a construção do inimigo no governo bush

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27 Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 27 - 59, 2 o sem. 2009 George W. Bush e a construção do inimigo na guerra ao terror George W. Bush and the construction of the enemy in the war on terror Lucas Amaral Batista Leite Resumo Os atentados terroristas em 11 de Setembro de 2001 marcaram o início da chamada guerra ao terror, denominação pelo governo do então pre- sidente norte-americano George W. Bush ao con- flito contra a organização terrorista transnacional Al Qaeda e países considerados patrocinadores do terrorismo internacional. A guerra ao terror é discutida nesse trabalho a fim de compreender como o inimigo é construído discursivamente por meio de características específicas como metá- foras e resgates históricos – especialmente pela fluidez do conceito que, pela própria abrangên- cia, demanda uma análise mais cuidadosa. Sele- cionamos discursos presidenciais e documentos voltados às questões de segurança nacional para podermos construir os processos de conexão e di- ferenciação entre o que seria a identidade norte- -americana em contraponto à do “outro”, neste caso, o inimigo. Para tanto, usamos da análise proposta por Lene Hansen, além da teoria social do discurso de Norman Fairclough e uma breve abordagem de conceitos para uma proposta pós- -estruturalista em Relações Internacionais Palavras-chave: George W. Bush; Guerra ao Terror; Inimigo; Análise do Discurso; Pós-Estru- turalismo. Abstract The terrorist attacks on September 11, 2001 ma- rked the beginning of the so-called war on terror, denomination used by the government of then U.S. president George W. Bush’s war against the transnational terrorist organization, Al Qaeda, and countries considered sponsors of internatio- nal terrorism. The war on terror is discussed in this paper in order to understand how the ene- my is constructed discursively through specific characteristics such as metaphors and historical redemptions - especially by the fluidity of the concept which, by its scope, demands a more careful analysis. Presidential speeches and docu- ments focused on national security issues were selected in order to build the processes of linkage and differentiation between what would be the American identity in opposition to the “other”, in this case, the enemy. For this purpose, we use the analysis proposed by Lene Hansen, and social theory of discourse by Norman Fairclough, and a brief overview of concepts for a proposed post- -structuralist approach in International Relations. Key words: George W. Bush; War on Terror; Ene- my; Discourse Analysis; Post-Estructuralism.

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    George W. Bush e a construo do inimigo na guerra ao terror

    George W. Bush and the construction of the enemy in the war on terror

    Lucas Amaral Batista Leite

    ResumoOs atentados terroristas em 11 de Setembro de 2001 marcaram o incio da chamada guerra ao terror, denominao pelo governo do ento pre-sidente norte-americano George W. Bush ao con-flito contra a organizao terrorista transnacional Al Qaeda e pases considerados patrocinadores do terrorismo internacional. A guerra ao terror discutida nesse trabalho a fim de compreender como o inimigo construdo discursivamente por meio de caractersticas especficas como met-foras e resgates histricos especialmente pela fluidez do conceito que, pela prpria abrangn-cia, demanda uma anlise mais cuidadosa. Sele-cionamos discursos presidenciais e documentos voltados s questes de segurana nacional para podermos construir os processos de conexo e di-ferenciao entre o que seria a identidade norte--americana em contraponto do outro, neste caso, o inimigo. Para tanto, usamos da anlise proposta por Lene Hansen, alm da teoria social do discurso de Norman Fairclough e uma breve abordagem de conceitos para uma proposta ps--estruturalista em Relaes InternacionaisPalavras-chave: George W. Bush; Guerra ao Terror; Inimigo; Anlise do Discurso; Ps-Estru-turalismo.

    AbstractThe terrorist attacks on September 11, 2001 ma-rked the beginning of the so-called war on terror, denomination used by the government of then U.S. president George W. Bushs war against the transnational terrorist organization, Al Qaeda, and countries considered sponsors of internatio-nal terrorism. The war on terror is discussed in this paper in order to understand how the ene-my is constructed discursively through specific characteristics such as metaphors and historical redemptions - especially by the fluidity of the concept which, by its scope, demands a more careful analysis. Presidential speeches and docu-ments focused on national security issues were selected in order to build the processes of linkage and differentiation between what would be the American identity in opposition to the other, in this case, the enemy. For this purpose, we use the analysis proposed by Lene Hansen, and social theory of discourse by Norman Fairclough, and a brief overview of concepts for a proposed post--structuralist approach in International Relations.Key words: George W. Bush; War on Terror; Ene-my; Discourse Analysis; Post-Estructuralism.

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    ste artigo tem o objetivo de mostrar como se deu a construo do inimigo pelo presidente George W. Bush, por meio de seus discur-sos dirigidos nao (State of the Union). Para tanto, buscaremos demonstrar como o papel da linguagem se manifesta nas cincias sociais e, mais especificamente, nas Relaes Internacionais. Isso ser feito por meio de um breve histrico do mtodo e da discipli-na. Veremos tambm que a anlise do discurso pode ser til para entender como determinados fenmenos so construdos, imagi-nados e transmitidos.

    Dessa forma, apresentaremos como o presidente Bush cons-truiu o inimigo, ao justificar as intervenes no Afeganisto e no Iraque como essenciais estabilidade internacional e, dentro de um plano mais amplo, guerra ao terror. Nesse contexto, a constru-o da imagem norte-americana em contraponto imagem do ini-migo, de acordo com o perodo e a adaptao, formar a base para o entendimento desse processo.

    Para concluir, apresentaremos, sob a estrutura de Lene Han-sen, como se d a construo do objeto desta pesquisa e como a anlise do discurso pode ser uma ferramenta til para demonstrar a constituio de determinados atores nas Relaes Internacionais. No caso deste trabalho, como se d a construo do inimigo em relao aos Estados Unidos.

    Discurso e linguagem uma breve apreciao

    No contexto mais atual, o fenmeno conhecido como giro lingustico1 foi responsvel pela introduo das questes discursi-vas nas Cincias Sociais, enfatizando o papel da linguagem e colo-cando o discurso como objeto de anlise dos pesquisadores (GRA-CIA, 2004). De acordo com Rojo:

    A ateno que hoje se dedica ao discurso resultado de dois movi-mentos consecutivos e relacionados com o pensamento ocidental do ltimo quarto do sculo XX: o giro lingustico e o aumento da reflexividade social. Para os quais, alis, a ateno ao discurso tam-bm veio contribuir. (ROJO, 2004, p. 208)

    A partir da, com o pensamento de que o discurso fazia parte da construo da realidade, passou-se a dar importncia sua anlise a fim de que a prpria realidade fosse estudada como os processos dis-cursivos constituam e construam o que era apreendido como real e

    1. Tambm chamado de virada lingustica por alguns autores.

    E

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    sistmico (IIGUEZ, 2005). A anlise do discurso ento passou a ser utilizada por diversas reas do conhecimento como forma de compre-ender fenmenos especficos de cada rea e de introduzir novas possi-bilidades tericas e metodolgicas, deixando de ser um objeto exclusi-vo dos estudos lingusticos e passando a obter reconhecimento como ferramenta importante nas humanidades em geral. Com efeito, a an-tropologia, a sociologia, a psicologia, a comunicao, a filosofia etc., todas fizeram suas contribuies e desenvolveram mtodos especfi-cos de anlise (IIGUEZ, 2004, p. 107). A seguir discutiremos como a anlise do discurso se desenvolveu e pode ser apresentada de diversas formas, a fim de servir a propsitos distintos relacionados ao mtodo e teoria que se tome como ferramenta de explicao.

    Precedentes da anlise do discurso

    necessrio inicialmente apresentar as mudanas desde os primeiros estudos na lingustica, especialmente no que diz respeito anlise estruturalista. Ferdinand de Saussure, pioneiro nos estu-dos lingusticos, um dos fundadores do estruturalismo do sculo passado. Sua pesquisa se baseia no estudo da lngua como autorre-ferente, qual se pressupe uma estrutura prpria, independente da sua relao com mundo. Isso permitiria verificar regularidades e, dessa forma, compreend-la na sua totalidade (MUSSALIM, 2001).

    Fernanda Mussalim (2001) afirma que a disciplina de anlise do discurso (AD) teve sua origem na Frana, por meio das obras do linguista Jean Dubois e do filsofo Michel Pcheux. Seus trabalhos tinham influncia das ideias estruturalistas e marxistas que, na dca-da de 1960, juntamente com a expanso da lingustica, procuraram estabelecer novas formas de pesquisa acerca dos elementos polticos da poca. A criao de um mtodo prprio d lingustica um car-ter mais cientfico, que lhe permite impor-se como cincia frente a outras correntes. Para Pcheux, seria necessria uma ruptura com o modelo da fala/lngua saussuriana, abordando-se os aspectos de formao do discurso, com nfase no sujeito e seu contexto social e histrico. Esse autor criar o conceito de mquina discursiva, um dispositivo capaz de determinar, sempre numa relao com a hist-ria, as possibilidades discursivas dos sujeitos inseridos em determi-nadas formaes sociais2 (MUSSALIM, 2001, p. 106).

    2. Conceito criado por Althusser, que seria o conjunto de relaes entre as classes soci-ais dentro de um certo perodo.

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    Nesse contexto, o filsofo Althusser usar o materialismo histrico para analisar como determinadas reprodues sociais se davam por meio dos discursos. A lingustica deveria ser estudada na sua materialidade, ou seja, sua existncia se daria independen-temente do conhecimento que se tivesse acerca dela. O objetivo de Althusser era evidenciar o mecanismo responsvel pelas relaes de produo, comum a todas as ideologias particulares (MUSSA-LIM, 2001, p. 103). Suas ideias se baseavam na concepo marxista de infraestrutura e superestrutura. A primeira seria a base econ-mica da sociedade capitalista, enquanto a segunda, determinada por essa, corresponderia s instituies que reproduziriam a pri-meira num sistema circular de influncias recprocas. A ideologia faria parte da superestrutura, portanto, s pode ser concebida como uma reproduo do modo de produo, uma vez que por ele determinada (MUSSALIM, 2001, p. 104). O papel da linguagem nessa estrutura seria o de perpetuao das ideologias. A construo dos discursos estaria ligada s instituies provenientes da supe-restrutura.

    A partir desses pressupostos Althusser construir sua con-cepo do Estado, na verdade um aparelho repressivo do Estado (ARE), que funcionaria como rgo responsvel pela coao e que seria complementado pelas instituies, as quais operariam por meio da ideologia, denominadas aparelhos ideolgicos do Estado (AIE). A ao desses aparelhos e como eles se estruturam o que define o funcionamento da ideologia. A linguagem seria um impor-tante meio de atuao da ideologia e, por isso, seu estudo permiti-ria entender a construo dos discursos utilizados pelos AIE a fim de perpetuar crenas e valores.

    A evoluo da AD permitiu que correntes distintas criassem suas prprias fronteiras de pesquisa. Isso pode ser notado na dife-rena entre a AD de origem francesa e a AD de origem anglo-sax (MUSSALIM, 2001). A primeira teria maior influncia da histria, enquanto a segunda, maior contato com a sociologia. Dessa forma, a AD francesa focaria sua anlise principalmente no contexto his-trico e social em que so feitas as enunciaes, levando em conta aspectos ideolgicos que influenciam o discurso do sujeito enun-ciador. A AD anglo-sax privilegia a anlise do sujeito enquanto enunciador e a interpretao dos discursos.

    Para Mussalim (2001), a anlise do discurso pode ser dividida em trs fases distintas. A primeira, AD-1, enfoca discursos mais

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    estveis, de origem comum e fechados numa estrutura muito pr-pria. A autora exemplifica com os discursos polticos do Partido Comunista, em que a produo discursiva se dava a partir de con-dies de produo mais estveis e homogneas, isto , no interior de posies ideolgicas e de lugares sociais menos conflitantes (MUSSALIM, 2001, p. 117). Essa construo seria estabelecida por uma mquina discursiva que delimitaria as fronteiras de produ-o em relao semntica e criao.

    A AD-2 rompe com o conceito de mquina discursiva, uma vez que considera a possibilidade de influncia externa na produ-o dos discursos, que seriam mais conflitantes e menos estveis. Nesse caso, o dispositivo que classificaria os discursos em outra perspectiva analtica seria a formao discursiva (FD), conceito concebido pelo filsofo Michel Foucault, que determinaria o que pode/deve ser dito a partir de um determinado lugar social (MUS-SALIM, 2001, p. 119). De acordo ainda com Mussalim, existiria ento uma diviso dentro da FD entre o que do prprio discurso (interno a ele), e o que seria de fora (externo a ele). Isso signifi-ca o rompimento com a noo de uma estrutura fechada, em que uma FD seria uma construo de elementos de outros discursos. De acordo com a autora, [n]essa segunda fase da AD, portanto, o objeto de anlise passar a ser as relaes entre as mquinas dis-cursivas. Vale ressaltar, no entanto, que o fechamento da mquina ainda conservado, pois a presena do outro (outra FD) sempre concebida a partir do interior da FD em questo (2001, p. 119). A AD-2 poderia ser relacionada ao processo do ato discursivo, rela-cionado securitizao, abordada mais frente.

    Mussalim, por fim, aborda a AD-3 de maneira bem sucinta, relacionando-a a uma desconstruo das mquinas discursivas. Ao contrrio da verso em que as formaes discursivas atraves-sariam umas s outras de maneira independente, o que se teria se-ria um interdiscurso dentro do qual todas as FDs se formariam. A AD-3, numa comparao com outras teorias, se encaixaria mais numa anlise do discurso ps-estruturalista, em que as estruturas fechadas das outras fases so abordadas num contexto nico, o in-terdiscurso lugar da anlise, nesse caso.

    Para Fairclough (2001), o termo discurso usado como uma representao social, em que o sujeito constri ao mesmo tempo sua identidade e age na formao do mundo e dos outros indivdu-os. Isso implica uma relao dialtica entre o discurso e a estru-

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    tura social, existindo mais geralmente tal relao entre a prtica social e a estrutura social: a ltima tanto uma condio como um efeito para a primeira (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Esse discurso tambm se delineia pela estrutura social no qual construdo, sob a influncia das diversas representaes identitrias em torno do sujeito que o produz. O discurso, portanto, no se limita repre-sentao do mundo, mas lhe confere significado, numa prtica de constante construo de distintas formas de significao.

    Com efeito, em primeiro lugar uma questo de admitir totalmente a distino entre linguagem e discurso. O discurso a linguagem en-quanto prtica social determinada por estruturas sociais (as regras e/ou conjuntos de relaes de transformao organizadas como pro-priedades dos sistemas sociais). Ao aceitar essa premissa, estamos aceitando tambm que a estrutura social determina, dessa forma, as condies de produo do discurso. (IIGUEZ, 2004, p. 149)

    Fairclough ainda sugere trs efeitos construtivos do discurso. O primeiro relativo quele que produz o discurso, o sujeito da re-lao social. O segundo se d pelas relaes sociais e a interao de sujeitos distintos. Por fim, o discurso contribui para a construo de sistemas de conhecimento e crena (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Esses trs efeitos se relacionam ao que ele chama de funes da linguagem, e so, respectivamente, as funes identitria, re-lacional, e ideacional.

    Fairclough ainda enfatiza a prtica poltica e ideolgica. O discurso, no que se refere prtica poltica, estabelece, mantm e transforma as relaes de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem relaes de poder (FAIRCLOUGH, 2001, p. 94). No que se refere prtica ide-olgica, o discurso responsvel pela constituio, naturalizao, manuteno e transformao dos significados que o mundo tem, de acordo com as relaes de poder preexistentes. Conclui-se da que as prticas polticas e ideolgicas no esto separadas, mas se conectam numa relao dialtica de complementaridade.

    Antes, estruturas sociais so observadas, experimentadas, inter-pretadas e representadas por membros sociais, por exemplo, como parte de sua interao ou comunicao cotidiana. essa (subje-tiva) representao, esses modelos mentais de eventos especfi-cos, esse conhecimento, essas atitudes e ideologias que, no fim, influenciam os discursos e outras prticas sociais das pessoas. Em outras palavras, a cognio pessoal e social sempre medeia a socie-dade ou as situaes sociais e o discurso. (DJIK, 2008, p. 26)

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    O autor tambm aponta para o entendimento da prtica dis-cursiva, salientando que alm de ser uma prtica social, o discur-so deve ser entendido especialmente na sua forma lingustica. Por isso, uma prtica discursiva ser entendida como um texto, que tanto pode ser linguagem falada como linguagem escrita. A prtica discursiva mais uma forma de representao das prticas sociais. As ltimas podem ter elementos discursivos na sua totalidade ou apenas parcialmente, mas a linguagem essencial para que qual-quer construo possa ser dotada de significado.

    O discurso contribui para a constituio de todas as dimenses da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o res-tringem; suas prprias normas e convenes, como tambm rela-es, identidades e instituies que lhe so subjacentes. O discur-so uma prtica, no apenas de representao do mundo, mas de significao do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91)

    Segundo Fairclough, a anlise de uma prtica discursiva deve focalizar trs processos: a produo, a distribuio e o consumo tex-tual. Portanto, uma anlise do discurso dever obedecer a esses trs enfoques de uma formao discursiva: delimitao do sujeito enun-ciador, passando pela forma como o discurso se traduz nas relaes sociais e, por fim, como ele ser recebido por uma determinada pla-teia. Essa diviso o que Fairclough chama de concepo tridimen-sional do discurso, que busca colocar numa mesma estrutura anal-tica as concepes sociolgicas e lingusticas da anlise discursiva.

    A prtica discursiva de onde o texto subtrado faz parte de uma prtica social maior, que engloba todo o ambiente do discur-so, isto, , todas as relaes sociais entre o enunciador e o recep-tor, e os fatores que interferem diretamente na forma como uma mensagem se dar de um plano para outro. Fairclough (2001), ao abordar a produo textual, apontar para as diferentes formas de construo dos textos. Contextos sociais especficos limitaro uma determinada produo textual, o que pode significar o uso de de-terminados termos e um padro de diferenciao lingustica para um pblico-alvo pr-selecionado. Um peridico de cunho poltico, por exemplo, usar construes que ressaltem suas ideias de forma clara ao seu pblico, para que o entendimento seja direto e haja identificao entre o sujeito enunciador e o receptor.

    Em relao ao consumo, o contexto social tambm ser res-ponsvel por delimitar a forma como sero construdos os signifi-

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    cados em um discurso. Seu objetivo pode ser variado e causar dis-tintas reaes nos receptores, de forma que alguns textos condu-zem a guerras ou destruio de armas nucleares; outros levam as pessoas a perder o emprego ou a obt-lo; outros ainda modificam as atitudes, as crenas ou as prticas das pessoas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 108).

    A distribuio de um texto se preocupar em como ele ser recebido pelo pblico. Especialmente no caso de discursos polticos e ideolgicos, diversas instituies trabalham numa mesma cons-truo discursiva, a fim de torn-la mais palatvel e de facilitar a percepo da ideia proposta e a identificao entre os sujeitos inse-ridos nessa prtica social.

    De acordo com Fairclough:

    Produtores em organizaes sofisticadas, como departamentos de governo, produzem textos de forma a antecipar sua distribuio, transformao e consumo, e neles constroem leitores mltiplos. Podem antecipar no apenas os receptores (aqueles a quem o texto se dirige diretamente), mas tambm os ouvintes (aqueles a quem o texto no se dirige diretamente, mas so includos entre os leitores) e destinatrios (aqueles que no constituem parte dos leitores oficiais, mas so conhecidos como consumidores de fato). (FAIRCLOUGH, 2001, p. 108)

    O conceito de mudana discursiva para Fairclough busca-ria compreender mudanas que o sujeito enunciador produz num discurso a fim de corroborar ou mudar o foco de uma ideia pre-viamente apresentada. Isso estaria ligado diretamente forma como o consumo de um texto se daria pela plateia a que se dirige. A aceitao e consequente identificao com um discurso poderiam significar a sua manuteno, mas quando h problemas na ordem do consumo, necessrio que se reveja como determinadas cons-trues foram feitas internamente ao discurso para se adaptar ao pblico direcionado.

    Por fim, resta mencionar que a combinao de novos elemen-tos numa mudana discursiva altera a estrutura prvia de um dis-curso, e nesse ponto que a anlise deve ser feita. A forma como determinadas ideias deixaram de ser colocadas e a contradio com novas ordens discursivas so essenciais para se entender como se do as mudanas relativas produo do texto, o que permite com-preender a inteno dessa mudana em relao a uma nova distri-buio e consequente consumo pela plateia em questo.

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    Discurso, identidade e estrutura nas Relaes Internacionais

    Neste trabalho, o enfoque terico ser dado s teorias de cunho mais construtivista, a fim de explorar desde uma viso mais crtica dentro do paradigma at uma abordagem mais reflexivista, ligada aos trabalhos considerados ps-estruturalistas. Dessa for-ma, buscaremos compreender como o discurso e a identidade se relacionam no que entendido como estrutura nessas proposies tericas e como elas se colocam dentro das Relaes Internacionais, especialmente na rea de segurana internacional.

    O papel do discurso como construtor das ideias sempre esteve presente no paradigma construtivista (num sentido amplo, desde o mais positivista at o mais radical). O que diferencia a proposio de um autor para outro a forma como o discurso apresentado meto-dologicamente, se dentro de uma estrutura fixa ou relacionado dire-tamente desconstruo da realidade, inseparvel dela e instvel na sua estrutura (BUZAN; HANSEN, 2009). Essa primeira viso, mais estruturalista, pode ser corroborada no seguinte argumento:

    Linguagem no realidade, mas a nossa nica forma de apreen-der a realidade a fim de torn-la socialmente compreensvel e til. Porque humanos so animais sociais, a realidade em que existimos e agimos todos os dias largamente uma realidade social e, pelo que , requer a linguagem (traduo nossa).3 (SCHONBERG, 2009, p. 10)

    Nesse sentido, a construo das identidades se d dentro de uma estrutura fixa, e os elementos discursivos ajudam a compre-ender como essas construes so feitas a partir do que apresen-tado dentro dessa prpria estrutura. No h, portanto, algo fora da estrutura ou dos discursos apreendidos, mas sim uma relao entre eles de autorreferenciao e construo baseada no contexto, nos atores, nos objetivos, interesses etc. (SCHONBERG, 2009). H ainda a percepo de que necessrio compreender como as iden-tidades de atores distintos se relacionam entre si e so construdas em contrapontos ou correlaes. Um exemplo disso a construo apresentada por Dijk (2008): Semntica e lexicalmente, os outros so ento associados no apenas com a diferena, mas tambm com o desvio (ilegitimidade) e a ameaa (violncia, ataques).3. Language is not reality, but it is our only means of apprehending reality so as to make it socially comprehensible and useful. Because human beings are social animals, the reality in which we exist and act every day is largely a social reality and to the extent that it is, is requires language.

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    Isso importante para que se consiga compreender como o eu construdo em relao ao outro, num processo de alteri-dade ou complementaridade, expresso nos estudos de segurana, por exemplo, na construo de aliados ou inimigos (ROJO, 2004). Aqueles que dispem da linguagem quando examinam a constru-o de uma ameaa, perigo e identidades, alegam que ganhamos um melhor entendimento dessa complexidade e construo (AGIUS, 2010, p.63, traduo nossa).4

    O papel do discurso na abordagem ps-estruturalista

    Uma abordagem considerada ps-estruturalista enxerga as construes discursivas como elas mesmas construtoras da reali-dade. Isso significa dizer que no possvel apreender o conceito de identidade sem que se entenda todo o processo em que ela foi construda discursivamente nesse ponto, remetendo prpria construo da realidade como um ato discursivo (BUZAN; HAN-SEN, 2009). Nesse sentido,

    [] a linguagem tem uma capacidade influenciadora e estruturan-te que a prov de poder social. [] A alegao central foi a de que a escolha de diferentes metforas, eufemismos ou analogias tem consequncias fundamentais para como a realidade foi entendi-da, e tambm para quais polticas devem ser adotadas. (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 141, traduo nossa)5

    O papel das figuras de linguagem como a metfora, a hipr-bole e a metonmia, por exemplo, central no entendimento de como um discurso se relaciona construo da realidade para os ps-estruturalistas. Isso porque elas configuram desvios ou insta-bilidades nessas construes e permitem analisar o que estaria por trs do que enunciado, o que demonstraria a fluidez da prpria estrutura, uma vez que no so independentes entre si (RICOUER, 1992). De acordo com Campbell, sinnimos, metonmias e met-foras no so formas de pensamento que acrescentam um segundo sentido a outro primrio, constitutivo e literal das relaes sociais;

    4. Those who deploy language when examining the construction of threat, danger, and identities claim that we gain a better understanding of the complexity and construc-tion itself5. [] language has a structuring and influencing capacity that provides it with social power. [] The central claim was that the choice of different metaphors, euphemisms or analogies had fundamental consequences for how reality was understood, and hence also for which policies should be adopted.

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    ao contrrio, eles so parte do prprio terreno primrio em que o social construdo (CAMPBELL, 1998, p. 7, traduo nossa).6

    A principal diferena entre os estudos apresentados anterior-mente da securitizao e o que iremos discutir acerca de autores ps-estruturalistas a dicotomia entre o eu e o outro. Para com-preender como as identidades so construdas em determinado discurso, preciso apreender os elementos que fazem com que os atores representados se contraponham ao outro, em relaes do que est no interior/exterior e que so manipulados como bem/mal, civilizados/brbaros etc. Segurana ento se torna um re-quisito duplo de que o Estado precisa para ser seguro, mas tambm precisa do outro ameaador para definir sua identidade, dando-lhe um sentido ontolgico de segurana (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 218, traduo nossa).7 O objetivo das anlises ps-estruturalistas , portanto, desconstruir estruturas percebidas em um discurso ou ao, a fim de desestabilizar verdades preconcebidas e encontrar instabilidades no que apresentado (MUTIMER, 2010).

    Mais especificamente, a teoria ps-moderna prov uma crtica da representao e da crena moderna de que uma teoria reflete a realidade, e fala em posies perspectivas e relativistas que as teorias no mximo apresentam parcialmente em relao aos seus objetos, e que todas as representaes cognitivas do mundo so historicamente e linguisticamente mediadas. (BEST; KELLNER, 1991, p. 4, traduo nossa)8

    A distino que David Campbell (1998) faz entre risco e ame-aa uma forma interessante de perceber como os termos podem ser usados de forma a tentar convencer uma plateia acerca de ne-cessidades que um ator tenha sobre o que construdo em relao ao outro por exemplo na legitimao de uma interveno ou da nomeao de um grupo como terrorista. O discurso serve como ligao entre a percepo do seu autor com seu interesse, aqui en-tendido como a prtica ou os meios para atingir determinados ob-

    6. synonymy, metonymy, metaphor are not forms of thought that add a second sense to a primary, constitutive literality of social relations; instead, they are part of the pri-mary terrain itself in which the social is constituted7. Security thus became an ontological double requirement the state needed to be secure, but it also needed the threatening Other to define its identity, thereby giving it ontological security.8. More specifically, postmodern theory provides a critique of representation and the modern belief that theory mirrors reality, taking instead perpectivist and relativist positions that theories at best provides partial perspectives on their objects, and that all cognitive representations of the world are historically and linguistically mediated.

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    jetivos. O processo de construo do ator responsvel pelo discurso passa diretamente pelo processo de apagamento ou construo do outro a que se refere (como amigo ou inimigo, mas, nesse caso, os inimigos). De acordo com o autor, trata-se de todas essas prti-cas de diferenciao na confrontao entre o self e o other, e seus modos de figurao (CAMPBELL, 1998, p. 99, traduo nossa).9 O perigo entendido como a condio material, aquilo que de fato pode causar dano ou agir objetivamente. Ameaa, no entanto, a condio subjetiva, aquilo que entendido e construdo como peri-go, no porque , mas por ser discursivamente dito como tal.

    Para o ps-estruturalismo, a linguagem ontologicamente signifi-cante: somente por meio da construo na linguagem que as coi-sas objetos, sujeitos, Estados, seres vivos e estruturas materiais ganham significado e uma identidade particular. A linguagem no uma ferramenta transparente que funciona como um meio para registrar informaes como os positivistas assumem (impli-citamente), a cincia emprica, mas um campo da prtica poltica e social, sendo que no h um verdadeiro significado ou objetivo na representao lingustica a que algum pode se referir. (HAN-SEN, 2006, p. 18, traduo nossa)10

    Os significados em um discurso, portanto, no so desconec-tados da realidade que ele procura construir. So, de fato, parte intrnseca e sem a qual no se pode compreender como uma estru-tura construda, e na qual as identidades se relacionam, positiva ou negativamente. Da a concluso de Campbell de que o mundo existe independentemente da linguagem, mas ns nunca podemos ter o conhecimento para prov-lo (alm do fato dessa afirmao), porque a existncia do mundo literalmente inconcebvel fora da linguagem e nossas tradies de interpretao (CAMPBELL, 1998, p. 6, grifo do autor, traduo nossa).11 Nesse processo, a identidade de um ator construda em contraponto ao outro. Novamente,

    9. [...] all those practices of differentiation implicated in the confrontation between self and other, and their modes of figuration.

    10. To poststructuralism, language is ontologically significant: it is only through the construction in language that things objects, subjects, states, living beings, and mate-rial structures are given meaning and endowed with a particular identity. Language is not a transparent tool functioning as a medium for the registration of data as (implicitly) assumed by positivist, empiricist science, but a field of social and political practice, and hence there is no objective or true meaning beyond the linguistic representation to which one can refer.11. the world exists independently of language, but we can never know that (beyond the fact of its assertion), because the existence of the world is literally inconceivable outside of language and our traditions of interpretation.

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    as relaes de identidade entre eu e outro construdas pela di-ferena no so dadas pela estrutura, mas constantemente adapta-das e apagadas de acordo com os interesses e percepes envolvidos (CAMPBELL, 1998).

    Nesse contexto, a estrutura analtica proposta por Lene Hansen (2006) pode ser muito til para se perceber como a diferenciao en-tre o eu e o outro construda por meio do discurso. Hansen cita quatro elementos a serem delimitados nessa estrutura de pesquisa:12 1) Nmero de atores: diz respeito ao nmero de atores ou agentes en-volvidos na anlise textual. Pode ser: a) nico, quando se trata de apenas um ator responsvel pelo discurso; b) comparativo, em que vrios atores tm seus discursos cruzados e comparados entre si e c) cruzado, contrapondo-se discursos de dois (ou mais) atores que tm relao dicotmica entre si. 2) Tipos de texto: a seleo do tipo tex-tual a ser abordado. Divide-se em: a) discursos oficiais, transmitidos por rgos estatais e agncias ou proferidos diretamente por seus au-tores fsicos, como presidentes e ministros; b) debate poltico amplo: outras formas de discurso como a mdia, partidos polticos de opo-sio e corporaes; c1) representaes culturais: envolvem o estudo de questes culturais mais gerais e c2) discursos polticos marginais. 3) Perspectiva temporal a posio do texto selecionado no tempo. O discurso pode ser alocado sob trs perspectivas: a) um momen-to especfico ou perodo de tempo; b) em momentos distintos, para que seja feita comparao entre eles e c) desenvolvimento histrico: como determinado fenmeno discursivo se desenvolve historica-mente. 4) Nmero de eventos a limitao de eventos abordados pelo discurso. Pode ser: a) um evento nico; b) eventos mltiplos que se relacionam atravs de determinado assunto ou c) eventos mltiplos que se relacionam ao longo do tempo.

    Essa proposio permite construir um desenho de pesquisa capaz de abordar os principais elementos de um discurso (ou vrios discursos). Nessa estrutura, so colocados tanto os atores quanto o contexto discursivo, ou seja, preocupa-se no somente em quem responsvel pelo enunciado, mas tambm em onde e como o dis-curso em questo foi construdo, tomando essa preocupao como necessria compreenso de todos os elementos que viro a consti-tuir o eu e o outro no processo de diferenciao tambm propos-ta pela autora. A estratgia da anlise do discurso a de incorporar

    12. Os termos originais so: 1) Number of selves, 2) Intertextual models, 3) Temporal perspective e 4) Number of events.

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    fatores materiais e ideacionais ao invs de privilegiar um em detri-mento do outro (HANSEN, 2006, p. 23, traduo nossa).13

    Hansen prope em um primeiro momento que se crie uma es-trutura que permita compreender como so construdos os proces-sos de ligao de cada uma das identidades (do eu e do outro). Depois que esse processo concludo, passa-se para o processo de diferenciao, em que cada uma das identidades colocada em con-traponto outra, de forma a demonstrar como as construes dis-cursivas se relacionam.

    Os processos de ligao e diferenciao proveem conceitos tericos e ferramentas metodolgicas para conduzir anlises empricas e permitem uma anlise estruturada e sistemtica de: como os dis-cursos procuram construir estabilidade, onde eles se tornam ins-tveis, como eles podem ser descontrudos, e o processo pelo qual eles mudam. Como o significado de cada signo estabelecido por meio da ligao e da diferenciao, sempre h uma brecha entre eles: eles so ligados entre si, mas nunca totalmente da mesma for-ma. A instabilidade pode ser articulada explicitamente se o outro construdo como radicalmente diferente, ainda que parte do eu, mas discursos geralmente envolvem uma anlise mais parcimo-niosa de como ligaes e justaposies entram em conflito entre si. (HANSEN, 2006, p. 44-45, traduo nossa)14

    Essas caractersticas remontariam construo das identidades de cada um dos atores no desenho de pesquisa. As relaes especfi-cas de cada ator se do dentro da mesma identidade, mas devem ser descontrudas em relao ao outro, a fim de que o que pode pare-cer uma construo positiva do eu seja percebido da forma como possivelmente , em uma posio hierrquica (HANSEN, 2006). As identidades apresentadas por Hansen, quando analisadas individu-almente, apenas remontam o quadro de cada um dos atores, mas no explicitam as possveis inconsistncias das relaes identitrias em um discurso; para tanto, necessrio o processo de diferenciao.

    13. The strategy of discourse analysis is thus to incorporate material and ideational factors rather than to privilege one over the other.14. The process of linking and differentiation provide theoretical concepts and meth-odological tools for conducting empirical analysis and they allow for a structured and systematic analysis of: how discourses seek to construct stability, where they become unstable, how they can be deconstructed, and the processes through which they change. As the meaning of each sign is established through linking and differentiation, there is always a gap between them: they are linked to each other, but never fully the same. Instability might be explicitly articulated if the Other is constructed as radically different yet also as part of the Self, bus discourses will usually involves more careful analysis of how links and juxtapositions come into conflict with each other.

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    Metodologicamente, deve-se comear identificando-se aqueles termos que indicam uma construo clara do outro [...] ou do eu [...]. E no a construo da identidade por si s, porque isso no possvel somente por meio da designao de um signo particular para o outro e para o eu, mas ao contrrio, por meio da locao desse signo dentro de um sistema mais largo. (HANSEN, 2006, p. 41-42, traduo nossa)15

    A diferenciao proposta por Hansen prxima do que Cam-pbell (1998) discute no processo de construo das identidades. Para esse autor, as construes negativas de perigo e ameaa dependem no apenas da exaltao do eu, mas da construo de um espao ou posio em que o outro possa ser percebido como mau ou inferior.

    A construo do inimigo por George W. Bush

    Com o desmantelamento da Unio Sovitica, os Estados Unidos encontravam-se sozinhos num mundo unipolar, ou seja, no havia outra potncia capaz de fazer frente ao seu poder ou desafi-lo em qualquer campo (HOBSBWAM, 2007). O fim da Guerra Fria representava um momento nico na histria mun-dial, em que os EUA poderiam enfim projetar seus valores livre-mente com o intuito de disseminar ideais democrticos e liberais (PECEQUILO, 2005).

    Os Estados Unidos teriam ento a obrigao e a responsabili-dade de manter a estabilidade e a paz (TEIXEIRA, 2007). As fun-es a serem exercidas pelos EUA eram apresentadas da seguinte forma: defesa e expanso da democracia; liberdade em relao aos organismos internacionais multilaterais; e maior investimento e ampliao das Foras Armadas, capazes de se manterem na van-guarda tecnolgica e de dissuadirem qualquer ameaa ou inimigo (TEIXEIRA, 2007).

    Em seus discursos, Bush afirma que a garantia da estabilidade e da segurana do planeta dependeria de seu pas, o que lhe daria o dever de agir como tal. Os EUA teriam, portanto, a responsa-bilidade de defender os ideais civilizatrios, da democracia e da li-berdade.

    15. Methodologically, one should therefore begin by identifying those terms that in-dicate a clear construction of the Other [...], or of the Self []. Identity construction is not, however accomplished solely through the designation of one particular sign for the Other or the Self but rather through the location of this sign within a larger system.

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    Nessa nova era, os Estados Unidos seriam os lderes de uma profunda mudana, a fim de expandir os ideais democrticos. Estava em construo a nao indispensvel, protetora das instituies e dos valores democrticos, prprios da civilizao. A histria, de acor-do com Bush, mostraria que os Estados Unidos teriam sua maior oportunidade de garantir sua hegemonia e expandir seus valores.

    Eu viverei e liderarei por esses princpios: para promover minhas convices com civilidade, para perseguir o interesse pblico com coragem, para falar por maior justia e compaixo, e chamar pela responsabilidade e tentar viv-la como esperado. Em todas essas passagens, eu levarei os valores de nossa histria para a ateno de nossos tempos. (BUSH, 2001, traduo nossa)16

    Aps os atentados terroristas de 11 de Setembro, a inter-veno no Afeganisto colocada no apenas como uma forma de espalhar bons princpios e valores, mas como questo de se-gurana nacional, portanto, como um ponto-chave na chamada guerra ao terror. No discurso aps os atentados terroristas, o presidente Bush procura enaltecer as qualidades de seu povo, contrapondo-as a atributos negativos dos terroristas. Os ataques so construdos como atos irracionais e cruis, que visam a des-truir os princpios norte-americanos e confrontar seu esprito de liberdade e seu propsito de civilizao. Isso se d atravs de alguns elementos colocados como formadores da civilizao americana, sendo a prpria ideia de civilidade reincidente nessas construes discursivas.

    O discurso no mais de uma ameaa estatal como nos tem-pos da Guerra Fria, mas de um inimigo novo, o terrorismo transna-cional (LIMA, 2005). De acordo com Tatiane Teixeira:

    Esse inimigo no se identifica com nenhum Estado, no tem terri-trio e no estabelece nenhum tipo de complementaridade econ-mica com seu adversrio. Aceitar sua existncia, nessas condies, significa entrar em uma guerra na qual os EUA definem, a cada momento e da forma mais conveniente, quem e onde est o rival, perpetuando uma guerra que ser cada mais extensa. (TEIXEIRA, 2007, p. 53)

    Por isso a necessidade de se construir sob um Estado (com territrio fixo e atingvel) a justificativa de patrocnio e acolhida

    16. I will live and lead by these principles: to advance my convictions with civility, to pursue the public interest with courage, to speak for greater justice and compassion, to call for responsibility and try to live it as well. In all these ways, I will bring the values of our history to the care of our times.

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    de terroristas como forma de julg-lo contrrio democracia, li-berdade e aos valores comuns que os Estados Unidos presumem ser universais.

    O termo guerra ao terror mais um eufemismo que j fora utilizado em outros governos estadunidenses no caso da guerra contra as drogas. Apesar do discurso de que a guerra ao terrorismo era nica e sem precedentes, o governo Reagan j havia usado os mesmos termos para referir-se, entretanto, a objetos diferentes17 (PECEQUILO, 2005).

    As consequncias diretas dos atentados terroristas foram a declarao imediata de guerra, a convocao de uma ampla aliana nacional e a identificao (e punio) dos responsveis (PECEQUI-LO, 2005, p. 375-376). Logo, os americanos mobilizaram-se em diversas manifestaes de repdio e de um nacionalismo marcado pela emoo e aes patriticas.

    A aprovao da operao no Afeganisto contou com um amplo apoio da comunidade internacional. [...] Dado o carter do 11 de setembro, essa guerra era tida como justa, sendo um movimento de resposta a um inimigo que atingira e continuava ameaando os norte-americanos.(PECEQUILO, 2005, p. 384)

    Nesse contexto, o bem/mal caracterizado tambm como amigo/inimigo, de forma que os aliados so todos aqueles que com-partilham dos valores norte-americanos e compreendem a neces-sidade de interveno para garantir um mundo melhor e mais pa-cfico esses valores seriam compartilhados por todos os homens, e por isso, seriam certos. Outra caracterstica recorrente e que remete muito especificamente aos discursos do presidente norte--americano a adoo da compaixo como atributo intrnseco do povo norte-americano. A presena da compaixo importante para destacar o carter bondoso dos Estados Unidos, mesmo quando se traduz em intervenes militares.

    O maniquesmo bem/mal est presente nos discursos do pre-sidente Bush como forma de afirmao da contraposio ameri-cana/terrorista. O americano seria o povo dotado de compaixo, aquele que tem piedade dos demais por no serem livres nem ca-pazes de se guiarem sozinhos. Os terroristas representariam a maldade no mundo, o que construdo numa abrangncia capaz de incluir Estados e seus lderes, ou seja, terrorista todo aquele

    17. A Unio Sovitica ainda era o principal inimigo. O terrorismo estaria associado atuao e patrocnio sovitico em outros pases.

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    considerado inimigo e capaz de ameaar os Estados Unidos e seus amigos/aliados. Essa seria a diferena fundamental entre o mundo amigo dos americanos, no qual se incluem seus aliados e os pases considerados democrticos, e o mundo opressor, marcado por outros valores, como a tirania e a barbrie.

    Hoje, afirmamos um novo compromisso em viver a promessa de nossa nao atravs da civilidade, da coragem, da compaixo e do carter. Amrica, no seu melhor, combina um compromisso de princpios e uma preocupao com a civilidade. Uma sociedade ci-vil demanda de cada um de ns boa vontade e respeito, trato justo e perdo. (BUSH, 2001, grifo nosso, traduo nossa)18

    O ps-11 de Setembro foi marcado por uma reformulao dos objetivos estadunidenses no cenrio internacional. De acordo com Flint e Falah (2004), valores como liberdade, justia e dignidade humana serviriam para inspirar a nova estratgia norte-americana. Enxergou-se nesse momento a possibilidade de colocar em prtica diversas aes que culminariam na formulao de documentos pelo Conselho de Segurana Nacional da Casa Branca e na Guerra do Iraque, em 2003 (FROELICH, 2005).

    Dentre os documentos formulados, um especialmente lem-brado por pesquisadores como a origem da doutrina Bush. Trata-se da Estratgia de Segurana Nacional dos Estados Unidos (Natio-nal Security Strategy of the United States NSS), divulgado em 2002 e que trazia discusso possveis formas de interveno dos EUA em outros Estados.

    As principais caractersticas do documento envolvem a distin-o entre guerra preventiva e guerra preemptiva e a possibilidade do uso de ambas (AMORIM, 2004); a classificao de Estados em fracos e falidos rogue states; a reafirmao do termo eixo do mal e a colocao de alguns Estados nessa classe; a necessidade de evitar que terroristas e Estados que os hospedem ou patrocinem de alguma forma possuam armas de destruio em massa; e a disse-minao dos valores liberais democrticos s naes oprimidas por regimes dspotas e tirnicos (JERVIS, 2003).

    O presidente Bush, em 2003, vincula a guerra ao terror exis-tncia de Estados fora da lei. Essa comparao pode ter a inteno

    18. Today, we affirm a new commitment to live out our nations promise through civil-ity, courage, compassion and character. America, at its best, matches a commitment to principle with a concern for civility. A civil society demands from each of us good will and respect, fair dealing and forgiveness.

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    de buscar no imaginrio do pblico a noo de mocinho/bandido, num contraponto direto dos EUA e seus inimigos. Essa construo procuraria demonstrar o padro de justia pelo mocinho em de-trimento do bandido arruaceiro e irracional. Pode-se assim dis-tinguir e localizar a ameaa no cenrio internacional, de forma que os lderes desses pases sejam tidos como a encarnao do mal.

    Hoje, o perigo mais grave na guerra ao terror, o mais grave perigo que afronta a Amrica e o mundo so os regimes fora da lei, que procuram e possuem armas nucleares, qumicas e biolgicas. Esses regimes poderiam usar essas armas para chantagear, aterrorizar e praticar assassinatos em massa. Eles ainda poderiam ceder ou ven-der esses armamentos aos aliados dos terroristas, que poderiam us-las sem a menor hesitao. (BUSH, 2003, traduo nossa)19

    Os Estados Unidos reafirmam a possibilidade de agir unilate-ralmente quando necessrio, mesmo que atravs de intervenes e conflitos diretos o que em outras palavras significa a mudana de regime atravs do uso da fora (LIMA, 2005). Para tanto, ado-tariam a poltica de atuar contra um inimigo antes que esse tivesse a possibilidade de faz-lo, ou seja, no esperar o primeiro ataque (guerra preventiva), ou de atuar contra um inimigo de quem a ame-aa seria iminente e exigiria medidas urgentes e drsticas (guerra preemptiva) (BOIO, 2009; TEIXEIRA, 2007).

    A classificao de Estados como fracos, falidos e prias advm da administrao Clinton. No entanto, essas formas de clas-sificar Estados (de acordo com os interesses norte-americanos) ganharam maior peso na administrao Bush depois do 11 de Se-tembro e da possibilidade de o Afeganisto, considerado um Esta-do falido especialmente aps a ocupao Taleb, ter hospedado os terroristas responsveis pelos ataques. Isso pode ser visto em um dos documentos j citados: Ns devemos estar preparados para deter Estados prias e seus clientes terroristas antes que sejam ca-pazes de ameaar ou usar armas de destruio em massa contra os Estados Unidos e nossos aliados e amigos (NATIONAL SECURITY STRATEGY, 2002, traduo nossa).20 19. Today, the gravest danger in the war on terror, the gravest danger facing America and the world, is outlaw regimes that seek and possess nuclear, chemical, and biologi-cal weapons. These regimes could use such weapons for blackmail, terror, and mass murder. They could also give or sell those weapons to terrorist allies, who would use them without the least hesitation.20. We must be prepared to stop rogue states and their terrorist clients before they are able to threaten or use weapons of mass destruction against the United States and our allies and friends.

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    Alm dos rogue states, o governo Bush usou mais uma expresso para identificar possveis inimigos e ameaas ao seu pas. Trata-se do eixo do mal, termo utilizado pela primeira vez num discurso nao (State of the Union) no ano de 2002 (WICKHAM, 2002). Nes-se discurso, que remonta s reflexes de Kagan e Kristol debatidas, foram identificados como ameaas segurana Estados autoritrios que desenvolviam projetos de hegemonia regional, ADMs21 e promo-viam o terrorismo internacional (PECEQUILO, 2005, p. 395). Nesse grupo encontravam-se Iraque, Sria, Ir e Coreia do Norte, seguindo--se Lbia, Sria e Cuba. A nica forma de eliminar a ameaa que esses pases representavam seria a disseminao dos valores e das institui-es democrticas aps a derrubada dos regimes preexistentes.

    A ausncia de um modelo alternativo organizao das sociedades observada no comeo do documento Estratgia de Segurana Na-cional parte da explicao para o otimismo. Outra a expectativa de uma forma benigna do efeito domin, no momento em que a troca de regime iraquiano esperada como fortalecedora das for-as da liberdade e que possa deter outros potenciais distrbios da paz. (JERVIS, 2003, traduo nossa)22

    Os Estados Unidos entendiam que a partir do momento em que a populao desses pases tivesse contato com uma nova forma de governo e organizao poltica, tornariam o processo democr-tico mais rpido e dariam exemplo para os demais pases da regio. Agiremos ativamente para levar a esperana da democracia, do de-senvolvimento e do livre comrcio para todos os cantos do mundo (NATIONAL SECURITY STRATEGY, 2002, traduo nossa).23

    Tendo em vista esse quadro, seria preciso aumentar significativamen-te a verba da Defesa, fortalecer os laos com os aliados democrticos e desafiar os regimes hostis aos interesses e valores americanos, pro-mover a causa da liberdade poltica e econmica mundo afora, aceitar a responsabilidade do papel nico da Amrica em preservar e ampliar uma ordem internacional amigvel e favorvel segurana, prosperi-dade e princpios dos EUA. (TEIXEIRA, 2007, p. 200)

    21. Armas de destruio em massa.22. The absence of any competing model for organizing societies noted at the start of the National Security document is part of the explanation for the optimism. Another is the expectation of a benign form of domino dynamics, as the replacement of the Iraqi regime is expected to embolden the forces of freedom and deter other potential disturb-ers of the peace.23. Finally, the United States will use this moment of opportunity to extend the ben-efits of freedom across the globe. We will actively work to bring the hope of democracy, development, free markets, and free trade to every corner of the world.

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    J no ano de 2002, pouco tempo aps a invaso do Afeganis-to, a possibilidade de mais uma investida na sia Central comeou a ser cogitada. Tratava-se do Iraque de Saddam Hussein, conside-rado pelos neoconservadores como principal ameaa estabilidade no Oriente Mdio e segurana dos Estados Unidos (TEIXEIRA, 2010). Integrantes da administrao Bush, especialmente o secre-trio de Defesa, Donald Rumsfeld, e o vice-presidente, Dick Che-ney, juntamente s publicaes e think tanks neoconservadores, passaram a associar o regime de Saddam Hussein rede terrorista Al Qaeda e seu lder, Osama bin Laden (KAUFMANN, 2004). De-pois do anncio da nova doutrina estratgica norte-americana, a presso por uma ofensiva militar contra o regime de Saddam Hus-sein parece ser quase um pretexto para que Washington imponha ao resto do mundo um unilateralismo baseado na fora militar (PEIXOTO, 2002).

    A partir desse momento, diversas tentativas de demonstrar que o regime iraquiano procurava obter armas de destruio em massa foram exploradas na mdia e no Congresso norte-americano a fim de conseguir apoio a mais uma ao militar. Aps intenso debate, mas especialmente devido maioria republicana no Con-gresso, o presidente Bush conseguiu aprovao para iniciar mais um conflito.

    Para vender a guerra do Iraque mdia e ao povo americano, [...] a Casa Branca moldou o debate em trs frentes: as armas de destrui-o em massa de Hussein configuravam uma ameaa iminente (o quadro das ADMs); o povo do Iraque deveria ser libertado de um ditador cruel (o quadro da libertao); e Hussein patrocinava ati-vidades terroristas (o quadro terrorista). (DAVIDSON et al., 2008, p. 470, traduo nossa)24

    Diversos pases europeus, notadamente Alemanha e Frana, contestaram a necessidade de uma interveno direta em forma de ao militar e alegaram que a via da conteno por meio de orga-nismos internacionais era a melhor sada para resolver o problema a suposta obteno de ADMs por Saddam. As Naes Unidas e o Conselho de Segurana emitiram a Resoluo n 1441, considera-da dbia e pouco objetiva em relao ao tema (PECEQUILO, 2005;

    24. To sell the Iraq war to the American media and people, Caroline Heldman has ex-plained, the White House framed the debate in three ways: Husseins weapons of mass destruction posed and imminent threat (the WMD frame); the Iraqi people should be freed from a cruel dictator (the liberation frame); and Hussein sponsored terrorist ac-tivities (the terrorist frame).

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    KAUFMANN, 2004; BOIO, 2009). De qualquer forma, o presidente Bush j havia conseguido aprovao no Legislativo do seu pas e no hesitaria em manter o discurso de que se o Iraque no cedes-se s presses norte-americanas e desistisse das supostas ADMs, a mudana de regime aconteceria sem demoras. De acordo com Kau-fmann (2004), a alegao de que o Iraque detinha ADMs tinha o objetivo de criar um cenrio ainda mais aterrorizante que os aten-tados de 11 de Setembro, a fim de legitimar a interveno.

    Retomando as construes de Bush em relao ao eixo do mal, ao usar a palavra eixo, procura-se construir uma relao di-reta com o grupo formado pela Alemanha nazista, a Itlia e o Japo na Segunda Guerra Mundial. Esse confronto resgatado de forma a mostrar a ameaa e a necessidade de combater um novo inimigo to perigoso quanto os que surgiram no conflito global.

    Estados como esses, e seus aliados terroristas, constituem um eixo do mal, que se arma para ameaar a paz no mundo. Ao procurar armas de destruio em massa, esses regimes colocam um grande e crescente perigo. Eles poderiam prover armas a esses terroristas, dando-lhes os meios necessrios que condizem com seu dio. Eles poderiam atacar nossos aliados ou tentar chantagear os Estados Unidos. Em qualquer um desses casos, o preo da indiferena po-deria ser catastrfico. (BUSH, 2002, grifo nosso, traduo nossa)25

    O discurso americano procura estabelecer vnculos de di-ferenciao com o que considera um dos grandes inimigos da li-berdade do sculo passado sob a forma da expanso nazista na Europa e do conflito com o Japo no Oceano Pacfico. Isso tem o intuito de mostrar que o perigo apenas mudou de nome, mas a necessidade de combater a mesma, sendo a ao norte-america-na to necessria quanto foi no passado e por isso todos devem corrobor-la. O isolacionismo abordado como a pior atitude em relao a esses pases, mostrando a clara propenso ao em de-trimento da conteno.

    Partindo do suposto excepcionalismo norte-americano, o pre-sidente Bush far resgates histricos de como o pas abdicou de uma posio mais isolacionista e ajudou outros povos. A aluso da

    25. States like these, and their terrorist allies, constitute an axis of evil, arming to threaten the peace of the world. By seeking weapons of mass destruction, these re-gimes pose a grave and growing danger. They could provide these arms to terrorists, giving them the means to match their hatred. They could attack our allies or attempt to blackmail the United States. In any of these cases, the price of indifference would be catastrophic.

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    ajuda norte-americana no combate ao nazifascismo tem o intuito de mostrar seu carter nobre, como defensores do mundo livre e contra a opresso de regimes tirnicos. Essa a histria de um novo mundo que se tornou amigo e libertador do antigo, a hist-ria de uma sociedade escravista que se tornou serva da liberdade (BUSH, 2001, traduo nossa).26

    Em outro momento, o presidente norte-americano compara o nmero de democracias em 1945 e o nmero atual (BUSH, 2002). Marcar o perodo inicial em 1945 significa levar em conta a expan-so dos Estados Unidos no cenrio internacional como uma das superpotncias remanescentes da Segunda Guerra Mundial. A dis-puta entre os EUA e a URSS na Guerra Fria marcaria justamente a diferena do apoio dado a cada Estado, seja pelo bloco capitalista, defensor das democracias liberais, seja pelo bloco socialista, de-fensor de regimes populares. A partir da, o presidente buscar exemplos atuais para demonstrar que o avano da democracia re-gra no mundo desde o perodo mencionado, e que a oposio da tirania seria a exceo a ser combatida. A expanso do nmero de democracias seria a comprovao de que seus valores so certos e devem continuar a ser levados a outras partes do mundo.

    Por isso, a guerra ao terror comparada aos grandes confli-tos pelos quais passaram os EUA no sculo anterior, das Guerras Mundiais Guerra Fria. Essa construo busca criar elementos si-milares na percepo do perigo e da ameaa, uma vez que no possvel num primeiro plano indicar o inimigo como seria feito por meio de um Estado. Essa construo discursiva procura ainda esta-belecer justificativas para a guerra ao terror alm dos terroristas, especialmente com a incluso da ameaa de determinados pases segurana internacional.

    A possibilidade de atuao desses regimes implicar a afirma-o de que os Estados Unidos agiro independentemente da opi-nio dos demais pases pela iminncia da ameaa. Essa iminncia que caracteriza a ao preemptiva dos EUA, como no caso afego.

    O isolacionismo no iria apenas amarrar nossas mos no comba-te aos inimigos, ele nos impossibilitaria de ajudar nossos amigos em urgente necessidade. Ns mostramos compaixo fora de nosso pas porque os americanos acreditam na dignidade dada por Deus [...]. Ns ainda demonstramos compaixo no exterior porque regi-

    26. It is the story of a new world that became a friend and liberator of the old, a story of a slave-holding society that became a servant of freedom.

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    es dominadas pela pobreza, corrupo e desespero so fontes de terrorismo, crime organizado, trfico humano e trfico de drogas. (BUSH, 2006, traduo nossa)27

    A partir de ento, o presidente Bush comea a construir seu argumento em torno do regime iraquiano, o primeiro alvo de fato da nova estratgia de segurana dos Estados Unidos (NSS, 2002). A necessidade de interveno no Iraque construda a fim de mos-trar que no h nada que se possa fazer para evitar uma catstrofe do que uma mudana no regime do pas. A interveno no pas se classificaria como uma guerra preventiva, em que a ameaa no iminente, mas no se pode deixar que ela cresa a ponto de que no se possa agir no futuro.

    Alguns disseram que no devemos agir at que a ameaa seja imi-nente. Desde quando terroristas e tiranos anunciam suas inten-es, nos avisando polidamente antes de atacar? Se a essa ameaa for permitido o surgimento completo e repentino, todas as aes, todas as palavras e todas as recriminaes chegaro tarde demais. Confiar na sanidade e moderao de Saddam Hussein no uma estratgia, nem uma opo. (BUSH, 2003, traduo nossa)28

    A grande nfase nesse ponto do discurso em relao ao Ira-que representa uma tentativa de aproveitar o melhor momento do que o presidente Bush chamou de guerra ao terror. Entre a invaso do Afeganisto e o comeo da guerra do Iraque, o 11 de Setembro ainda permanecia como um evento marcante e trau-mtico no imaginrio norte-americano, por isso o enfoque maior nesse pas a fim de constru-lo como uma grande ameaa aos Es-tados Unidos.

    O discurso do primeiro alvo deveria ser exemplar para justi-ficar e comprovar a necessidade da interveno, e isso se dar a partir de exemplos histricos do belicismo de Saddam Hussein, da sua indiferena em relao s instituies internacionais, da suposta posse de armas de destruio em massa, e especialmente

    27. Isolationism would not only tie our hands in fighting enemies, it would keep us from helping our friends in desperate need. We show compassion abroad because Americans believe in the God-given dignity [] We also show compassion abroad be-cause regions overwhelmed by poverty, corruption, and despair are sources of terror-ism, and organized crime, and human trafficking, and the drug trade.28. Some have said we must not act until the threat is imminent. Since when have terrorists and tyrants announced their intentions, politely putting us on notice before they strike? If this threat is permitted to fully and suddenly emerge, all actions, all words, and all recriminations would come too late. Trusting in the sanity and restraint of Saddam Hussein is not a strategy, and it is not an option.

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    de sua comprovada relao com grupos terroristas, inclusive a Al Qaeda. A ligao do regime iraquiano com terroristas foi a pri-meira tentativa de adotar um discurso de construo de Saddam como o outro terrorista. No entanto, o governo norte-americano no conseguiu convencer o pblico dessa ligao e teve de mudar o seu discurso, afirmando que a posse de armas de destruio em massa caracterizaria uma ameaa ainda maior que os terroristas.

    Ainda existem governos que patrocinam e abrigam terroristas mas seu nmero tem diminudo. Ainda existem regimes em busca de armas de destruio em massa mas no mais sem ateno e sem efeito. Nosso pas ainda o alvo dos terroristas que querem matar muitos, e intimidar a todos ns e ns vamos nos man-ter na ofensiva contra eles, at que a guerra seja vencida. (BUSH, 2005, traduo nossa)29

    O Oriente Mdio novamente trazido tona com a discusso acerca da Sria como um dos pases que patrocinam o terrorismo internacional, desestabilizando pases na regio como Lbano e buscando ameaar Israel e os Estados Unidos. Dessa forma, assim como o Ir, a Sria tambm construda a partir da lgica da obten-o de armas de destruio em massa, a fim de impelir a conexo entre esses pases e seu entendimento como ameaa.

    O presidente Bush continua a construir o Ir como uma gran-de ameaa aos interesses norte-americanos e patrocinador do ter-rorismo. O enfrentamento do presidente iraniano em no aceitar a paralisao de seu programa de enriquecimento de urnio para fins energticos o torna um dos principais alvos da guerra ao terror. O governo iraniano construdo como o inimigo da liberdade, dos direitos humanos e da democracia, retratado como fonte da deses-tabilizao de outros regimes no Oriente Mdio (notadamente os que tm maior ligao com os Estados Unidos), alm de configurar--se como maior ameaa existncia de Israel na regio, por isso a repetio do presidente Bush em relao obteno de armas nu-cleares pelo Ir.

    O mesmo verdade para o Ir, uma nao agora feita refm por uma pequena elite clerical que est isolando e reprimindo seu povo. O regime nesse pas patrocina terroristas nos territrios da

    29. There are still governments that sponsor and harbor terrorists but their number has declined. There are still regimes seeking weapons of mass destruction -- but no longer without attention and without consequence. Our country is still the target of terrorists who want to kill many, and intimidate us all -- and we will stay on the offen-sive against them, until the fight is won.

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    Palestina e no Lbano e isso precisa acabar. (Aplausos) O governo iraniano est desafiando o mundo com suas ambies nucleares, e as naes do mundo no devem permitir que o governo iraniano obtenha armas nucleares. (Aplausos) A Amrica continuar a reco-brar foras do mundo para enfrentar essas ameaas. (BUSH, 2006, traduo nossa)30

    A reeleio republicana significou a perpetuao das polti-cas neoconservadoras, sobretudo aps a dupla vitria do partido nas duas casas do Congresso americano. O secretrio Donald Ru-msfeld foi mantido na pasta da Defesa, Colin Powell foi substitu-do por Condoleezza Rice na Secretaria de Estado e Alberto Gon-zales ocupou o cargo de John Ashcroft como ministro da Justia. No lugar de Rice, que ocupava cargo no Conselho de Segurana Nacional, foi nomeado seu nmero dois, Stephen Hadley, cor-roborando a coeso da administrao em torno dos falces neo-conservadores.

    A guerra ao terror como plataforma de poltica externa norte-americana foi mantida, do mesmo modo que o discurso intervencionista como forma de levar a democracia e os valores liberais aos pases que representassem alguma ameaa aos Esta-dos Unidos e seus aliados. A democracia seria um valor certo, perseguido por todos os indivduos do mundo, porque essa seria uma vontade inata dos homens. Bush afirmar que o regime de-mocrtico nada mais que a evoluo da humanidade, pressu-posto da civilizao apoiada pelos norte-americanos. O discurso em prol da expanso da democracia um dos principais pontos de toda a argumentao em torno da necessidade de interveno em determinados pases.

    A democracia seria o fator desencadeador da liberdade, que resultaria na paz e na estabilidade interna e dos vizinhos se de-mocrticos.

    Reformas esperanosas esto tomando lugar num arco do Marro-cos que passa pelo Jordo e Bahrein. O governo da Arbia Saudi-ta pode demonstrar sua liderana na regio expandindo o papel de seu povo na determinao de seu prprio futuro. E a grande e orgulhosa nao do Egito, que mostrou o caminho em direo

    30. The same is true of Iran, a nation now held hostage by a small clerical elite that is isolating and repressing its people. The regime in that country sponsors terrorists in the Palestinian territories and in Lebanon -- and that must come to an end. (Applause.) The Iranian government is defying the world with its nuclear ambitions, and the na-tions of the world must not permit the Iranian regime to gain nuclear weapons. (Ap-plause.) America will continue to rally the world to confront these threats.

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    paz no Oriente Mdio, pode agora mostrar o caminho em direo democracia no Oriente Mdio. (BUSH, 2005, traduo nossa)31

    A causa da democracia seria, portanto, a garantia da paz em outras palavras, a manuteno do status quo norte-americano. O que se pretende uma paz democrtica: se fossem todos demo-crticos, os pases da regio se guiariam por valores comuns da ci-vilizao e no buscariam dominar ou agredir seus vizinhos.

    A expanso da democracia est intimamente ligada cons-truo discursiva dos ideais americanos, como parte da misso do pas frente s suas responsabilidades do momento nico que viveria. Dessa forma, o presidente Bush novamente usa a compai-xo como expresso do carter norte-americano frente aos demais povos. A razo de intervir externamente nada mais seria que a ne-cessidade de ajudar queles que sofrem opresso e no conseguem se desvencilhar de governos tirnicos.

    O ideal ento seria que todos os regimes fossem democrticos para que a paz fosse automaticamente garantida, assim como os interesses norte-americanos no globo.

    Nosso intuito construir e preservar uma comunidade de naes livres e independentes, com governos que respondam aos seus ci-dados e espelhem suas prprias culturas. E porque as democra-cias respeitam seus prprios povos e seus vizinhos, o avano da liberdade resultar na paz. (BUSH, 2005, traduo nossa)32

    A democracia seria o fator desencadeador da liberdade, que resultaria na paz e na estabilidade interna e externa. O presidente vai alm, conectando a construo discursiva com a existncia de um momento nico a ser aproveitado pelos Estados Unidos: Esse avano [da democracia] tem um grande momento em nosso tempo [...]. Ns estamos testemunhando um marco divisrio na histria da liberdade. E nos prximos anos, iremos somar a essa histria (BUSH, 2005, traduo nossa).33

    31. Hopeful reform is already taking hold in an arc from Morocco to Jordan to Bah-rain. The government of Saudi Arabia can demonstrate its leadership in the region by expanding the role of its people in determining their future. And the great and proud nation of Egypt, which showed the way toward peace in the Middle East, can now show the way toward democracy in the Middle East.32. Our aim is to build and preserve a community of free and independent nations, with governments that answer to their citizens, and reflect their own cultures. And because democracies respect their own people and their neighbors, the advance of free-dom will lead to peace.33. That advance has great momentum in our time [] We are witnessing landmark events in the history of liberty. And in the coming years, we will add to that story.

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    Isso novamente abordado ao se construir a necessidade da mudana de regime no Iraque por sua posio estratgica, consi-derado um pas-base de terroristas. Existe nesse caso uma tenta-tiva de colocar o governo de Saddam Hussein como patrocinador de atividades terroristas, mais uma justificativa da interveno no pas iraquiano. Com a possibilidade de expanso da democracia, os terroristas perderiam seu apoio no Iraque.

    A defesa da democracia no Oriente Mdio retratada como algo requisitado pela humanidade, como o certo a se fazer e indiscutvel por esse motivo. Americanos so um povo livre, que sabem que a liberdade o direito de cada pessoa e o futuro de cada nao. A liberdade que prezamos no um presente da Amrica ao mundo, mas de Deus para a humanidade (BUSH, 2003, traduo nossa).34

    Pases como Ir e Coreia do Norte passaram a receber maior ateno e foram motivo de tenses diplomticas, com constantes investidas da ento secretria de Estado, Condoleezza Rice. No en-tanto, a permanncia das tropas no Iraque e no Afeganisto afasta-va no curto prazo qualquer possibilidade de interveno em outro pas.

    Em 2006, no meio de seu segundo mandato presidencial, o presidente Bush, atravs de seu Conselho de Segurana Nacional, publicou a segunda edio da Estratgia de Segurana Nacional (NATIONAL SECURITY STRATEGY, 2006). Sem apresentar novas ideias, o documento reafirmava a possibilidade da guerra preven-tiva/preemptiva, a necessidade de levar a democracia ao Oriente Mdio e outros pases considerados tirnicos, o poder inconteste e consequente responsabilidade norte-americana em assegurar a estabilidade e a paz no mundo como forma de garantir sua prpria segurana.

    Consideraes finais

    Nesse contexto, podemos utilizar as noes de linking e diffe-rentiation de Lene Hansen (2006). Determinadas representaes seriam colocadas como antnimos diretos, de forma que uma ca-racterstica norte-americana teria seu antnimo correspondente

    34. Americans are a free people, who know that freedom is the right of every person and the future of every nation. The liberty we prize is not Americas gift to the world, it is Gods gift to humanity.

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    num processo de caractersticas comuns a cada grupo em detri-mento das caractersticas do outro. No caso dos Estados Unidos, a democracia, a liberdade, a civilizao e a compaixo se oporiam tirania, opresso, barbrie e crueldade dos seus inimigos.

    A construo negativa do outro feita pelo contraponto, atri-buindo-se valor s qualidades da civilizao. Em seu discurso no ano de 2007, o presidente Bush busca retomar o contraponto entre o eu e o outro, a fim de marcar bem a necessidade de combater o inimigo. No entanto, dessa vez o discurso mais enftico nas ca-ractersticas do inimigo, como a crueldade e a vontade de matar os norte-americanos.

    Figura 1 - Processo de ligao Os Estados Unidos e seus inimigos. Fonte: Baseado no modelo de Lene Hansen (2006).

    O papel dessa diferenciao foi essencial para procurar con-vencer a plateia de que os objetivos propostos eram essenciais segurana dos Estados Unidos. Bush no apenas constri o inimi-go, mas o faz num contraponto s caractersticas que ele considera positivas no seu povo, aquele que vai receber a mensagem.

    A securitizao do objeto visou a construir a imagem negativa de Estados ao associ-los com o terrorismo. As ideias presentes de-marcavam o campo de atuao da poltica externa norte-americana e pretendiam justificar invases em outros territrios como algo essencial.

    Poder-se-ia afirmar que toda relao poltica maniquesta e que a construo social do eu e do outro conflituosa por na-tureza. No o pretendido neste trabalho e comprovar o oposto seria tema para outra pesquisa. O outro no necessariamente o inimigo, esse sim objeto de nosso estudo.

    Estados Unidos

    Democracia Compaixo

    Liberdade Civilizao

    Inimigos

    Tirania Crueldade

    Opresso Barbrie

    Processo de ligao

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    Figura 2 - Processo de ligao e diferenciao Estados Unidos e seus inimigos. Fonte: Baseado no modelo construdo por Lene Hansen (2006).

    Considerar, portanto, o maniquesmo nos discursos do pre-sidente norte-americano essencial no apenas pelo vis poltico mas para entender como as ideias constroem e buscam enaltecer determinados conceitos em detrimento de outros.

    Procuramos demonstrar neste trabalho como o discurso (e a sua anlise) podem e so utilizados por tericos e pesquisadores das Relaes Internacionais como objetivo e mtodo. Apresenta-mos de maneira sucinta como o discurso evoluiu enquanto objeto de estudo das cincias sociais no sculo XX e atingiu maior visibi-lidade pelo chamado giro lingustico. A partir da, partimos para um estudo mais focado na questo da identidade por meio de vie-ses construtivistas variando no prprio paradigma de uma viso mais crtica e estrutural a outra considerada ps-estruturalista.

    A anlise do discurso pode ser utilizada pelos pesquisadores das RI como modo de compreender melhor as formas de represen-tao da identidade. Assim, os elementos materiais e o papel das ideias como formadores dessas identidades reproduzem estruturas

    Inimigos

    Tirania Crueldade

    Opresso Barbrie

    Estados Unidos

    Democracia Compaixo

    Liberdade CivilizaoProcesso de ligao

    Processo de diferenciao

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    autorreferentes nesses discursos. A partir do momento em que se tem contato com a possibilidade de entender como determinadas estruturas so reproduzidas por meio de uma construo basea-da na negao ou no posicionamento inferior do outro, possvel perceber como os atores se constroem e identificam aliados ou ini-migos da a importncia da percepo do que seria uma ameaa construda e uma ameaa real, ou seja, a distino entre ameaa e risco aqui apresentada.

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