamente, é livre [...] para que se torne politicamente pensável e experienciável uma esfera de privacidade ou intimidade – mais profundamente de subjetividade -, que se defina pela liberdade – quanto a obrigações religiosas ou políticas, pois não há livre-arbítrio em termos absolutos -, é preciso desalojar a referência constitutiva desse novo espaço social, isto é, o indivíduo – que circunscreve uma esfera própria, inexpugnável -, da teia de relações comunitárias e orgânicas que o inventavam, culturalmente, como parte componente de totalidades sempre mais abrangentes, retardando, desse modo, sua plena emergência histórica. O contrato contribui para essa remoção libertadora e produtiva da individualidade, fazendo-a vir a tona, como categoria e forma concreta de experiência social, sob o signo da racionalidade e da autonomia [...] desencadeando os processos que terminam por conduzir ao fortalecimento ou que, pelo menos, terminam por facilitar o desenvolvimento da nova figura da cultura ocidental, o indivíduo (SOARES, 1995, p.155-156).

Ainda, Hobbes irá formular o conceito de pessoa, articulando com as noções de representação e visibilidade, na medida em que caracteriza a mesma como aquela “cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando

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as palavras ou ações de outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas, seja como verdade ou como ficção”[18][23] (HOBBES, 1998, p.100).

Por sua vez, John Locke irá dar um novo fundamento à separação entre o indivíduo e a sociedade (TOURAINE, 1994), o que irá influenciar diretamente a filosofia do iluminismo e as revoluções e declarações de direito que retiram do pensamento iluminista o substrato ideológico para a derrubada do antigo regime, a afirmação dos direitos individuais e, em última análise, a constituição da modernidade política.

Na sua obra “Ensaio sobre o Entendimento Humano”, Locke irá também formular um conceito de pessoa, empregando-a para designar aquilo que alguém chama de “si mesmo”, associando ao termo as palavras “identidade”, “consciência” e “memória”, percebendo o ser humano individual como dotado de identidade reflexiva, em virtude da consciência dessa identidade (MORAES, 2003, p.112). Nas palavras do próprio Locke:

Na medida em que qualquer ser inteligente puder repetir a idéia de qualquer ação passada com a mesma consciência que teve dela na primeira vez, e com a mesma consciência que tem de qualquer ação presente, nessa medida ele é mesmo self pessoal. Pois é pela consciência que tem de seus pensamentos e ações presentes que ele é um self para si agora, e, portanto, será o mesmo self enquanto a mesma consciência puder estender-se a ações passadas e futuras (LOCKE apud TAYLOR, 1994, p.224).

Locke sustentava que o homem era naturalmente livre e proprietário da sua pessoa e do seu trabalho[19][24]; ao incorporar o seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural o homem tornava-a sua propriedade privada, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens (MELLO, 2003, p.85).

Locke aponta para o fato, então, de que a liberdade do homem e a liberdade de agir conforme sua própria vontade baseiam-se no fato de ser ele possuidor de razão[20][25], que, ainda segundo Locke, é capaz de instruí-lo sobre a lei pela qual ele se deverá governar e de fazer com que saiba até que ponto pode dar-se à liberdade de sua própria vontade (LOCKE, 1998, p.438).

A passagem do estado de natureza ao estado civil, com vistas a preservar os direitos do indivíduo, notadamente a propriedade, assim como a consagração de um direito de resistência contra o soberano, no caso da violação desses bens, é descrita por Leonel Mello da seguinte forma:

O estado de natureza, relativamente pacífico, não está isento de inconvenientes, como a violação da propriedade (vida, liberdade, bens) que, na falta de lei estabelecida, juiz imparcial e força coercitiva para impor a execução das sentenças, coloca os indivíduos singulares em estado de guerra uns contra os outros. É a necessidade de superar estes inconvenientes que [...] leva os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si

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o contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil. [...] Seu objetivo precípuo é a preservação da propriedade e a proteção da comunidade tanto de perigos internos quanto das invasões estrangeiras. [...] No estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade aos bens estão melhor protegidos sobre o amparo da lei, do arbítrio e da força comum de um corpo político unitário. (MELLO, 2003, p.86-88).

Assim, Locke se apresenta como uma influência decisiva do Iluminismo, na medida em que articulou uma descrição plausível da nova ciência como conhecimento válido com uma teoria do controle racional do self, associando-as sob o ideal da auto-responsabilidade racional (TAYLOR, 1994, p.227).

Além disso, é a partir de Locke que está colocada fortemente a concepção das imunidades básicas que desfrutamos – vida, liberdade – na forma de direitos subjetivos calcadas na posse de propriedades, refletindo a postura extrema de desprendimento em relação ao próprio ser do self pontual de Locke (TAYLOR, 1994, p.254).

O Iluminismo e o pensamento filosófico do século XVIII serviram-se da idéia de razão e da construção dos direitos do homem como consagração da autonomia do indivíduo e da defesa de sua pessoa contra o arbítrio do Estado como substrato para a deflagração das revoluções liberais e declarações de direitos, que colocaram fim ao antigo regime, consagrando uma crença na razão que será fundamental para consolidar em termos definitivos o processo de subjetivismo, associado ao desencantamento do mundo, que se processava desde o início da era moderna, nos séculos XVI e XVII, pois, conforme nos traz Hannah Arendt:

O Iluminismo elevou a razão ao status de autoridade[21][26]. Declarou como capacidades supremas do homem o pensamento e o que Lessing chamava de “pensar por si próprio”, no qual qualquer pessoa pode se empenhar sozinha e por seu próprio arbítrio [...] o pensar por si próprio liberta dos objetos e de sua realidade, cria uma esfera de puras idéias e um mundo que é acessível, sem conhecimento ou experiência, a qualquer ser racional (ARENDT, 1994, p.20).

É no pensamento político e filosófico dos séculos XVII e XVIII, sendo o Iluminismo o apogeu dessa trajetória, que afirmamos as teorias dos direitos naturais, como forma de expressar as imunidades concedidas às pessoas por lei, e também o princípio de que todos os seres humanos merecem nosso respeito, em termos de direitos subjetivos, numa concepção que coloca o indivíduo no centro de nosso sistema legal (TAYLOR, 1994, p.25; 254).

A consideração do indivíduo como sujeito da autonomia individual, moral e intelectual (essência da filosofia das luzes), justificará a exigência revolucionária da constatação ou declaração dos direitos do homem, existentes a priori (CANOTILHO, 1999, p.106).

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A teoria dos direitos naturais pode ser anotada, segundo alguns autores, como a primeira exaltação dos direitos da personalidade, proclamados de forma solene nas declarações de direitos do século XVIII (SAMPAIO, 1998, p.49), textos nos quais se estabelece a noção de que os direitos fundamentais constituem uma esfera própria e autônoma dos indivíduos (CANOTILHO, 1999, p.107).

Em relação às Declarações de Direitos, a partir dos séculos XVII e XVIII, no contexto do Humanismo e do Iluminismo, o indivíduo é reconhecido como valor central do sistema jurídico e se desenvolve a teoria dos direitos subjetivos como tutela dos interesses e dos valores fundamentais da pessoa (AMARAL, 2003, p.256).

O documento político e jurídico de maior impacto na afirmação dos direitos individuais a partir da influência do jusnaturalismo e do Iluminismo no século XVIII, com profundas marcas para o desenvolvimento e afirmação em termos políticos da subjetividade moderna foi a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão promulgada pela Assembléia Nacional francesa, de 26 de agosto de 1789.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França de 1789 consagra, logo no seu art. 1o, que os homens nascem e são livres e iguais em direitos, ao passo que as distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum. O art. 2o da Declaração se reveste de profunda importância para o entendimento da consagração política dos direitos do indivíduo humano, ao estabelecer que o fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem, sendo esses direitos a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

A influência das Declarações de Direitos do Homem e do Cidadão da França revolucionária ultrapassou a das declarações americanas, bem como a da Declaração de Direitos (Bill of Rights) da Inglaterra da Revolução Gloriosa, pois, é um texto longo e que não objetiva apenas proclamar princípios em contradição com uma monarquia absoluta, mas confere uma expressão universal à idéia dos direitos do homem e proclama publicamente a dupla natureza da modernidade feita simultaneamente de racionalização e de subjetivação (TOURAINE, 1994, p.60-61).

A noção de indivíduo, elevado à posição de sujeito unificador de uma nova sociedade, manifesta-se fundamentalmente de duas maneiras: a primeira acentua o desenvolvimento do sujeito moral e intelectualmente livre; a segunda parte do desenvolvimento do sujeito econômico livre no meio da livre concorrência (CANOTILHO, 1999, p.106b).

Ainda, conforme nos traz José Adércio Leite Sampaio, devemos atentar para o fato de que no cerne do direito à vida privada se encontra a independência do homem livre perante o Estado, a qual dará ensejo no futuro a consideração do direito à vida privada como “autonomia”, ou seja, o direito exclusivo de tomar decisões íntimas e existenciais, expresso já nas primeiras Declarações de Direitos nas garantias de inviolabilidade da pessoa, da casa e de sua correspondência (SAMPAIO, 1998, p.34).

Assim, as revoluções que eliminam a monarquia absoluta da Inglaterra das colônias inglesas que se tornaram os Estados Unidos, e da França, foram definidas pela recuperação do pensamento do Iluminismo e do dualismo cristão e cartesiano,

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combinando a consciência do sujeito pessoal com o triunfo da razão procedimental (TOURAINE, 1994: 63).

A derradeira e significativa contribuição filosófica para a compreensão moderna do sujeito e sua plena afirmação advém de um pensador alemão do século XVIII e o início do século XIX, tributário do contexto do Iluminismo e da Revolução francesa: Immanuel Kant, que foi um representante do Iluminismo e, em sua filosofia, buscava conceber uma síntese entre o racionalismo e a tradição empírica inglesa, ao mesmo tempo fazendo da razão o supremo tribunal ante o qual deve se justificar tudo aquilo que em princípio reivindica validade (HABERMAS, 2000), na medida em que:

Kant substitui o conceito substancial de razão da tradição metafísica pelo conceito de uma razão cindida em seus momentos, cuja unidade não tem mais que um caráter formal. Ele separa do conhecimento teórico as faculdades da razão prática e do juízo e assenta cada uma delas sobre seus próprios fundamentos. Ao fundar a possibilidade do conhecimento objetivo, do discernimento moral e da avaliação estética, a razão crítica não só assegura suas próprias faculdades subjetivas, mas também assume o papel de juiz supremo perante o todo da cultura (HABERMAS, 2000, p.28-29).

O imperativo categórico kantiano encontra-se expresso na seguinte sentença: “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa sempre valer simultaneamente como um princípio para uma legislação geral” (MORAES, 2003, p.113b), que por sua vez se desdobra em três formulações equivalentes: 1) A primeira formulação (fórmula da lei universal) diz: “age somente em concordância com aquela máxima através da qual tu possas ao mesmo tempo querer que ela venha a se tornar uma lei universal"; 2) A segunda formulação (a fórmula da humanidade) diz: “age por forma a que uses a humanidade, quer na tua pessoa como de qualquer outra, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio”; 3) Finalmente, a terceira e última (fórmula da autonomia) diz: “age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais”.

Assim, Kant compartilha a ênfase moderna na liberdade como autodeterminação, na medida em que insiste em ver a lei moral como emanando da nossa vontade e considerando que nosso espanto diante dela reflete o estatuto do agir racional, seu autor e o ser que ela expressa (TAYLOR, 1994, p.115).

Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes, o imperativo categórico kantiano adquire fundamental importância na compreensão do sujeito humano e de sua dignidade na medida em que:

Compõe o imperativo categórico a exigência de que o ser humano jamais seja visto, ou usado, como um meio para atingir outras finalidades, mas sempre seja considerado como um fim em si mesmo. Isto significa que todas as normas decorrentes da vontade legisladora dos homens precisam ter como finalidade o homem, a espécie humana

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enquanto tal. O imperativo categórico orienta-se, então, pelo valor básico, absoluto, universal e incondicional da dignidade humana. É esta dignidade que inspira a regra ética maior: o respeito pelo outro (MORAES, 2003, p.113d).

Logo, os agentes racionais têm uma posição que ninguém mais desfruta no universo, pois pairam acima do resto da criação; tudo mais pode ter um preço, mas só eles (os agentes racionais) têm “dignidade” (Würde)[22][27], insistindo Kant enfaticamente que nossas obrigações morais nada devem à ordem da natureza (TAYLOR, 1994, p.115b).

A modernidade marca então, na consolidação plena do processo de subjetivação, o encontro das três concepções que irão marcar o ser humano a partir de então: o sujeito[23][28], como um ponto de tensão marcado por um dualismo entre a ordem e interioridade; o indivíduo[24][29], que aponta para a singularidade, e a pessoa, que passa de fato fundamental do direito, oposto à subserviência, bem como transcendendo a mera representação, para se tornar um ator nas relações sociais e se converter em um valor, consagrando a síntese do sujeito com o indivíduo, enriquecida pela afirmação da dignidade do homem enquanto criatura de Deus, ou, para uma visão mais secularizada, enquanto ser racional.

A idéia de modernidade, assim, conhece, no direito e no pensamento político como na filosofia, uma bifurcação onde se separam: um naturalismo, que é completado pela idéia de sociedade enquanto corpo social, e um individualismo dentro do qual se forma a noção de sujeito (TOURAINE, 1994, p.55).

Dessa forma, Habermas assinala que a expressão subjetividade comporta quatro conotações (HABERMAS, 2000, p.25-26): a) individualismo: no mundo moderno, a singularidade infinitamente particular pode fazer valer suas pretensões; b) direito de crítica: o princípio do mundo moderno exige que aquilo que deve ser reconhecido por todos se mostra a cada um como algo legítimo; c) autonomia da ação: é o próprio dos tempos modernos que queiramos responder pelo que fazemos; d) filosofia idealista: Hegel considera como obra dos tempos modernos que a filosofia apreenda a idéia de que se sabe a si mesma.

Por sua vez, Alain Touraine evidencia que o mundo moderno é ocupado pela referência a um sujeito que está libertado, isto é, que coloca como princípio do bem o controle que o indivíduo exerce sobre suas ações e sua situação que lhe permite conceber e sentir seus comportamentos como componentes da sua história pessoal de vida, conceber a si mesmo como ator, declarando Touraine, como arremate, que o sujeito é a vontade de um indivíduo de agir e de ser reconhecido como ator (TOURAINE, 1994, p.219-220).

O apelo moderno ao sujeito retoma, sob uma forma secularizada, a idéia antiga, no início do direito natural[25][30], segundo a qual todos os homens são iguais e têm os mesmos direitos, pois são criaturas de Deus (TOURAINE, 1994, p.224); o que se desdobra, a partir da afirmação dos direitos do indivíduo com base na teoria dos direitos naturais, na figura do sujeito de direito, que é reconduzido à titularidade de uma relação na forma do direito (subjetivo) abstrato, ou seja, à personalidade, enquanto categoria jurídica.

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O direito subjetivo acaba se apresentando então como uma categoria fundamental no âmbito do sistema de Direito, tanto por um aspecto técnico, quanto por um aspecto ético[26][31]. Em relação ao primeiro aspecto apontado, o direito subjetivo significa a situação em que alguém se acha de poder agir livremente em uma determinada esfera de ação, o que lhe é garantido pelo direito objetivo, garantindo a liberdade do homem e a realização de seus interesses (AMARAL, 2003, p.188).

Do ponto de vista ético, no que será constitutivo da categoria dos direitos da personalidade, o direito subjetivo é mais do que um conceito técnico, mas tem um significado ético que se manifesta nas funções que desempenha, tanto na defesa das liberdades públicas ou dos direitos fundamentais, sob a forma de direitos subjetivos públicos nas relações entre o Estado e os cidadãos, quanto na realização dos interesses da pessoa na órbita dos particulares (AMARAL, 2003, p.188b). Ainda do ponto de vista ético, sua importância é destacada de forma singular por Charles Taylor:

A noção de um direito, também chamado de “direito subjetivo”, tal como desenvolvida na tradição legal do Ocidente, é de um privilégio legal visto como uma quase-posse do agente a quem é atribuído. Em princípio, esses direitos eram posses preferenciais: algumas pessoas tinham o direito de participar de certas assembléias, de dar conselhos ou de cobrar taxas em determinados rios e assim por diante. A revolução na teoria do direito natural no século XVII consistiu em parte em usar essa linguagem dos direitos para exprimir as normas morais universais. Começamos a falar de direitos “naturais”, aplicados agora a coisas como a vida e a liberdade, que supostamente todos têm.

(...) Atribuir a alguém uma imunidade, antes dada pela lei natural, na forma de um direito natural é dar-lhe um papel no estabelecimento e aplicação dessa imunidade. Agora, sua participação é necessária e seus graus de liberdade são correspondentemente maiores. No limite extremo destes, pode-se até renunciar a um direito, derrotando assim a imunidade. Eis por que Locke, a fim de excluir essa possibilidade no caso dos seus três direitos básicos, teve de introduzir a noção de “inalienabilidade”. Nada semelhante a isso era necessário na formulação da lei natural anterior, porque essa linguagem, por sua própria natureza, exclui o poder de renúncia (TAYLOR, 1994, p.25b).

Logo, se torna imprescindível reconhecer as formulações tanto do direito subjetivo quanto da categoria dos direitos da personalidade, no século XIX, como desdobramentos do processo de afirmação da subjetividade moderna, como construtos provenientes da articulação entre sujeito, indivíduo e pessoa, na interação entre a racionalidade e a dignidade individual do ser humano, em um processo tributário da teoria dos direitos naturais e da consagração dos direitos dos homens nas revoluções liberais e declarações de direitos, de forma a reconhecer ao sujeito individual o caráter de autonomia frente ao Estado e à sociedade, o que será essencial para a constituição e desenvolvimento da personalidade, como mostra Charles Taylor:

Falar de direitos humanos universais, naturais, é vincular o respeito pela vida e pela integridade humanas à noção de autonomia. É conceber as pessoas como colaboradores ativos no estabelecimento e garantia do respeito que lhes é devido. E isso exprime uma

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característica central da nossa perspectiva moral ocidental moderna. Essa mudança de forma se faz acompanhar, naturalmente, de uma alteração de conteúdo, da concepção do que é respeitar alguém. A autonomia agora é central a isso. Assim, a trindade lockiana dos direitos naturais inclui a liberdade. E, para nós, respeitar a personalidade envolve como elemento crucial respeitar a autonomia moral da pessoa. Com o desenvolvimento da noção pós-romântica de diferença individual, isso se amplia até a exigência de darmos às pessoas a liberdade de desenvolver sua personalidade à sua própria maneira, por mais repugnante que seja para nós e mesmo para o nosso sentido moral (TAYLOR, 1994, p.26).

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[1][1] Sobre o conceito de modernidade, podemos recorrer a Giddens, que de forma sintética estabelece a modernidade se referindo ao estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência (GIDDENS, 1991, p.11). A afirmação de Giddens é um ponto inicial para a compreensão da modernidade, mas seria preciso encontrar outros pontos para a sua caracterização. Nesse sentido, Bauman coloca que a modernidade significa muitas coisas, e sua chegada e avanço podem ser aferidos utilizando-se muitos marcadores diferentes; para ele, uma das características da vida moderna e de seu moderno entorno se impõe, no entanto, como a “diferença que faz a diferença”, como o atributo crucial de todas as características que se seguem. Este atributo seria a relação entre espaço e tempo, na medida em que a modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida, presos numa estável e aparentemente invulnerável correspondência biunívoca (BAUMAN, 2001, p.15).

[2][2] O conceito de Orlando Gomes traz a idéia de que necessariamente os direitos da personalidade devem estar disciplinados no corpo do Código Civil, evidenciando um paradigma de Direito Privado onde a codificação civil ocupa a centralidade do sistema. Entretanto, atualmente, conforme se destacará posteriormente neste trabalho, o papel de centralidade e unidade do sistema se transferiu do Código Civil para a Constituição, através da consagração da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da liberdade, da igualdade e da solidariedade. Assim, os princípios e valores constitucionais passam a ocupar o papel de diretriz da proteção à pessoa, ao passo que os direitos da personalidade acabam por ganhar várias concretizações normativas diante da sociedade contemporânea e de sua complexidade, o que leva a criação e desdobramento de novas figuras de proteção à personalidade, que surgem no âmbito da legislação especial e dos estatutos infraconstitucionais. Portanto, não se pode mais conceber os direitos da

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personalidade como tratados de forma exclusiva no âmbito do Código Civil, embora lá estejam disciplinados também. Outrossim, no conceito de Orlando Gomes se mostram os elementos fundamentais para a compreensão dos direitos da personalidade enquanto categoria de Direito, razão pela qual deve ser aqui exposto.

[3][3] Com efeito, os direitos da personalidade, assim como os direitos fundamentais, só podem ser reconhecidos no contexto histórico-cultural do sistema jurídico de cada sociedade, resultado das ações dos próprios homens, que fazem as suas leis e não de qualquer concessão aos mesmos por uma entidade metafísica, seja a partir de um jusnaturalismo de base teocêntrica, que procura o fundamento do Direito na razão divina, seja em um jusnaturalismo que, ainda que desvinculada de uma concepção religiosa, perceba a razão natural como eterna, imutável e universal, válida da mesma forma em todos os tempos.

Neste sentido, vale a pena destacar o pensamento de Tepedino (2004, p.44), para quem parece possível considerar os chamados direitos da personalidade como inatos unicamente pelo fato de nascerem juntamente com a pessoa humana, segundo a disciplina do direito positivo, despidos assim de qualquer conotação jusnaturalista.

[4][4] Neste sentido, Lisboa relata que devemos entender extrapatrimonialidade como insuscetibilidade de mensuração patrimonial e, por conseguinte, de comércio jurídico (res extra commercio); contudo, se torna possível a autorização de uso de determinados direitos da personalidade, a fim de que seu titular possa obter algum proveito econômico, caso do uso da imagem mediante retribuição pecuniária, o uso autorizado da voz para fins publicitários, ou o uso autorizado de obra intelectual, objetivando sua divulgação (LISBOA, 2003: 248). Assim, o mencionado autor terminar por esclarecer que somente se torna possível a percepção de dinheiro pela autorização do uso econômico do direito da personalidade (LISBOA, 2003, p.269).

[5][5] Da indisponibilidade acabam decorrendo a inalienabilidade (não podem ser alienados pelo titular), a irrenunciabilidade, nos termos do caput do art. 11 do Código Civil. Cumpre destacar que não fere a irrenunciabilidade dos direitos da personalidade o fato de seu titular permitir a exploração econômica de aspectos personalíssimos que não comprometam a vida ou a saúde dele (LISBOA, 2003, p.249).

[6][6] Cumpre destacar que esta indisponibilidade não é absoluta, admitindo-se acordo que tenha por objeto direito da personalidade, como, por exemplo, o caso de cessão de direitos da personalidade para fins de imagem e a disposição gratuita do próprio corpo para depois da morte (AMARAL, 2003, p.252).

[7][9] Não obstante se faça aqui uma opção por uma concepção que privilegia um entendimento dos direitos da personalidade como direitos subjetivos, não se pode esquecer, como destaca Maria Celina Bodin de Moraes, que a personalidade humana não se realiza apenas através de direitos subjetivos, mas sim através de um complexo de situações jurídicas subjetivas, que podem se apresentar sob diversas configurações: como poder jurídico, como direito potestativo, como interesse legítimo, pretensão, autoridade parental, faculdade, ônus, estado – enfim, como qualquer circunstância juridicamente relevante (MORAES, 2003, p.142). Isto, porém, não parece afastar a noção de direito subjetivo como a qualificação jurídica mais apropriada para os direitos da personalidade, desde que reconhecido que aí se trabalha com uma concepção de

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direito subjetivo muito específica, conectada aos direitos humanos e afastada do paradigma clássico do direito subjetivo construído a partir do direito de propriedade em sentido estrito. Faz-se necessário reconhecer também que são direitos em geral indisponíveis e extrapatrimoniais, concedidos a todas as pessoas humanas, e que a proteção a estes direitos se dá tanto na ordem privada quanto na esfera pública, na afirmação da individualidade e na garantia do livre desenvolvimento da pessoa em sociedade.

[8][10] A lex Aquilia era na verdade plebiscito votado por proposição de um tribuno da plebe, de nome Aquilius, mais ou menos, em fins do século III a.C. É lei de circunstância, provocada pelos plebeus que, desse modo, se protegiam contra os prejuízos que lhes causavam os patrícios, nos limites de suas propriedades. Antes da lei Aquilia imperava o regime da Lei das XII Tábuas, que continha regras isoladas (FIÚZA, 2003, p.606). A Lex Aquilia outorgava direito de ação destinado a tutelar a integridade física das pessoas (SZANIAWSKI, 2003, p.32), tratando por substituir a retribuição do mal pelo mal por uma pena pecuniária, contrastando com o fato de que sob o regime dos preceitos da Lei das XII Tábuas era imposta a quem causava um dano uma pena igual ao mal causado; logo, a Lex Aquilia acabava com a reparação a partir da vingança privada, substituindo-a pela responsabilidade fundada na culpa e proporcional ao dano.

[9][11] A Lex Cornelia era uma lei romana, promulgada provavelmente em 81 a C, destinada a proteger o domicílio contra a sua violação (SZANIAWSKI, 2003, p.32b).

[10][12] No capítulo XVI do Leviatã, Thomas Hobbes relata a gênese da noção de pessoa na tradição greco-romana, dizendo que: a palavra “pessoa” é de origem latina. Em lugar dela os gregos tinham prosópon, que significa rosto, tal como em latim persona signigica o disfarce ou aparência exterior de um homem, imitada no palco. E por vezes mais particularmente aquela parte dela que disfarça o rosto, como máscara ou viseira (HOBBES, 1998, p.100).

[11][13] Miragem coloca inclusive que o termo persona reconhecia qualquer ser humano – inclusive o escravo – embora tardiamente o termo vá ser utilizado para designação apenas das pessoas livres (MIRAGEM, 2004, p.80b).

[12][14] Já nos diz Hegel que “ quanto aquilo que, em direito romano, se chama direito pessoal, diremos que o homem tem que ser considerado com um certo status para ser uma pessoa; [...] no direito romano, a personalidade é uma situação, um estado que se opõe à escravatura. O conteúdo do direito romano chamado pessoal vai além do direito sobre os escravos, de que também dependem as crianças e sobre os que estão à margem da lei (capitis deminutio), estendendo-se às relações familiares [...] o direito romano pessoal como tal não é, pois, o direito da pessoa como tal, mas apenas o da pessoa particular” (HEGEL, 2003, p.43).

[13][15] Aliás, como bem lembra Marcel Mauss, o escravo não tinha o direito à persona, na medida em que não tem personalidade, não tem corpo, não tem antepassados, nem nome, nem cognome, nem bens próprios (MAUSS, 1974, p.231).

[14][16] Originalmente, a propriedade significava nada mais nada menos que o indivíduo possuía seu lugar em determinada parte do mundo e portanto pertencia ao

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corpo político, isto é, chefiava uma das famílias que, no conjunto, constituíam a esfera pública (ARENDT, 2000, p.71). A privatividade era como que o outro lado escuro e oculto da esfera pública; ser político significava atingir a mais alta possibilidade de existência humana; mas não possuir um lugar próprio e privado (como no caso do escravo) significava deixar de ser humano (ARENDT, 2000, p.74).

[15][17] Para Dumont, através da predestinação, o indivíduo suplanta a Igreja, que subsistiu, na perspectiva de Lutero, como uma instituição de graça e salvação, mas que na predestinação calvinista seria despojada dessa dignidade, restando enquanto instrumento de disciplina agindo sobre os indivíduos (tanto os eleitos quanto os réprobos, pois é impossível distinguí-los na prática) e sobre o governo político, tornando a Igreja então uma associação composta de indivíduos (DUMONT, 1985, p.69-70). Isso deve ser articulado com a perspectiva exposta por Charles Taylor, para quem há uma ruptura no papel desempenhado pela Igreja e em sua relação com os fiéis, da forma como definida pela teologia protestante, na medida em que: “se a Igreja é o local e o veículo do sagrado, então ficamos mais próximos de Deus pelo simples fato de pertencer e participar da vida sacramental. A graça pode vir a nós por intermediação da Igreja e podemos ser mediadores da graça uns para os outros, à medida em que a vida dos santos enriquece a vida comum que serve de fundamento a todos nós. Quando se rejeita o sagrado, esse tipo de mediação também é recusado. Cada pessoa está sozinha em relação a Deus: seu destino – sua salvação ou condenação – é decidido em separado” (TAYLOR, 1994, p.280).

[16][21] É preciso explicar, como faz Renato Janine Ribeiro, que no contexto do pensamento hobbesiano, formulado em grande parte durante o período de guerra civil na Inglaterra, no século XVII, que se não há um Estado controlando e reprimindo, fazer a guerra contra os outros é a atitude mais racional que pode ser adotada pelo indivíduo humano; assim, o “homem lobo do homem”, em guerra contra todos, não tem nada de anormal; suas ações e cálculos são não só razoáveis como atitudes racionais, no estado de natureza (RIBEIRO, 2003, p.57).

[17][22] Luiz Eduardo Soares irá definir sinteticamente o procedimento hobbesiano de formulação do homem (sujeito) universal, ao estabelecer que: “o acesso cognitivo a si próprio e ao outro (empírico) constitui um único movimento da razão, cuja estrutura pode ser sumariamente descrita como sendo a identificação do sujeito com um modelo antropológico ideal, concebido pela razão metodicamente aplicada. Em outras palavras, ego e alter identificam-se via mediação de um tertius, postulado pela razão” (SOARES, 1995, p.229).

[18][23] Hobbes retoma o significado do termo pessoa na tradição greco-romana para defini-la conceitualmente, sinalizando fortemente a idéia de pessoa ligada ao exercício de um papel ou de uma representação na sociedade, conforme assinalado no seguinte trecho do capítulo XVI do Leviatã: [...] E do palco a palavra (pessoa) foi transferida para qualquer representante da palavra ou da ação, tanto nos tribunais quanto nos teatros. De modo que uma pessoa é o mesmo que um ator, tanto no palco quanto na conversação corrente. E personificar é representar, seja a si mesmo, seja a outro; e daquele que representa outro, diz-se que é portador de sua pessoa, ou que age em seu nome (HOBBES, 1998, p.100c). É verdade que Hobbes, ao tentar formular um conceito jurídico de pessoa, acaba por abarcar nele aquilo que modernamente se considera o instituto de direito privado da representação (e também o da assistência), o que pode ser

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observado nos exemplos daqueles que são portadores da pessoa ou que agem em seu nome colocados por Hobbes: representante, mandatário, lugar-tenente, vigário, advogado, deputado, procurador, ator. Ou ainda quando trata das coisas representadas por ficção, e mesmo da representação das crianças e dos incapazes, que não têm o uso da razão, quando Hobbes coloca que os guardiães e curadores as personificam (HOBBES, 1998, p.101), ao invés de falar que as representam, o que seria mais próximo da linguagem do direito privado moderno. Há confusão entre representação e personificação em Hobbes, problema que está relacionado à formulação ainda tímida desses conceitos no pensamento jurídico. É fato que representar é distinto de ser uma pessoa. O representante age sob determinados limites, legais ou convencionais, e não incorpora a pessoa ou sua personalidade. O problema não diz respeito à subjetividade, mas sim à capacidade, ou seja, à potencialidade da pessoa de praticar atos na vida civil. Hobbes chega mesmo a apontar algumas noções iniciais do instituto da representação/mandato (HOBBES, 1998), mas o fundamental é que, apesar desta confusão (de equiparar representação e personificação), Hobbes aponta para o fato de que a idéia de exercer um papel dá visibilidade às palavras e ações da pessoa/sujeito no meio social, assim Hobbes aponta para um resgate da pessoa como um fato fundamental do direito, mas, para, além disso, que a pessoa se coloca na sociedade, reafirmando a tensão dual entre o indivíduo ou a pessoa e a ordem, a que aquela se submete, mas, na qual se coloca ou apresenta. Importante também salientar que a representação das crianças e dos incapazes se dá em razão da impossibilidade destes do uso da razão, o que aponta, em Hobbes, para uma conexão entre racionalidade e subjetividade, ainda que incipiente e imprecisa, que, segundo Hobbes, só pode existir no estado civil, onde se estabelece o domínio de pessoas (HOBBES, 1998, p.101b). São elementos no pensamento hobbesiano que contribuem para a formação da subjetividade moderna.

[19][24] Com efeito, Hannah Arendt critica a teoria de Locke e sua proposição de que a origem da propriedade é o trabalho. Nas suas palavras: “a premissa de Locke de que labor do corpo de uma pessoa é a origem da propriedade é mais do que duvidosa”, reconhecendo ela, porém, que “no entanto, dado o fato de que já vivemos em condições na qual a única propriedade em que podemos confiar é o nosso talento e a nossa força de trabalho é mais do que provável que ela venha a se tornar verdadeira” (ARENDT, 2000, p.80).

[20][25] Não há qualquer redução da pessoa à idéia de propriedade na obra de Locke, mas apenas a bifurcação da idéia de propriedade em dois sentidos, um mais existencial/pessoal e outro material. Assim coloca Charles Taylor, que distingue os dois sentidos em que a palavra pessoa aparece na obra de Locke: no primeiro sentido, o mais globalizante, a pessoa é racional na medida em que vê a lei da natureza (=lei da razão) e procura viver de acordo com ela; no segundo sentido, o termo pessoa é reservado para aqueles capazes de usar o conhecimento e reflexão para aumentar sua eficiência; assim, viver de acordo com todas as demandas de Deus é ser moralmente racional, mas isso também inclui a exigência de que sejamos tão intelectualmente racionais quanto pudermos (TAYLOR, 1994, p.308).

[21][26] Emblemático apontar que a afirmação feita por Hannah Arendt constitui, na verdade, o ponto de partida para a crítica hegeliana da interação entre racionalidade e subjetividade na Modernidade produzida pela Filosofia das Luzes, pois, para Hegel, o Iluminismo erigiu a razão em um mero ídolo, substituindo a razão pelo entendimento ou pela reflexão de modo equivocado e, com isso, elevando algo finito a absoluto, uma vez

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que o infinito da filosofia da reflexão é algo racional simplesmente posto pelo entendimento e que se esgota na negação do finito, ou, nas palavras do próprio Hegel, “ao fixá-lo (o infinito), o entendimento o opõe de modo absoluto ao finito, ao fixar a atividade da razão na oposição, a reflexão, que se elevara a razão superando o finito, reduziu-se novamente ao entendimento; além disso, ela ainda tem a razão de permanecer racional mesmo nesse declínio” (HABERMAS, 2000, p.36). Contra os iluministas, Hegel sustenta que uma religião racional não representa uma abstração maior do que a fé fetichista, pois é incapaz de interessar o coração e influenciar os sentimentos e as necessidades, só leva a outra forma de religião privada porque está apartada das instituições da vida pública e não desperta nenhum entusiasmo, o Iluminismo seria assim apenas o reverso da ortodoxia, fundado na insistência da objetividade dos preceitos da razão (HABERMAS, 2000, p.39-40). Hegel então projeta a razão a priori como um poder que não apenas diferencia e fragmenta o sistema de relações da vida, mas que também o reunifica. Assim, no conflito entre ortodoxia e Iluminismo, o princípio da subjetividade gera uma positividade que, em todo caso, provoca a necessidade objetiva da sua superação (HABERMAS, 2000, p.41).

[22][27] De acordo com Kant, no mundo social existem duas categorias de valores: o preço (preis) e a dignidade (Würde); enquanto o primeiro representa um valor exterior e manifesta interesses particulares, ao segunda representa um valor interior e é de interesse geral; assim, as coisas têm preço e as pessoas dignidade. O valor moral se encontra infinitamente acima do valor de mercadoria, porque, ao contrário deste, não admite ser substituído por equivalente – daí a exigência de jamais transformar o homem em meio para alcançar quaisquer fins (MORAES, 2003, p.113-114). Nossa obediência à lei moral é apenas o respeito que essa dignidade nos inspira, as fontes do bem estão no interior (TAYLOR, 1994, p.467).

[23][28] Michelle Giorgianni aduz em sua obra que o jusnaturalismo e o racionalismo levaram a conceber o ordenamento jurídico em função do indivíduo e a considerá-lo como o conjunto de direitos que a este cabem, colocando, no centro do sistema, cujos ideais remontam ao movimento renascentista, o sujeito de direito, o que subverteria a origem etimológica de tal termo, relacionada, ao contrário, segundo Giorgianni, a um estado de sujeição (subjectum) (Giorgianni, 1998: 38). Não há como não criticar a parte final da concepção exposta, no que se refere a constituição da idéia de sujeito de direito como uma pretensa subversão da idéia de sujeito. Já foi exaustivamente demonstrado, que a subjetividade se erige justamente como a expressão, inicialmente no pensamento cristão, de um dualismo, onde a ordem e a interioridade se opõem de forma tensa, ao mesmo tempo que interagem, sem qualquer processo estático de separação absoluta entre individualismo e holismo, para pensar nos termos propostos por Louis Dumont. Minimamente, a idéia expressa por Giorgianni é um reducionismo da idéia de sujeito, pois, como nos mostra Touraine, a subjetivação é o contrário da submissão do indivíduo a valores transcendentes: o homem se projetava em Deus; doravante, no mundo moderno, é ele que torna o fundamento dos valores, já que o princípio central da moralidade se torna a liberdade, uma criatividade que é seu próprio fim e se opõe a todas as formas de dependência (TOURAINE, 1994, p.222), o que inclui a dependência absoluta e mecanicista ao Estado ou a um ordenamento jurídico positivo que não se funde na proteção dos direitos humanos e de sua dignidade. Ainda, retomando novamente Touraine, quando da sua crítica a Michel Foucault, que tinha visto na subjetivação a sujeição, com vistas a construir o homem interior, “psicológico”, para que penetre mais adiante o controle social, para se apoderar do coração do espírito e do

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sexo, e não somente dos músculos; Touraine irá rebater essa percepção, declarando que esta perversão da subjetivação não pode de forma alguma substituir-se ao nascimento do sujeito ou constituir seu sentido principal, destacando que onde o totalitarismo se instalou, a força principal de resistência que seguramente se mobilizou contra ele é o apelo ao sujeito, a ética da convicção, revista-se ela de uma forma religiosa ou não; ainda, na atualidade, nossa admiração, diz Touraine, de volta para aqueles que se recusam a ser bons trabalhadores, bons cidadãos, escravos eficientes e que se sublevam em nome de uma convicção religiosa ou dos direitos do homem (TOURAINE, 1994, p.223); ao final, Touraine arremata relembrando que por termos vivido as catástrofes produzidas pela modernização autoritária imposta pelos Estados totalitários, sabemos que a produção do sujeito, figura central da modernidade, só é possível se a consciência não separa o corpo individual dos papéis sociais, nem as figuras antigas do sujeito, projetado no universo na forma de Deus, da vontade presente de construir a si mesmo como pessoa (TOURAINE, 1994, p.224).

[24][29] Cumpre assinalar que, como destaca Alain Touraine, o indivíduo não é senão a unidade particular onde se misturam a vida e o pensamento, a experiência e a consciência. O sujeito é a passagem do Id ao Eu, o controle exercido sobre o vivido para que tenha um sentido pessoal, para que o indivíduo se transforme em ator que se insere nas relações sociais transformando-as, mas sem jamais identificar-se com nenhum grupo, com nenhuma coletividade (TOURAINE, 1994, p.220).

[25][30] Conforme nos traz Charles Taylor, de certo modo, falar de um direito universal e natural à vida não parece trazer muita inovação; ocorre que se trata de uma mudança de forma, pois a maneira anterior de expressar o tema era que existe uma lei natural contra tirar vidas inocentes, e não, nos termos atuais, o direito (subjetivo) de uma pessoa à vida, de exigir a preservação de sua existência. Ambas as formulações parecem proibir as mesmas coisas, mas a diferença não reside naquilo que é proibido, mas sim no lugar do sujeito. A lei é aquilo a que devo obedecer; ela pode me assegurar alguns benefícios, no caso a imunidade de que minha vida deve ser respeitada; mas, fundamentalmente, estou sob a lei, diz Taylor. Em contraste, um direito subjetivo é alguma coisa em relação à qual o possuidor pode e deve agir para colocá-la em vigor (TAYLOR, 1994, p.25).

[26][31] Pietro Pierlingieri, em sua obra Perfis de Direito Civil, irá empreender uma análise crítica da categoria dos direitos subjetivos, atentando para o fato de que no vigente ordenamento não existe um direito subjetivo ilimitado, atribuído ao exclusivo interesse do sujeito, de modo tal que possa ser configurado como entidade pré-dada, isto é, preexistente ao ordenamento e que deva ser levada em consideração enquanto conceito, ou noção, transmitida de geração em geração (PIERLINGIERI, 2003, p.121). Há, nesta formulação, uma crítica à concepções jusnaturalistas e a afirmação do caráter histórico que os direitos, e qualquer categoria jurídica, possuem. Mas podemos usar a idéia expressa para arrematar dizendo que a construção dos direitos é em grande medida a interação do agir humano, e, portanto, uma expressão da liberdade do indivíduo, na sua tensão constante com o sistema jurídico constituído a partir do Estado. A positividade se coloca como delimitação dos limites pela coletividade, mas estes também têm seu traçado desenhado através da tensão dialética entre o sujeito individual e as esferas onde ele exerce suas prerrogativas, enquanto ser racional, portador de dignidade, que, através de sua ação moral, está sempre redefinindo, em contraposição às pressões do Estado, o campo de sua atuação e a extensão de seus limites. Mas Perlingieri não encerra sua análise na crítica do direito subjetivo, ele também propõe a

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categoria da situação jurídica subjetiva, que constitui uma norma de conduta que pode significar atribuição ao sujeito – no interesse próprio ou de terceiros, no interesse individual e/ou social – do poder às vezes de realizar, outras de não realizar determinados atos ou atividades (PIERLINGIERi, 2002, p.107), sendo que o sujeito titular do direito deve exercê-lo de modo a não provocar danos excepcionais a outros sujeitos, em harmonia com o princípio da solidariedade política, econômica e social, o que acaba por incidir sobre o direito subjetivo que, em vez de resultar como expressão de um poder arbitrário, acaba por funcionalizá-lo e socializá-lo (PIERLINGIERI, 2002, p.120-121). Ainda, as situações subjetivas sofrem uma intrínseca limitação pelo conteúdo das cláusulas gerais e especialmente daquela de ordem pública, de lealdade, de diligência, de boa-fé, que se tornaram expressões gerais do princípio da solidariedade (PIERLINGIERI, 2002, p.122), no que Pierlingieri acaba por retomar a subjetivação como a relação entre liberdade e moralidade, e não como mero arbítrio. Neste sentido, a situação jurídica subjetiva não anula a idéia de direito subjetivo, mas agrega elementos que retomam ou reforçam seu conteúdo ético, além de abarcar outras possibilidades nas quais a tutela material da personalidade pode se apresentar. Finalmente, Pierlingieri, indagando sobre a possibilidade de assimilação da personalidade à categoria do direito subjetivo, como tinha sido elaborada pela tradição patrimonialística, concluindo que a esta matéria não se pode aplicar o direito subjetivo elaborado sob a categoria do “ter”, já tendo sentenciado antes que a crise do direito subjetivo resulta do fato de que este nasceu para exprimir um interesse individual e egoísta, enquanto a noção de situação jurídica subjetiva complexa configura a função de solidariedade presente ao nível constitucional (Pierlingieri, 2002: 121b). Cumpre discordar da identificação do direito subjetivo como interesse egoísta, pois, embora elaborado sob uma forma de “posse” que detém o titular, o direito subjetivo condensa, enquanto figura jurídico-dogmática, questões-chave do processo de subjetivação, articuladas com a outra marca da modernidade, a racionalização, ao passo que aponta para a afirmação do indivíduo enquanto singularidade que não se submete mecanicamente a nenhum destino pré-traçado por uma ordem natural ou divina, mas que se coloca e constrói ativamente a sua liberdade, especialmente por ser dotado de dignidade e capacidade para agir moralmente, assim como um sujeito que age sobre o mundo, mas pautado pela responsabilidade de exercer sua autonomia em referência à moralidade, o que afasta a percepção de uma relação entre sujeito e objetos (entre o “ser” e o “ter”) de quaisquer expressões estáticas e maniqueístas, pois os interesses existenciais, morais e materiais por vezes se articulam e se interpenetram de forma dialógica, tornando problemático invalidar o direito subjetivo pela sua formulação reducionista, e aí egocêntrica, que tomou forma no cerne do positivismo e do utilitarismo jurídicos do século XIX, desconsiderando os potenciais de realização da liberdade e da autonomia afirmados na construção histórico-filosófica da categoria e no panorama dos desafios apresentados à subjetividade contemporânea, que serão delineados no quinto capítulo.

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