a confissão e o perdão

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A Confissão e o Perdão por Jean Delumeau

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  • A Confisso e o Perdo

    PERGUNTE E RESPONDEREMOS 457 junho 2000

    Em foco o sacramento da Reconciliao:

    "A CONFISSO E O PERDO" por Jean Delumeau Em sntese: Jean Delumeau, historiador francs, colecionou documentos que exprimem o pensamento dos telogos do sculo XIII ao sculo XVIII com referncia a diversos aspectos do sacramento da Reconciliao: contrio e atrio, satisfao expiatria, acusao de pecados graves... O livro interessante como documentrio, pois oferece o contato com textos que o leitor dificilmente encontraria em obras originais. Todavia o livro perpassado pela suposio de que a confisso dos pecados devida simplesmente a uma instituio da Igreja - o que falso, como ser evidenciado nas pginas seguintes. O autor da obra um historiador francs catlico (1), que, na qualidade de historiador, estuda as obras de telogos do sculo XIII ao sculo XVIII relativas confisso dos pecados: mostra como, da parte dos confessores e clrigos, houve tendncias ora rigoristas, ora laxistas, e, da parte dos penitentes, alvio, alegria, mas tambm escrpulos e medo. O livro muito rico em documentao, pois Delumeu parece ter percorrido exaustivamente as fontes referentes ao assunto: apresenta em coloridos vivazes as expresses do pensamento teolgico, respeita as diversas opinies, sem pretender julgar, e elogia Santo Afonso Maria de Ligrio (1696-1787) por seu sbio equilbrio. Todavia pode deixar na mente do leitor dvidas, que passamos a considerar.

    1. Confisso dos pecados: mera exigncia da Igreja? Delumeau d a entender que a confisso dos pecados mera exigncia da Igreja (cf. p. 7) e, diante das dificuldades que comporta, deveria ser substituda por "cerimnias penitenciais" sem acusao das faltas. Eis o que afirma na concluso do livro: A Igreja primitiva exigia o reconhecimento e a penitncia pblicos das faltas que haviam sido pblicas. Nossa justia civil no age de outro modo. Mas, quando se trata de faltas ntimas, e ser sempre psicologicamente muito difcil exigir sua confisso detalhada a algum, mesmo padre, que no seja um amigo prximo. Deus perdoa na Igreja e pela Igreja aqueles que se arrependem. Mas essa reconciliao pode tambm realizar-se - e a menores custos psicolgicos - atravs de "cerimnias penitenciais" onde cada um procede no silncio de sua alma a uma reviso de sua vida (p. 135). (1) A Confisso e o Perdo, por Jean Delumeau. Traduo de Paulo Neves. - Companhia das Letras, So Paulo 1991, 140 x 210mm, 152 pp. A propsito notemos: 1.1. Origem do Sacramento da Reconciliao

  • A confisso dos pecados no tem fundamento apenas numa lei positiva da Igreja, mas deve-se ao prprio Evangelho. Com efeito, na noite de Pscoa Jesus apareceu aos Apstolos reunidos e disse-lhes: "Assim como o Pai me enviou, eu tambm vos envio". A seguir, soprou- lhes na face e continuou: "Recebei o Esprito Santo. queles a quem perdoardes os pecados, sero perdoados. A quem os retiverdes, sero retidos" (Jo 20, 22s). Estas palavras significam que 1) Os Apstolos, no por efeito de sua santidade prpria, mas em consequncia de um dom de Deus ("Recebei o Esprito Santo"), so habilitados a perdoar os pecados. 2) Para que os Apstolos e seus sucessores possam exercer a funo de perdoar ou no perdoar os pecados, devem ter conhecimento de causa. As razes para no absolver em nome de Deus so geralmente de ordem pessoal: falta de verdadeiro arrependimento, falta do propsito de emenda (tal o caso da pessoa que leva vida dupla, mas no tem a coragem de se converter, ... o caso de quem guarda raiva, rancor e desejos de vingana deliberadamente alimentados...). Em tais casos o ministro obrigado a adiar a absolvio, para que o penitente crie em si disposies para receb-la. Ora o exerccio de tal discernimento supe o conhecimento da matria em pauta, conhecimento que s o prprio penitente pode oferecer mediante confisso. Eis por que a Igreja deduziu das palavras de Cristo a obrigatoriedade da confisso dos pecados para poder ministrar o perdo dos mesmos. Essa obrigao toca no somente aos fiis leigos, mas tambm aos presbteros, aos bispos e ao prprio Papa; no h quem no esteja sujeito ao sacramento da Reconciliao. A Igreja ultimamente tem permitido que, em circunstncias muito especiais e com a devida autorizao do Bispo, os sacerdotes possam absolver sacramentalmente sem confisso prvia. Em tais casos, a confisso no abolida, mas apenas postergada, pois fica sempre aos fiis a obrigao de confessar posteriormente pecados assim absolvidos; a confisso apenas deslocada, visto que a Igreja no tem o poder de extinguir uma prtica que lhe imposta por direito divino (ver Concilio de Trento, Enquirdlo dos Smbolos e Definies de Denzinger - Schnmetzer, ns 1679s). 1.2. Fundamento natural A psicologia pe em evidncia o valor da kathrsis ou da purificao da conscincia, que se faz mediante o reconhecimento das prprias faltas. Reconhecendo suas falhas, a pessoa, de certo modo, sai do emaranhado em que elas a envolvem; distancia-se das mesmas, deixa de se identificar com suas faltas e comea a expi-las. Tal atitude, por certo, liberta a pessoa; f-la viver a verdade,... que, no caso, desagradvel ou humilhante, mas que, em ltima anlise, um valor. Dizia muito a propsito S. Ambrsio (+397): "Pecar comum a todos os homens, mas arrepender-se prprio dos santos" (Apologia David ad Theodosium Augustum II 5-6). Na verdade, ningum tem motivo para se surpreender pelo fato de que um semelhante peque, pois a condio de pecador comum a todos os homens. H, porm, motivo para surpresa e mesmo admirao quando algum reconhece o seu pecado, pois tal sinceridade no muito frequente; ela exprime a nobreza que no existe em todo homem, embora em todo homem exista o pecado. A grandeza e a nobreza de carter de algum se manifestam no quando diz que no peca (isto, tomado em termos absolutos, falso), mas quando aponta sinceramente o seu pecado e se distancia dele, em vez de o encobrir com mscaras. Pr mscaras no plano moral menos digno do que reconhecer a verdade quando necessrio e propor reparar o que haja de falho. Notemos ainda o seguinte: o pecado, por sua prpria ndole, tende a furtar-se luz: "Todo aquele que comete o mal, odeia a luz, e no vem luz para que as suas obras no sejam manifestas. Mas aquele que

  • pratica a verdade, vem luz" (Jo 3,20). Mais: o pecado tende at a tomar as aparncias do bem e da luz. Por conseguinte, a confisso do pecado ou a colocao do pecado sob a luz adequada vem a ser o primeiro antdoto do pecado: a confisso desvenda e desmascara o mal com suas simulaes. Por isto toda converso ou mudana de vida comea pela confisso das prprias faltas. No bastaria, porm, a confisso ntima, feita to somente a Deus? - Em resposta, luz to somente dos valores humanos, dizemos que a natureza psicossomtica do homem exige atitudes que manifestem sensivelmente (somaticamente) o que ocorre em nosso psiquismo. A manifestao exterior do que trazemos na alma, contribui para o amadurecimento dos nossos afetos ntimos e para o mais pleno conhecimento de ns mesmos. O que exprimimos sensivelmente, se imprime mais ntida e profundamente em nossa conscincia: "O que s se projeta interiormente, no derruba os muros da solido em que se fecha o mal e, por conseguinte, no liberta. preciso que o pensamento se encarne nas palavras, para que ele se torne palpvel e aparea aos nossos olhos em plena luz" (A. Brunner, Aus dem Finsternis zum Licht. Ueber das Bekenntnis der Snden, em Geist und Leben, +23 [1950], p. 89). Estas ideias so claramente ilustradas pelo seguinte depoimento do Mahatma Gandhi, que fala no como cristo, mas como homem reto. 1.3. Um testemunho significativo Eis o que escreveu Gandhi: "Eu tinha quinze anos. Cometi um furto. Tratava-se de um pequeno fragmento de ouro tirado do bracelete de meu irmo... Isto se tornou para mim pesado demais para que eu o pudesse suportar. Tomei a resoluo de no mais roubar. Mas no ousava falar do que tinha feito. No por medo de ser esbofeteado por meu pai. Ele nunca nos espancava. Mas eu tinha receio de penaliz-lo. Todavia eu sentia que tinha de arriscar, e que no podia purificar-me sem uma confisso completa. Decidi-me, por fim, a redigir a confisso, a apresent-la a meu pai e a pedir-lhe perdo. Escrevi-a sobre estreita faixa de papel, e apresentei- a a meu pai. Nessa nota, no somente eu admitia a minha culpa, mas pedia um justo castigo e terminava suplicando a meu pai que no se punisse ele mesmo por causa de mim. Prometia j no roubar no futuro. Todo trmulo, entreguei-lhe essa confisso. Meu pai ento sofria de uma fstula e achava-se de cama, uma cama que no era seno uma simples prancha de madeira. Sentei-me do outro lado da prancha. Ele se ps a ler, e as lgrimas corriam-lhe ao longo da face, molhando o papel... Essas prolas de amor purificaram-me o corao e apagaram o meu pecado... Essa espcie de sublime perdo no estava nos hbitos de meu pai. Eu julgara que ele se irritaria, diria palavras duras e bateria na testa. Mas ele permanecia estranhamente calmo; creio que isto era devido minha confisso completa. Uma confisso acompanhada do desejo de no mais pecar, quando ela feita diante de algum que tem o direito de a receber, a mais pura espcie de arrependimento. Sei que a minha confisso tirou a meu pai toda inquietao a meu respeito e aumentou desmedidamente a sua afeio para comigo".

  • O testemunho de Gandhi pode ser completado por numerosos outros, colhidos nas tradies de diversos povos no cristos. Manifestam o valor psicolgico da confisso ou do reconhecimento das prprias faltas, segundo a cultura das mais diversas populaes.

    2. Rigorismo e Laxismo Jean Delumeau cita em profuso textos que ora propem aos confessores usar de severidade para com os penitentes, ora propem brandura at o extremo do laxismo ou da condescendncia exagerada. Isto pode deixar o leitor perplexo. Todavia nada tem de estranho, caso se pense que ao pai espiritual compete procurar o bem dos seus dirigidos de acordo com as modalidades da cultura e da compreenso de cada um. A prpria S. Escritura prope normas ora muito severas, ora mais brandas; tenham-se em vista: Eclo 30, 1: "Aquele que ama seu filho, usar com frequncia o chicote, para, no seu fim, alegrar-se". Pr 13,24: "Quem poupa a vara, odeia seu filho. Aquele que o ama, aplica a disciplina". Cf. Pr 23, 13s; 29, 15. Ap 3, 19: "Quanto a mim, repreendo e educo todos aqueles que amo". Ao lado destes dizeres rigoristas, outros h que apregoam compreenso indulgente: 2Cor 1, 23: "Invoco a Deus como testemunha da minha vida: foi para ws poupar que no voltei a Corinto". 2Cor 2,7 : "Perdoai-lhe (ao injusto agressor) e consolai-o, a fim de que no seja absorvido por tristeza excessiva... Exorto-vos a que deis provas de amor para com ele... quele a quem perdoais, eu perdoo". Estas duas atitudes pastorais, guardadas as devidas propores, se reproduziram - nem podiam deixar de se reproduzir - no decorrer dos sculos. Entende-se, pois, que tenha havido confessores severos e confessores menos rigorosos e que tenham debatido entre si quanto ao modo de promover o maior bem de seus penitentes. Delumeau nota que de 1564 a 1663 foram publicados no mnimo seiscentos tratados de casustica, na procura do mais pastoral dos procedimentos dentro dos costumes e das tendncias da poca: cf. p. 104.

    3. Alegria e medo O psiquismo humano tal que pode, diante do sacramento da Reconciliao, experimentar dois sentimentos opostos: a alegria do perdo, de um lado, e o medo ou o escrpulo por causa da confisso dos pecados, de outro lado. No h como evitar essa variedade de reaes do ser humano diante de propostas por mais razoveis e sensatas que sejam; tudo neste mundo limitado e, por isto, pode suscitar rejeio. At o conceito de Deus perfeitssimo, conhecido, porm, no claro-escuro da f, pode provocar alegria, adeso filial e plena como tambm capaz de provocar medo, averso e fuga. No , pois, de estranhar que os penitentes de outrora tenham experimentado escrpulos e receios diante do sacramento do perdo. Se o Senhor Jesus outorgou aos seus ministros a faculdade de perdoar e no perdoar os pecados, bvio que estes ho de ser manifestados ao sacerdote para que possa exercer o ministrio da reconciliao. Ora as circunstncias modificam (para mais ou para menos) a gravidade de um pecado; assim, por exemplo:

  • - quem rouba de um pobre, peca mais gravemente do que quem roube de um rico a mesma quantia; - os genitores ou os mestres que do mau exemplo, pecam mais gravemente do que um colega que d o mesmo mau exemplo; - quem calunia em pblico, peca mais gravemente do que aquele que faz a mesma afirmao numa conversa particular; - quem danifica um objeto alheio em sonambulismo, no peca formalmente, ao passo que quem o danifica conscientemente, por vingana, peca gravemente (caso se trate de objeto de valor). Donde se v que a quem realmente deseja reconhecer seus pecados e procura ser leal e sincero, no basta apenas que diga: "Roubei" ou "Dei mau exemplo"; "Falei mal do prximo", "caluniei"... H, por vezes, circunstncias que mudam a pecaminosidade do ato. por isto que o Concilio de Trento (1545-1563) prescreveu que se acusem as circunstncias agravantes ou atenuantes do pecado. Est claro tambm que quem adultera esporadicamente tem uma carga de culpa menos pesada do que a pessoa que adultera habitualmente. Da a prescrio de acusar o nmero de pecados graves, para que haja sinceridade da parte de quem se quer arrepender deles. Tais prescries, porm, no devem levar ao medo nem ao escrpulo. Deus no pede mais do que aquilo que cada qual em sua lealdade sabe e pode oferecer-lhe. Se algum est impossibilitado, por motivo de sade ou outra causa plausvel, de cumprir as exigncias de um exame de conscincia realista e sincero, est dispensado de o fazer. Ao sacerdote compete reconhec-lo e tranquilizar o penitente. V-se, pois, que, por causa de fatores acidentais ou contingentes, no se deve privar o fiel catlico da alegria que o Evangelho lhe proporciona quando lhe diz em Jo 20, 21-23 que Deus lhe perdoa os pecados na Igreja e pela Igreja.

    4. Formao da Conscincia Deve-se levar em conta tambm a necessidade de se formar a conscincia moral dos fiis. Esta a bssola imediata do comportamento humano. ela que avalia, de um lado, o peso da lei e, de outro lado, as circunstncias em que se acha o indivduo (circunstncias que possam dispensar do cumprimento da lei como tambm o podem tornar mais premente). A conscincia pode ser uma bssola mal programada ou defeituosa, que cause inquietao e atormente o respectivo sujeito, seja porque impe obrigaes que no existem, seja porque dispensa erroneamente de certos deveres. Deve-se ento corrigir e educar a conscincia, no porm abolir o sacramento da Reconciliao. Esta temtica to importante que lhe dedicaremos nosso prximo artigo (A Formao da Conscincia). Dom Estvo Bettencourt (OSB)