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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 1822 A CONTRIBUIÇÃO DOS COLÉGIOS CATÓLICOS NA EDUCAÇÃO SERGIPANA Miguel André Berger 1 Andrea Karla Ferreira Nunes 2 Introdução O sistema educacional brasileiro, além do caráter seletivo e excludente, durante muito tempo restringiu o acesso da mulher à educação. No século XIX, a ideia prevalecente era que a mulher pertencia somente ao âmbito privado, não pertencia ao âmbito público. No início, a aprendizagem da leitura e da escrita era suficiente e se fazia no contexto doméstico, depois em estabelecimentos com currículos diferenciados para homens e mulheres. Essa educação diferenciada decorria dos papéis definidos para cada sexo e dos preceitos católicos, muito influentes na sociedade brasileira. A partir do Ato Adicional de 1834, a mulher conquista o direito de acesso ao ensino de primeiras letras e, posteriormente, dá continuidade aos estudos no Curso Normal, apesar de prevalecer o sistema de co-educação. O clima de modernização da sociedade, os princípios de higienização da família e da formação dos futuros cidadãos que caracterizam o início da República apontam a necessidade de educação da mulher, a qual sai do seio da família e passa a receber instrução sistematizada dentro de instituições fechadas, o chamado internato. Diante das poucas instituições mantidas pelo Estado, a Igreja Católica passa a incentivar a criação de colégios para evitar a influência das idéias protestantes que vinham se expandindo em Sergipe e no Brasil bem como contribuir para a formação das jovens das classes dominantes, procurando, por via do ensino, moldar consciências e retomar o poder. É neste cenário que surgem os colégios católicos, mantidos por diferentes ordens religiosas. Em Sergipe as Irmãs Sacramentinas e a Congregação das Irmãs Hospitaleiras da Imaculada Conceição foram as que tiveram uma atuação mais influente. 1 Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes, Campus Farolândia, Aracaju, Sergipe. E-Mail: <[email protected]>. 2 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes, Campus Farolândia, Aracaju, Sergipe. E-Mail: <[email protected]>.

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 1822

A CONTRIBUIÇÃO DOS COLÉGIOS CATÓLICOS NA EDUCAÇÃO SERGIPANA

Miguel André Berger1

Andrea Karla Ferreira Nunes2

Introdução

O sistema educacional brasileiro, além do caráter seletivo e excludente, durante muito

tempo restringiu o acesso da mulher à educação. No século XIX, a ideia prevalecente era que

a mulher pertencia somente ao âmbito privado, não pertencia ao âmbito público. No início, a

aprendizagem da leitura e da escrita era suficiente e se fazia no contexto doméstico, depois

em estabelecimentos com currículos diferenciados para homens e mulheres. Essa educação

diferenciada decorria dos papéis definidos para cada sexo e dos preceitos católicos, muito

influentes na sociedade brasileira. A partir do Ato Adicional de 1834, a mulher conquista o

direito de acesso ao ensino de primeiras letras e, posteriormente, dá continuidade aos

estudos no Curso Normal, apesar de prevalecer o sistema de co-educação.

O clima de modernização da sociedade, os princípios de higienização da família e da

formação dos futuros cidadãos que caracterizam o início da República apontam a necessidade

de educação da mulher, a qual sai do seio da família e passa a receber instrução sistematizada

dentro de instituições fechadas, o chamado internato. Diante das poucas instituições

mantidas pelo Estado, a Igreja Católica passa a incentivar a criação de colégios para evitar a

influência das idéias protestantes que vinham se expandindo em Sergipe e no Brasil bem

como contribuir para a formação das jovens das classes dominantes, procurando, por via do

ensino, moldar consciências e retomar o poder. É neste cenário que surgem os colégios

católicos, mantidos por diferentes ordens religiosas.

Em Sergipe as Irmãs Sacramentinas e a Congregação das Irmãs Hospitaleiras da

Imaculada Conceição foram as que tiveram uma atuação mais influente.

1 Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes, Campus Farolândia, Aracaju, Sergipe. E-Mail: <[email protected]>.

2 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes, Campus Farolândia, Aracaju, Sergipe. E-Mail: <[email protected]>.

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Educação Feminina

A urbanização crescente, o avanço da industrialização bem como a necessidade de

democratização do saber, constituiu desafios para a sociedade brasileira nas primeiras

décadas do século XX, que deparava com altos índices de analfabetismo. Segundo Nunes

(1984), Sergipe atendia 1,55% da população nas escolas públicas primárias. Mesmo com a

expansão do ensino primário através da implantação dos grupos escolares, a possibilidade de

continuidade dos estudos era difícil.

No início do período republicano, a educação continuava sendo privilégio das classes

mais favorecidas, pois os poucos colégios voltados para o ensino secundário estavam sob o

controle da igreja ou da iniciativa particular do que do Estado. Em Sergipe, além do Colégio

Tobias Barreto, da iniciativa privada, o poder público dispunha do Atheneu Sergipense para o

público masculino e da Escola Normal, sendo que muitas famílias enviavam seus filhos para

continuar os estudos em outros estados, principalmente na Bahia (SOUZA, 2009).

O atendimento priorizava mais a população masculina do que a feminina, já que a

mulher tinha uma vida restrita ao ambiente doméstico, onde prevalecia o sistema patriarcal.

A mulher começou a ter acesso à instrução primária com a Constituição de 1823, sendo que

tinha um currículo diferenciado ao das escolas para os homens. Bastava para a mulher

aprender "a ler, escrever, as quatro operações de aritmética [...] também as prendas que

servem à economia doméstica" (DEMARTINI, 1993, p.6).

Em 1830 se cogitou a criação das Escolas Normais, mas estas serão destinadas

inicialmente aos elementos do sexo masculino, tendo uma existência efêmera. Somente em

fins do século XIX, a Escola Normal passa a ser vista pela mulher como uma oportunidade de

continuar os estudos, atraindo moças de famílias abastadas que procuravam apenas elevar o

grau de educação escolarizada. Durante muito tempo o curso é dado em escolas diferentes

para cada sexo. Em Sergipe o Curso Normal masculino, criado em 1870, funcionou no

Atheneu Sergipense, e, o curso feminino no Asilo Nossa Senhora Pureza, a partir de 1879. O

primeiro curso é desativado diante da baixa procura, ocorrendo a consolidação do curso

feminino.

Almeida esclarece que "o repúdio à co-educação dos sexos tinha cunho moral e

religioso, despertando entre os segmentos conservadores um antagonismo que era usado

como arma para combater as escolas estrangeiras de orientação protestantes" (2000, p. 132),

as quais viam a mulher como a mais indicada para educar e instruir de acordo com os

ditames da fé e da moral. Para evitar a influência das ideias protestantes, que vinham

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surgindo e ganhando terreno no Brasil e em Sergipe (VILAS-BOAS, 2000), bem como

contribuir para a formação dos jovens das classes dominantes, a igreja católica procurava via

do ensino, moldar consciências e retornar o poder. Contrária às escolas mistas, várias ordens

religiosas vão criando colégios, muitos dos quais funcionando como internato, onde além de

instruir, tinham oportunidade de exercer uma influência maior sobre o caráter do educando.

Em Sergipe várias ordens religiosas se instalam com a incumbência de desenvolver a

ação educativa, destacando-se as Religiosas Irmãs Sacramentinas e as Irmãs Franciscanas

Hospitaleiras da Imaculada Conceição, respectivamente de origem francesa e portuguesa.

O presente estudo reconstrói o processo de criação, os objetivos e as diretrizes de

funcionamento bem como as práticas cotidianas desses colégios visando à formação da

mulher.

Pautou-se nas contribuições teóricas de Justino Magalhães (1998), Michel Foucault

(1987), Dominique Juliá (2001), Roger Chartier (1990) e Norbert Elias (1990).

A instituição educativa é construída a partir da história dos homens num processo

através do qual eles produzem socialmente as suas vidas e que revelam projetos de ordem

ideativa, visando à formação humana para a vida em sociedade, dentro das concepções

vigentes em cada momento histórico. Magalhães concebe instituição educativa “a uma

complexidade espaço-temporal, pedagógica, organizacional, onde se relacionam elementos

materiais e humanos, mediante papéis e representações diferenciados, entretecendo e

projetando futuro (s) (pessoais), através de expectativas institucionais. É um lugar de

permanentes tensões” [...] são projetos arquitetados e desenvolvidos a partir de quadros

socioculturais (1998, p. 61-62). Para compreensão da existência de uma instituição

educacional, há necessidade de contextualizá-la na realidade mais ampla que é o sistema

educativo, “implicando-a no quadro de evolução de uma comunidade e de uma região, é por

fim sistematizar e (re) escrever-lhe o itinerário de vida na sua multidimensionalidade,

conferindo um sentido histórico” (MAGALHÃES, 1998, p.2).

No estudo das instituições educacionais esse pesquisador destaca a necessidade de

desvendar os vários significados materializados em todas as dimensões que configuram as

instituições educativas. Deve-se atentar à dimensão física, envolvendo os espaços, contextos e

estrutura arquitetônica do edifício que materializa em cada elemento de sua composição as

opções, as concepções, valores e preocupações de sua época, bem como à dimensão humana

envolvendo os agentes, a relação entre professores, alunos, funcionários, as relações de poder

e com a comunidade. Ao estudar as práticas educativas dessa instituição de ensino, não se

pode considerar que estas são civilizatórias. O discurso referente ao processo civilizador, tal

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como formulado por Norbert Elias (1990), é indispensável para entender as relações

humanas, bem como a instituição escolar, que é compreendida como um espaço privilegiado

de transformação do homem, da mulher, em seres sociais.

Para entender como o poder é exercido para controle da mulher no cotidiano do colégio

e formação de um determinado tipo de caráter, as contribuições de Foucault (1987) são de

grande relevância. Esse autor descreve o nascimento dos dispositivos disciplinares utilizados

pelas instituições da sociedade para controlar e punir os indivíduos que cometem infrações

ou transgridem as normas. Surgem, assim, vários mecanismos de poder como o olhar, o

exame, com o intuito de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade,

gestos e atitudes.

Segundo Foucault o poder não é um privilégio do Estado, mas é exercido em várias

instituições escolares, colégios, conventos, que não são controlados pelo poder estatal, mas

chegam a ser úteis ao próprio Estado, auxiliando-o na sua ação e na sua sustentação. Nestas

instituições, o poder é exercido por várias pessoas, em várias instâncias que mantém relações

de hierarquia com os outros.

No caso da educação feminina, até certo momento, o objetivo era adestrar e obter a

submissão da mulher, incutindo seu papel na função de preservação da espécie, ligada às

amarras da maternidade, num fazer considerado repetitivo e sem criatividade, vendo a

mulher sempre como inferior ao homem. Para conseguir tais intentos utiliza-se todo um

disciplinamento, controlando-a através dos gestos e movimentos do corpo. Há uma

codificação do tempo em termos de atividades e do espaço a fim de se exercer o controle

sobre o indivíduo, sendo que as instituições se diferem, pois umas adotam um controle mais

rígido, e outras, mais flexível. Esses aspectos sobre o espaço físico, o conjunto de normas e

todo o conjunto didático pedagógico é revelador significativo da cultura da instituição.

A compreensão de cultura escolar como um conjunto de normas que definem

conhecimentos a ensinar, condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a

transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos segundo

Dominique Julia (2001). Há necessidade de recorrer também ao conceito de representação,

defendido por Roger Chartier (1990), ao demonstrar a importância da escola na vida,

inclusive de suas alunas.

Cada ordem religiosa se pautava em finalidades e valores diferentes que vão integrar a

cultura escolar e influir na formação da mulher, havendo ordens que defendia um controle

mais austero, outro mais flexível.

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A Congregação das Sacramentinas e sua Implantação em Sergipe

A Congregação das Sacramentinas foi fundada por Pierre Vigne em 1715, tendo como

princípios de vida “a caridade, a vida oculta, o silêncio, a oração: tudo o que pudesse ajudá-

las a se constituírem missionárias fervorosas, como seu fundador, a serviço da Igreja e de

seus irmãos” (MENEZES, 1977, p.19). Seu fundador morre em 1740, mas a Congregação vai

ganhando novas adeptas e se expande por alguns países da Europa.

Com a Revolução Francesa sofre processo de expulsão e desapropriação de seus bens

na França, sendo que as Irmãs Sacramentinas se dispersam. Em 1902, a Superiora Geral,

Emerenciana Vigne, em Roma, encontra um religioso, amigo do arcebispo da Bahia, que a

convida para dirigir um orfanato em Feira de Santana, no interior da Bahia. Essa Madre

aceitou o desafio e escolheu um grupo de cinco irmãs, sob a coordenação da Irmã S. Félix

Baudet, para iniciar esse trabalho. Em abril de 1903 as irmãs chegam a Salvador, logo se

dirigindo para Feira de Santana, onde fundam o primeiro Colégio, em 1903. Retornando para

Alagoas, as irmãs também recebem convite do governador de Sergipe para contribuir na

fundação de um colégio. É instalada uma escola (1904), sendo que as freiras ganham depois

do governo do Estado, Dr. Maurício Gracco Cardoso, um terreno e apoio para construção de

um colégio, o qual começa a funcionar em 1925. Esse colégio ofertava o curso primário e

ginasial, passando depois a oferecer o Curso Normal e Científico (BERGER, 2003).

A análise dos regimentos aprovados em 1952 e 1966 aponta modificações na

organização administrativa e pedagógica do colégio diante da abrangência das ações

assumidas e a heterogeneidade do corpo docente, com a admissão de professores alheios à

Congregação. Formas de controle e proibições são definidas para nortear a atuação docente e

discente, não atendo-se a melhoria dos aspectos pedagógicos, mas a conservação dos dogmas

ultramontanos em nome da moral cristã, bem como atender aos interesses da elite.

O regimento detalhava os deveres (art. 26) e o que era vedado ao professor (art. 27).

Entre as proibições destaca: “a) ditar sistematicamente as lições; b) ocupar-se em aula de

assuntos estranhos à finalidade educativa; c) ministrar, sob qualquer pretexto, aulas

particulares à alunos da turma sob sua regência; d) aplicar penalidades aos alunos, exceto

advertência e repreensões; e) contrariar a orientação confessional do colégio; f) mudar os

compêndios adotados no início do ano”. Em relação ao corpo discente estabelecia onze

deveres que a aluna deveria cumprir: “1) entrar em aula logo que seja dado o respectivo sinal;

2) ocupar na classe o lugar que lhe for designado; 3) respeitar a autoridade na pessoa de seus

depositários, seja Diretora, Irmãs ou professores; 4) tratar com urbanidade os colegas, com

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respeito e distinção à Diretora, os professores, assim como as autoridades de ensino; 5)

apresentar-se trajadas com o uniforme completo; 6) trazer em estado de ordem e asseio os

livros e o objetos escolares”. Também se proibia as alunas: “1) ter consigo livros, impressos,

gravuras ou escritos inconvenientes; 2) perturbar, de qualquer modo, a disciplina das aulas

ou a ordem do estabelecimento; 3) entrar ou sair da classe, sem permissão do professor; 4)

ocupar em classe o lugar que não o designado, e 5) utilizar-se de livros ou objetos dos colegas

sem o consentimento das respectivas donas”. A pena a quem infligisse essas normas variava

conforme a gravidade da falta, indo desde a uma simples advertência ao castigo mais forte

que era a impossibilidade de sair para visitar os familiares nos finais de semana dedicados ao

lazer ou à exclusão de matrícula no colégio.

O ensino pautava-se nos moldes tradicionais, sendo a exposição, a arguição e a prova

os principais procedimentos. As aulas tinham a duração de 50 minutos. O dia letivo iniciava

às 7h30, encerrando-se às 12 horas, sendo que a semana era composta de seis dias, iniciando-

se na segunda-feira e prolongando-se até o dia de sábado. O período matutino era ocupado

com aulas para desenvolvimento das disciplinas previstas na grade curricular do curso; no

período vespertino, as alunas internas se ocupavam das disciplinas Educação Física,

Trabalhos Manuais, das atividades de banca como reforço de aprendizagem. O turno

vespertino também era reservado para o horário das visitas. Os familiares, quando vinham do

interior, só podiam fazer visitas nesse período, para não atrapalhar as atividades didáticas.

O ensino de Trabalhos Manuais destinava-se a preparar a mulher para suas tarefas de

mãe e esposa, capacitando-a para fazer seu enxoval e ser uma mulher “prendada”. Essas

atividades (bordados) também desenvolviam a paciência e a criatividade da mulher,

requisitos importantes para o perfil de mulher da época – passiva e dócil.

Muitas alunas ingressaram no Curso Primário, depois frequentaram o Ginasial,

continuando o Curso Normal ou Científico, sendo que o colégio funcionava no sistema de

internato e externato.

A opção pelo Colégio Nossa Senhora de Lourdes era uma decisão que cabia ao pai, por

ser um colégio de cunho religioso e manter um controle sobre a mulher, que se coadunava

como o mantido no âmbito doméstico.

Costa (2003) comenta que o propósito inicial das religiosas do Santíssimo Sacramento

era imprimir, na mulher sergipana, as marcas de uma religiosidade e de uma cultura

civilizada, à francesa. Civilizar-se, para os franceses, significa estabelecer metas e projetar-se

no tempo futuro (ELIAS, 1990). Esse propósito se coadunava com os desejos das famílias de

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Sergipe em instruir as mulheres nos moldes da Igreja Católica, preparando-as para a

maternidade, o cultivo do casamento e a vida de boas cristãs.

As práticas educativas no Colégio Nossa Senhora de Lourdes, além de favorecer o

controle da mulher, tinham essa conotação de civilizar, ou seja, de transformação da mulher

em ser social e cultural. Ao civilizá-la, utilizava-se de uma cultura que envolvia a imposição

de normas e comportamentos através de um conjunto de práticas.

Analisando o cotidiano do internato verifica-se a observância de uma rotina que

começava cedo, sendo que as alunas eram punidas caso não respeitassem os horários. As

jovens tinham de se levantar às cinco horas e trinta minutos, tendo de arrumar as camas,

supervisionadas pela Irmã responsável, tomar banho, se vestir, o que exigia uma seqüência

de comportamentos definidos, a fim de evitar tumultos, já que o número de sanitários era

reduzido para a quantidade de alunas. Às seis horas iam para a missa, depois para o refeitório

tomar café, servido às sete horas. As aulas iniciavam-se às sete horas e trinta minutos.

Além de se comportar e agir de acordo com as estipulações de tempo e espaço, as

alunas, tanto internas como externas, tinham de usar farda e trajes que impedissem a

exibição do corpo, pois ia contra os costumes e valores propagados pela Congregação. Uma

ex-aluna também relembra a proibição quanto ao uso de batom ou roupas colantes ao corpo,

“brinco ou qualquer laço de fita que chamasse a atenção”.

O uso da farda pelas instituições é como uma forma de padronização do indivíduo

(FOUCAULT, 1987), como também uma forma da aluna se despojar de seus bens e substituí-

los por objetos definidos pelo estabelecimento, passando a assumir nova imagem.

As alunas integrantes do colégio Nossa Senhora de Lourdes participavam de várias

festividades que quebravam a rotina cotidiana realizadas na parte interna ou externa do

prédio. Algumas eram proibidas para jovens em determinada época, como as quermesses

beneficentes, sendo que depois as freiras começaram a liberar para as moças que

frequentavam o curso normal e científico.

.

A educação esmerada e o prestígio do colégio contribuíram para que muitas de suas

alunas contraíssem matrimonio com jovens de famílias “tradicionais”, reforçando os laços de

prestígio social e poder de suas famílias ou ocupassem cargos públicos de destaque. Outras

ingressaram nos cursos superiores que surgiam em Sergipe ministrado pela Faculdade

Católica de Filosofia, integrando depois o quadro docente da recém-criada Universidade

Federal de Sergipe, pouco se voltando para o cumprimento de sua função - exercício do

magistério primário.

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O Colégio Nossa Senhora de Lourdes foi extinto em 1973, diante da ampliação das

oportunidades de escolarização e das mudanças nas concepções de educação da mulher que

não mais priorizava seu isolamento do convívio social. Atrelado a essas mudanças estão os

problemas referentes à conservação do prédio do colégio, à exigência de se manter restrito à

clientela feminina e a sua localização espacial, nas imediações do Mercado Municipal Antonio

Franco, área que começou a sofrer um processo de degradação atrelado ao aumento da

prostituição, sendo visto como pouco adequado pelas famílias sergipanas para a educação da

mulher.

A Congregação das Irmãs Hospitaleiras da Imaculada Conceição

O liberalismo desmantelou todo o processo tradicional da transmissão religiosa na

Europa, que se acentuou com a industrialização. A partir de 1834, cresciam o anticlericalismo

e o anticongregacionismo, fomentando a indiferença religiosa que alastrava sem medida,

sendo que nesse momento cria-se a Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da

Imaculada Conceição (1871), com o objetivo de se fazer chegar a todo o lugar onde houvesse

algum bem a fazer ao próximo desvalido. As missionárias portuguesas foram para vários

países inclusive o Brasil, chegando em 10 de Setembro de 1911 e se encarregando do ensino

nos colégios de Montalegre, Alenquer e Itacoatiara, no Estado do Amazonas. A partir daí a

missão se expandiu para outros locais do país.

Em 1914, o Cônego Antonio dos Santos Cabral, vigário de Propriá, dirige-se a cidade de

Penedo (Alagoas), para solicitar à Madre da Congregação das Irmãs naquele município, o

envio de algumas religiosas para abrirem uma escola em sua cidade natal. As Irmãs atendem

o pleito e fundam o Colégio Nossa Senhora das Graças em 1915 (MELO, 2007), sendo que

depois passam a atuar em Aracaju, onde instalam o Colégio Patrocínio de Sã José em abril de

1940. No início ofertam o curso primário, sendo que diante da crescente demanda feminina

em busca de escolarização, que garantisse maior formação e consequentemente, condições de

inserção no mercado de trabalho e autonomia, passou a ofertar depois o Curso Ginasial

(1945), o Curso Normal (1949) e Científico (1954), funcionando em regime de internato,

semi-internato e externato.

O estatuto do Ginásio Patrocínio de São José previa que: 1) as alunas internas terão um

dia de saída, no mês (ultimo domingo) de acordo com as médias de comportamento e

aproveitamento devendo estar de volta até a 18 horas; 2) a falta de observância da hora

determinada para o regresso ao estabelecimento importa para a menina a perda do direito à

saída no mês seguinte; 3) as alunas não deverão trazer jóias nem objeto de valor, pois o

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estabelecimento não se responsabiliza por isso; 4) as alunas devem escrever aos pais de 15 em

15 dias, sendo que todas as correspondências a serem enviadas ou recebidas pela educanda

deveriam ser abertas pela diretoria; É permitido as alunas serem visitadas aos domingos e

dias santos, das 9 ás 11 horas. As famílias fora da cidade, permite-se a visita em qualquer hora

depois das 8 e antes das 18 horas, fazendo o possível para serem breves além de evitar

perturbação no horário escolar; 6) Para se consentir qualquer visita além dos pais, ou irmão

requer-se por escrito o consentimento daqueles, sendo recusada a rapazes, embora parentes

das alunas; 7) As alunas concorrerão para as despesas comuns extraordinárias, tais como:

passeios, excursões etc.; 8) Em caso de doença mandar-se-á aviso aos pais ou

correspondentes a fim de providenciarem a respeito do tratamento, salvo se o mal for

passageiro e sem consequências; 9) A aluna que se tornar prejudicial às outras será

despedida do estabelecimento. Os objetos que pertencerem as alunas que deixarem de

frequentar o Ginásio, deve ser retirados dentro do prazo de 2 meses, fim dos quais, serão os

objetos dados as alunas pobres; 10) É terminantemente vedado as internas conservar e as

internas trazer para o ginásio revistas, romances, novelas; livros de quaisquer publicações

alheias ao estudo.

A Pedagogia norteadora da Instituição Franciscana Hospitaleira da Imaculada

Conceição pautava-se no amor e no acolhimento, a realizar-se numa comunidade de irmãos:

manifestava no ambiente da família, na vivência do espírito das bem aventuranças e das

obras de misericórdia e no respeito franciscano pela natureza e por todas as criaturas. Além

de pautar seus fundamentos nos moldes cristãos, primava pela dimensão pessoal e social da

aluna, visando o desenvolvimento como um processo libertador integral que favorecesse o

crescimento físico, intelectual e afetivo.

A prática pedagógica se concretizava através de aulas expositivas, seminários e

trabalhos em grupo. As freiras davam grande autonomia aos professores em termos do

trabalho em sala de aula, não havia cobrança em relação aos conteúdos, o que deveria ou não

passar em sala de aula.

As alunas que frequentavam o Colégio Patrocínio de São Jose eram de famílias de

classe média da sociedade sergipana, residentes em Aracaju ou municípios interioranos,

muitas das quais viviam no sistema de internato.

As alunas relembram com carinho as freiras que proporcionavam um clima de

liberdade e mantinham um relacionamento amigável, ao invés de um clima de controle

rígido. Apesar desse clima de abertura, exigia-se o cumprimento de certas regras de convívio

social.

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Havia disciplina para garantir a ordem, havia horário, o internato tinha suas normas e era rigoroso em relação às visitas, a saída das alunas. Se a aluna não conseguisse ter a média, a nota, não saia para os passeios. Elas eram organizadas. Dia de passeios, dia de visitas para as internas. Então, se não tivessem aquela nota, não proibiam as visitas dos pais e dos parentes, mas não passeavam. Era um pouco a questão, do que se diz de limites [...] De manhã funcionava as aulas, e de tarde as internas sentavam com as prefeitas assistentes, para estudar (ex- aluna C).

O colégio como os demais do seguimento religioso, possuía normas, as quais visavam à

manutenção da ordem, consoante com as colocações de Foucault. Por isso o cotidiano diário

das estudantes, era planejado e seguia determinados horários. Essas regras pautavam a ação

das alunas tanto internas como externas.

Tinha determinados horários, determinadas regras que a gente tinha que seguir. Tinha horário de acordar... A gente acordava cedinho às 6 horas. Tinha de cuidar da higiene, depois tinha de rezar, ir à missa. A missa geralmente era antes da aula. Às seis e meia. Depois da missa, às 7 horas tinha o café. As aulas, se não me engano, começavam às 8 horas e terminavam às 12 horas... As internas descansavam um pouco depois do almoço e depois iam para o que a gente denominava de banca. Tinha o intervalo para o lanche e voltava para a banca. Tinha o recreio e depois esperava pela hora do terço... – O terço era às seis horas e depois tinha o jantar. Após o jantar tinha o horário livre, sempre com a presença das irmãs. Depois a gente ia dormir... Entre as 20 horas e meia às nove horas. Às vezes tinha aluna que ainda ficava estudando, mas no horário de dormir reinava o silêncio absoluto. E ali, no dormitório ficava uma freira para estar vigiando as alunas... O horário tinha de ser seguido, cumprido, tocou o sinal a gente tinha de ir (Ex-aluna M. E.).

Através desses depoimentos pode-se verificar que as normas do colégio não eram

rígidas, visavam manter a ordem dentro das regras vigentes. O que distingue esse colégio do

anterior era o clima de amizade e o respeito que pautavam as relações entre as freiras e as

alunas, o que gerava um clima mais cordial, pois existia um diálogo entre ambas.

As alunas participavam de várias festividades, fossem de cunho religioso até mesmo de

festas sociais, nas proximidades das festas do Natal, da Páscoa, de São João e outras.

Também participavam de eventos cívicos, como o Desfile em homenagem à Independência

do Brasil, no dia 7 de setembro e nos jogos esportivos. As freiras também incentivavam festas

no recinto do Colégio como uma forma de recreação e fortalecimento do convívio social.

Leituras Sugeridas e Proibidas

Além de analisar o sistema de controle disciplinar, esse trabalho se debruça sobre os

autores e as práticas de leitura visando à formação feminina, que se diferenciavam nessas

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duas instituições. Havia normas que estabeleciam proibições às alunas em relação ao porte

de livros, impressos, gravuras ou escritos inconvenientes.

Havia um controle sobre a mulher pautando-se na representação de mulher como mãe

espiritual em relação aos comportamentos e as obras e leituras. Considerando que o tipo de

leitura desempenha influencia na formação de jovens ao difundir normas e valores, uma vez

que o leitor não se posiciona de maneira passiva ao texto, ao contrário, deve “ativar-se para

dentro dele, captar seu significado e aplicá-lo à vida pratica”, as freiras colocavam restrição a

certas leituras. As leituras proibidas envolviam desde os poetas que faziam poemas com

conteúdos mais recheados de erotismo, ate o grande motivo que eram as revistas de

quadrinhos, isto é, as fotonovelas, como as revistas Capricho, Sétimo Céu, Grande Hotel.

Essas normas favoreciam um controle sobre a mulher pautando-se na representação de

mulher como mãe espiritual em relação aos comportamentos e as obras e leituras.

Considerando que o tipo de leitura desempenha influencia na formação de jovens ao difundir

normas e valores, uma vez que o leitor não se posiciona de maneira passiva ao texto, ao

contrário, deve “ativar-se para dentro dele, captar seu significado e aplicá-lo à vida pratica”,

as freiras colocavam restrição a certas leituras. As leituras proibidas envolviam desde os

poetas que faziam poemas com conteúdos mais recheados de erotismo, até o grande motivo

que eram as revistas de quadrinhos, isto é, as fotonovelas. Essas revistas se caracterizavam

por constituir uma sequência de quadrinhos que utilizam, no lugar de desenhos, fotografias,

além do texto verbal, de forma a contar sequencialmente, uma história. Sua principal

característica é a intriga sentimental, geralmente apresentando uma heroína de origem

humilde que luta por um amor difícil e complicado, alcançando seu objetivo de felicidade no

final da narrativa. As personagens apresentam um perfil pouco trabalhado psicologicamente,

com características maniqueístas e as consequências são sempre estereotipadas. Esse tipo de

impresso teve um mercado cativo no Brasil entre os anos de 1950 e 70, sendo que havia

várias revistas que atraiam a clientela feminina.

A primeira revista de fotonovelas publicada no Brasil foi “Encanto”, apesar de que a

revista “Grande Hotel” já tinha circulação iniciada em 1947, só inserindo a fotonovela a partir

de 1951. A partir daí foram surgindo outras revistas como Capricho, Super Novelas Capricho,

Ilusão, Noturno, Fascinação, Contigo, Sétimo Céu, Carinho, Carícia, além de outras de

circulação restrita3.

Muitas jovens burlavam o controle das freiras, levando e trocando essas revistas no

colégio. Durante as aulas colocavam as revistas embaixo das carteiras e passavam a aula

lendo as historias em quadrinhos. As freiras já sabiam que aquilo perturbava e mantinham

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um controle rígido, pois alegavam que essas revistas propagavam um tipo de amor que não

era cristão, propagavam a lascívidade. No Colégio Nossa Senhora de Lourdes as religiosas

retiravam o material e aplicavam castigos às alunas que fossem surpreendidas com tal

material de leitura, enquanto no Colégio Patrocínio São José, as freiras além dos sermões,

desenvolviam um trabalho de sensibilização junto às alunas.

Além do controle, as freiras do Colégio São José resolveram transformar isso em uma campanha moral. Como as revistas de fotonovelas propagavam um tipo de amor que não era cristão, era necessário que destruísse essas revistas, e instigavam as alunas até a mostrar quem eram as colegas que liam, que traziam essas revistas. E assim estabeleciam uma forma de concorrência entre as turmas, uma gincana para ver quem trazia a maior quantidade dessas revistas, E, no ultimo dia da campanha, onde era feito uma grande montanha das revistas, uma fogueira com as revistas que tinham sido trazidas e eram queimadas publicamente (ex-aluna T.O.).

Tinha leituras que as freiras proibiam. Eu ouvi quando estava no internato que, às vezes, as freiras proibiam aquelas revistas de novelas, mas eu nunca vi nenhum caso. Eu sabia pois algumas meninas lá se queixavam(ex-aluna M.E.).

Em detrimento à leitura das revistas de fotonovelas, a revista “Primavera em Flor” era

liberada pelas religiosas do Colégio Patrocínio São José, segundo relembra algumas das

alunas entrevistadas.

As freiras recomendavam as boas leituras como no caso da revista Primavera em Flor [...] essa revista trazia conselhos para a vida diária, assuntos de moda, reportagens de diferentes países e seus costumes [...] ela procurava moldar um tipo de mulher, de jovem crista A revista sempre trazia na capa artistas famosas, personalidades, moças bonitas e recatadas [...] era uma coisa que as freiras aceitavam. Mamãe assinou essa revista pra mim quando eu estava no ginásio, na década de 60 (ex-aluna T.O.).

Teve uma freira que chegou uma vez, que não era da Congregação que vendia essa revista e outros livros (ex-aluna M.E.).

Penso que eram as irmãs Paulinas [...] que iam, uma ou duas vezes por ano, com aquelas malonas de representantes, para visitarem as casas e venderem livros e ficava uma exposição no colégio, de forma permanente, sob a responsabilidade de uma freira. Ali agente adquiria essas revistas. Eu era de uma família católica, participava do movimento da juventude estudantil católica [...] Eu me lembro que existia a Revista Primavera em Flor, com modelos. Tinha a parte de modelos, poesias, tinha de tudo na revista [...] E eu fazia muitos modelos dali, dos que eram apresentados na revista. A revista trazia fotos e noticias de mulheres famosas, como exemplos de mulher cristã (ex-aluna C).

A revista Primavera em Flor era impressa em São Paulo e tinha circulação no Brasil e

em Portugal, durante os anos 60 e 70 do século XX. O edital e muitos artigos traziam a

assinatura dos Padres C. Vasconcelos e Bertrand de Mangerie.

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A revista podia ser adquirida pelo Correio ou por meio de assinaturas com vários

representantes residentes nas capitais dos estados e principais cidades, conforme relação de

endereços e representantes constantes na seção “Campanha das Estrelas” constante da

revista (1964, p. 35).

A revista em circulação em novembro de 1964 tinha a seguinte estrutura e respectivos

artigos no sumário: Páginas amenas (Férias à vista, O coelhinho generoso, Você anda com

o espírito abatido? Tem você espírito universal?); Páginas formativas (Receitas para sua

vida, Retrato sem retoque, O gigante de Deus, A grande aventura, Conversando com você, A

Igreja deseja, Exame de consciência ecumênico); Páginas Informativas (Encontro em

Bombaim, Um católico na Rússia); Páginas culturais ( No encontro das retas, Domício da

Gama, Mosteiro e Igreja de Alcobaça, Os grandes do mês (biografias de Lima Barreto (1881-

1922) e Carolina M. de Vasconcelos (1851-1925), A mulher na Tailândia) e Páginas Práticas

(Defenda sua saúde, Para o barzinho: capa de crochê para copo e garrafa, Molde e figurinos e

o Cantinho das noivas).

As reportagens enfatizavam o modelo de mulher culta e cristã, sendo que as orientações

contidas no “Cantinho das noivas” bem expressam os valores propagados por esse periódico

em relação à mulher.

O matrimônio é um sacramento instituído e abençoado por Deus. Por isso é uma coisa santa. Importa, muito que o escolhido seja um jovem dotado de virtudes e qualidades morais e intelectuais. A jovem que se deixar cortejar por um rapaz geralmente, fica entusiasmada e não pensa em mais nada [...] [...] deve-se deixar guiar pela inteligência iluminada pela fé e dirigir a vontade sustentada pela graça. Por isso a jovem que não quer ser iludida, seja positiva e observe [...] Não creia a jovem poder amanhã converter aos princípios morais e à prática religiosa o jovem que hoje não vive como cristão: se o promete à noiva o negará à esposa (REVISTA PRIMAVERA EM FLOR, 1964, p. 32)

Em termos do ensino de Português e Literatura, muitas obras de escritores brasileiros

como José de Alencar (como Iracema, Senhora), de Machado de Assis (Dom Casmurro) e de

Adolfo Caminha (A normalista) eram proibidas nesses colégios católicos. As freiras aboliam

esses autores e suas obras por considerá-los revolucionários e desaconselhados para

meninas, segundo depoimento da escritora Ligia Pina. Essa a0luna, quando estudava na rede

estadual, apreciava a literatura e tinha como livros preferidos exatamente aqueles que as

freiras mais criticavam.

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Entre as obras aconselhadas e indicadas pelas religiosas desse colégio destacavam-se as

leituras amenas e delicadas, envolvendo amores românticos e bem sucedidos, como o livro do

Pequeno Príncipe e de Eça de Queiroz.

As alunas desses colégios recordam das leituras dos romances da Coleção de M. Delly,

os quais narravam a trajetória de vida da infância ao casamento na fase adulta de moças

exemplares, em um clima de encantamento e fantasia, típicos dos contos de fadas, nos quais

se assegurava à leitora curiosa o benefício de um final feliz. Os romances utilizavam de

descrições minuciosas de paisagens exóticas e luxuriantes, personagens jovens, bonitos e

ricos que alimentavam a fantasia e a imaginação das jovens leitoras. As mulheres heroínas

descritas nos romances eram sempre claras e santas, de andar gracioso, que além das

características físicas ligadas ao padrão idealizado de beleza, eram apresentadas como

virtuosas, de caráter reto e temente a Deus. Essas personagens não utilizavam traço de

pintura no rosto, decotes e roupas transparentes, não se fazendo nos romances alusões ao

corpo com o propósito de produzir pudor feminino e resguardar os valores do catolicismo

que, por tradição, diabolizava a sexualidade.

Nos romances de M. Delly aflora a dedicação religiosa dos personagens envolvendo a

participação nos ritos e cerimônias da igreja católica (batizados, primeira comunhão,

casamento, frequência a missas, culto mariano), situações em que o casal emociona-se em

conjunto e manifesta sentimentos de enternecimento. É evidente a valorização da mulher

como mãe de casa perfeita, o que encontra ressonância nos objetivos e valores propagados

nesses colégios. A aceitação dessas obras poderia ensejar a leitura pelas jovens e a

apropriação de valores, as mudanças de pensamentos e condutas (CHARTIER, 1990),

moldando, plasmando certa visão de si própria e do mundo, que atendesse aos valores e

preceitos da igreja católica.

Em contraposição à cultura escolar desses colégios, no Instituto de Educação Rui

Barbosa, principal instituição da rede estadual visando à formação para o magistério, as

obras de José de Alencar, Machado de Assis, eram objeto de leitura na disciplina de

literatura, sendo que algumas jovens demonstraram interesse em temáticas que lhe

instigavam e possibilitavam novas descobertas em assuntos referentes à educação sexual,

conhecimento da anatomia humana e do funcionamento dos próprios órgãos, considerados

tabus pela sociedade sergipana da segunda metade do século XX ( MELO, 2008).

Os livros “Nossa vida sexual”, de Fritz Kan, e “Sexologia” de Forrel eram livros

considerados desaconselháveis, mas muitas jovens tiveram acesso a essas obras as quais

foram objeto de leitura às escondidas, diante do controle escolar e o momento político

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vivenciado no país – o regime militar. Assim, as normalistas se apropriavam de

conhecimentos muitas vezes negados, nos diálogos travados no campo familiar e escolar, em

contraste às jovens que frequentaram os colégios mantidos por entidades religiosas

Muitas jovens burlavam o controle das freiras, levando e trocando essas revistas no

colégio. Durante as aulas colocavam essas revistas embaixo das carteiras e passavam a aula

lendo as historias em quadrinhos. As freiras já sabiam que aquilo perturbava e mantinham

um controle rígido, pois alegavam que essas revistas propagavam um tipo de amor que não

era cristão, propagavam a lascívidade. No Colégio Nossa Senhora de Lourdes as religiosas

retiravam o material e aplicavam castigos às alunas que fossem surpreendidas com tal

material de leitura, enquanto no Colégio Patrocínio São José, as freiras além dos sermões,

desenvolviam um trabalho de sensibilização junto às alunas.

Além do controle, as freiras do Colégio São José resolveram transformar isso em uma campanha moral. Como as revistas de fotonovelas propagavam um tipo de amor que não era cristão, era necessário que destruísse essas revistas, e instigavam as alunas até a mostrar quem eram as colegas que liam, que traziam essas revistas. E assim estabeleciam uma forma de concorrência entre as turmas, uma gincana para ver quem trazia a maior quantidade dessas revistas, E, no ultimo dia da campanha, onde era feito uma grande montanha das revistas, uma fogueira com as revistas que tinham sido trazidas e eram queimadas publicamente (ex-aluna T.O.).

Em termos do ensino de literatura, muitas obras de José de Alencar (como Iracema,

Senhora), de Machado de Assis (Dom Casmurro) e de Adolfo Caminha (A normalista) eram

proibidas nos colégios católicos. Entre as obras indicadas destacavam-se as leituras amenas e

delicadas, envolvendo amores românticos e bem-sucedidos, como o livro do Pequeno

Príncipe, os livros de Madame Dally e de Eça de Queiroz.

Os livros “Nossa vida sexual”, de Fritz Kan, e “Sexologia” de Forrel foram os livros aos

quais muitas jovens tiveram acesso e objeto de leitura às escondidas, diante do controle

escolar e o momento político vivenciado no país – o regime militar. Assim, as normalistas se

apropriavam de conhecimentos muitas vezes negados, nos diálogos travados no campo

familiar e escolar.

Conclusões

Através desse estudo pode-se verificar que na segunda metade do século XX, mesmo

com a influencia do movimento feminista que expandiu os direitos da mulher e da legislação

que vai garantindo a conquista de vários privilégios, a mulher continua tendo uma educação

que pouco favoreceu sua autonomia e capacidade crítica reflexiva, pois muitas obras

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destinadas às práticas de leitura eram consideradas desaconselháveis e proibidas, pois as

mesmas fazem menção a moral e aos bons costumes e sua apropriação poderia afetar normas

e condutas almejadas socialmente.

A educação esmerada e o prestígio desses colégios contribuíram contudo, para que

muitas de suas alunas contraíssem matrimonio com jovens de famílias “tradicionais”,

reforçando os laços de prestígio social e poder de suas famílias ou ocupassem cargos públicos

de destaque. Outras ingressaram nos cursos superiores que surgiam em Sergipe ministrado

pela Faculdade Católica de Filosofia, integrando depois o quadro docente da recém-criada

Universidade Federal de Sergipe, pouco se voltando para o cumprimento de sua função -

exercício do magistério primário.

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