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NOTAS SOBRE A CONSTRUÇÃO PSICO-SOCIAL DA IDENTIDADE DESVIANTE
EM TOXICODEPENDÊNCIA
Rui Tinoco, psicólogo clínico
Abstract O presente artigo pretende demonstrar a importância do conceito de subcultura para a compreensão da formação da
identidade desviante na toxicodependência. A fundamentação desta pretensão compreende dois momentos: o nível social e o nível individual. No primeiro tentaremos realçar o modo como a subcultura define condicionalismos sociais que influenciam de algum modo as evoluções individuais; no segundo momento, teceremos reflexões em torno dos vários tipos de gestão indispensáveis para que o sujeito possa prosseguir a sua conduta adictiva, a saber: gestão da imagem de si em relação aos outros do meio normativo; gestão da sua relação com a substância e com o que a rodeia; gestão cognitiva de s i mesmo.
Palavras chave: IDENTIDADE DESVIANTE; TOXICODEPENDÊNCIA; PSICO-SOCIAL; SUBCULTURA
The present article intends to demonstrate the importance of the concept of subculture to the understanding of the
deviant identity formation in drug addiction. The grounding of this intention includes two moments: social level and individual level. In the former, we will try to enhance the way subculture defines social restraints wich influence, in some way, individual evolutions; in the latter, we will build reflections on the various types of management indispensable for the individual to proceed with his addictive behavior: self image management in relation to the others of the normative society; management of his relationship with the substance and with what surounds it; cognitive management of himself.
Cet article prétend démontrer l importance du concept de subculture pour la compréhension de la formation de
l identité déviante dans la toxicomanie. La soutenance de cette prétention comprend deux moments: le niveau social et le niveau individuel. En ce qui concerne le premier on essayera de mettre en évidence le mode dont la subculture définit des contraintes sociales qui influencent en quelque sorte les évolutions individuelles; relativement au deuxième moment, on réfléchira aux plusiers types de gestion jugés indispensables au sujet pour qu il puisse poursuivre sa conduite toxicomane: gestion de l image de soi par rapport aux autres du milieu normatif; gestion de son rapport avec la substance et avec ce qui l´entoure; gestion cognitive de soi-même.
Referência Bibliográfica:
Tinoco, R. (1999). Notas sobre a construção psico-social da identidade desviante
em toxicodependência. Toxicodependências, 3, 11-23.
2
Destinamos o presente artigo à
reflexão sobre o modo como o indivíduo
toxicodependente constrói uma identidade
desviante ao longo do seu percurso
existencial. A compreensão de tal
contrução implica o desdobramento da
análise em dois momentos: o primeiro
englobará a reacção aos seus consumos por
parte dos outros membros da sua rede de
suporte social e de instituições de controle
- será o nível social; o segundo refere-se à
contrução de si que o sujeito realiza,
partindo dessa reacção e do modo como a
gere no seu quotidiano - o nível individual.
Socorrer-nos-emos de diversos autores
inscritos na tradição de Chicago e em
abordagens de natureza etnográfica. Estas
fontes, se bem que da área da sociologia,
tentam uma compreensão dos fenómenos
desviantes sob o duplo signo do
psicológico e do social (Matos & Agra,
1996). Procurar-se-á realizar aqui um
panorama da síntese do social no indivíduo
que necessita de ser estudado na sua
dinâmica própria de construção de si e de
significados. É esta interacção com o meio
circundante que, aplicada na psicologia do
desenvolvimento, trouxe tantos frutos para
aquela ciência - e que, estranhamente, é
deixada de lado na explicação de
fenómenos transgressivos.
Cumpre ainda a realização de um
esclarecimento: a reacção dos outros é uma
reacção social na medida em que joga com
representações colectivas, medos
colectivos que se concentram em
determinados espaços urbanos e em
determinados grupos sociais; mas também
implica o nível individual uma vez que o
indivíduo desse grupo se constrói a si
mesmo a partir desse contexto. É esta
dupla significância que o conceito de
"identidade desviante" dá conta:
"identidade" - implica o sujeito e os seus
significados, sendo algo que flui com o
tempo e com o que os outros dizem do
sujeito; "desviante" - porque remete para a
construção social de uma etiqueta
disponível para que o sujeito se identifique.
Utilizaremos na nossa reflexão o
conceito de subcultura, como o lugar
privilegiado do duplo nível de análise que
pretendemos explanar.
3
CONCEITOS DE SUBCULTURA
O conceito de subcultura será pedra
basilar da nossa análise, uma vez que se
refere à dinâmica interna de um
determinado grupo, minoritário no todo
social, e também às interacções, muitas
vezes de natureza conflituosa, que mantém
com esse todo. Ao mesmo tempo é nesse
grupo, na ideologia desse grupo, que o
indivíduo se vai construir como um sujeito
transgressivo - construção que implica,
simultaneamente, determinações sociais e
livre arbítrio (e como poderia ser de outro
modo?).
Não existe, propriamente, uma teoria
geral do conceito de subcultura. Os
diversos autores que utilizaram este
constructo teórico fizeram-no
relativamente a uma população específica.
As definições estão presas a contextos
particulares que as relativizam e dificultam
generalizações. Mesmo assim, Agra &
Fernandes (1993) organizaram as
possibilidades do conceito em torno do
pólo instrumental e do pólo expressivo, que
passamos já a expor.
Hipótese instrumental
A. K. Cohen (1955) estudando
subculturas criminais da América do Norte
foi o primeiro autor a formular esta
possibilidade. Ela subentende uma visão
utilitarista do conceito. Uma subcultura
emerge sempre que exista um número
suficiente de indivíduos com dificuldades
de adaptação semelhantes e sempre que a
interacção social permita um contacto
mínimo entre esses indivíduos. Por razões
puramente de ordem prática poderiam
emergir associações criadoras de um
ambiente desviante que enquadrasse os
comportamentos não sancionados
consequentes a essas desadaptações. (1)
Surge, pois, uma homogeneidade
subcultural que se mantém como um
mecanismo de adaptação instrumental: os
sujeitos agrupam-se de algum modo para
resolverem problemas em comum, sendo
que esses problemas trazem consigo um
certo estigma social. O sujeito que ganha
status numa subcultura perde-o, na razão
inversa, no todo social dito normativo.
É certo que esta função utilitária
dificilmente deixa de ser observável em
4
todas as subculturas, mas a formulação de
Cohen passou-se a aplicar a subculturas
que tendem apenas a estimular essa função
no sujeito que é seu membro.
Hipótese expressiva
A dimensão instrumental não é,
porém, a única configuração possível. Nos
finais dos anos 60 tendo por base a
emergência de uma série de grupos juvenis
- rockers, teddy-boys, mods, hippies etc - a
possiblidade expressiva é formulada. A
escola de Birmingham, que tematizou sobre
o assunto, via nesses movimentos juvenis
tentativas colectivas de resolução, por
parte da nova geração, dos problemas
insolúveis da cultura lhe deu origem. (2) A
hipótese, que nos parece agora um pouco
datada, não se limita, porém, a esta
formulação. Mais tarde, o conceito de
subcultura dará conta de movimentos
juvenis de natureza expressiva que
fornecem um ponto de encontro a
indivíduos provenientes dos mais variados
estratos sociais. A vertente activista, no
sentido político do termo, tende a ser
relegada para segundo plano em favor de
uma certa dimensão narcisística da
existência - tratar-se-ia de propostas de
vida alternativas às normativas, cativando
militantes nos mais diversos quadrantes do
social. (3 )
Estamos perante uma definição que
vai para além do instrumental, incitando
outras dimensões dos indivíduos como a
interrogação das suas existências, a adesão
a este ou àquele ideário microgrupal.
Emergiram por volta nos anos sessenta
uma série de subculturas com ideários
específicos e cosmovisões próprias. Nessas
subculturas, o consumo de substâncias era
apenas um dos elementos de uma vivência
mais geral - de modo algum ocupava o
lugar central. Era apenas um elemento de
um sistema expressivo mais geral.
NÍVEL SOCIAL: as drogas em
certas subculturas
Pretendemos fornecer uma
contextualização das condicionantes sociais
da construção da identidade desviante na
toxicodependência: a complexidade do
objectivo só poderá ser parcialmente
cumprida através de ilustrações. A
exemplificação a que nos propomos visa
5
duas grandes áreas: primeiro, a evolução
histórica dos consumos de heroína e a
degradação progressiva da, digamos, sua
imagem social - para isso utilizaremos um
estudo clássico que procede a um
balizamento histórico específico de uma
grande cidade dos E.U.A.; segundo,
ilustraremos o modo como uma
determinada subcultura configura uma série
de obstáculos que favorecem a emergência
de uma carreira desviante em moldes
bastante particulares e, de certo modo,
previsíveis.
Pretendemos que, findo tal percurso,
esteja feito o levantamento das duas
grandes linhas do social para aqui
relevantes: o olhar longitudinal que aventa
hipóteses sobre a evolução da imagem
social da droga; o olhar transversal que
chama a atenção para os
circunstancialismos que cada subcultura
das drogas põe aos indivíduos.
Olhar longitudinal - o exemplo
Nova Iorquino
Vejamos uma possível evolução da
subcultura das drogas em Nova Iorque tal
como foi analisada no estudo, hoje clássico,
de Preble & Casey (1969). Na explanação
que se segue tomaremos em principal linha
de conta a tendência de passagem do nível
expressivo (que não será expressivo a
100% como acima definimos) para formas
mais instrumentais à medida que o acesso
às drogas se torna mais difícil e os
obstáculos sociais ao consumo se
multiplicam. A história do uso da heroína é
dividida em seis períodos: entre as duas
grandes guerras; durante a segunda guerra
mundial; de 1947 a 1951; de 1951 a 1957;
deste ano a 1961 e de 1961 à data de
elaboração do estudo.
No primeiro período observa-se um
consumo de heroína em pessoas ligadas ao
espectáculo, criminosos de vários tipos,
prostitutas e proxenetas; posteriormente,
durante a segunda grande guerra, dá-se
uma súbita falha na distribuição da heroína
sem consequências sociais a registar.
De 1947 a 1951 - os consumos
aumentaram rapidamente, nomeadamente
no que diz respeito à população imigrante
de cor e à proveniente de Porto Rico que
afluiram repentinamente à cidade, tendo
alastrado também às comunidades de
irlandeses e italianos, sem contudo
6
despertar grande alarme. As relações
sociais entre os consumidores mantinham-
se estáveis e de alguma forma coesas: a
heroína era barata, de boa qualidade, o seu
consumo exigia pouca despesa diária e
sucedia frequentemente em situações de
festa.
De 1951 a 1957 - neste período
observou-se um crescente consumo e
iniciação ao consumo por parte de pessoas
mais jovens - especialmente entre membros
de gangs cansados de lutas e procurando
novas alternativas. Em pouco tempo o
modelo de herói juvenil passou do membro
de gang irreverente e de casaco de peles
para o rapaz da esquina que goza a sua
heroína. Em consequência do aumento da
procura e da venda deste produto ilícito a
menores, os preços sofreram o primeiro
aumento. A criminalidade associada
também.
De 1957 a 1961 - o Sindicato,
organização criminosa que se encarregara
de abastecer a cidade, retira-se do mercado
em virtude de um endurecimento legal e da
crescente preocupação pública em torno do
alastramento dos consumos à população
juvenil. Porém, nem todos os membros do
Sindicato observaram a directiva: o tráfico
de heroína passou a ser realizado como um
modo de fazer dinheiro rapidamente,
recuperar de algum desastre financeiro. O
tráfico passou a ser praticado de forma
irregular, se bem que o Sindicato
emprestasse com alguma regularidade
somas a juros exorbitantes a certos
traficantes participando, por isso, nos
lucros da actividade.
De 1961 a 1969 - em 1961 surgiu
uma falha no abastecimento da heroína
durante algumas semanas. A pressão da
procura foi tão grande que os vendedores
puderam duplicar e triplicar os preços da
heroína que começou também a ser
adulterada. Quando o abastecimento
normalizou, os dealers tinham aprendido a
lição: existia mercado para venda do
produto a preços elevadíssimos. Falhas
cíclicas no abastecimento do mercado
mantiveram pressão para que este estado
de coisas se perpetuasse. O resultado na
subcultura dos adictos foi desastroso: a
coesão social fragmentou-se, os contactos
entre consumidores reduziram-se cada vez
mais a fins instrumentais - compra de droga
a meias como forma de comprar maiores
7
quantidades e, por isso, torná-la mais
barata a cada consumidor; ou ainda
realização conjunta de actividades
criminais.
"There is no longer a subculture of
addicts based on social cohesion and
emotional identification, but rather a loose
association of individuals and parallel
couples. Heroin users commonly say, 'I
have no friends only associates' " (Preble &
Casey, 1969, p. 20).
Esta resenha da visão histórica dos
consumidores em Nova Iorque, permite-
nos detectar uma evolução subcultural que
implica uma reordenação das duas
definições acima alinhavadas. Observa-se a
passagem da subcultura que, pelo menos
em parte, é expressiva, a uma subcultura
instrumental no pleno sentido do termo. Os
pontos de inflexão prendem-se com os
seguintes momentos: o alastramento da
comercialização da heroína à camada
juvenil desempregada de certos grupos
minoritários; a reacção social que, ao nível
das leis e da opinião pública, levou à
retirada do mercado da organização
criminosa mais experiente e o consequente
abastecimento irregular do mercado; num
último momento, as falhas de
abastecimento de carácter cíclico, aliadas à
procura constante, anteriormente criada,
permitiram aos dealers o aumento dos
preços e a degradação da qualidade do
produto. Esta série de elementos,
desencadeados em parte pela reacção
social, desmantela definitivamente a
organização expressiva da subcultura,
reduzindo-a à parte mais instrumental. O
consumidor viu-se preso num mercado em
que não há alternativas de compra, controle
de preço ou qualidade.
Tal evolução é exemplo típico da
profecia que se auto-realiza enunciada por
Thomas, mas aplicada à área das
toxicodependências por Young (1971): as
medidas repressivas tendentes a eliminar ou
a circunscrever determinados
comportamentos, se aplicadas a uma
subcultura já organizada, terão o dom
inverso de aumentar a radicalidade desses
comportamentos. Nesse sentido o consumo
de drogas rodeado de elementos
expressivos foi despojado, reduzindo-se
muitas vezes à dimensão auto-destrutiva e
8
quase a-simbólica: consome-se porque se
consome, destino final do consumidor
junkie em fim de carreira.
A dimensão junkie, contudo, é apenas
uma subcultura da droga entre muitas.
Existem várias que não entram em contacto
tão frequente com as instituições penais ou
de saúde, onde são produzidas,
normalmente, as caracterizações científicas.
O trabalho de Adler (1993), a título de
exemplo, tem a vantagem de nos dar a
conhecer uma subcultura de mais difícil
acesso, a dos dealers de maior dimensão,
com o seu estilo de vida bem diferente, e
outros obstáculos a tornear ao longo da sua
carreira desviante. Por iniciarem o seu
percurso transgressivo num ponto de
partida diferente, a sua trajectória será
necessariamente diversa da subcultura que
em seguida nos debruçaremos.
Olhar transversal - a subcultura da
droga crime
A conotação da droga fixou-se,
através de um processo social de natureza
longitudinal, nos aspectos negativos e
prejudiciais da droga - a pista fornecida
pelo caso de Nova Iorque é apenas um
ponto de partida para a investigação da
emergência da droga como estigma. A
partir de então é essa dimensão a
condicionante principal da construção da
identidade do sujeito desviante. Tendo em
linha de conta a rigidificação instrumental
que o estudo de Preble & Casey deixa
entrever (e note-se que um percurso de
semelhante natureza observou-se no nosso
país décadas mais tarde), tomemos a noção
de carreira desviante tal como Faupel
(1991) a concebe. Chamamos a este
percurso transversal porque analisaremos
as condicionantes subculturais num dado
momento histórico - é uma análise
transversal de um instante das mutações
subculturais que se vão sempre
observando.
A noção de carreira caracteriza-se
por deixar de lado a dicotomia
normal/anormal: passar-se-ia a tentar
compreender dinâmicas semelhantes entre,
por exemplo, profissionais liberais e
desviantes de diversa natureza. Um outro
aspecto a salientar é o facto de uma
carreira ser construída pela vontade do
indivíduo, mas também configura uma série
de obstáculos e etapas previsíveis que lhe
9
são, de certo modo, preexistentes. Por
último, temos que a noção de carreira
implica também uma experiência subjectiva
que surge das actividades inerentes a essa
carreira e os sentidos atribuídos às
actividades.
"For our purposes, then, career is
defined as a series of meaningfully related
statuses, roles and activities around wich an
individual organizes some aspects of his or
her life". (Faupel, 1991, p. 24).
Na estruturação dessa carreira,
Faupel considera como pilares da carreira
desviante na subcultura que estudou dois
eixos fundamentais: "Disponibilidade da
Droga" e "Estrutura de Vida"; cruzando os
eixos surgem definidos quatro campos
como se observa na Fig 1:
Estrutura de vida
Dis
po
nib
ilid
ade
da
dro
ga
Alta Baixa
Alta
Adicto Estável
(stable addict )
Adicto extremo
(freewheeling addict)
Baixa Consumidor
ocasional
(occasional
user)
Junkie de rua (street
junkie)
Fig. 1: As fases da carreira droga crime
As dimensões quantitativas dos dois
eixos só o são na aparência: o que é muita
ou pouca droga varia conforme o
indivíduo; assim como para a estrutura de
vida - que se refere principalmente à
existência ou não de comportamentos e
papéis sociais que originam rotinas diárias
regulares e previsíveis, sejam elas
normativas ou desviantes. Sublinha-se
igualmente que uma estrutura de vida alta
fornece ao indivíduo situações sociais que
de alguma maneira o ajudam a regular os
consumos. Situações de anomia, de baixa
estrutura de vida, retiram as referências
sociais ao indivíduo que, assim, muitas
vezes de forma involuntária, aumenta os
seus consumos (o fenómeno pode
observar-se em consumidores de outras
substâncias como café ou tabaco em
situações de férias em que a estrutura de
vida é mais baixa). Mas debrucemo-nos um
pouco sobre a tipologia proposta por este
autor:
Para o consumidor ocasional, os
relatos recolhidos não consideram nenhum
motivo dramático da esfera do pessoal que
possam explicar os consumos. A maior
parte dos sujeitos foi introduzida na
heroína por intermédio de amigos ou em
situações sociais; não se viam como vítimas
10
seduzidas mas como "participantes activos
procurando os consumidores que se sabia
terem fornecimentos de droga" (Faupel,
1991, p. 53) (4 ). Nesta fase a
criminalidade é ocasional e experimental,
ocorrendo de forma independente do
consumo. O consumidor ocasional
desconhece certas normativas subculturais,
como por exemplo a proibição de
introduzir neófitos ou crianças no consumo
- para ele a droga é boa e deve ser
partilhada com os outros. A estrutura de
vida é alta mas a acessibilidade à droga é
baixa.
Adicto estável: esta figura não se
segue linearmente à anterior, há sujeitos
que, sendo consumidores ocasionais, param
os seus consumos ou mantêm-se
indefinidamente nessa fase. O carácter
individual e idiossincrático da evolução
destas figuras é uma constante. O adicto
estável mantém a sua estrutura de vida a
um nível alto, aumentando também a
disponibilidade e o acesso ao produto.
Genericamente poder-se-á dizer que o
indivíduo nesta fase se socializou e
estabeleceu ligações com a subcultura.
Casos existem em que o sujeito mantém um
emprego legal paralelamente com uma
actividade de tráfico. Nesta etapa o
indivíduo conhece os traficantes, aprende a
injectar e adquire outras competências
básicas à vida subcultural. No caso de não
se conseguir manter o emprego legal, a
actividade de tráfico, a título de exemplo,
fornece ao indivíduo uma forte
estruturação dos seus hábitos quotidianos.
É nesta fase que se desenvolvem as
especializações criminais: prostituição,
forjador de cheques, assalto domiciliário, a
automóveis, roubo de artigos em lojas,
carteirista etc... Observa-se que a
actividade criminal precede a escalada dos
consumos (tal facto observou-se também
em Portugal no Projecto Droga - Crime).
(5) O adicto desta fase adere aos princípios
éticos da subcultura, ao mesmo tempo que
exerce a sua actividade criminal de um
modo planeado e cuidadoso.
"The so-called moral degeneracy
caused by increased addiction is, from the
stable's addict point of view, neither
degenerate nor caused by addiction. What
is taking place is normative conformity,
wich is learned through a process of social
11
interaction with other members of the
subculture." (Faupel, 1991, p. 86).
Adicto extremo: esta figura
despertou polémica, uma vez que não se
observa em todas as situações (Brochu,
1996). É nossa opinião que o modelo de
Faupel, ao entender uma não linearidade de
sequências, permite perfeitamente a
existência de consumidores com longa
história de consumo que não tenham
apresentado um padrão de consumos e um
estilo de vida próprios desta fase. Mas
adiante. Caracteriza-se esta etapa por uma
maior disponibilidade de acesso à droga,
com uma consequente erosão das
estruturas externas de vida que propiciam
uma desorganização dos consumos. Num
determinado ponto da carreira da droga-
crime, o desviante consegue um "big sting"
(Faupel, 1991, p. 100), algo semelhante, na
gíria portuense, a "uma fezada", quer por
ter havido um roubo especialmente
rentável; quer, no caso do pequeno
traficante, por enganar um dealer em
grande quantidade de produto ou por
qualquer outro motivo. O certo é que a
escalada de consumos eleva-se a altos
níveis num curto intervalo de tempo.
Faupel chama a atenção que a escalada,
embora bem real nas suas consequências
farmacológicas, só se observa nesta
intensidade por contingências sociais. O
intenso consumo isola o indivíduo de uma
certa socialização subcultural - a sua
especialização criminal é, digamos,
interrompida podendo mais tarde, após a
"fezada", encontrar dificuldades
inesperadas para o seu reatamento.
Acrescenta o mesmo autor: "despite
erractic, out-of-control consumerism, the
freewheeling addict is able to maintain
normative repectability" (p. 108). As
normativas subculturais são respeitadas na
sua máxima intensidade, ao mesmo tempo
que há, muitas vezes, um isolamento ou
diminuição da participação nas rotinas
subculturais do tráfico ou de outras
dimensões da criminalidade.
No junkie de rua, uma vez
terminada a "fezada", e dependendo dos
recursos e escolhas individuais, duas
alternativas se impõem: o regresso à fase
do adicto estável ou, se as coisas correrem
mal, a entrada na degradação inerente a
esta etapa. A disponibilidade da droga é
12
reduzida, assim como a estrutura de vida -
não há rotinas de vida definidas com
clareza. A maior parte destes casos resulta
numa inadaptação do consumidor à
actividade criminal que anteriormente lhe
garantia o rendimento monetário.
Terminada a "fezada", a tolerância e a
privação encontram-se em níveis tão
elevados que o consumidor não arranja
modo de os vencer eficazmente. No caso
de actividades criminais como o roubo,
assalto, falsificação, a interrupção
observada na etapa antecedente pode
originar uma desactualização por parte do
sujeito das, por exemplo, novas técnicas
utilizadas pela polícia, introdução de novos
sistemas anti-roubo, ... Tal desadaptação,
aliada à precipitação desencadeada pelo
evitamento do síndrome de privação
tornam o junkie um alvo fácil de captura ou
manipulações por parte da polícia. Um
adicto estável pode também passar
directamente a esta fase se tiver perdido o
emprego ou o apoio da família e não tiver
conseguido arranjar uma alternativa estável
de apoio financeiro. Independentemente da
sua origem, o junkie de rua perdeu o
controle dos seus consumos, não
conseguindo organizar uma rotina de vida
consequente: pratica actividades criminais
de forma desorganizada e não
especializada, correndo mais riscos e
ficando mais vulnerável à captura. É esta
vulnerabilidade que o torna mais facilmente
sujeito a manipulações por parte da polícia
e que desencadeia um processo de
progressiva perda de estatuto subcultural.
O junkie deixa de ser uma pessoa de
confiança dos dealers que lhe poderiam
dispensar quantidades de produto para o
pequeno tráfico - as mais valias servir-lhe-
iam para sustentar os seus consumos.
Como não é de confiança, tem de comprar
o produto na rua onde é mais caro e de
menor qualidade. Paradoxalmente, é no
momento do seu percurso de consumidor
em que seria mais necessário o acesso à
droga que se observa precisamente o
fenómeno oposto.
Sem recursos, sem apoio, com pouco
status subcultural o junkie vê-se forçado a
romper com muitos códigos éticos que só
abonam em seu desfavor: inicia novos
sujeitos e menores no consumo, assume em
casa o seu estatuto de consumidor porque
passa a roubar objectos, adultera em
13
demasia a droga se ainda tentar o pequeno
tráfico... Segregado pela sua subcultura,
sem alternativas, a actividade de crime é
gerida pela necessidade da heroína.
Se bem que o estudo tenha sido
realizado numa subcultura muito específica,
é necessário realçar que existe uma carreira
determinada em grande parte socialmente e
que, se cruzarmos essa noção com o estudo
de Preble & Casey (1969), poderíamos
aventar a hipótese de que uma carreira
organizada com esta severidade resulta de
uma estável e por vezes implacável reacção
social (sistema de justiça, policial,
mecanismos inerentes ao mercado ilícito...)
que mantém certas subculturas no nível
mais intrumental. Tal carreira, ou o que lhe
queiramos chamar, fornece então um
quadro referencial para a construção
individual da identidade desviante, bem
como a sua actualização (outras
subculturas da droga proporiam ao
indivíduo outros percursos).
NÍVEL INDIVIDUAL: a
construção de si
Como é que a subcultura condiciona
a maneira como o sujeito se vê a si mesmo?
Se no ponto anterior esboçámos uma
possível evolução longitudinal de uma
comunidade de consumidores
exemplificando o processo da profecia que
se auto-realiza (a subcultura de adictos de
Nova Iorque é paradigmática para vermos
como é que a heroína adquiriu a carga
negativa que lhe é associada) para depois,
acompanhando Faupel, compreendermos
em que medida uma parte considerável da
trajectória do consumidor é definida
socialmente, agora é chegado o momento
de invertermos o ponto de vista e
acompanharmos o indivíduo no modo
como ele pode tomar certas decisões,
contornar determinadas contingências no
interior ou em relação a certa subcultura.
Mais uma vez iniciamos o percurso
com o que existe em comum entre o
desviante e a normalidade:
"A preocupação com esta imagem
(de si mesmo) pode levá-lo a desobedecer,
14
a revoltar-se, mas pode também, e é o que
sucede mais frequentemente, levá-lo a
obedecer ainda mais; entendida neste
sentido, a noção de indivíduo não se opõe
de modo algum à noção de sociedade ou
Estado. Pode então dizer-se que esse
indivíduo é atingido no coração pelo poder
público quando é atingido na sua imagem
de si, na relação que tem consigo mesmo
quando obedece ao Estado ou à
sociedade."
(Veyne, 1987, p. 10)
A emergência de mecanismos de
controle social, como o aperfeiçoamento
das tecnologias de identificação, a
construção de arquivos com as histórias
dos indivíduos onde são registadas as
infracções e episódios individuais de vária
índole, contribuiu sem dúvida para a
generalização deste processo. Veyne chama
a atenção para o facto de o indivíduo, por
ter sido atingido no coração pelo poder
público, passar a reagir ao Estado ou ao
poder do mesmo modo como se relaciona
com alguém que o humilha ou, pelo
contrário, o elogia.
No século passado, Stuart Mill
(1977) antecipava certos processos deste
género - especialmente no caso em que o
Estado se opusesse determinantemente à
vontade de um certo número de indivíduos,
poderia passar a ser sinal de coragem e
determinação fazer o proíbido.
Encontramo-nos, pois, perante uma
disjuntiva: ou o indivíduo foi socializado
normativamente e a imagem de si depende
do poder público, obedecendo, por isso, às
leis e às expectativas criadas; ou, pelo
contrário, tal socialização falhou, a imagem
de si continua a depender do poder público
- agora num mecanismo inverso - podendo
dar-se o caso de emergir uma subcultura
que pretende suprir determinados
problemas instrumentais mas
principalmente fornecer uma ideologia, um
suporte micro-social a essa imagem de si
em falta. A subcultura, mesmo na sua
versão mais instrumental, pode
precisamente ter funções de suporte
psicológico do indivíduo desviante.
Poderemos compreender melhor a
ideia defendida por Matza (1981): uma
pessoa que fuma marijuana pela primeira
vez é já um funcionário do Estado. É
15
funcionário porque se aproxima de uma
substância que já está em grande medida
significada de determinado modo pelo
poder público. A sua liberdade de dar à
marijuana este ou aquele sentido está
condicionada por esse quadro de
referências que não controla - mesmo se
quiser relativizar esse quadro, como é
comum acontecer em consumidores
regulares, faz-se em sua oposição e
socorrendo-se de um grupo de pares que
de algum modo é desviante em relação aos
valores normativos.
Gestão da imagem de si: a droga
no indivíduo
Goffman (1988) denomina de estigma
qualquer tipo de comportamentos que seja
proscrito pela normatividade dominante.
Por exemplo: a heroína, em Nova Iorque,
foi adquirindo com o passar do tempo uma
carga negativa, fortemente negativa até,
passível de ter forte impacto nos outros o
facto de se saber alguém consumidor. Este
autor define estigma como qualquer
comportamento que pode desacreditar o
indivíduo que o pratica. A partir desse
momento ou o estigma é invisível tendo o
sujeito de gerir esse segredo de modo a não
ficar desacreditado - embora possa ser
desacreditável a qualquer momento; ou o
estigma é visível e, dada a sua natureza
desviante, infractora de consensos sociais,
uma vez descoberto numa determinada
pessoa tem o dom de impor esse traço
relativamente aos demais papéis
desempenhados pelo indivíduo - a pessoa é
desacreditada em todos os momentos.
Passa-se, por isso, a ser prostituta,
homossexual, heroinómano em vez de se
ter uma identidade mais heterogénea. Esta
descoberta social pode segregar o
indivíduo de determinadas esferas
normativas, retirar-lhe recursos, deixando-
o com a única alternativa de se tornar mais
desviante. Assistimos aqui à esfera
individual da profecia que se auto-realiza.
Em suma, o sujeito é:
Uma pessoa desacreditável - vê-se a
braços com a necessidade de uma constante
manipulação da informação; mantém laços
com o normativo social mas
simultaneamente constrói contactos com
pequenos grupos desviantes, aos quais se
alia para praticar os seus comportamentos
condenáveis pela normatividade dominante.
16
Ou é Uma pessoa desacreditada -
pelo seu estigma ser visível, a pessoa
enfrenta um ciclo quotidiano de restrições.
Procede-se a uma segregação espacial e
relacional. O sujeito deixa de ter, em casos
mais extremos, apoio da comunidade
normativa, o grupo de apoio passa a ser
exclusivamente o desviante. O
desacreditado manipula a tensão que pode
surgir em determinadas situações.
Em ambos, porém:
"Uma vez que em nossa sociedade o
indivíduo estigmatizado adquire modelos
de identidade que aplica a si mesmo a
despeito da impossibilidade de se
conformar com eles, é inevitável que sinta
alguma ambivalência em relação ao próprio
eu." (Goffman, 1988, p. 117).
Essa tensão insuperável, dadas as
contingências sociais inerentes ao estigma,
é parcialmente contornada no caso da
existência de uma subcultura forte,
fornecedora de modos alternativos de
identificação. Nesse caso resolver-se-ia o
problema da tensão do eu à custa de uma
crescente socialização em valores
alternativos e uma consequente perda de
estatuto na sociedade em geral. Note-se
igualmente que, como dissemos, esses
modos de identificação alternativos
constituem-se, grande parte das vezes, em
oposição directa aos valores normativos.
No caso da subcultura ser fraca
ideologicamente, o referencial normativo
não é relativizado por uma contra-
argumentação. O indivíduo vê-se forçado a
uma série de adaptações cognitivas e
existenciais, de que iremos ainda dar conta.
Gestão da substância: tornar-se
fumador de marijuana
Mas exemplifiquemos o que temos
vindo a dizer com um estudo clássico - a
gestão da imagem de si implica a gestão da
substância e do que a rodeia. Becker
(1963) interessou-se pelo processo pelo
qual um indivíduo se torna um consumidor
de marijuana. Este caso fornece-nos a
vantagem suplementar de ter sido objecto
de reflexão por parte de outro grande autor
das teorias do comportamento desviante
como é Matza (1981).
Becker acha que nem todos os que
cometem um acto não previsto, ou mesmo
17
estigmatizado, têm a intenção de o fazer ou
são movidos por um impulso bem definido.
Por aproximações sociais, por convívio
com um grupo de amigos, o indivíduo
passa a encarar o comportamento desviante
de outro prisma, ligeiramente afastado dos
estereótipos dominantes. Matza denomina
afinidade esse processo de aproximação,
sendo resultado dele, apenas intenções -
que podem ser favoráveis ou desfavoráveis
à prossecução do processo de desviância.
Segue-se a fase seguinte, a
aprendizagem/socialização na subcultura -
o processo de afiliação de Matza - onde se
compreendem, entre outras, as
aprendizagens das técnicas de consumo.
Para que o comportamento desviante se
estabilize Becker considera crucial o
processo de etiquetagem pública - o
indivíduo é descoberto e passa a ser
considerado desviante. Isto é acompanhado
por uma "mudança drástica da sua
actividade pública" (Becker, 1963, p. 32).
Por essa altura, Matza defende observar-se
o que denomina conversão: tal fenómeno
envolve uma reconsideração de si mesmo e
das suas afinidades. Seria o culminar do
processo de afiliação: "processo pelo qual
o sujeito se converte a uma conduta nova
para ele" (Matza, 1981, p. 126), podendo-
lhe dar novos significados em si (dentro de
determinadas margens sociais como já
vimos). O processo é inseparável da
trajectória do indivíduo.
O sujeito aproxima-se de uma
subcultura, começa a partilhar com ela
certas práticas até que adquire uma
identidade desviante. Passa a ver-se a si
mesmo de um novo prisma, em que a
actividade estigmatizada adquire um papel
central na organização dessa nova
identidade. Matza denomina essa etapa
mais estável do percurso desviante de
significação: o indivíduo, por já se
considerar desviante, passa de algum modo
a testemunhar contra si, seleccionando
factos e episódios na sua própria existência
que confirmam a sua diferença e o seu
estatuto diverso dos demais.
E se agora sublinhámos a importância
que esse processo de etiquetagem pública
desempenha nessa mudança, também
Goffman refere o facto de muitos
estigmatizados, pertencentes a subculturas
ideologicamente fortes, se referirem a esse
momento como, finalmente, a chegada ao
18
estado de graça em que a liberdade plena é
alcançada.
Becker considera o caso dos
fumadores de marijuana especialmente
paradigmático, uma vez que a motivação
desviante não antecede os comportamentos
mas é construída à medida que eles se vão
desenrolando. Por algum motivo o
indivíduo contacta um meio não normativo
em que a marijuana é fumada - no caso,
músicos de jazz. Pelos exemplos que
observa e conversas que ouve, o acto de
fumar essa droga passa a ser encarado de
outro modo. Passam a existir outras
referências sobre o fenómeno além das
decorrentes do senso comum. Fumadores
existem com os quais o sujeito simpatiza e
que contradizem o retrato esteoreotipado
do drogado.
Neste momento o indivíduo pode
avançar no processo ou manter-se por aí -
as normativas dominantes e a sua escolha
individual traçaram o afastamento. Mas em
caso contrário, principia aqui o processo de
socialização na subcultura. O indivíduo
depara-se com situações em que todos
fumam e acaba por experimentar - tem um
longo caminho a percorrer. Num primeiro
momento terá de aprender a técnica, saber
o modo como se fuma: sem essa
aprendizagem a dimensão hedónica da
droga é-lhe vedada. De seguida, terá de
aprender a percepcionar os efeitos da
substância. Para Becker, estar-se high - sob
o efeito da droga - implica duas dimensões:
a existência de efeitos devidos à marijuana
e o reconhecimento desses sintomas como
consequência do consumo. Em muitos
casos esse reconhecimento não é imediato
e requer diversas tentativas. Aliás, estar
high pode não ser agradável, serão
necessárias mais tentativas; ao mesmo
tempo aprendem-se as categorias
linguísticas subculturais que dão sentido a
esses efeitos. Esta última fase de
aprendizagem é dedicada a saber 'gozar' os
consumos.
Ser consumidor regular de marijuana
requer, porém, mais do que esta
aprendizagem. Os processos de controle
social multiplicam obstáculos que obstam a
que tal aconteça. Só na organização de
micro grupos se consegue anular os efeitos
desse controle. A passagem de consumidor
ocasional para regular implica um
afastamento moral, uma
19
reconceptualização: a droga é benéfica; o
que se aplica às drogas não se aplica à
marijuana; a marijuana não é droga, entre
outras estratégias. O que nos faz pensar nas
denominadas técnicas de neutralização
descritas por Sykes & Matza (1996) a que
já voltaremos.
As dificuldades a superar na esfera do
controle social passam pelas dificuldades de
acesso à droga (estamos em 1963, o tráfico
de marijuana ainda não tinha sido
sistematizado como agora sucede) que era
fornecido de modo irregular; pela
necessidade de esconder os consumos - p.
e. indivíduos que possuem ocupações
normativas têm medo de ser descobertos
high; e, por fim, o que já foi abordado: a
definição do acto de consumir como ilegal
implica a existência e a aculturação
individual numa contra-ideologia que
poderá ser mais instrumental ou expressiva
conforme os casos.
Só quando ultrapassadas todas estas
dificuldades de sobremonta, é que o sujeito
desviante alcança o estado da marijuana,
encontrando-se desde então sob o efeito
permanente da substância. Esta integração
subcultural fornece igualmente aos
indivíduos um quadro referencial sobre os
modos como usar a substância, bem como
interpretar efeitos, o que explicaria a
progressiva redução do aparecimento de
episódios psicóticos de origem cannábica
(Becker, 1963). Aproveitando esta
interpretação, Young (1971) propõe
mesmo a utilização da subcultura para
educação de consumos e enquadramento
de certos estilos de vida - só agora se
começam a ensaiar algumas tímidas
intervenções comunitárias que aproveitam
esse ensinamento. Defendia ainda Young
que uma forte repressão poderia
desencadear processos de amplificação da
desviância que extremassem a degradação
física, psicológica e social dos
consumidores.
Gestão cognitiva: neutralização da
moral dominante
Curiosamente, é na sociologia que se
faz um primeiro esforço de compreensão
de uma espécie de adaptação cognitiva que
será necessário suceder para que um
indivíduo se adapte a um estilo de vida
desviante. O estudo de Sykes & Matza
(1996) sobre a delinquência juvenil
20
fornece-nos uma série de técnicas de
neutralização da culpabilidade inerente a
certos comportamentos. Tal tentativa
implica uma série de posições teóricas
sobre as quais convém reflectir um pouco.
Defendem os autores a necessidade
de abandonar a procura do que é
radicalmente diferente no desviante, em
favor de um estudo das interacções sociais
que fornecem contextos de aprendizagem
de competências subculturais específicas -
esses processos não são diferentes dos
processos inerentes à normatividade
dominante exceptuando, evidentemente,
nos conteúdos.
Apesar da antiguidade do estudo (a
primeira publicação data de 1957), a crítica
mantém-se de pé, em nosso entender, no
que diz respeito à parte de relacionar o
conteúdo do que é aprendido com os
contextos dessa mesma aprendizagem.
Sykes & Matza chamam a atenção para o
facto de, apesar do sujeito se estar a
socializar numa subcultura desviante, nunca
poderá pôr de lado, completamente, a
moral normativa. À semelhança dos
dispositivos judiciais que prevêem o
evitamento da culpabilidade moral no caso
do réu conseguir provar que as suas acções
aconteceram na ausência de intenção
criminal, diversas subculturas
desenvolveram mecanismos de
desculpabilização moral que, porém, não
são reconhecidos pela restante sociedade.
Passamos a enunciar os mecanismos
considerados por aqueles autores e que,
apesar de tematizados para a delinquência,
são também pertinentes, directa ou
indirectamente, para a toxicodependência:
A negação da responsabilidade:
sucede quando o indivíduo acredita que o
seu acto criminal foi desencadeado por
forças exteriores a si mesmo. O uso desse
mecanismo requer uma aprendizagem de si
próprio como coisa agida em vez de sujeito
actuante. Facilmente se catalogam
exemplos na toxicodependência: roubei
porque estava de ressaca; não sabia o que
fazia, estava pedrado (...)
A negação da ofensa: o indivíduo
não considera o seu acto imoral apesar de
reconhecer a sua ilegalidade, por exemplo:
pedir "emprestado" um automóvel; alegar
que os lesados podem bem com as perdas
inflingidas; ou nos casos em que o
21
indivíduo acha que a mãe deve apoiar e
suportar tudo, apenas porque é mãe.
A negação da vítima: o indivíduo
acredita que o sujeito objecto do crime
merecia ter sido castigado por algum
motivo. No caso da delinquência os
assaltos a minorias, a homossexuais ou a
prostitutas podem ser justificados desta
forma. No mundo da droga, os dealers
podem julgar ser legítimo burlar
consumidores novatos; ou qualquer tipo de
estratégia que vise a desvalorização da
pessoa lesada.
A condenação dos condenadores:
neste caso os condenadores não são vistos
como possuídores de estatuto moral para
castigar alguém, sendo, pelo contrário
considerados hipócritas - a polícia é vista
como corrupta, estúpida e brutal. O que
sucede é que o desviante enceta um diálogo
interior entre "os seus impulsos desviantes
e a reacção dos outros; e atacando os
outros, a falta dos seus próprios actos é
mais facilmente reprimida e esquecida "
(Sykes & Matza, 1996, p. 211). Apesar de
não serem condenadores, muitas vezes
observamos a desvalorização, por parte do
toxicodependente, de todo o tipo de
cuidados.
Apelar a lealdades mais fortes: este
tipo de técnica tem por dom a suspensão da
moral dominante no sujeito desviante - os
imperativos sociais da sociedade em geral
são sacrificados pelas exigências de
pequenos grupos em que o sujeito se
encontra socializado. Este tipo de
estratégias pode justificar recaídas ou a
manutenção de comportamentos adictivos.
EM JEITO DE CONCLUSÃO
Temos aqui representadas na óptica
individual (e como não dizer psicológica?)
as dificuldades, obstáculos a ultrapassar na
estruturação da carreira desviante, bem
como a noção de conversão - que dá conta
de uma certa mudança interna na ordem
das significações do indivíduo. Tal nível de
análise terá de ser complementado com o
nível social atrás apresentado. Será curioso
aplicar estes dois níveis a casos diversos,
outras subculturas, procurando: definir o
que é estrutural (ou invariante) nas
dinâmicas dos grupos numa sociedade; a
invariância dos problemas que se põem ao
indivíduo portador de um estigma.
22
Finalmente, a mutabilidade de tudo isto: o
sujeito apresenta-se na sua história
individual, vai-se modificando, adaptando
as suas cognições e projectos existenciais
ao que vai vivendo.
As propostas estão lançadas.
Partilhemos apenas mais uma pista para
actualização destes estudos clássicos e com
a qual finalizamos a nossa reflexão:
"Por analogia (com Becker)
falaremos no 'estado da heroína': fase
avançada do contacto com esta droga em
que o indivíduo está preso do estilo junkie,
olhando o mundo através do filtro opiáceo.
Evitar de tal modo o tempo em que não
está sob o efeito do pó que todo o tempo
que vive é governado por ele. O 'estado da
heroína' caracteriza-se por um tempo
interior muito específico que, parece-nos,
se adequa com particular êxito à economia
psicológica da ghettização. Dito de outro
modo: a adaptação psicológica ao ghetto
pode ter na heroína um instrumento
favorável." (Fernandes, 1998, p. 75).
Estaria por realizar uma tentativa de
compreensão psico-social da emergência da
figura junkie em Portugal. Faupel (1991)
de algum modo explicou a sua produção
social numa determinada subcultura mas
deixou em suspenso a esfera individual. O
próprio conceito de subcultura não é
sensível, como se vê, a esta dimensão
espacial subjacente ao ghetto.
Na pista de Fernandes, poderíamos
acrescentar ao psico-social a vertente
espacial das margens periféricas
engendradas pela grande cidade. A
adaptação psicológica ao ghetto implicaria,
para a sua compreensão, a visão individual,
a subcultural e a espacial: tratar-se-ia de
estudar as sínteses individuais de
significado em toda uma série de conexões.
Seria realizar um projecto de
psicologia pós-moderna.
23
NOTAS
(1)
A noção de subcultura instrumental é
definida classicamente do seguinte modo:
"... It is cultural because each actor´s
participation in this system of norms is
influenced by his perception of the same
norms are shared only among those actors
who stand somehow to profit from them
and who find in one another a sympathetic
moral climate within wich these norms may
come to fruition and persist." (Cohen,
1955, p. 65).
(2 )
P. Cohen (cit in Clarke, 1983) acha
mesmo que a subcultura juvenil tenta
resolver, ainda que de modo mágico, os
problemas e conflitos que ficaram por
resolver na geração paterna. Não há espaço
para debater aqui as implicações de tal
posição, fiquemos por uma outra definição,
esta mais genérica, de subcultura
expressiva:
"Sub-cultures must exhibit a
distinctive enough shape and structure to
make them identifiably different from their
´parent´ culture. They must be focused
around certain uses of material artefacts,
territorial spaces etc. wich significantly
differentiate them from the wider culture."
(Clarke, Hall, Jefferson &
Roberts, 1983, p. 13).
(3)
O que é bem sintetizado na seguinte
afirmação:
"O desenvolvimento posterior do
conceito demonstrou que a subcultura é
uma solução colectiva que atravessa
tranversalmente o tecido social nas suas
repartições sociológicas clássicas, indo
buscar a sua unidade em elementos
expressivos e estilos de vida
compartilhados por indivíduos pertencentes
a estratos diversos. (Por exemplo Cf.
Brake, 1985)." (Agra & Fernandes , 1993,
p. 71)
(4)
Noutro estudo acha-se uma pista
para esta conclusão à primeira vista tão
ousada, mas sucessivamente reafirmada em
vários estudos:
"This study has also uncovered a
group of problematic addicts with
24
conventional (middle-class) histories of
socialization. In such cases the
development of drug use is more easily
explained by personal or family pathologies
than by psychologically "normal deviant-
socialization"."
(Grapendaal et al, 1995, p. 196)
(5)
O Projecto Droga Crime define três
tipos de figuras desviantes existentes nas
prisões portuguesas: o delinquente-
toxicodependente; o especialista droga-
crime; e o toxicodependente-delinquente.
Assinalando-se uma clara preponderância
do primeiro tipo, a que em seguida
transcrevemos a definição:
"A primeira figura do comportamento
deviante, o delinquente-toxicodepndente,
afirmou-se na delinquência como modo
habitual de vida antes do consumo
ocasional e depois regular de drogas.
Tendo-se especializado na delinquência
aquisitiva antes do consumo de drogas, dá
continuidade a esse tipo de
comportamentos após a iniciação e
consumo regular de drogas, praticando
ocasionalmente e secundariamente delitos
associados ao seu mercado ilícito," (Agra,
1996, p. 13)
25
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