a crise da economia gumífera e o mundo do trabalho em manaus
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Universidade Federal do Amazonas Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História
Benta Litaiff Praia
A Crise da Economia Gumífera e o Mundo do Trabalho em Manaus (1910 - 1930)
Manaus – 2010
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Universidade Federal do Amazonas Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História
Benta Litaiff Praia
A Crise da Economia Gumífera e o Mundo do Trabalho em Manaus (1910 - 1930)
Orientador:
Prof. Dr. Ricardo José Batista Nogueira
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do Programa de Pós-
Graduação em História da
Universidade Federal do Amazonas,
como exigência para a obtenção do
título de Mestre em História.
Manaus – 2010
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FICHA CATALOGRÁFICA
Praia, Benta Litaiff A Crise da economia gumífera e o mundo do trabalho em Manaus (1910 – 1930). Benta Litaiff Praia. Manaus: [s.n.], 2010, 165 p. Orientador: Ricardo José Batista Nogueira Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas, Instituto de Ciências Humanas e Letras, Programa de Pós-Graduação em História. 1. História Social. 2. História do Trabalho. 3. História Econômica. 4. Movimentos Sociais. 5. História Operária. 6. Amazonas – Sociedade e Cultura 7. Amazonas – Política e Governo. 8. Amazonas – História (1910 - 1930). I. Nogueira, Ricardo José Batista. II. Universidade Federal do Amazonas III. Título
4
TERMO DE APROVAÇÃO
5
Aos meus pais,
pela ousadia e coragem de enfrentar a cidade.
irmãs e irmãos.
que hoje colhem os frutos da árdua caminhada.
Dedico
6
AGRADECIMENTOS
O trabalho acadêmico, embora seja feito por uma pessoa que se propõe a
dedicar seu tempo em leitura bibliográfica, pesquisa empírica e escrita, não se reduz
a esfera individual. Pode-se afirmar que existe uma dimensão individual-coletiva que
se faz presente no decorrer de sua elaboração. Neste sentido, cabe apontar as
pessoas e instituições que, de diversas formas, somaram esforços neste
empreendimento difícil e complexo, porém gratificante, que é a produção de um
conhecimento histórico e científico novo.
Sou imensamente grata ao professor Dr. Ricardo José Batista Nogueira,
orientador que acreditou na realização da pesquisa e sempre se mostrou disposto
ao diálogo. Agradeço pelas dicas e sugestões importantes, tolerância e paciência.
Aos professores Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, Maria Luiza Ugarte Pinheiro,
Auxiliomar Silva Ugarte e Paulo Koguruma, in memorian, agradeço pelas
contribuições oriundas das disciplinas e das ótimas aulas ministradas no âmbito do
mestrado, dessa ambiência emergiram debates e discussões que deram suporte
teórico para a construção da narrativa. Agradeço também, aos professores Almir
Diniz Carvalho Júnior pelas críticas e sugestões apontadas no Exame de
Qualificação e Paulo Monte pelos livros emprestados e dicas fornecidas.
Aos funcionários da biblioteca da UFAM, ao Museu Amazônico, ao Centro
Cultural dos Povos da Amazônia (CCPA), em especial ao José Messias e ao
Nonato, sempre prestativos no auxílio aos pesquisadores, ao Instituto Geográfico e
Histórico do Amazonas (IGHA) e à Marlucia Bentes pela acolhida e flexibilidade, das
quais, usufruir no decorrer da pesquisa.
À Secretaria Municipal de Educação (SEMED) e à Secretaria de Estado de
Educação e Qualidade do Ensino (SEDUC), pela licença remunerada que ambas
concederam-me, disponibilizando dessa forma, o tempo necessário para materializar
o trabalho.
Agradeço ao Sínval Pereira que gentilmente se dispôs a traduzir para a
língua inglesa, o resumo deste trabalho. À Leila Margareth Rodrigues pelos livros
cedidos e importantes sugestões. À Alba Barbosa Pessoa que em sua generosidade
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desmedida me doou várias fontes e privilegiou-me com sua companhia nos
arquivos, nos ônibus lotados, nos cafés, nas conversas agradáveis, agradeço
principalmente, pelas inúmeras vezes em que ouviu as minhas angústias e
indecisões, incentivando-me a prosseguir no árduo caminho, sou eternamente grata.
Por fim, agradeço aos meus familiares: à minha mãe pelo incentivo constante,
ao meu pai, às minhas irmãs e irmãos: Laura, Nete, Elen, Maria, Vanessa, Val e
Gildo pelos auxílios prestados na superação dos obstáculos naturais da pesquisa.
Às minhas lindas e energéticas crianças, muitas foram as vezes em que envolvida
nas tensões pertinentes a toda pós-graduação, a minha terapia principal se
restringiu a vê-las brincar, correr e sorrir. Ao Leonardo, meu primeiro pequeno
príncipe, um “muito obrigada” especial.
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RESUMO
No sentido de contribuir para o processo de renovação historiográfica regional
e minorar a lacuna ainda pouco explorada referente à crise da economia gumífera e
seu reflexo no mundo do trabalho em Manaus, a presente dissertação teve como
objetivo principal compreender como a crise do principal produto de exportação do
Amazonas, ou seja, da borracha refletiu inicialmente na cidade, outrora modernizada
e urbanizada pelas elites locais para atender a um momento de grande
efervescência social e econômica desencadeado pela valorização e exportação
desse produto. A reação dos segmentos sociais privilegiados que mais usufruíram
das benesses proporcionadas pelo apogeu da economia gumífera será externada a
partir de discursos, em sua maioria de conotação política, elaborados e difundidos
por intelectuais cuja vertente principal ensaiava fortes críticas ao descaso da União
para com os estados da região Norte. Além disso, no segundo momento, o olhar
direciona-se para o mundo do trabalho, mapeando as categorias de trabalhadores
urbanos que mais sentiram o efeito da instabilidade econômica. As demandas e
denúncias acerca das condições de vida e de trabalho desses trabalhadores, assim
como as ações políticas de organização, mobilização, resistência e luta
implementadas nesse período, também foram pontuadas, além é claro de enfatizar
superficialmente as influências das diversas correntes teóricas que permeavam o
interior do movimento político dos trabalhadores amazonenses. De forma secundária
resgatamos as estratégias de sobrevivência de atores sociais citadinos que
tentavam sobreviver na cidade no período estudado.
Palavras chaves: Crise; História do Trabalho; Trabalho Informal.
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ABSTRACT
In order to contribute to the regional historiography renovation process and to
decrease the gap still little explored concerning about the rubber economy crisis and
its reflex in the world of work in Manaus, the present dissertation has had as main
objective to understand how the Amazonas main product of exportation crisis, that is,
the rubber firstly reflected in the city, formerly modernized and urbanized by the local
elites to serve to a social and economic effervescent great moment, caused by the
appreciation and exportation of this product. The reaction of the privileged social
segments that enjoyed the benefits the most, proposed by the rubber boom economy
will be exteriorized from speeches on political connotation, prepared and widespread
by intellectuals whose main tendency experimented strong critics to the Union
disregard with the North Region States. Besides, the view of this dissertation points
to the world of work, mapping the urban workers categories that more felt the
economy instability effects. The demands and denunciations concerning the life and
work conditions of these workers, as well as the political actions of organization,
mobilization, resistance and struggle implemented in this period, were also pointed,
besides, of course, to superficially emphasize the several philosophic current
influences that passed through the political movement interior of the Amazon
workers. We rescued in a secondary way the social actors’ survival strategies citizen
that tried to survive in the city in the period studied.
Key words: Crisis, History of Work, Informal Work.
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SUMÁRIO
Considerações Iniciais 11
Capítulo 1 – A Crise da Economia Gumífera em Manaus e o Papel do Estado e das Elites 13
1.1 – A crise da Economia Gumífera em Manaus 13
1.2 – O Papel do Estado e das Elites 48
Capítulo 2 – Mundos do Trabalho e a Crise 83
2.1 – Mundos do Trabalho em Crise 83
2.1.1 – Os Caixeiros 83
2.1.2 – O Funcionalismo Público 104
2.2 – O Universo do Trabalho em Manaus 118
2.3 – Trabalho Informal e Pequenas Ocupações Autônomas 155
Considerações Finais 177
Fontes 179
Referências Bibliográficas 181
Encarte Fotográfico 186
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CONSIDERAÇÔES INICIAIS
O surto de modernidade proporcionado pelo apogeu da economia gumífera
viria abaixo com a depreciação extrema dos preços da borracha. O momento de
instabilidade econômica ocasionado pela entrada do similar asiático no mercado
mundial determinou um profundo abalo na sociedade manauense. Vários setores
urbanos como, o comércio, o poder público estadual e municipal, o setor imobiliário
e o mundo do trabalho foram afetados diretamente pela aviltante situação de
instabilidade que imperava em Manaus.
Assim, o primeiro capítulo terá seu foco centralizado na tentativa de mostrar a
cidade vivenciando a crise e como o abalo causado pela instabilidade econômica
refletiu em seu cotidiano. Nesse período, a cidade idealizada pelas elites locais,
paulatinamente entrava em decadência e se confrontava com a cidade real e
contraditória, esta sobrevivia à crise e crescia com chegada de um grande número
de seringueiros pobres, que nela passou a habitar, dinamizando o mundo do
trabalho que aos poucos se recuperava, principalmente aquele relacionado ao
trabalho informal. O papel do Estado e das elites locais também será pontuado, o
destaque centraliza-se nos discursos políticos elaborados por intelectuais que
solicitavam como único remédio para a reabilitação econômica do Amazonas, a
ajuda do governo federal. Como a ajuda solicitada e ansiosamente aguardada nunca
chegou, vociferavam contra o descaso e a indiferença da União para com os
estados da região Norte do país. Na realidade, esses discursos camuflavam a
intencionalidade desses segmentos sociais privilegiados de resgatar os benefícios
vivenciados no apogeu da borracha, engendrando através dos jornais várias
representações da crise.
No segundo capítulo, o mundo do trabalho em crise será analisado, é notório
que em tempos de crise as relações sociais de trabalho mudam de acordo com o
grau em que as atividades econômicas envolvidas são afetadas. Enquanto, muitos
trabalhadores urbanos deflagravam greves pleiteando aumento salarial e a redução
da jornada de trabalho, outras categorias como os caixeiros realizavam concessões
e cediam as propostas patronais. A atuação dos trabalhadores e em alguns casos, o
papel desempenhado de suas lideranças se fez necessário para demonstrar as
12
negociações, as articulações, as perdas e reações implementadas por esses atores
sociais na vigência da crise. O foco centraliza-se no primeiro momento, nos caixeiros
e no funcionalismo público, os trabalhadores urbanos que mais sentiram o impacto
da crise. No segundo momento, a análise direciona-se para os trabalhadores
indiretamente afetados pelo reflexo da mesma, labutavam em sua maioria nos
serviços urbanos que davam funcionalidade a cidade, enquanto outros praticavam
atividades ligadas ao comércio local. Por fim, o trabalho informal e as pequenas
ocupações autônomas utilizadas pelo grosso da população pobre, que sobrevivia
trabalhando por conta própria em diversas atividades, tornaram-se objeto de análise.
No tempo de crise e recessão econômica, o mercado de trabalho assalariado ficou
restrito e as dificuldades vivenciadas pelo setor informal da economia tornaram-se,
na realidade, mais acentuadas, por isso o aumento da população miserável cresceu
consideravelmente. Os grandes contingentes de seringueiros depauperados que
chegavam à cidade juntaram-se aos citadinos pobres e foram condenados ao semi-
emprego crônico tentando sobreviver das pequenas ocupações autônomas e do
trabalho informal.
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Capítulo 1
A Crise da Economia Gumífera em Manaus e o Papel do Estado e das Elites
1.1 – A Crise da Economia Gumífera em Manaus
Não podemos resgatar um pouco da história da Amazônia sem ressaltar de
forma superficial, a inserção do Brasil na expansão da economia capitalista. Desde
os primórdios de sua colonização pelos portugueses coube ao Brasil desempenhar o
papel de país periférico fornecedor de matérias-primas e gêneros tropicais
destinados ao comércio europeu. Inserida e articulada neste contexto, a Amazônia
caracterizou-se até a segunda metade do XVIII pela exportação de tais produtos
oriundos de sua imensa floresta. Inicialmente sua economia esteve direcionada para
a coleta das “drogas do sertão”, vegetais extraídos do meio natural e aproveitáveis
no comércio, tais como: canela, cravo, baunilha, pimenta, salsaparrilha, urucum,
utilizados para a conservação de alimentos na culinária, além de sementes
oleaginosas (andiroba, copaíba), raízes aromáticas, castanha, cacau, madeiras e
etc.
Posteriormente a partir da segunda metade do século XIX até o início do
século XX para a borracha nativa1. Produto de intensa procura nos Estados Unidos e
na Europa aplicado de forma industrial a partir de 1841 graças à descoberta do
processo de vulcanização, na confecção de uma grande variedade de objetos,
principalmente em pneus de bicicletas e automóveis. “A demanda da borracha nos
países industrializados crescia fortemente, devido à utilização da mesma na
fabricação de pneus de veículos: de bicicleta primeiro, de automóveis, depois”2.
Dessa forma, a indústria do setor obteve uma destacada relevância na economia
mundial, voltando o seu olhar para a Amazônia, habitat natural, da hevea brasiliensis
nome científico da seringueira de onde se extraía um leite, o látex, que após ser
1 PRADO, Maria L. e CAPELATO, Maria Helena. A borracha na economia brasileira da primeira república. In: FAUSTO, Boris (org). História geral da civilização brasileira. Tomo III, Vol. I. São Paulo: Difel, 1975. p. 288-289. 2 SINGER, Paul. O Brasil no contexto do capitalismo internacional (1889-1930). In: FAUSTO, Boris. (org) História geral da civilização brasileira. Vol. III. O Brasil republicano (1889-1930). São Paulo: Civilização Brasileira, 1997. p. 361.
14
defumado transformava-se em bolas de borracha. Diante da procura internacional e
de sua consequente valorização, a borracha assumiu importância considerável na
economia amazônica, deslocando toda força de trabalho para a sua exploração,
alterando de forma significativa as estruturas políticas, econômicas, sociais e
culturais da região. Visando, enfim, atender as necessidades do capital internacional
que tem entre suas características a exigência de transformar os lugares onde
penetra, para que a antiga paisagem dê lugar a uma nova paisagem, “altamente
desenvolvida, diferenciada e dinâmica”3. As principais cidades amazônicas Belém e
Manaus sofreram intervenções em seus espaços urbanos impostas por esse novo
momento econômico.
As cidades crescem em função de processos diferenciados, mas geralmente
esse crescimento está relacionado às atividades produtivas desenvolvidas em seu
interior ou em sua adjacência4. No caso amazônico, a borracha propiciou o processo
de modernização dessas capitais, dando a elas, uma nova função, a de centro
exportador e importador do comércio internacional. Neste contexto urgia transformá-
las em cidades burguesas: modernas, belas, assépticas, ordeiras e civilizadas5.
Assim, principalmente a partir de 1890 quando o preço da borracha começou
a alcançar grandes cotações no mercado mundial elevando de forma significativa as
receitas do Estado, as elites de Manaus atendendo às solicitações de uma economia
voltada para a exportação passaram sob o comando do governador Eduardo Ribeiro
(1892 -1896) a acelerar:
“as transformações e melhoramentos urbanos que vinham, de forma lenta e gradual
operando-se na cidade ao longo de toda a segunda metade do século XIX. As
ingerências do poder público já se faziam sentir nas edificações, nos nivelamentos,
calçamentos e aterros, e nas tentativas de suprir demandas tipicamente urbanas, como
3 BERMAN, Marshall, Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioriatti. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 18. 4 CASTRO, Edna Maria Ramos de. A questão urbana na Amazônia. In: LOUREIRO, Violeta R. (org). Estudos de problemas amazônicos: história social e econômica e temas especiais. 2 ed. Belém: CEJUP, 1992. p. 165. 5 Civilizadas, no sentido atribuído por Norbert Elias, onde o referencial de comportamentos considerados civilizados pertence ao padrão do homem ocidental. Uma grande variedade de fatos serve como paradigma: o nível de tecnologia, o desenvolvimento dos conhecimentos científicos, as ideias religiosas, os costumes, o tipo de habitação, a maneira como homens e mulheres vivem juntos, a forma de punição determinada pelo sistema judiciário, o modo como são preparados os alimentos. In: ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungamann. Vol. 01. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 21 - 46.
15
as ligadas ao abastecimento, iluminação de ruas e praças, e melhoramentos no sentido
de favorecer a entrada e saída de embarcações”6.
O projeto urbanístico visava à construção de uma cidade racional cujo cenário
principal era o centro comercial, onde seriam realizadas as grandes transações
envolvendo a borracha. A modernidade impulsionada pela comercialização de um
“produto extraído da floresta” e nutrida pelo suor do seringueiro chegava à Manaus
trazendo o desenvolvimento e o progresso:
“A renovação dos prédios públicos, as construções monumentais, os aterros e
desaterros, a abertura de ruas e avenidas foram acompanhadas pela incorporação, em
alguns casos pioneira, de tecnologias urbanas modernas como o sistema de bondes, a
iluminação elétrica, a comunicação telefônica, sistema de galerias para drenagem de
águas e esgotos, além da abertura de espaços destinados ao lazer refinado,
hipódromo, teatro, clubes etc.”7.
Para tornar a cidade funcional era imprescindível a utilização de tecnologia e
como o Brasil ainda não dispunha de tal avanço científico, os ingleses ofereceram
seus serviços em troca de concessões prolongadas, superiores a 50 anos. Desta
forma, o capital estrangeiro, principalmente inglês, tornou-se o maior responsável
pela execução dos grandes projetos de reforma do perímetro urbano de Manaus8.
Empresas como a Manáos Tramways and Light Company Ltd., Manáos
Improviments, Manáos Markets and Slaughterhouse, Amazon Engineering, Amazon
Telegraph, Booth Line, Amazon River e Manáos Harbour passaram a fazer parte do
cotidiano da cidade, atuando na administração de serviços urbanos (bondes, luz
elétrica, abastecimento de água, esgoto, mercado, matadouro, comunicações -
telefone e telégrafo, transporte fluvial, atividades portuárias, etc.). Devido a
existência de autoridades nacionais interessadas em seus serviços atuavam com
total autonomia, pouco se importando com as possíveis reclamações oriundas da
deficiência no serviço prestado. Os choques com as lideranças locais eram
constantes e os conflitos ocorridos entre ambos, resolvidos a nível federal9.
Nesse processo de expansão cabe salientar dois elementos essenciais para a
cadeia comercial vigente na Amazônia: a implantação de uma rede para viabilizar a
6 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus 1899 - 1925. 2 ed. Manaus: Edua, 2003. p. 34. 7 Idem, p. 37. 8 Idem, p. 50. 9 LOUREIRO, Antônio. A grande crise. 2 ed. Manaus: Valer, 2008. p. 161.
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comercialização da borracha e o desenvolvimento de uma infra-estrutura visando o
escoamento do produto. Em relação ao primeiro elemento, o destaque fica
centralizado na atuação das “casas aviadoras”. Estes estabelecimentos exerciam a
função de financiar e comercializar a borracha, além de negociarem com as casas
importadoras, as mercadorias que seriam transferidas inicialmente para o pequeno
comerciante do vilarejo, depois ao regatão, ao seringalista e finalmente ao
seringueiro10:
“O papel desempenhado por esses estabelecimentos comerciais foi o de financiar
e comercializar a borracha na região, fazendo chegar os implementos necessários
à organização e funcionamento da vida econômica dos seringais, bem como
recebendo deles, no final do período de extração, as remessas de borracha que,
posteriormente seriam exportadas para a Europa e Estados Unidos”11.
A infra-estrutura implantada em Manaus complementava a cadeia comercial.
Sua funcionalidade era de grande relevância, porque tornava possível o escoamento
da borracha enviada do interior para ser comercializada na cidade. Facilitava,
portanto, a circulação de capitais, de mercadorias e de pessoas. Para isso, as firmas
inglesas gerenciavam os serviços urbanos citados anteriormente. O que
proporcionou uma ampliação significativa do comércio local.
Diversos estabelecimentos comercializavam produtos estrangeiros,
contraditoriamente aos nacionais. Serviços variados passaram a ser oferecidos pela
cidade (hotéis, pensões, restaurantes, cafés, botequins, etc.), além de novas
práticas de lazer e entretenimento.
A exportação da borracha criava em menor escala ramificações de outros
negócios possibilitando o surgimento na cidade de Marcenarias, Sapatarias,
Alfaiatarias, Chapelaria, Fábrica de Roupas, Fábricas de Vassouras, Funilarias,
Tabacarias, Fábricas de Panificação, Fábrica de Cerveja e Gelo, Fábrica de Sabão e
outros12 diversificando, portanto, o mundo do trabalho.
A infra-estrutura finalizava-se com a modernização do porto, um dos alvos
privilegiados desse processo. Considerado ponte de ligação da cidade com o
interior do Amazonas e com o mercado mundial, o porto teve sua estrutura física 10 WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência. (1850 - 1920). Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Hucitec/ Edusp, 1993. p. 33-34. 11 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros. op. cit., p. 37. 12 COSTA, Francisca Deusa Sena da. Quando viver ameaça a ordem urbana: cotidiano de trabalhadores em Manaus, 1915 - 1925. São Paulo: PUC, 1997. p. 32.
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modernizada em vista da viabilidade de chegada e saída de mercadorias. A
borracha vinda dos centros produtores (seringais) chegava ao porto de Manaus em
navios a vapor, indo diretamente para os armazéns da casa aviadora responsável
pelo seu transporte onde era inspecionada e separada de acordo com sua
qualidade, depois era encaixotada e partia para os centros consumidores, ou seja,
para a Europa e Estados Unidos.
A tecnologia inglesa empregada em sua construção era considerada
sofisticada para época:
“Seus cais flutuantes – cuja tecnologia inglesa empregada às autoridades
amazonenses anunciavam que só havia sido posta em prática anteriormente em
Sidney (Austrália) – domavam o grande rio, superando a dificuldade de
ancoragem de navios de grande calado, principalmente na época da vazante. Esta
possibilidade de tornar irrelevante para a atracação de grandes navios a variação
anual das águas do rio Negro, que em média ultrapassa a marca de 15 metros, foi
sempre exaltada como um grande feito tecnológico, emblema de uma estado de
progresso, onde a civilização amesquinhava e anulava a força da natureza”13.
Diante desta realidade, a modernidade reordenou os espaços da cidade.
Maria Stella Bresciani (2002) afirma que a intervenção urbana capitaneada pelo
Estado se estrutura no e pelo debate político, atendendo na maioria das vezes as
exigências de uma minoria privilegiada em detrimento das necessidades da
coletividade. O poder público, aliado e em conjunto com as elites ligadas às
atividades gumíferas iniciaram várias reformas no centro de Manaus no final do
século XIX e início do XX, objetivando modernizá-la, embelezá-la e adaptá-la aos
olhos dos investidores estrangeiros.
A cidade foi organizada de acordo com os interesses particulares dessas
elites, seja a do segmento enriquecido com o comércio exportador e importador, seja
a tradicional vinculada às atividades administrativas e burocráticas (políticos,
magistrados, intelectuais, profissionais liberais, militares); também a eles podemos
associar importantes funcionários representantes do capital inglês e alemão14. No
cenário transformado ficavam localizadas as grandes lojas de produtos importados,
as casas aviadoras, os estabelecimentos bancários e os serviços necessários para o
13 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros. op. cit., p. 44. 14 DAOU, Ana Maria. A cidade, o teatro e o “paiz da seringueira”: práticas e representações da sociedade amazonense na virada do século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ/ MN/ PPGAS, 1998. p. 105 -116.
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funcionamento da cidade, era o espaço onde as elites realizavam seus negócios e
praticavam a sociabilidade. O espaço urbano foi construído para esse segmento
social com hábitos e anseios inspirados nas elites européias, particularmente na elite
francesa, para qual Paris era a capital cultural do momento e paradigma de cidade
moderna.
A “Paris dos Trópicos”, como é conhecida, é vista segundo a historiografia
tradicional como símbolo do esforço civilizador de um grupo. Obra arquitetônica
implementada por uma minoria privilegiada, que perpetuou a sua existência na
representação da cidade. Ana Maria Daou (1998) considera que a formação da
cidade de Manaus e a imposição de sua representação como cidade “moderna”
estão vinculadas à consolidação das elites extrativistas, no sentido da construção de
sua auto-representação. São expressivos na cidade os prédios erigidos durante o
apogeu da economia gumífera como o Palácio da Justiça, o Palácio do Governo, a
Biblioteca, a Alfândega, a Penitenciária e o Teatro Amazonas. Todos sobreviventes
de um período de ostentação sustentado pelo trabalho praticamente escravo do
seringueiro, e construídos para preencher funções específicas, respectivamente,
justiça, poder, cultura, progresso comercial, ordem e lazer15.
“A modernidade – expressão artística e intelectual de um projeto histórico
chamado “modernização” e produzido pela transformação capitalista do mundo – dá
nascimento à experiência, também histórica, individual e coletiva, do “viver em
metrópole”16. Esse processo desencadeou em Manaus uma acentuada explosão
demográfica elevando sua população de 29.334 habitantes em 1872 para 38.720 em
1890 e dez anos após (1900) para o equivalente a 52.040, o censo realizado em
1920 registra para a cidade uma população aproximada de 75.704 habitantes17. A
procura de trabalho muitas pessoas são arrancadas de seu habitat ancestral e
migram em direção às cidades para suprir a demanda de mão-de-obra tornando as
contradições existentes e inerentes às sociedades burguesas mais visíveis.
15 DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do Fausto (1890 – 1920). Manaus: Valer, 1999. p. 80. 16 PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano: Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2ed. Porto Alegre: Cia. Editora Nacional, 2001. p. 30. 17 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros. op. cit., p. 58.
19
A diversidade dos tipos humanos será constante na capital do Amazonas
dando a mesma uma feição cosmopolita18. Imigrantes estrangeiros e nacionais como
os nordestinos, alguns latinos, somados a população mestiça local passaram a
compor a nova configuração da classe trabalhadora. Muitos operários trabalharam
nas obras públicas de transformação da área central da cidade, outros ampliaram as
atividades no comércio, transportes, bancos e outros setores de serviços urbanos.
A nova conjuntura de reestruturação e adequação da cidade ampliou o
mercado de trabalho. Novas categorias profissionais passaram a dividir o espaço
urbano dando origem a exploração, a dominação, a cooptação, a resistência e
também a luta de classes, até hoje pouco estudada pela historiografia local. É certo
que Maquiavel tinha razão quando afirmava que em toda a cidade há dois desejos: o
dos Grandes, de oprimir e comandar, e o do Povo, de não ser oprimido nem
comandado19.
Para impor a civilidade defendida pelas elites, a chegada da modernidade trás
em seu bojo a ideia de ruptura com um mundo tradicional. Transformando não só a
paisagem física, mas afetando de forma significativa, o viver tradicional das
populações locais. O embate entre o moderno e o tradicional significou a negação
do passado por parte daqueles que viam a Europa como referencial de civilização,
glorificando assim uma forma burguesa de viver.
O progresso, entretanto, traz em seu rastro realidades diferenciadas para os
vários segmentos sociais que o vivenciaram, traduzido não só na importação de
produtos e técnicas, mas também de homens, comportamentos, valores e ideias
variadas20. Marshall Berman (1986) acrescenta que o progresso ao criar novos
ambientes humanos destrói os antigos, acelerando o próprio ritmo de vida, gerando
novas formas de poder corporativo e de luta de classes.
A modernidade que estimula o progresso, o desenvolvimento e o trabalho,
também vem acompanhada de sua outra face trazendo a miséria, a exploração e a
18 Francisco Foot Hardman afirma para uma outra realidade, que as grandes obras públicas realizadas nas áreas periféricas do capitalismo proporcionaram migrações internacionais (...), dando um aspecto cosmopolita aos trabalhadores recrutados como força de trabalho. In: HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 148 - 152. 19 CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 159. 20 MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890 - 1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. p. 29.
20
exclusão social. A cidade ideal europeizada, bela, civilizada, policiada, abastecida
pelos serviços de infra-estrutura da época confronta-se com outra cidade. A cidade
provincial, o Porto de Lenha, onde predominava a tradição, os velhos hábitos e
costumes, as festas religiosas, a casa de barro ou madeira coberta de palha. Era lá
em uma dessas casas que ao anoitecer, sob a luz da lamparina, uma senhora idosa,
descendente de índios, acendia seu cigarro feito de tabaco de corda e começava a
contar histórias aos seus netos. Estes se sentavam ao seu redor para ouvi-la
atenciosamente, até o sono chegar e o dia recomeçar21.
O anoitecer nos subúrbios e arrabaldes era contraditório à ambiência vibrante
e efervescente inerente à modernidade frequentemente vista na Avenida Eduardo
Ribeiro:
“Todas as noites, quando o sol declinava e a brisa refrescante e suave da noite
invadia a cidade vinda das margens do rio, grupos de caminhantes começavam a
surgir na Avenida Eduardo Ribeiro ou na Praça do comércio para o passeio
habitual. Os homens trajavam-se sempre de gravata e paletó, e as mulheres
habitualmente usavam luvas e chapéus. (...) À proporção que pessoas de todas as
classes passeavam ociosamente pelas ruas e praças trocando palavras amigáveis
entre si, os restaurantes e cafés com calçadas à frente começavam a ferver de
gente. Trios, quartetos e quintetos davam os primeiros acordes nos principais
restaurantes, e o fim da tarde criava vida com melodias de Strauss, Schubert,
Lehar, Puccini, Wagner e Pacheco. Muitos deles se especializavam no chá das
cinco horas. Pastelarias francesas e alemães eram oferecidas por outros. O café
era consumido em toda parte”22.
O viver civilizado das elites era garantido por uma política de controle e
disciplinamento do espaço transformado. Segregados e excluídos do perímetro
urbanizado da cidade, trabalhadores e os pobres urbanos passaram a residir em
locais desvalorizados e distantes. Aqueles que insistiam em permanecer próximos
ao local de trabalho ficavam restritos à uma outra cidade. Materializada nas vilas
populares e na extensão das casas de alvenaria com fachadas construídas em estilo
eclético, que abrigavam os cortiços onde residiam vários segmentos populares de
menores recursos23. O aluguel considerado bastante alto para a época era
contraditório, ao espaço físico alugado muitas vezes sem conforto e mal ventilados.
21 Memórias da família da autora. 22 BURNS, E. Bradford. Manaus, 1910: retrato de uma cidade em expansão. Manaus: Imprensa Oficial, 1966. p. 12 - 13. 23 COSTA, Francisca Deusa Sena da. Quando viver ameaça a ordem pública. op. cit., p. 90 - 91.
21
A Manaus da “Belle Époque”24 comporta múltiplas cidades. Desenvolver uma
nova leitura de Manaus vivenciando a crise desencadeada pela derrocada da
economia gumífera é dar visibilidade a cidade real, pobre, doente, conflituosa e com
inúmeros problemas sociais, que concomitantemente existia ao lado da cidade
idealizada pelas elites. Para isso, o conceito de representação coletiva de Roger
Chartier25 será de grande relevância.
O historiador em questão propõe um conceito de cultura enquanto práticas
construtivas do social, e sugere para seus estudos a categoria de representação
como elemento constitutivo de um novo modelo de história. De acordo com esse
conceito os diferentes grupos que compõem a sociedade constroem a realidade de
maneira contraditória26. Ocorrendo, segundo o autor:
“As lutas de representações que subtendem a construção das realidades sociais e
que resultam do confronto entre as representações impostas por aqueles que têm
o poder de classificar e de denominar e aquelas construídas pela própria
comunidade, de maneira passiva ou resistente”27.
Na sociedade aqueles que têm o poder de classificar e denominar
representações são os grupos dominantes. Estes possuem uma visão de mundo
sobre determinada realidade criando dessa forma, uma identidade coletiva. Como
possuem uma relação intensa com o poder (político e econômico) manipulam outros
segmentos sociais estabelecendo conexões, para que estes interfiram e ajam na
realidade buscando na maioria das vezes a manutenção de seu poder. Porém, como
é próprio do homem, nem sempre esses segmentos sociais se sentem parte dessa
identidade coletiva e constroem para si outras representações dessa realidade.
No confronto de representações referentes à cidade vivenciando a crise é
evidente a presença de um discurso ideológico elaborado pelas elites, onde ainda
24 “Belle Époque - Trata-se de um período localizado no final do século XIX às primeiras décadas do século XX. Este período foi marcado por uma efervescência intelectual e cultural e uma busca acelerada da chamada modernidade, refletindo-se em todos os setores da atividade humana. Tal movimento irradia-se a partir da França, refletindo-se em quase todos os países do Ocidente. A obsessão pelo novo, pelo moderno, pelo belo é a marca predominante desta época. Muitos inventos que marcam a vida do homem surgiram neste período: o cinema, o rádio, o avião, o automóvel, a luz elétrica, o telefone são exemplos”. In: SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. São Paulo: Ática, 2007. p. 189. 25 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: UFRGS, 2002. p. 72-73. 26 CARDOSO, Ciro Flamarion, MALERBA, Jurandir. (orgs.). Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas - SP: Papirus, 2000. p. 87. 27 Idem, p. 88.
22
perdura a cidade idealizada, harmônica e sem conflitos sociais em detrimento da
cidade real. Segundo Rosa Maria Godoy (1984) para a noção de crise há dois níveis
de entendimento do conceito. O primeiro como uma ideia contida no discurso da
classe dominante, portanto ao nível da ideologia, crise aparece como descreve
Marilena Chauí:
“(...) confirma e reforça a representação. Assim, a crise nomeia os conflitos no
interior da sociedade e da política para melhor escondê-los. Com efeito, o conflito,
a divisão e até mesmo a contradição podem chegar a ser nomeados pelo discurso
da crise, mas o são com um nome bastante preciso: na crise, a contradição se
chama perigo. Não é por acaso que a noção de crise é privilegiada pelos
discursos autoritários, reacionários, contra-revolucionários, pois neles essa noção
funciona em dois registros diferentes, mas complementares. Por um lado, a noção
de crise serve como explicação; isto é, como um saber para justificar
teoricamente a emergência de um suposto irracional no coração da racionalidade:
a “crise” serve para ocultar a crise verdadeira. Por outro lado, essa noção tem
eficácia prática, pois é capaz de mobilizar os agentes sociais, acenando-lhes
com o risco da perda da identidade coletiva, suscitando neles o medo da
desagregação social e, portanto, o medo da revolução, oferecendo-lhes a
oportunidade para restaurar uma ordem sem crise, graças à ação de alguns
salvadores. O tema da crise serve, assim, para reforçar a submissão a um poder
miraculoso que se encarna nas pessoas salvadoras e, por encarnação, devolve
aquilo que parecia perdido: a identidade da sociedade consigo mesma. A crise é,
portanto, usada para fazer com que surja diante dos agentes sociais e políticos o
sentimento de um perigo que ameaça igualmente a todos, que dê a eles o
sentimento de uma comunidade de interesse e de destino, levando-os a aceitar
a bandeira da salvação de uma sociedade supostamente homogênea, racional,
cientificamente transparente”28.
Ao nível de infra-estrutura continua Godoy, o termo crise significa um
momento do processo histórico em que os elementos básicos de um espaço
regional estão sendo reestruturados (substituídos ou transformados), em
decorrência de condições externas e internas à região, e cujo sentido é conferir
maior racionalidade à ordem capitalista mais ampla. Uma das consequências desse
quadro é a contração da esfera de decisões políticas que competia aos agentes
regionais.29
28 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 12 ed. São Paulo: Cortez, 2007. p. 48. Grifos da autora. 29 SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. O regionalismo nordestino: existência e consciência da desigualdade regional. São Paulo: Moderna, 1984. p.55.
23
Os níveis explicitados acima sobre a noção de crise são complementares e
estão intrinsecamente ligados. Um, afirma que muitas vezes um fator externo pode
ocasionar a crise. Neste momento, no Estado nacional, não há capitalismo
plenamente constituído, mas há o determinante capitalista externo, provocando de
fora para dentro transformações na estrutura produtiva interna. O Brasil como parte
desse todo está inserido na ordem capitalista mundial como principal exportador de
café e borracha, portanto, qualquer abalo em relação a um desses produtos pode
refletir imediatamente nas regiões produtoras.
A crise amazônica foi proporcionada por um fator externo: a entrada no
mercado mundial de grande quantidade de borracha cultivada, provenientes das
plantações asiáticas. A manutenção do modus operandi da economia gumífera
amazônica estava fadada ao esgotamento, em razão do processo produtivo da
borracha ter sido adaptado às condições do meio ambiente, o que não permitiria o
atendimento da crescente demanda do mercado mundial. Por isso, com a intenção
de aumentar a produtividade e os lucros do capital internacional, era preciso inserir a
tecnologia no processo produtivo do cultivo e na fabricação da borracha.
No primeiro caso, os ingleses, sorrateiramente, levaram sementes de
seringueiras para serem cultivadas na Inglaterra, para depois transplantá-las de
forma racional na Ásia. No segundo caso, o golpe fatal na economia amazônica: a
própria borracha natural foi substituída pela sintética na fabricação de diversos
produtos. A crise iniciada em 1910 afeta diretamente a região, até então grande
produtora e fornecedora do produto. Fazendo com que as forças políticas locais
tentassem perante o governo federal viabilizar economicamente uma saída para a
crise.
O outro, afirma que no momento de crise grupos sociais e políticos diante da
possível perda da identidade coletiva passam a elaborar um discurso ideológico em
defesa dos interesses da coletividade, cuja finalidade é tentar recuperar uma
sociedade supostamente homogênea, harmônica e sem conflitos sociais. O discurso
ideológico elaborado por intelectuais, a serviço das elites locais foi dominado pelo
passado áureo da borracha e pela implacável decadência do presente. Era um
discurso político com forte conotação de denúncia ao descaso do poder central, para
com os estados da região Norte do país.
24
As representações contidas nesses discursos tentam resgatar a modernidade
e a cidade idealizada existente no imaginário das elites, como tentativa de reaver os
benefícios de outrora e será aprofundado no tópico dois deste capítulo. A partir
deste momento pretendemos dar maior visibilidade à cidade real, diferente e
contraditória como forma de expressar um pouco o cenário da crise. É no espaço em
crise que vão transitar os agentes sociais disputando espaços, realizando
reivindicações, elaborando estratégias, trabalhando ou simplesmente sobrevivendo,
engendrando assim, novas representações da cidade. Manaus é, portanto, o locus
da crise.
A prosperidade fictícia do apogeu da economia gumífera viria abaixo com a
crise. A borracha, matéria-prima de grande interesse dos mercados industriais
altamente desenvolvidos, era agora dominada pelos plantadores da Ásia. Estes
ofereciam em abundância um produto final livre de impurezas e com preços mais
baixos. O monopólio amazônico estava quebrado por plantações racionalizadas, que
a partir de 1910 começou a provocar grandes dificuldades para as elites
amazônicas, até então detentoras deste monopólio.
Os mercados mundiais transferiram sua preferência para o látex do Oriente,
enquanto a Amazônia ficava sem compradores, assistindo a cotação do preço cair
vertiginosamente. Com isso, a região transformou-se em um imenso território
empobrecido, abandonado e dependente de políticas públicas estaduais e federais.
A crise afetou diretamente o mundo do trabalho na região, do trabalho
relacionado a esta atividade econômica e suas respectivas ramificações. Em
diferentes graus a crise afeta todos os setores envolvidos com a economia gumífera,
do urbano ao rural. Em relação ao urbano, os setores mais atingidos foram o
comércio, o poder público estadual e municipal, o setor imobiliário e a cidade, que
teve seus problemas estruturais e sociais mais acentuados.
Quanto ao rural, cabe lembrar a chegada na cidade de grandes contingentes
de seringueiros depauperados, que a viam como único meio de sobrevivência.
Levas de homens, mulheres e crianças desembarcavam em Manaus na maioria das
vezes doentes e maltrapilhos. Enquanto os seringais ficavam despovoados em
virtude da falta de trabalho e da escassez de gêneros alimentícios, devido à crise, as
casas aviadoras que os abasteciam, ficaram impossibilitadas de realizar o sistema
25
de aviamento30. Muitos resolveram permanecer na cidade indo habitar os subúrbios
e recomeçar uma nova vida, outros partiram em direção ao conhecido mundo de
onde um dia imbuídos de sonhos se deslocaram para a inóspita floresta. Caio Prado
Junior relatou os momentos finais da odisséia amazônica:
“vão-se os aventureiros e buscadores de fortuna fácil procurar novas
oportunidades em outro lugar qualquer. Ficará a população miserável de
trabalhadores que aí se reunia para servi-los, e que trará estampado no físico o
sofrimento de algumas gerações aniquiladas pela agrura do meio natural; mais
ainda, pelo desconforto de uma civilização de fachada que roçara apenas de leve
as mais altas camadas de uma sociedade de aventureiros...”31.
A instabilidade econômica proveniente da crise do principal produto de
exportação do Estado apresentava o seu drama: as falências das casas aviadoras
(as mais fracas faliram logo, poucas conseguiram resistir, o sistema inteiro de
aviamento foi abalado); o aumento do desemprego de dezenas de milhares de
indivíduos; falências de bancos particulares enquanto, o Banco do Brasil suspendia
seus auxílios ao comércio; companhias de seguros foram extintas; a frota fluvial teve
seu número reduzido; os vapores que animavam o grande rio ficaram quase
desocupados; com a queda brusca da receita, o poder público passou a não efetuar
mensalmente os vencimentos do funcionalismo estadual e municipal; a situação dos
fornecedores que não recebiam pelos serviços prestados ao Estado e ao Município
ficava desesperadora; na cidade setores inteiros de casas ficaram abandonadas. A
Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918) agravou ainda mais esse quadro, dificultando
o transporte e o comércio da região, além de contribuir para a carestia de vida, os
gêneros alimentícios importados e em menor escala, os nacionais tiveram seus
preços supervalorizados em Manaus.
30 “O sistema de aviamento implicava numa rede de fornecimentos que começava com os bancos estrangeiros financiadores, os quais forneciam créditos às casas exportadoras e aos seringalistas. Estes últimos controlavam e mantinham funcionando áreas de extração de borracha nativa, em cujo centro se localizava o barracão, que centralizava dois tipos de transações: de um lado “aviava” para o seringueiro as tijelinhas, facões e outros instrumentos para extração do látex, além de armas e munições. Também fornecia remédios, alimentos, etc. Em contrapartida, era o comprador exclusivo da produção de centenas de seringueiros que operavam com aquele “aviador”. Como ele era comprador exclusivo, o preço que fixava para adquirir as bolas de borracha era muito baixo. Em compensação, os preços dos produtos que “aviava” ao seringueiro traziam embutidos lucros exorbitantes e, do encontro das contas entre os produtos fornecidos e a produção comprada, pouco ou nada restava nas mãos do seringueiro, que se via desta forma, totalmente prisioneiro do sistema”. In: LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. op. cit. p. 23. 31 PRADO JUNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 41 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 240.
26
Em 1913, o comércio lutava contra a baixa do preço da borracha suplicando
ao governo federal medidas para amenizar a situação. A falta de créditos só piorava
o quadro, já que os bancos particulares recusavam-se a realizar negócios incertos;
famílias inteiras abandonavam a região levando nas malas o que sobrou do surto de
modernidade; uma pequena parte da elite local transferia-se para o Rio de Janeiro;
os exportadores em sua maioria, ingleses e alemães deixavam a cidade; e os
trabalhadores em busca de trabalho seguiam para outras terras. Thiago de Mello
(2004) relata que muitas dessas pessoas se despediam da cidade com gestos
obscenos.
Em Manaus a Avenida Eduardo Ribeiro, agora melancólica, era o referencial
para se avaliar as proporções da crise:
“É frequentando a Avenida que se pode avaliar quanto é dolorosa a crise pela qual
passamos. O Kean, o afamado Kean, já fechou... (...) O resultado de tudo é que
dói na alma ver os restaurantes da Avenida desertos, durante o dia, com os
garçons a espantarem as moscas, escorando as portas e o mestre cozinheiro a
espiar de vez em quando para o salão. Por isso é que eu digo que só
frequentando a Avenida é que se poderá avaliar a crise...”32.
A cidade vivencia o reflexo da queda progressiva dos preços da borracha.
Isso era visível nos reclames da Associação dos Proprietários de Manaus ao
solicitarem melhores incentivos e atenção especial, por parte do poder público para
o setor imobiliário, representante da maior receita do município. Reclamavam do
número de prédios fechados e da carestia dos impostos sobrecarregando o setor,
enquanto o mesmo encontrava-se atrofiado e desvalorizado pelas contingências da
crise, ocasionando “vendas executivas, de mais de vinte prédios, efetuadas nos
últimos tempos, provam a atual desvalorização destes, pois atingiram apenas pouco
mais da 3ª parte de seu valor real”33.
O governo, mais preocupado com as disputas políticas locais e o reflexo da
instabilidade econômica em suas receitas, pouco ouvia seus lamentos talvez por
saber das quantias vultosas enviadas para o estrangeiro e para outros pontos do
país, onde residia grande parte dos proprietários de prédios da capital. Em 1911, o
ano em que a borracha atingiu o histórico preço de 17$600 réis o quilo, foram
32 Pathé jornal, 09.08.1913, p. 1. In: COSTA, Selda Vale da. Eldorado das ilusões: cinemas e sociedades. Manaus (1897- 1935). Manaus: EDUA, 1996. p. 97. 33 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.358, 27 de ago. de 1913.
27
enviadas conforme documentos de uma casa bancária, mais de 25.000 contos, só
para o Ceará34.
Em momento de crise, as relações de poder mudam dando espaços as
negociações e mediações. Proprietários e inquilinos se tornaram mais flexíveis
visando atender as possibilidades de cada um. Uma sinalização neste sentido é o
apelo proferido por um anônimo através do jornal aos proprietários:
“Pedem que chamemos a atenção dos proprietários e senhorios de prédios
existentes na capital, para o fim de ser feita uma redução, nunca menor de
cinquenta mil réis, nos aluguéis atuais, à vista da crise que nos assoberba, pela
depreciação de nosso principal produto. Esse procedimento suavizará de alguma
forma, os encargos dos pobres chefes de família, que lutam com grande
dificuldade para a manutenção dos entes que lhes são caros. É bem verdade, diz
quem nos escreve, que alguns proprietários atendendo às justas razões dos
inquilinos, baixaram de vinte e trinta mil réis, os aluguéis de suas casas. Essa
redução, porém ainda não satisfaz os interessados por demais alcançados, sem
que possam pôr em dia os pagamentos”35.
Em 1915, o superintendente municipal Dorval Pires Porto ressaltava que
devido à crise poucas construções tinham sido realizadas na cidade, diminuição que
cada vez se acentuava mais. Numa tentativa de incentivar a população a construir
casas, principalmente, os segmentos mais pobres que habitavam os subúrbios em
casebres, resgatava a lei nº 491, de 4 de março de 1908, isentando do pagamento
do imposto predial, as construções erguidas a partir de 1915 nos seguintes termos:
“1º - Durante 20 anos, a contar da data da promulgação da mesma lei, isto é, de 4
de Março de 1908, os prédios que se construíssem, obedecendo às regras da
moderna construção e higiene, na avenida Constantino Nery, na parte não
beneficiada até Flores, e ainda os prédios em idênticas condições que se
construíssem no bairro Constantinopolis;
2º - Durante 10 anos, ainda a contar de 4 de Março de 1908, os prédios que se
construíssem, obedecendo às regras da moderna construção e higiene, na
primeira parte da avenida Constantino Nery, no Boulevard Amazonas e no bairro
de S. Raimundo;
34 Mensagem do Governador do Estado do Amazonas, Sr. Jonathas Pedrosa de Freitas, 10 de julho de 1914, p. 58. 35 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.343, 17 de ago. de 1913.
28
3º - Durante 6 anos, a contar da mesma data, os prédios que se levantassem na
Rua Cearense, nos bairros Mocó, S. João e Cachoeirinha”36.
Na realidade, por trás da lei 491 estava a intenção da Municipalidade de
despertar naquelas zonas suburbanas, a fundação de prédios e casas de relativa
construção e higiene modernas. Com certeza, o incentivo recuperado pelo poder
municipal não surtiu o efeito previsto. Posteriormente, outro superintendente
queixava-se da queda brusca do imposto predial, como consequência não apenas
da numerosa quantidade de prédios desalugados, para mais de trezentos só no
perímetro urbano, mas também da baixa dos aluguéis, a que têm sido forçados os
proprietários37.
Segundo a municipalidade, as construções levantadas na cidade em 1911
e 1912 correspondiam a cerca de 160 a 169, baixaram sensivelmente em 1913 a 87
apenas, para após uma oscilação ameaçadora, entre 38 e 20, caírem drasticamente
à média de 4, nos últimos exercícios administrativos38 ocasionando falta de trabalho
para as classes pobres.
As poucas construções efetuadas desencadearam uma crise habitacional
expressiva por volta de 1926. A alta do preço da borracha iniciada em 1924 permite
nesse período um refluxo de parte da população, que emigrara desoladamente por
ocasião da depressão econômica. E que fará a população da cidade aumentar em
torno de 10.000 (o censo de 1920 confirma uma população para o Município de
75.704). O aumento do contingente de pessoas nesse período valorizou
bruscamente, por insistente procura, as casas de moradia, em tempos anteriores
fechadas ou com poucos inquilinos, acentuando a ganância dos proprietários, que
em muitos casos aumentaram em 100% os aluguéis 39. O que penalizou ainda mais
a vida das classes menos favorecidas.
A crise econômico-financeira vivenciada pelo Estado abateu
ameaçadoramente a receita do Município, deixando-o com parcos recursos para
custear as despesas diárias e imprescindíveis. Segundo os relatórios, não poderiam
36 Mensagem do Superintendente de Manaus, Sr. Dorval Pires Porto, 5 de setembro de 1915, p. 106. 37 Mensagem do Superintendente de Manaus, Sr. Basílio Torreão Franco de Sá, 14 de julho de 1921, p. XLVII. 38 Mensagem do Prefeito de Manaus, Sr. José Francisco de Araújo Lima, 1 de julho e 1 de outubro de 1916, p. 38. 39 Mensagem do Prefeito de Manaus, Sr. Francisco Araújo Lima, 1 de julho de e 1 de outubro de 1926, p. 38.
29
sofrer retardamento por estarem diretamente ligadas à saúde pública: a limpeza
pública e a assistência médica aos desvalidos. Quanto à limpeza e assepsia da
cidade, em vários momentos os jornais da época relatam as greves do pessoal da
limpeza pública, por não receber a importância referente aos seus ordenados.
Passadas as greves, o serviço de limpeza não atendia as necessidades da
cidade, mesmo durante o apogeu da borracha, os jornais da época externavam as
reclamações da população citadina em relação a este e outros serviços de
responsabilidade da Municipalidade. Muitas vezes, tais reclamações ocasionaram
quadro como este esboçado em cores vivas pelo Jornal do Comércio: “Manaus, pelo
descuido completo dos poderes públicos vai perdendo toda a sua beleza antiga.
Diversas ruas estão cobertas de capim, montes de lixos permanecem acumulados.
Ultimamente alguns proprietários passaram a construir cocheiras no perímetro
urbano, nos lugares mais frequentados”40. A área central da cidade onde o comércio
agoniava, mas resistia, era o alvo principal do serviço em detrimento das áreas
periféricas.
As grandes obras desapareceram durante a crise devido à notória condição
do erário municipal, somente aquelas ligadas diretamente à saúde e ao bem-estar
da coletividade foram realizadas:
“Seria, porém, o cúmulo da insensatez cogitar um plano sistemático de
melhoramentos, numa fase em que a simples conservação das ruas, modestos
reparos de calçamento ou de esgotos, o singelo tratamento dos jardins,
representam extraordinários sacrifícios, que a Municipalidade só afronta por ser
manifesta a indispensabilidade de tais serviços”41.
Entre as obras públicas de menor proporção realizadas nesse período
destacam-se as estradas, a necessidade de ampliar a produção agrícola nas
proximidades de Manaus para abastecer a cidade com produtos provenientes
daquelas localidades e atender a comunicação entre centro e periferia, forçava o
Poder Público a realizar tais obras. Para tornar viáveis esses novos
empreendimentos, o governo aplicou centenas e centenas de contos de réis do
erário estadual. A falta de manutenção tornava essas estradas, alvos de intensa
reclamação, principalmente da oposição ao partido situacionista:
40 Jornal do Comércio, Manaus, n 4037, 22 de julho de 1915. 41 Mensagem do Superintendente de Manaus, Sr. Antonio Ayres da Almeida Freitas, 14 de julho de 1918, p. IV.
30
“O governo (...), pretendeu haver enriquecido o patrimônio do Estado com algumas
dezenas de quilômetros de estradas de rodagem. Foram abertas, destocadas,
absorvendo centenas e centenas de contos de réis do erário estadual e servindo para
passeios de automóveis ou para uso direto de particulares. Em rigor, à luz dos
princípios técnicos em obras de tal natureza, a engenharia brilhou ali pela ausência.
Imperfeitas, portanto, sem base para uma resistência, veio agora o desmantelo que era
a consequência fatal, assinalar a sua imprestabilidade, destruídas pelas chuvas e
apagadas pelo avanço da floresta marginal. Praticamente, portanto, não mais existem,
uma vez que de mais nada servem em seu atual estado. Basta, para assim concluir,
registrar que quase todos os seus pontilhões, construídos, a trouxe-mouxe, de tabocas
cobertas de terra, estão a ruir apodrecidos, constituindo iminente perigo ao tráfego de
qualquer veículo que por eles se aventure a passar. As próprias estradas feitas na zona
urbana com a redução de ruas largas a caminhos estreitos, a exemplo de como se
procedeu no boulevard Amazonas e na rua Emílio Moreira, oferecem deplorabilissimo
aspecto (...)”42.
As obras de calçamentos e reparos das ruas seguiam um itinerário de acordo
com sua importância econômica. Inicialmente as ruas do alto comércio e do
comércio a retalho, de modas, calçados, jóias, livrarias, etc., para somente depois,
alcançar as ruas paralelas mais trafegadas com o objetivo de facilitar o trânsito43.
Um dos indícios da crise na cidade ou da cidade em crise foi o alto índice de
mendicância. O comércio colaborava com a manutenção do Asilo de Mendicidade
doando gêneros alimentícios, em troca exigia um posicionamento do poder público.
Inúmeros mendigos se arrastavam pelas ruas e praças da cidade:
“O flagelo já chegou a tal ponto que, até nas embarcações abandonadas, por
imprestáveis e atracadas no porto desta capital, se encontram alojados vários
mendigos, sendo o espetáculo observado pela manhã de todos os dias, por quem
quer que se dê ao trabalho de passar nas proximidades do local”44.
Uma tentativa de amenizar o problema social foi a criação da lei que instituiu
o imposto de caridade sobre as entradas nas casas de diversão, a exemplo do que
acontecia em outras cidades. Com recursos ainda reduzidos, a Municipalidade
recolheu muitos mendigos que se exibiam nos pontos mais movimentados de
Manaus ao Asilo de Mendicidade, para aqueles naturais de outros estados que não
desejassem ficar asilados foram fornecidas passagens e auxílios. Em pouco tempo
42 Jornal do Comércio, Manaus, n 8937, 12 de fevereiro de 1930. 43 Mensagem do Prefeito de Manaus, Sr. José Francisco Araújo Lima, 15 de abril de 1928, p. 18. 44 Jornal do Comércio, Manaus, n. 5.100, 8 de julho de 1918.
31
foram recolhidos ao Asilo 29 mendigos e fornecidas passagens para 164, dos quais,
98 se retiraram para o interior do estado e Sul do país45.
A cidade adoeceu abatida por diversas doenças entre elas a febre amarela e
a malária presentes no seu cotidiano desde tempos remotos. Iniciativas como a do
Sr. Dorval Porto, superintendente municipal, realizadas com sucesso em 1914
contra a malária não seriam concretizadas tão cedo, assim a doença continuou a
fazer vítimas tanto no centro da cidade, quanto nos subúrbios46. Uma campanha
preventiva contra o impaludismo efetuada em 1922 livrou Manaus de uma
verdadeira epidemia da doença.
Novas doenças também apareceram surpreendendo a cidade, a gripe
espanhola foi um exemplo neste sentido. Surgiu na Espanha em março de 1918, em
Manaus as áreas mais afetadas foram os bairros periféricos e as colônias de
agricultura existentes nas estradas, onde as camadas sociais de baixa renda
habitavam. O centro, devido a sua alta densidade demográfica, também foi
acometido.47 Segundo fontes médicas somente em novembro de 1918, a doença
ceifou a vida de 661 pessoas. Dados da Diretoria do Serviço Sanitário do Estado
confirmam que o flagelo atingiu aproximadamente 8.830 pessoas só na cidade de
Manaus48.
A situação mórbida da capital do Amazonas se tornava crítica com a chegada
de doentes vindos do interior e dos estados limítrofes. Na estação invernosa
chegavam dezenas deles, sem dinheiro para as necessidades e despesas
imediatas, casas não procuravam, ficavam apinhados em baiúcas abandonadas nos
arrabaldes, ou alocavam-se nos baixos da Serraria Sá, nos patamares dos
armazéns, nos alicerces de edifícios em construção ou abandonados. A doença e a
fome tornavam seus dias longos e sombrios. Um fato inusitado foi constatado pelos
enfermeiros do Serviço de Profilaxia Rural que amparava esses enfermos. Alguns
45 Mensagem do Superintendente de Manaus, Sr. Hugo Ribeiro Carneiro, 2ª sessão ordinária de 1 de outubro de 1925, p. 6. 46 LOUREIRO, Antonio. A grande crise. op. cit., p. 288 - 289. 47 LOUREIRO, Antônio. Tempos de esperança: Amazonas (1917- 1945). Manaus: Sérgio Cardoso, 1994. p. 21. 48 Mensagem do Superintendente de Manaus, Sr. Antônio Ayres de Almeida Freitas, 14 de julho de 1919, p. 60
32
doentes solicitavam com insistência o xarope para tosse. Com o tempo descobriu-se
a razão: com fome o xarope era misturado à farinha e transformado em alimento49.
Medidas realizadas no passado livraram a capital do agravamento dos
problemas sanitários: a prevenção de algumas doenças, o abastecimento regular de
água, a iniciação da rede de esgotos, a remoção e cremação do lixo urbano, entre
outros.
A carestia de vida foi motivo de constantes reclamações por parte da
população citadina. Considerando o crescimento da cidade e o custo de vida
elevado, o poder público municipal estabeleceu algumas medidas para tentar
amenizar essa situação. Uma delas foi a lei municipal de 8 de maio de 1914, que
decretou a criação das feiras municipais suburbanas da Cachoeirinha e de São
Raimundo cuja finalidade principal era “concorrer para o barateamento da vida na
premente crise que nos deprime”50. Nas feiras, o produtor vendia sua produção
diretamente ao consumidor, a compra direta reduzia os preços dos produtos e trazia
vantagem para a população mais carente de Manaus e aos pequenos produtores
que viviam em suas adjacências.
Jornais, telégrafos, telefones, símbolos da modernidade, uns com a função de
diminuir as distâncias, outros de informar, manipular, representar interesses de
determinados grupos sociais, utilizados de diferentes formas e muitas vezes como
aliados do poder. Quando o centro de Manaus passou a ser urbanizado no apogeu
da economia da borracha um grande aliado do poder público foi a imprensa. Os
periódicos da época veiculavam notícias denunciando e apontando as práticas
condenáveis de contravenção, de transgressão, assim como, registrando as queixas
dos atores sociais segregados e excluídos das benesses da modernidade.
Neste sentido, os discursos impressos nos jornais constroem a realidade de
uma época devendo o historiador direcionar sua atenção para alguns detalhes. Em
primeiro lugar, as representações sobre o urbano podem ou não representar o que
está nos indícios, em crônicas de jornais, poesias, imagens e discursos variados. Em
segundo, as representações do mundo social construídas sobre a realidade não são
neutras, estão na verdade repletas de sentidos sintonizados com relações sociais e
49 UCHÔA, Samuel. Dois anos de saneamento: 1923. Manaus: Livraria Clássica, 1924. p. 40 - 41. 50 Mensagem do Superintendente de Manaus, Sr. Dorval Pires Porto, 5 de setembro de 1914, p. 40.
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de poder51. Os jornais têm papel de grande relevância na construção de
representações, Maria Helena Capelato afirma que “a imprensa age no presente e
também no futuro, pois seus produtores engendram imagens da sociedade que
serão reproduzidas em outras épocas”52. Questionar a quem interessa a construção
deve ser um passo prioritário, além é claro de situar, o lugar social onde essas
representações foram produzidas e reproduzidas.
A partir de 1916, o Jornal do Comércio (representante dos comerciantes
locais) iniciou a publicação da seção “A cidade” cujo objetivo consistia basicamente
em “apontar as necessidades urgentes das quais ressentia a nossa urbs, a fim de
registrarmos fatos, que interessavam os nossos munícipes (...)”53. Ao analisar as
citadas seções encontramos poucas que realmente beneficiavam os segmentos
populares. Como no caso a seguir onde o editor relatava uma manobra do Estado
para diminuir os gastos públicos com energia elétrica. Novamente, a crise foi
resgatada para justificar o atraso no pagamento à Manaus Tramways
(concessionária inglesa fornecedora de luz à capital). Medidas de economia foram
solicitadas pelo Estado à concessionária que ordenou, entre elas, a supressão de
alguns postes de iluminação das ruas de Manaus. As vias mais afastadas da área
central da cidade onde o número de postes já era menor foram as mais atingidas. A
população reclamava através do jornal, que os focos de luz passavam noites e
noites apagados e o periódico, por sua vez solicitava ao governo, o restabelecimento
do antigo número de postes, visto que os benefícios prestados compensariam o
acréscimo orçamentário consequente54. Desse modo, tornava-se expressiva a
preocupação das autoridades em privilegiar somente o perímetro urbanizado da
cidade, símbolo do poder econômico e político, pouco se importando com as áreas
suburbanas onde habitava a maioria da população citadina.
O “paladino das causas populares” como se autodenominava o jornal,
reclamava da outra cidade existente no centro urbanizado em decadência. “Dia e
noite os pontos mais centrais, as artérias de maior movimento ressentem-se da falta
absoluta de fiscalização da polícia civil. Por todos os cantos vivem às escâncaras
51 PESAVENTO, Sandra J. Muito além do espaço: por uma história cultural do urbano. Estudos históricos, vol. 8, nº 16, 1995. p.280. 52 CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/ EDUSP, 1988. p. 42. 53 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.732, 2 de julho de 1917. 54 Jornal do Comércio, Manaus, n. 4505, de 9 de nov. de 1916.
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antros de perdição, cubículos abjetos onde dominam o vício e a corrupção”.
Continuava o editor:
“Nas ruínas do trapiche Witt, onde estiveram estabelecidas a farmácias Calmont,
a agência da companhia Lloyd Paraense e a casa comercial Carvalho e Barros,
devoradas há anos por incêndio, estabeleceram-se alguns indivíduos com o
comércio de botequim e casas de pasto, antros ignóbeis onde se reúne a escória
social, o que Manaus tem de mais baixo nas suas camadas populares. A jogatina
campeia dia e noite, o vício da embriaguez tem ali o seu culto e as quadrilhas de
ladrões e pivetes encontram naquelas espeluncas abomináveis refúgio seguro”55.
Os chamados indesejáveis, perigosos, turbulentos, marginais eram descritos
como inimigos internos56 ao destruírem ou ameaçarem o padrão civilizacional
desejado. E assim, apareciam compondo a representação do universo da cidade
através dos textos dos jornais.
Para os transgressores da ordem, o jornal apresentava indícios de como os
mantenedores da tranquilidade pública lidavam com determinado tipo de infração,
como por exemplo, os roubos. Os roubos atingiram altos índices nessa época,
sendo praticados principalmente no perímetro urbanizado. Na seção “A cidade”, o
jornal chama atenção da população para a chegada de diversos gatunos varridos
pela polícia de Belém com destino à Manaus. Relatava o jornal “faça o que
habitualmente aqui se faz, enviando-os aos lugares inóspitos dos altos rios, como
justo castigo aos seus vícios”57. A transgressão era punida com o degredo,
continuidade remanescente da Colônia que se mantém na República.
A seção na realidade não era para os segmentos populares, uma vez que
agia contra eles. Na maioria das vezes, o jornal chamava atenção das autoridades
constituídas e solicitava providências “contra certos abusos incompatíveis com o
nosso elevado grau de civilização”58. Apontava os problemas sociais da cidade e
mostrava a solução, se posicionando contra os hábitos e costumes tradicionais da
população. “Os costumes fornecem ao observador larga copia para analisar
55 Jornal do Comércio, Manaus, n. 4.688, de 14 de maio de 1917. 56 PESAVENTO, Sandra J. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2001. p. 12. 57 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.428, 21 de agosto de 1916. 58 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.343, 28 de maio de 1916.
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detidamente a educação de um povo. As autoridades devem velar pela sua boa
prática, punindo os transgressores”59.
O combate é contra atores sociais e práticas, objetos de um discurso
normativo desde o apogeu da economia gumífera e que prevalece durante a crise.
Os segmentos populares propagadores de comportamentos condenáveis, a maioria
trabalhadores desempregados, são alvos permanentes dos discursos dos jornais,
em especial nesse momento onde a cidade tornava-se objeto de propaganda das
elites e do governo estadual. Visando atrair novos investimentos, Manaus teria que
se apresentar atraente, limpa e civilizada ao visitante. Ao denunciar, ao solicitar
providências da polícia, das autoridades, os jornais engendram representações da
cidade real. Cidade que sobrevive a crise do principal produto de exportação do
Estado.
Durante a Guerra, a presença de submarinos alemães tornou os mares
inseguros, visando impedir o abastecimento da Alemanha e Áustria, a borracha foi
considerada contrabando de guerra, fator determinante que ocasionou a proibição
de sua exportação, somente dois países figuravam como exceção: a França e a
Rússia60. A Amazônia devido a sua posição geográfica mais próxima dos grandes
centros consumidores, do que o Oriente continuou exportando em volume menor
esse produto, especialmente para os Estados Unidos. Os americanos aproveitaram
essa circunstância para baixar o preço, a um limite irrisório de 3$000 réis o quilo
para a borracha fina, permitindo de forma precária a continuidade do sistema de
aviamento reduzido a talvez menos de um quinto em relação aos anos de grande
movimento61.
A desvalorização do produto, pela superprodução mundial (passada a Guerra
o Oriente voltou a produzir normalmente o produto) atingiu níveis críticos em 1922.
Nessa época surgiu o Plano Stevenson com a intenção de restringir as plantações e
a produção das colônias inglesas no Oriente62. O que possibilitou um surto de
revigoramento da produção amazônica a partir de 1924.
Enquanto isso, Manaus continuava caminhando em direção a um futuro
incerto. Os problemas sociais existentes em seu interior desde o apogeu da 59 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.301, 14 de abril de 1916. 60 Revista da Associação Comercial do Amazonas, Manaus, n 88, 10 de outubro de 1915. 61 Revista da Associação Comercial do Amazonas, Manaus, n 78, 10 de dezembro de 1914. 62 LOUREIRO, Antônio. Tempos de esperança. op. cit., p. 9.
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borracha e escamoteados pela historiografia tradicional foram durante a crise, na
realidade, acentuados. A crise trouxe em seu encalço novos problemas estruturais,
econômicos e sociais forçando a população citadina a elaborar novas estratégias
para continuar vivendo na cidade.
A cidade é como fato cultural, um caldeirão de impressões, de sentimentos,
de desejos e frustrações63, sendo construída a partir de experiências sociais
diversificadas e complexas. Nesse período, Manaus foi cenário de tensões e
embates protagonizados pelos inúmeros atores sociais que vivenciavam o cotidiano
da cidade, deixando nela marcas de sua existência. É possível perceber nos jornais
o aumento do trabalho informal, a população lutando contra a carestia de vida, esse
argumento também foi usado pelos trabalhadores como um dos motivos para
deflagrarem inúmeras greves, onde reivindicavam aumento salarial, o pagamento de
salários atrasados e pleiteavam a regulamentação da jornada de trabalho para 8
horas.
Os efeitos da crise somados àqueles causados pela Primeira Guerra Mundial
tornou, os anos a partir de 1915 difíceis, segundo a historiadora Francisca Deusa
Sena da Costa, por revelar para os trabalhadores urbanos “um mercado de trabalho
estrangulado pela baixa da oferta de empregos gerada por falências, que aumentam
a mendicância, denotando o alto nível de desemprego; um mercado imobiliário
falido, com a agudização da tendência da ida da população pobre/ trabalhadora para
os subúrbios que, desempregada, constrói casebres para poder continuar habitando
a cidade(...)”64.
No ano de 1915, o jornal do comércio mostra a massa humana em movimento
expressando a sua indignação com a carestia de vida, o preço do pão “às vezes, o
único alimento das classes pobres, dos próprios indigentes (...)”65 estava alto
demais. A falta de pagamento do funcionalismo público também era motivo para
protesto “(...) pela voz dos tribunos protestará contra a falta de pagamento em que
vivem os funcionários públicos e as classes trabalhadoras”66.
63 PAQUOT, T. M. Roncayolo (orgs.). Villes et civilization urbaine (XVII – XIX siècle). Apud: VAINFAS. Ronaldo. História das mentalidades e história da cultura. In: CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS. Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 16 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997. p. 195. 64 COSTA, Francisca Deusa Sena da. Quando viver ameaça a ordem urbana. op. cit., p. 22. 65 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.937, 12 de abril de 1915. 66 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.963, 9 de maio de 1915.
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A sociedade manauense em 1915, justamente no ano considerado por alguns
historiadores como o mais crítico para a economia amazônica, ficou sensibilizada
com a situação de penúria dos nordestinos atingidos pela seca. O Jornal do
Comércio liderou uma campanha para despertar os sentimentos altruísticos do povo,
conclamando a sociedade a participar do ato de piedade. Para ajudar o Piauí,
Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba vários segmentos sociais colocaram-se a
disposição:
“O Sr. Tenreiro Junior, gerente da Fábrica de Roupas Amazonenses, enviou-nos
uma carta comunicando ao JORNAL, que as operárias de seu estabelecimento
deliberaram sair em bando precatório, na próxima segunda feira, em benefício das
vítimas da seca. O missivista congratula-se com essa resolução das operárias de
uma casa industrial, cujos os proprietários são de nacionalidade portuguesa, bem
como a maior parte delas”67.
Além da disponibilidade das operárias da Fábrica de Roupas Amazonense,
uma comissão de cearenses informou ao jornal, a realização de uma reunião no
Teatro Alcazar onde seriam discutidos, os melhores meios de socorrer os
nordestinos. A União Acadêmica Amazonense também se dispunha para ajudar,
assim como a colônia alemã.68
A firma Miranda Corrêa e Companhia (proprietária da Fábrica de Cerveja
Amazonense) colocou a disposição das operárias um caminhão para conduzir as
ofertas de maior vulto doadas pela população. Os proprietários da tipografia Cá e Lá
e da livraria Palais Royal, também participaram. Reforçou a campanha, a União dos
Oficiais de Alfaiate de Manaus, que em assembléia deliberaram enviar auxílio às
vítimas da seca. Os operários de Manaus, à frente o representante da Confederação
Operária Brasileira, Sr. Tércio Miranda, promoveram segundo informa o jornal, um
espetáculo em benefício dos flagelados.69
A Associação Comercial do Amazonas (ACA) não poderia ficar indiferente a
campanha realizada na cidade e na medida de suas forças procurou cooperar com
aqueles que tomaram a iniciativa de ajudar as populações atingidas pela seca.
Ilustrando de forma superficial, o tratamento dispensado aos imigrantes nordestinos
destinados ao trabalho nos seringais:
67 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.039, 24 de julho de 1915. 68 Idem 69 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.041, 26 de julho de 1915.
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“Conviria, ao que nos parece, que V. Ex.ª interferisse junto ao Governo Federal para
que este, nas medidas de auxílio aos flagelados pela seca do norte incluísse o
transporte em sua frota mercante, o Lloyd, até Manaus, daqueles que para aqui
quisessem vir. Apenas chegados seriam levados para a antiga Hospedaria de
Imigrantes de Paricatuba, a fim de não se espalharem pela cidade, expostos as
contingências da sorte. O auxílio terá mesmo que ir até ao fim, isto é, os imigrantes
deverão ser ainda conduzidos gratuitamente desta cidade para os seringais onde se
forem localizar, depois do contrato que com eles aqui fizerem os que necessitam de
trabalhadores. Infelizmente o Governo do Estado confessa, e é uma realidade, que
quase nada pode fazer, nestas condições, só de iniciativa particular poderemos esperar
acolhimento para os imigrantes que vierem para este Estado. Esta Associação no
intuito de prestar auxílio à iniciativa particular, daqueles que estão promovendo meios
de obter recursos para os imigrantes, colocou-se desde logo à disposição das
sociedades Renascença do Ceará, Centro Paraibano, Centro Acadêmico e outros”70.
Como a crise econômica se refletia no erário público, o representante do
Executivo Estadual alegou não ter condições de ajudar diretamente os retirantes e
sinalizava que essa iniciativa deveria partir dos meios particulares. A ACA insistia
que pelo menos, o governador solicitasse ao Governo Federal passagens gratuitas
para os nordestinos que desejassem vir para o Amazonas, suprir a escassez da
mão-de-obra. Revelando que a situação não estava tão caótica assim, e que mesmo
em 1915 esse importante órgão comercial ainda tinha esperança da reversão do
quadro que se desenhava a sua frente. Segundo os relatórios da ACA, os preços da
borracha neste ano apresentavam uma relativa estabilidade. Em 1916, o fechamento
do Canal de Suez possibilitou a permanência da estabilidade dos preços do ano
anterior, estes se mantiveram acima de 4$000 réis o quilo, desafogando pelo menos
momentaneamente, a economia regional71.
Diante dos relatos onde várias associações e categorias de trabalhadores
participam de forma direta ou indireta da campanha, torna-se evidente que a crise
tem “dimensões diversas para segmentos diferenciados da população, pois, da
mesma maneira que a cidade não é produzida de modo equânime, a crise pode não
ter o mesmo significado para o conjunto de seus moradores”72. Portanto, o mundo
do trabalho não afetado pela derrocada da economia gumífera possibilitou a
vitalidade da cidade. 70 Revista da Associação Comercial do Amazonas, Manaus, n 86, 10 de agosto de 1915. 71 Revista da Associação Comercial do Amazonas, Manaus, n 91, 10 de janeiro de 1916. 72 OLIVEIRA, José Aldemir. Manaus de 1920 - 196: a cidade doce e dura em excesso. Manaus: Valer/ Gov. do Estado/ Edua, 2003. p. 137.
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A vida urbana se enfraquecia a partir de 1920 em Manaus, as arrecadações
municipais caíram acentuadamente:
“De 2.278:992$562, de janeiro até agosto de 1910, para 1.111:752$752, de janeiro a
dezembro de 1920. Com tamanha queda no orçamento, fez-se necessário que as
obras municipais, além de seus critérios estéticos e sanitaristas, também fossem
dotadas de necessidades objetivas, impostas pela nova realidade econômica
vivenciada pela cidade. A arrecadação no período de 1910 - 1920 diminuiu mais de
54%. Na década de 1920, a recuperação da arrecadação foi lenta, havendo inclusive,
momentos de diminuição, como o ocorrido em 1923 em relação ao ano de 1922. Na
década de 1930, verificamos um relativo crescimento na arrecadação, intensificado no
final dos anos trinta e início da década de 1940 com a política de valorização da
borracha silvestre do Amazonas, no período da Segunda Guerra Mundial”73.
Os serviços urbanos (transportes, abastecimento de água e energia elétrica)
centralizados nas mãos das firmas inglesas tiveram suas taxas aumentadas
provocando denúncias e protestos da população, principalmente, através da
imprensa74. O aumento das taxas não era compatível com a qualidade dos serviços
fornecidos. Desde tempos anteriores, esses serviços eram amiúde, alvos de
reclamação da população:
“É verdadeiramente deplorável, nada recomendado, portanto, uma companhia que se
preza, o estado a que chegam os bondes da “Tramways” por ocasião das chuvas. As
coberturas superiores, mal calafetadas deixam gotejar exuberantemente, molhando os
passageiros. A incúria dos condutores e, às vezes, os meios parcos de que dispõem
para regularização do serviço, fazem que os bancos dos veículos permaneçam cheios
de água, inteiramente alagados de ponta a ponta, desde o primeiro ao último,
obrigando a quem viaja em tais carros conserva-se de pé durante todo o trajeto, quer
seja moço e forte, quer seja velhinho ou doente que mal se possa suster nas pernas. É
fácil deduzir daí o incomodo e a inconveniência que ocasiona, principalmente às
famílias, viajar de bonde num dia chuvoso”75.
Nessa época, a cidade também começou a sentir os impactos do
sucateamento desses serviços, as reclamações se dirigiam principalmente à Manáos
Tramways, “o estado lamentável em que se acham todos os serviços dessa
73 BENTES, Dorinethe dos Santos. Outras faces da história: Manaus de 1910 - 1940. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal do Amazonas. 2009. p. 104. 74 SANTOS, Eloína Monteiro dos. A rebelião de 1924 em Manaus. Manaus: Suframa/ Gráfica Loren, 1990. p. 27. 75 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.199, 24 de março de 1913.
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companhia é tão extraordinário, que não sabemos por onde começar a nossa
reclamação” 76.
“O serviço de bondes desta capital tem se tornado nestes últimos meses o pior
possível. Com o material estragadíssimo a companhia arrendatária não cuida em
repará-lo, o que prejudica deveras o público que paga bem e precisa de ser servido
com regularidade. Os horários de todas as linhas não obedecem a um diagrama, como
se nota em todas as empresas, que exploram a viação urbana das grandes cidades. Os
fios, que se estendem através das ruas e praças estão emprestáveis, de vez em
quando arrebentam, motivando a paralisação de tráfego. As treze e meia horas de
ontem, quando o carro número dezoito atravessava a rua Municipal, em frente à
Pensão Excelsior, quebrou-se o fio condutor, não havendo, felizmente, desgraça a
lamentar. (...) Não é somente o serviço de bondes que está em péssimas condições, a
iluminação pública encontra-se em ruínas, os circuitos da avenida Eduardo Ribeiro,
praça de São Sebastião, ruas Costa Azevedo, Municipal, dos Andradas e de outras
estão, de há muito, desmantelados, apagando-se de quando em quando os postes
elétricos. Os eixos dos bondes estão gastos de tal maneira que em breve os desastres
serão registrados diariamente. (...)”77.
A cidade não parecia mais atraente aos olhos dos representantes do capital
estrangeiro, paulatinamente, estes se retiravam em busca de lucros mais fáceis e
maiores.
O interventor federal no Amazonas, Alfredo Sá em 1925 registrava o estado
de abandono e ruína em que se encontravam muitos edifícios públicos, pontes e a
estrada de Campos Sales. Exigiam segundo o interventor, reparos urgentes, tanto
interna como externamente: a Secretaria Geral do Estado, o Teatro Amazonas, o
Ginásio Amazonense, a Penitenciária, o Tesouro Público, o Quartel da Polícia, os
Grupos Escolares, a Imprensa, Arquivo, Biblioteca e outros prédios de propriedade
do Estado:
“Foi serviço de que cuidei imediatamente para os salvar de iminente ruína e torná-los
de decência compatível com os fins a que se aplicam, deste modo tirando-lhes o
aspecto desolador que ofereciam. Em todos eles foram feitas as obras necessárias
ainda em execução, (...). Oferecem hoje esses edifícios públicos outro aspecto de
conforto, concorrendo para o embelezamento da cidade. As pontes da Avenida 7 de
setembro e da Cachoeirinha foram consertadas e pintadas de novo, atendendo-se
assim às suas condições de segurança e duração. Cuidei com carinho da estrada
76 Jornal Vida Operária, Manaus, n 10, 11 de abril de 1920. 77 Jornal do Comércio, Manaus, n 4836, 13 de outubro de 1917.
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Campos Sales que foi concertada desde seu ponto inicial na Vila Municipal até o
quilometro 20, no igarapé da Bolívia, ficando perfeitamente adaptável ao tráfego de
automóveis, sendo hoje o ponto preferido de recreio da população da capital. É obra
meritória de governo conservar essa estrada e prosseguir em sua construção,
modificando-lhe o traçado por meio de variantes que trarão melhores condições
técnicas e preço mais barato na execução dos respectivos trabalhos. (...)78.
Enquanto isso, a cidade real aquela restrita aos subúrbios e que crescia de
forma desordenada emergia através das páginas dos jornais. Um repórter anônimo
do JC cuja função se igualava a de um flâneur79, o homem que passeava sozinho
pela cidade, observando-a como espetáculo, relatava suas incursões realizadas em
algumas das múltiplas cidades existentes em Manaus. Sua finalidade era
caracterizar os tipos humanos e os aspectos pitorescos de determinados bairros,
como São Raimundo, Constantinopolis e Colônia Oliveira Machado, onde viviam em
sua maior parte, os trabalhadores dos estabelecimentos industriais da cidade80. Ao
realizar o seu trabalho, o flâneur nos mostra representações plurais de um cenário
cotidiano.
O repórter inicia o seu relato pelo bairro de São Raimundo separado do
perímetro urbano pelo igarapé do mesmo nome. Para chegar ao bairro foi
necessário ir até à Rua dos Andradas e embarcar em uma das inúmeras catraias,
que se aglomeravam no barranco. Houve um tempo em que as denominações
lusitanas desse meio de transporte confirmavam a grande presença de portugueses
nessa atividade. Agora elas se apresentavam com outros nomes (a Ceará, a Queira
Deus, a Vencedora, a Gegê, a Dona Cold, a Ave) disputando a preferência dos
passageiros81.
O desembarque foi em uma rampa ainda em projeto, toda esburacada e suja,
sem o menor conforto para aqueles que por ali se movimentam. Em seguida,
continua o relator, comecei a caminhar pelo bairro e cheguei a sub-delegacia local, a
cargo do Sr. Arthur Pinheiro. Mais adiante, avistei o grupo escolar Olavo Bilac, a
direção da escola estava sob o comando da professora Luiza do Nascimento, o
78 Mensagem do Interventor Federal no Estado do Amazonas, Sr. Alfredo Sá, 15 de dezembro de 1925. p. 72 - 73. 79 Personagem fantasmagórica criada por Walter Benjamim ao analisar a Paris do Segundo Império em Baudelaire. In: KONDER, Leandro. Walter Benjamim: o marxismo da melancolia. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 96 - 97. 80 Jornal do Comércio, Manaus, n. 8.728, 15 de junho de 1929. 81 Idem.
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prédio era um mercadinho e foi adaptado ao fim atual, na administração municipal
do Sr. Dorval Porto. A frequência chega a duzentos e oitenta alunos de ambos os
sexos. Do grupo, prossegui para a rua 5 de setembro, larga e longa, tendo em suas
margens, casas, a maioria feitas de taipa de um só tamanho e com aparência igual,
poucas eram de alvenaria. As ruas de terra batida contribuíam para o pitoresco
quadro. Depois, estive na União Beneficente de São Raimundo que conta com um
número superior a quatrocentos sócios, em prédio próprio e bem confortável onde
oportunamente funcionarão, aulas noturnas para a população do bairro. São
Raimundo também tem o seu cinema, o Íris, bem arranjado, em casa espaçosa, com
palco, onde, à noite, o Pedro Brandão diverte o pessoal. No decorrer da caminhada,
diante da observação curiosa dos moradores, encontrei o velho Sant’ana, um dos
primeiros habitantes do bairro, chegou em 1875 e entusiasmado com a conversa
informou-me que “viu aquilo tudo ainda mata onde costumava caçar”82.
A população parecia “pacata e ordeira”. Nos dias úteis todos trabalham. Os
homens se deslocam para as oficinas e fábricas ou para outros pontos da cidade. O
comércio ainda não se desenvolveu, os poucos estabelecimentos comerciais
existentes eram mercearias, com a predominância de alguns botequins. O posto
profilático funciona todos os dias. Três vezes por semana vai ali o Dr. Ângelo D’Urso.
A luz elétrica fornecida pela Manáos Tramways está distribuída em focos pequenos,
espalhados em vários pontos83.
O grande problema do bairro continua sendo a ligação à Manaus, sendo vista
como a maior necessidade entre os habitantes. Ao retornar por volta das onze
horas, perguntei ao Ceará, o catraieiro, que me levava de volta ao centro de
Manaus, se ele gostava do bairro onde morava, e ele respondeu: “Ah! isto aqui é um
céu aberto e eu não troco São Raimundo pelo Educandos nem a pau”. É que existe
uma grande rivalidade entre os moradores desses dois bairros. Como a hora do
almoço se aproximava, presenciei um espetáculo. As sirenes das usinas, serrarias,
fábricas daquelas imediações tocavam a um só tempo. Era hora dos operários
chegarem para o almoço e as pequenas canoas, em número superior a quarenta,
iam e vinham apinhadas de gente84. O operariado já trabalhava oito horas por dia,
82 Jornal do Comércio, Manaus, n. 8.728, 15 de junho de 1929. 83 Idem. 84 Idem.
43
com duas para o almoço, a maioria voltava à sua respectiva casa e retornava
depois, para cumprir a jornada diária de trabalho.
Em Constantinopolis, o maior desafio foi atravessar o igarapé de Educandos,
para isso, a catraia foi acionada. O lugar de desembarque estava maltratado e cheio
de buracos, pessoas foram logo solicitando atenção para o caso, pedindo que
através do jornal reclamássemos às autoridades constituídas85. Consoante June
Hahner afirma que muitos subúrbios não contavam com serviços urbanos como
sistema de esgotos, fornecimento de água, proteção da polícia, entre outros. Apenas
em época de eleições os funcionários do governo pareciam lembrar desses
moradores. “Mas suas queixas sobre os burocratas arrogantes e o “abandono” pelo
governo demonstravam uma habilidade em protestar e uma expectativa de ação
reparadora encontrada com menos frequência entre os moradores das casas de
cômodos do centro da cidade”86.
Depois do desembarque, prossegue o repórter, observei de ambos os lados
da rampa, a existência de casas de madeira e palha montadas em jiraus. Ao iniciar a
caminhada pelo bairro encontrei um edifício de boa aparência. Era o grupo escolar
Machado de Assis onde antes funcionou a Escola de Aprendizes Marinheiro. Diferia
em tudo das habitações vistas anteriormente, dúzias e dúzias de meninos e meninas
estudavam na escola. No mesmo grupo, também funcionava as aulas noturnas da
escola Antonio Bittencourt, mantida pelo Dispensário Maçônico com frequência de
setenta alunos, quase toda de operários87.
Uma estatística organizada pelo Sr. Guaycurús Souza, um dos moradores do
bairro, informava que até o ano passado, Constantinopolis contava com mil
quinhentos e trinta e seis habitantes, e trezentas e cinquenta e três casas, um posto
profilático que não contava com a presença do médico diariamente, nove
mercearias, uma barbearia, uma padaria, duas garapeiras e diversas casas de
frutas. As construções eram ainda toscas, na sua maioria, já existindo casas de
alvenarias, mas ainda formam uma minoria88.
85 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.733, 21 de junho de 1929. 86 HAHNER, June E. Pobreza e política: Os pobres urbanos do Brasil (1870 - 1920). Trad. Cecy Ramires Maduro. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1993. p. 184 - 185. 87 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.733, 21 de junho de 1929. 88 Idem.
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No bairro existe a necessidade de um telefone público, que poderia ser
instalado no posto policial como em São Raimundo. Observei nas ruas a falta de
calçamentos, motivo de queixas por parte dos moradores. Há iluminação elétrica em
postes públicos e residências somente até as vinte e duas horas, quando segundo o
contrato deveria alcançar as vinte e três horas. O problema maior do bairro é a sua
ligação a Manaus por uma ponte. Segundo o relator, Constantinopolis precisa muito
dos poderes públicos e pode no futuro ser um bairro muito próspero89.
A visita à Colônia Oliveira Machado ocorreu nos dias seguintes, a catraia foi
novamente o meio de transporte utilizado. Escolhi uma conhecida, informou o
repórter. – “Para onde vai moço?” Indagou o Messias, que atencioso e prestativo,
passa os dias em constantes vai-vens no igarapé de Educandos a levar e trazer
gente. – “Vou a Colônia”. De longe avistei muito mato cercando casas e palhoças.
Ao me aproximar da terra observei inúmeras jangadas de madeiras espalhadas
sobre as águas. Dezenas de homens de busto nu e cabelos ao sol executavam
trabalhos pesadíssimos. Uns serravam grandes toras de madeiras e outros
rebocavam os pedaços cortados para um lugar específico. Eram operários da
Serraria Eduardo Pereira e Irmãos, a qual fui convidado a conhecer. Em seu interior
vi serras enormes, as mais modernas em plena atividade, capazes de transformar
cedros enormes, troncos grossos em dúzias de tabuas. Na serraria trabalhavam
cento e trinta operários, a maioria moradores da Colônia90.
Ao seguir em direção ao centro do bairro, o que presenciei foi a ruína, o
abandono, o passado. As ruas fechadas pelos arbustos com as casas estragadas e
velhas, indícios de um passado não muito distante em que fora um lugar bastante
movimentado. A praça estava dominada pelo cerrado, no entanto, ainda
apresentava resquícios de calçamento, era cruzada por caminhos estreitos, por
onde transitavam os moradores. No meio desse largo, um coreto, também já velho,
em forma de um barco, apresentava-se aos visitantes, na proa, lia-se “Nau
Catharincta”. Curioso, perguntei do que se tratava. Contaram-me que ali se exibiam
nos bons tempos, cordões de marujos, no carnaval. Ao fundo da praça, de frente
para a baia, pequenina, vi a capela de São Francisco de Assis, toda de madeira e
apresentando ainda traços da pintura verde, que o tempo, paulatinamente engolia.
89 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.733, 21 de junho de 1929. 90 Jornal do Comércio, Manaus, n. 8.740, 29 de julho de 1929.
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Perguntei finalmente, se não havia escola no lugar. Mostraram-me que sob a direção
da professora Amy Cruz Chauvin funcionava uma escola onde quase todas as
crianças do bairro estudavam. Em outros tempos, o bairro foi próspero e populoso,
pois há vestígios de muitas casas de telha e alvenaria, agora em ruínas. O mato
crescia vitorioso por entre as ruas bem traçadas, outrora, vias de ligação com outros
espaços. Na catraia de volta para o centro urbanizado onde ficava a sede do JC, o
repórter olhava para a outra Manaus e pensava “(...) que diferença!”, e seguia em
frente “com o coração triste do que encontrou na Colônia”91.
Para Sandra Jatahy Pensavento (2002), o flâneur é o leitor da cidade por
excelência, que se associa de forma alegórica, aos espectadores privilegiados do
social de um determinado tempo, como os escritores, ou ao historiador-detetive, a
quem cabe conhecer e revelar a cidade, fazendo emergir o passado no presente.
Sendo assim, entrar nos pormenores dos subúrbios é trazer a tona, é relevar
uma outra cidade. Ao descrever um pouco de seu aspecto físico e do viver de seus
habitantes, trabalhadores pobres e humildes, acreditamos estar resgatando
fragmentos da vida como ela era, ou, como indivíduos ou grupos a percebiam
(Chartier, 1990). Era um universo de dificuldades onde sobreviviam os excluídos dos
benefícios da modernidade. A vida difícil, seja no cotidiano ou no trabalho, incluía a
superação de inúmeros desafios, entre os quais, o maior deles era sobreviver na
cidade. No apogeu e na crise, a luta diária desses atores sociais pela sobrevivência
ou contra o poder público e o patronato complementava o fazer-se da própria
cidade.
Nesse período, Manaus como capital do Amazonas agonizou e clamou ajuda
ao governo federal, embasada na tese de no passado ter colaborado para o
progresso do Brasil. A ajuda não veio e a cidade voltou-se para si mesma.
Diversificou a passos lentos, outras atividades econômicas, tendo como suporte o
outro lado do mundo do trabalho não afetado pela crise. Foi nesse tempo que de
acordo com Thiago de Mello, “Manaus abre para sua gente caminhos de reencontro
com sua própria autenticidade cultural”92. Era lá no Porto de Lenha, existente nos
subúrbios e arrabaldes que estavam as raízes da identidade cultural de Manaus.
91 Jornal do Comércio, Manaus, n. 8.740, 29 de julho de 1929. 92 MELLO Thiago de. Manaus, amor e memória. 4 ed. Manaus: Valer, 2004. p. 44.
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A crise, portanto, do principal produto de exportação do Amazonas propiciou a
Manaus, olhar para o seu passado, seus costumes e tradições, antes condenados
pelos segmentos sociais que desejavam impor uma outra forma de viver, não
condizente com a história e a realidade da cidade sobrevivente nos lugares
afastados do perímetro urbanizado.
Para os segmentos populares, a modernidade não produziu transformações
reais na vida de grande parte da população citadina que parecia viver em crise
permanente, “na realidade nada perderam, pois nada tinham”93. Uma vez que os
construtores anônimos do progresso material da cidade foram excluídos desse
processo e a ele só serviram. Não de forma passiva, pois a partir do momento em
que tentaram discipliná-los, educá-los, afastá-los da área central da cidade, impor a
eles novos ritmos de vida e de trabalho houve reações, muitas vezes tensas e
conflituosas, mas escamoteadas pela historiografia tradicional, que por muito tempo
se preocupou em fazer apologia à época de apogeu da economia gumífera.
Omitindo de forma deliberada os segmentos populares agindo e reagindo no espaço
urbanizado e nos subúrbios, a cidade real e contraditória que interagia com a cidade
idealizada pelas elites.
Enquanto os subúrbios cresciam possibilitando a vivacidade da cidade e sua
população dinamizava o mundo do trabalho, o centro urbanizado entrava em um
processo de decadência. As elites derrotadas pela crise expressavam através dos
jornais, o seu inconformismo com o que afirmavam ser, o retorno da cidade a um
Porto de Lenha, “Manáos, embora queriam os do Sul transformá-la em porto de
lenha, ainda felizmente, não chegou à triste situação de aldeota iluminada a lampião
de petróleo” 94.
Refugiadas ainda no sonho do passado, nos delírios de uma época, tentavam
através de inúmeros planos econômicos, projetos políticos e propagandas resgatar a
modernidade que só eles usufruíram. A representação da cidade em crise era
geralmente acompanhada da evocação de um passado de prosperidade. Nas
revistas de propaganda lançadas nesse período visando atrair para a cidade novos
investimentos. Manaus apresentava-se bela e limpa sendo retratada através dos
93 Memórias de Luís de Miranda Corrêa, escritor amazonense. Seu avô, Maximino Corrêa, era dono da Fábrica de Gelo Amazonense. 94 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.502, 12 de junho de 1922.
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edifícios suntuosos construídos no período de apogeu da borracha: o Palácio Rio
Negro, o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça, a Avenida Eduardo Ribeiro
pavimentada e etc.
Apesar das inúmeras tentativas, os projetos e planos falharam todos. Os
esbanjamentos, as prodigalidades, os banquetes, as grandes obras chegavam ao
fim com a crise. Uma vez que a modernidade vivenciada por Manaus, subsidiada
pelo capital internacional e assentada em um “produto extraído da floresta”, não
tinha como se solidificar, devido a instabilidade própria do comércio exportador e da
incapacidade do Poder Público e das elites locais de realizarem investimentos,
negando desse modo, a possibilidade de autotransformação inerente a economia
capitalista vigente.
48
1.2 – O papel do Estado e das elites
O grande colapso como denomina Roberto Santos (1980) iniciado com a
queda dos preços da borracha, e aguçado pelo caráter de irreversibilidade
decorrente da profunda transformação na técnica de produção da matéria-prima,
provocou, de fora para dentro, transformações na estrutura comercial vigente na
Amazônia, obrigando as elites locais, tanto a do segmento enriquecido com o
comércio exportador e importador, quanto a tradicional vinculada às atividades
burocráticas e administrativas (políticos, magistrados, intelectuais, profissionais
liberais, militares) a clamarem através de inúmeros discursos políticos contra o
descaso do Poder Central para com os estados do Norte, reivindicando maior
atenção para aquele que era o segundo produto da lista de exportação do país.
Dentre as inúmeras consequências da crise, está a lenta perda do poder
político das elites locais perante o governo federal. A borracha não era mais
exclusividade da Amazônia e sem ter como barganhar, os clamores das elites
solicitando ajuda não passavam de ecos na floresta, para os quais, a União
mostrava-se indiferente. Os discursos em sua maioria, oriundos da Imprensa local
desvenda a crise, a partir da ótica dos dois setores mais afetados pela instabilidade
econômico-financeira: os comerciantes e o poder público estadual. A crise
objetivamente configurava uma dada situação do real. Inserida nessa realidade, as
elites locais passam a construir representações interagindo em suas múltiplas
relações com a sociedade. Reivindicavam, principalmente, uma política econômica
condizente com seus interesses.
A situação de instabilidade econômica fora prevista há tempos atrás. A
preocupação da elite local, que no Amazonas comanda o processo produtivo, com a
economia centralizada em um único produto extraído da floresta era visível nos
discursos encontrados nos jornais e na Revista da ACA (Associação Comercial do
Amazonas). Diversificar, a economia era imprescindível para evitar o colapso
desencadeado pelas sucessivas crises, porém como essa elite era despida de
iniciativa e pouco propensa a investimentos a longo prazo, principalmente porque
ofereciam lucros limitados, a primeira opção para incrementar a economia também
49
estava voltada para a exploração de outros produtos extrativos e depois, somente
depois para a agricultura:
“Repetimos o que tantas vezes temos dito nas colunas desta revista, que
precisamos sair do círculo a que temos circunscrito a nossa atividade desde o
início, há quase meio século, da indústria da borracha, lançando-nos
resolutamente à exploração de outros produtos e ao cultivo dos principais gêneros
de alimentação”95.
A elite local nada fez para evitar a derrocada econômica dos anos
posteriores. A preocupação manifestada não se concretizou através de ações.
Quando o colapso financeiro abateu a Amazônia, as elites dos estados do
Amazonas e Pará buscaram ajuda perante o governo federal, este estava às voltas
com uma dívida externa de £155.500.000, equivalente a 2.448.000 contos96, ao
cambio de 15d, pouco fazendo para solucionar os problemas nortistas, talvez
devido ao histórico econômico da região:
“Afora sua contribuição ao Tesouro Nacional e à balança de pagamentos, o
comércio da Amazônia tinha realmente pequeno impacto sobre os demais setores
econômicos do país. Como fonte de capital, a elite da borracha desempenhava um
papel desprezível, pois investia muito pouco de seus lucros fora da própria região.
Como mercado a Amazônia tinha alguma importância, mas a grande maioria de
seus gêneros alimentícios e produtos manufaturados era produzida localmente, ou
adquirida no exterior e, de todo modo, sua população era demasiado pequena
para que tivesse algum efeito sobre o consumo nacional. Finalmente, o produto do
qual a Amazônia dependia para sua prosperidade tinha de ser vendido quase
totalmente no exterior, uma vez que o setor industrial do Brasil, ainda
engatinhando, necessitava de pouca borracha bruta. Assim, mesmo no auge da
expansão da borracha, a Amazônia ocupava uma posição periférica na economia
nacional”97.
A primeira tentativa do Governo Federal de amenizar a crise foi precedida de
várias reuniões entre o presidente Hermes da Fonseca (1910 - 1914), assessorado
pelos ministros da Agricultura e Fazenda, e os representantes do Pará no
Congresso Nacional, os representantes do Amazonas não participaram, dando
origem a Lei 2.534 - A, sancionada no dia 5 de janeiro de 1912 e regulamentada
segundo o decreto nº 9.521, de 17 de abril de 1912. O Plano de Defesa da Borracha
95 Revista Associação Comercial do Amazonas. Manaus, n 71, 10 de agosto de 1914. 96 LOUREIRO, Antonio. A grande crise. op. cit., p. 99. 97 WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia. op. cit., p. 259.
50
como ficou conhecido englobava sete setores básicos: heveicultura e extração da
borracha, industrialização, imigração, saúde, transportes, produção agrícola
alimentar e pesca98.
Em relação ao setor da heveiculura e extração da borracha, a legislação entre
outros itens estabelecia: - isenção total de impostos e taxas de importação para
máquinas, implementos, utensílios e materiais empregados na cultura da seringueira
e extração da borracha; - prêmios em dinheiro para o plantio de seringueiras; -
isenção total de impostos sobre a exportação de borracha cultivada, pelo período de
25 anos; - instalação de 7 estações experimentais para cultura de seringueiras,
localizadas no Acre, Mato Grosso, Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí e Bahia.
No setor da industrialização, o objetivo consistia em fundar indústrias de
beneficiamento e de artefatos de borracha. A quem se dispusesse a tal
empreendimento era concedido: - prêmios em dinheiro para as duas primeiras
fábricas de beneficiamento de borracha com as instalações previstas para Belém e
Manaus; - isenção total de impostos e taxas de importação para os materiais
requeridos para as referidas fábricas, pelo prazo de 25 anos; - o governo federal
compraria os produtos fabricados por essas fábricas, e as mesmas como eram
consideradas federais teriam isenção de impostos estaduais e municipais pelo prazo
de 25 anos;
A imigração seria fomentada com a finalidade de fixar o imigrante na região,
para isso seria fundamental a construção, por conta da União, de três hospedarias
uma em Belém, outra em Manaus e a última no Acre.
No setor da saúde, a legislação estabelecia tratamento adequado para os
doentes da região, mantendo serviços de vacinação e medicina preventiva,
intencionava também difundir práticas e hábitos de higiene. Para atingir esse
objetivo, o governo federal pretendia construir nove hospitais implantando em suas
adjacências núcleos agrícolas, para suprir o abastecimento e prover de alimentos as
populações vizinhas.
Para facilitar os transportes e reduzir os fretes da região era importante
construir estradas de ferro interligando-as a rede ferroviária federal, e também linhas
98 Os sete setores básicos norteados pelo Plano de Defesa da Borracha foram de forma concisa explicitados conforme: SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia (1800 - 1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980. p. 247 - 250.
51
férreas de penetração para exploração de seringais virgens e desenvolvimento da
agricultura.
No setor da produção alimentar, o plano determinava o arrendamento das
Fazendas Nacionais de São Bento e São Marcos, localizadas no Rio Branco, para
criação de gado e cultura de cereais.
O plano no setor da pesca pretendia promover a instalação de companhias
pesqueiras em Belém e Manaus para captura e industrialização do pescado em
grande escala.
Para coordenar os serviços foi criada a Superintendência da Defesa da
Borracha vinculada ao Ministério da Agricultura. O pessoal que iria trabalhar no
órgão, quando em serviço efetivo no vale amazônico receberia um adicional sobre
os vencimentos, variando de 50% a 80%. O Plano de Defesa da Borracha era
grandioso na teoria, além de priorizar a Amazônia englobava também estados de
outras regiões como Minas Gerais e Bahia, porque deles provinham espécies
insignificantes de gomas como, por exemplo, a mangabeira beneficiada pelo plano.
Requeria um grande volume de capital, no primeiro ano os recursos financeiros
repassados para a Superintendência foram equivalentes a 8.000 contos (£ 538.000),
a preços de 1972 correspondiam a cerca de 32 milhões de cruzeiros, dissociados,
portanto, da realidade do empreendimento. A base central da Superintendência
ficava no Rio de Janeiro e não em Manaus ou Belém como era viável. Possuía
segundo a legislação uma seção distrital localizada nas Fazendas Nacionais do Rio
Branco, atualmente Roraima99.
As poucas notícias sobre o plano indicam que o mesmo falhou em todos os
setores. Era teoricamente audacioso demais, entretanto, na prática não passou de
letra morta tornando-se alvo da imprensa local e nacional por seus sucessivos
escândalos. “O pessoal encarregado da tal Defesa era numeroso. No Amazonas ela
se instalou no Rio Branco, único município que não vive da borracha! Foi, portanto,
negativo o patrocínio do governo federal, na tentativa de debelar a crise da
Amazônia”100, afirma Agnello Bittencourt em um de seus artigos denominados: A
morte do Amazonas e o indiferentismo da União. Álvaro Maia também emitiu sua
99 SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia (1800 - 1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980. p. 250 - 251. 100 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.938, 11 de novembro de 1920.
52
opinião em relação à Defesa da Borracha: “foi uma carniça para engordar os
tubarões e as piranhas da Avenida Central com ordenados fabulosos”101. Com
exceção do plano, foram poucas as tentativas da União em amenizar a crise na
Amazônia.
Em uma dessas tentativas, o Banco do Brasil quase foi à bancarrota ao
comprar o produto e esperar por uma melhoria de preços102. Mais tarde, seus
representantes alegaram que as intervenções passadas no mercado da borracha
haviam dado sérios prejuízos ao governo. Fora isso, muitos foram os apelos das
elites extrativistas tentando desesperadamente resgatar os benefícios de outrora.
No momento de crise, os apelos se materializaram através de inúmeros
discursos políticos elaborados e difundidos por intelectuais com forte conotação de
denúncia ao descaso da União para com os estados da Região Norte do país.
Gramsci nos Cadernos de prisão e especialmente no ensaio sobre os intelectuais
afirma que:
“todo grupo social, ao mesmo tempo em que se constitui sobre a base original da
função essencial que ele assume no campo da produção econômica, cria
organicamente uma ou mais camadas intelectuais que lhe asseguram
homogeneidade e consciência de sua própria função, não somente no setor
econômico, mas também nos setores social e político (...)103.
Os intelectuais como ideólogos das elites locais são no sentido a que alude
Gramsci, agentes da superestrutura, “os intelectuais formam uma camada social
diferenciada, ligada à estrutura – as classes fundamentais no domínio econômico –
e encarregada de elaborar e gerar a superestrutura que dará a essa classe
homogeneidade e direção do bloco histórico104”. O teórico italiano vai mais além:
“os intelectuais são células vivas da sociedade civil e da sociedade política: são
eles que elaboram a ideologia da classe dominante, dando-lhe assim consciência
de seu papel, e a transformam em ‘concepção de mundo’ que impregna todo o
corpo social. No nível de difusão da ideologia, os intelectuais são os encarregados
de animar e gerir a ‘estrutura ideológica’ da classe dominante no seio das
101 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.003, 13 de novembro de 1923. 102 BURNS, E. Bradford. Manaus, 1910: retrato de uma cidade em expansão. op. cit., p. 37. 103 MACCIOCCHI, Maria-Antonietta. A favor de Gramsci. Trad. Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 189. 104 PORTELLI, Hughes. Gramsci e o bloco histórico. Trad. Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 84.
53
organizações da sociedade civil (Igreja, sistema escolar, sindicatos, partidos, etc.)
e de seu material de difusão (mass media)105.
Os intelectuais cuja função era de elaborar e difundir a ideologia das elites
locais possuíam formação universitária. Eram jornalistas, médicos, advogados e
exerciam as funções mais requisitadas na época, praticamente todos eram
funcionários públicos ou jornalistas engajados na política profissional. Muitos
pertenciam ao Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas ingressando nessa
instituição pela projeção social e política que exerciam na sociedade local.
Frequentemente originários de famílias oligárquicas e de grandes comerciantes em
decadência. Seus discursos ideológicos difundidos em prol da coletividade como
afirmavam, pretendiam mascarar a realidade e camuflavam a intencionalidade
desses segmentos sociais privilegiados de recuperar as vantagens econômicas de
outros tempos.
O risco da perda de status106 ocasionado pela instabilidade econômica do
momento impulsionará as elites locais a construírem tais discursos, impondo sua
própria visão de mundo sobre a crise e se apropriando ideologicamente dessa
realidade. Carlos Henrique Escobar (1978) relata que a produção ideológica tem
existência material objetiva, na medida em que toda sociedade e toda ação social
necessitam de uma estrutura de sentido para se reproduzirem. Portanto:
“Nada separa o real e o ideológico, pois todo real é, no nível de práticas,
representação ideológica concernente aos papeis e às classes numa sociedade. A
ideologia não é um absurdo ou uma contingência. Ela é uma manifestação
essencial às praticas sociais. Não existe uma “verdade” através da ideologia, pois
ela é, tal como as ciências – mas de forma radicalmente oposta – uma espécie de
apropriação do real. Apropriação ideológica do real”107.
Os discursos inicialmente nos evidenciam que na luta contra a crise, as elites
não se colocavam como culpadas. Atribuíam, no entanto, os problemas às causas
maiores, quase sem controle, algumas conjunturais. Nos citados artigos, Bittencourt,
em defesa do comércio local, explicava o infortúnio, pelo qual passava o setor:
(...) o comércio vivia do crédito, numa situação aparentemente forte sem contudo
possuir lastro bancário, para as eventualidades da especulação. A imprevidência
105 PORTELLI, Hughes. Gramsci e o bloco histórico. op. cit., p. 84. 106 PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. Trad. Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990. p. 19. 107 ESCOBAR, Carlos Henrique. Ciência da história e ideologia. Rio de Janeiro: Graal, 1978. p. 68.
54
do período em que a borracha mereceu o apelido de ouro negro viria refletir-se
nos dias precários de hoje. Os esbanjamentos, as prodigalidades eram as normas
da época. Mas, daquele ano começo da crise, decresceu a imigração; restringiu-
se o valor da importação e da exportação, fenômenos que se repercutiram nas
rendas públicas. Um princípio de desequilíbrio para todas as classes, pela
inexistência de um fundo de reserva que se houvesse acumulado nos bancos ou
nas arcas do tesouro. Como se dava geralmente em todo o país, as transações
se operavam a crédito de noventa dias, tempo em que se efetuavam as
liquidações de contas e se pagavam os saques estrangeiros. O baixo preço da
borracha não mais podia sustentar essa regalia do comércio. As praças aviadoras
da Europa e América do Norte restringiram suas remessas para a Amazônia
trancando o crédito aos comitentes mais fracos. A crise tornou-se aguda. Os
institutos de crédito evitavam qualquer socorro, pela eminência de perigo que seu
dinheiro, posto em circulação, podia correr, mesmo porque os negócios
revestiram-se de um caráter cada vez mais precário computado na craveira da
desvalorização da goma elástica(...)”108.
Ao se colocaram perante a crise, os comerciantes e os representantes
políticos do Amazonas se retratavam como vítimas do processo, responsabilizando
os arautos da política e administração nacionais pela situação aflitiva, que nesse
momento atravessava a praça comercial de Manaus. Insistia com frequência em
seus artigos Agnello Bittencourt: “não somos culpados dessa anormalidade, que
vem perturbando o Amazonas e para a qual se tenta ainda um remédio, que só os
poderes centrais do país podem dar, pois ele é, em grande parte, responsável pela
situação que nos aflige”109.
A tônica dos discursos reivindicava ajuda da União em retribuição ao alto
valor dos impostos arrecadados no Amazonas durante o apogeu da economia
gumífera:
“(...) no ano em que era proferida esta sentença, o governo federal recebia pela
alfândega de Manaus vinte e sete mil contos de réis cobrados de impostos. Foi o
auge da prosperidade alimentando um comércio que colocava o Amazonas num
dos primeiros lugares da república. Não se procurou nesse momento feliz, dotar o
Estado com uma parte ao menos pequena dos benefícios que ele prodigalizava
aos cofres federais. Milhares de conto, que a borracha proporcionava,
concorreram para embelezar a capital do país e efetuar outros melhoramentos de
que só acharam dignas as regiões do sul. Nada para o Amazonas. Esse
108 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.938, 11 de novembro de 1920. 109 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.937, 10 de novembro de 1920.
55
procedimento incorreto, antipatriótico, foi exprobrado, em memorável conferência
realizada no palácio Monroe, no Rio de Janeiro por ocasião de ser inaugurada ali,
a celebre Defesa da Borracha: “Seria fácil demonstrar que o dinheiro trazido do
extremo norte para o sul do Brasil somente nos últimos onze anos, excede, em
muito, o custo da introdução de todos os imigrantes para os Estados do sul, o
custo do saneamento e embelezamento do Rio de Janeiro, o valor de todas as
estradas de ferro que têm sido construídas no sul do Brasil, à custa da União, e o
custo de todos os melhoramentos materiais, edifícios imponentes e obras de
utilidade pública, que têm sido feitas pelo governo federal, para uso e gozo do
exclusivo beneficiamento do sul do país (...) 110.
Como a União permanecia surda aos clamores de socorro era amiúde
acusada de indiferentismo para com os estados do Norte. O descaso desta em não
auxiliar e nem favorecer em larga escala o comércio da borracha, como fez com o
café de São Paulo forçava o Amazonas a desintegração do todo, do qual fazia parte,
acrescentava Bittencourt111. O deputado Luciano Pereira defensor do separatismo
bradava no Congresso Nacional: “se na Nação Brasileira os benefícios só são para
alguns e os ônus para os outros, é mais justo, é mais moral, é mais decente, quem
acabe com esta União e que cada qual viva como puder, por si e para si”112. O
discurso separatista foi algumas vezes citado, também nas reuniões da ACA tinha
como objetivo forçar a ação da União em prol do comércio local, porém não teve
adesão da maioria, por isso não ganhou força, causando discordância no interior
desse órgão.
Paralelo aos discursos, esses segmentos sociais agiam internamente visando
atenuar a situação instável vigente. A ACA (Associação Comercial do Amazonas)
era composta basicamente pelos proprietários do grande comércio e pelos donos de
seringais. Em sua sede, seus associados se reuniam para deliberar ações contra a
crise do setor, era na realidade um instrumento de representação política do
patronato comercial sobre o governo local. Ângela Castro Gomes, realizando uma
análise em âmbito nacional afirma que o empresariado estaria utilizando outro canal,
que não o partidário para a vinculação de seus interesses junto ao Estado (...), este
110 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.937, 10 de novembro de 1920. 111 Idem. 112 Revista da Associação Comercial do Amazonas, Manaus, n 78, 10 de dezembro de 1914. In: LOUREIRO, Antonio. A grande crise. op. cit., p. 147.
56
era as associações organizativas113. Como nesse momento, os interesses
coincidiam, o governo estadual deveria atuar junto ao governo federal pelos
interesses de seus representantes, os grandes comerciantes locais, uma vez que, o
cenário político nacional era manipulado pela oligarquia cafeeira114.
No âmbito estadual a realidade era outra, nem sempre comerciantes e
governo estavam em comum acordo sobre determinado assunto. Quando as
divergências surgiam cada um lutava com suas próprias armas para defender seus
interesses. O caso a seguir é um exemplo típico dessa situação, onde quinhentos
retalhistas (representantes do comércio a retalho) consideravam-se prejudicados
pelos altos tributos que oneravam a classe, diante disso solicitavam ao governador
do Estado:
“Todos os jornais independentes vêm publicando, desde há dias, uma reclamação
que, nos mais prudentes e respeitosos termos, fora endereçada ao sr. Dr.
Jonathas Pedrosa, governador do Estado, no sentido de ser por este prestado
auxílio ao comércio retalhista, na crise, que o assoberba. Esse documento, como
viu o público, pedia a diminuição da tabela do imposto de indústria e profissão”115.
A autoridade estadual mostrava-se surdo às reclamações, já que nesse
momento difícil, também o Estado não dispunha de recursos monetários e nem de
crédito suficientes para ajudar os pedintes, sendo essencial para a receita à
manutenção dos impostos. Como protesto à indiferença do governador, alguns
comerciantes sugeriam que fosse deliberado o fechamento do comércio. Indícios do
que aconteceria em setembro de 1913.
Assim como não existia uma classe trabalhadora única e homogênea,
também a classe dos comerciantes estava sendo gestada, pois é no processo
cotidiano, evocando o conceito thompsoniano, que a classe irá surgir. No rastro da
abordagem de Edward Thompson, a historiografia do trabalho no Brasil atualmente
tem enveredado o foco na análise das classes para a ação ou o agir dos homens, ou
seja, na capacidade que os atores sociais têm de intervir nos seus próprios
113 CASTRO GOMES, Ângela. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil, 1917 - 1937. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1979. p. 51. 114 AVELINO, Alexandre Nogueira. O patronato amazonense e o mundo do trabalho: a revista da Associação Comercial e as representações acerca do trabalho em Manaus (1908 – 1919). Dissertação de Mestrado: UFAM, 2008. p. 63. 115 Jornal do Comércio, Manaus, n. 3.235, 29 de abril de 1913.
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destinos116. No fazer-se cotidiano os comerciantes agem, interferem, realizam
escolhas, suscitando muitas vezes conflitos e impasses, não só com os
trabalhadores do setor, mas também no interior do próprio segmento comercial e
com os representantes das firmas estrangeiras, com os quais mantinham relações,
na maioria das vezes conflituosas.
As contradições existentes no interior da classe possibilitam a cada facção
lutar de forma diferente por seus interesses. A ACA, representante do grande
comércio, impõe em vários momentos a sua vontade aos demais setores. As
contradições foram perceptíveis na “greve” do fechamento do comércio e no
decorrer da vigência da crise.
Para pressionar o governo federal a ajudar o comércio local ficou acertado o
fechamento do comércio com a adesão das Associações Comercial, Retalhistas,
Empregados do Comércio, Sociedade dos Pilotos do Amazonas, dos Despachantes
e outras corporações, a partir do dia 22 de setembro de 1913. Entre as principais
reivindicações ao poder executivo federal estavam:
“a) Entrar direta ou indiretamente no mercado da borracha acompanhando os
preços até 6$000 réis com a taxa do câmbio a 16, que poderá servir de base às
futuras transações, ou pela forma que julgar mais conveniente aos interesses
desta praça;
b) Intervenção do governo junto ao poder legislativo da Nação, no sentido de ser
beneficiada esta praça com a suspensão dos executivos em geral, enquanto
perdurar o estado aflitivo da quase totalidade do Comércio e do povo;
c) Outras medidas complementares que já foram anteriormente solicitadas pelo
comércio e que serão desenvolvidas em memorial e defendidas pela nossa
representação nas duas câmaras”117.
Temerosos da reação da população, a polícia foi acionada, guarnecendo
principalmente os prédios das empresas estrangeiras. Um aviso circulava
endereçado ao povo citadino, “o povo não deve temer a fome”118. Para isso ficou
acertado que as padarias, mercearias e tavernas, poderiam vender gêneros de
primeira necessidade mesmo com as portas fechadas e somente nas primeiras
116 BATALHA, Cláudio H. M. Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva. In: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia (orgs.). O Brasil republicano. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 196. 117 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.377, 21 de setembro de 1913. 118 Idem.
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horas da manhã. Os hotéis permaneceriam abertos e as farmácias obedeceriam ao
plantão como aos domingos.
O objetivo em comum unia as várias ramificações do setor comercial, porém
as deliberações dos representantes da ACA deveriam ser respeitadas. Como nas
greves não existe consenso total, grupos de indivíduos percorriam as ruas,
verificando se todas as casas comerciais cumpriam o compromisso firmado do
fechamento do comércio. Caso o acordo não fosse respeitado pelos pequenos
comerciantes, os grupos entravam em cena de forma arbitrária “junto ao Mercado,
como dois ou três proprietários de mercearias, conservassem uma das portas de seu
estabelecimento aberta, um desses grupos para ali se dirigiu, obrigando-os a fechá-
las”119.
No decorrer da “greve” observamos o desespero da ACA em tentar alcançar
pelo menos um de seus pleitos. Uma comissão investida de poderes especiais, sob
a denominação de Delegação do Comércio Amazonense era responsável pelas
negociações. O chefe do poder executivo estadual era regularmente informado dos
passos dados pela comissão e mantinha-se a disposição para qualquer auxílio.
A delegação articulava junto com o senado e a bancada do Amazonas, Pará e
Mato Grosso no congresso federal, solicitando apoio para as medidas que deveriam
salvar a praça de Manaus. O apoio de outras bancadas como a do Ceará, visto ser a
cearense a maior colônia existente neste Estado120, do Maranhão e Pernambuco,
também era solicitado nesta hora. Diante do peso econômico e político desses
estados perante a União ficava cada vez mais difícil, o auxílio esperado. O Rio de
janeiro não apoiava o fechamento do comércio e segundo seus correspondentes
essa atitude agravava ainda mais, a situação precária do comércio amazonense.
A demora nas negociações ocasionou divergências de opiniões sobre a
manutenção da “greve” entre os comerciantes, uns pretendiam continuar e outros
desejavam vê-la terminada. As dificuldades de relacionamento entre os
representantes do comércio local e as empresas estrangeiras contribuíram para o
desfecho da greve. Diante de medidas como esta posta em execução pela Manáos
Harbour:
119 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.380, 24 de setembro de 1913. 120 Idem.
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“(...) que a Manáos Harbour está cobrando armazenagem das mercadorias que,
em virtude da “greve”, estão retidas em seus armazéns, vai a delegação do
comércio enviar uma comissão, a fim de harmonizar, com os da classe, os
interesses da companhia”121.
E para evitar maiores prejuízos, o comércio reabriu no dia 27 de setembro, mediante
a sinalização de uma possível ajuda federal. A ajuda não veio aguçando ainda mais,
a crise financeira local.
A divergência na classe era visível conforme a intensidade da crise. Em uma
das reuniões da ACA onde participaram os aviadores e comerciantes, o clima de
animosidade veio a tona quando um dos sócios sugeriu: “suspender as vendas e
exportação de borracha, até que atinja a cotação de três mil réis”122(...). O ano era
1920 e diante da desvalorização do preço da borracha, o Jornal do Comércio pintou
com cores vivas a situação precária das classes conservadoras, salientando que:
“(...) entre nós, o fechamento de casas comerciais é patente, as falências
aumentaram, enquanto o nosso principal produto de exportação se desvaloriza,
mostrando assim o caminho do aniquilamento’123. No mês de novembro daquele
ano, o preço da borracha correspondia a mil e oitocentos réis, por isso, o mesmo
sócio solicitava também (...) a suspensão da importação de mercadorias nacionais e
estrangeiras e a não aceitação das mercadorias que estão para chegar (...)124.
Como resposta, outro associado ressaltou que era impraticável tal proposta,
pois: “(...) Escapara à argúcia do proponente a determinação do tempo de
suspensão da venda da borracha. Esse tempo poderia durar três meses, um ou dois
anos, até que o preço atingisse a três mil réis (...)”125. Referindo-se:
”(...) à suspensão da importação de mercadorias nacionais e estrangeiras e a não
aceitação das mercadorias que estão a chegar, observou que, com a adoção
dessas medidas, os comerciantes ficariam sem mercadorias para aviar os
seringais e estes, sem recursos para minorar a fome, teriam que abandonar os
seringais e nenhum quilo de borracha se produziria. Seria a desorganização
completa da indústria extrativa (...)126.
121 Jornal do Comercio, Manaus, n 3.384, 28 de setembro de 1913. 122 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.936, 9 de novembro de 1920. 123 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.759, 13 de maio de 1920. 124 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.936, 9 de novembro de 1920. 125 Idem. 126 Idem.
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Depois de outras considerações, muitos debates, uma velha proposta era
resgatada, sendo submetida ao exame da casa:
”(...) para o problema da borracha, só havia duas medidas de salvação: a primeira
deveria partir do governo federal, monopolizando as nossas safras, por preços
convenientes se proibindo que qualquer firma exportasse borracha, cabendo a ele.
Unicamente, vender o produto à Alemanha ou a qualquer outro país. A outra
medida, para efeito futuro, seria a montagem de grandes fábricas de artefatos de
borracha (...)”127.
Após a leitura desse documento, demonstrando-se irritado exclamou o
associado responsável pela proposta inicial: “por esse meio já trabalhamos e nada
conseguimos do governo federal. A ação agora deve ser exclusiva nossa.
Precisamos sair do marasmo que nos ameaça”128. Segundo os associados, a
primeira proposta não poderia ser aprovada sem o apoio das principais firmas
aviadoras, a começar pela “mola principal do nosso comércio”, pertencente a J. G
Araújo, afirmava o relator. O comendador Joaquim Gonçalves de Araujo enfatizava:
“(...) que, se toda a borracha que recebe fosse de sua exclusiva propriedade
estaria pronto a acompanhar o gesto dos que exigem como medida de salvação a
suspensão da venda do produto. Mas, acontece que a maior parte vem à
consignação e os consignatários remetem o produto com as respectivas ordens,
não podendo, por isso, reter a borracha alheia (...)”129.
Diante das propostas expostas, os aviadores não chegaram a um consenso.
Um dos sócios propôs a criação de um bloco dos principais comerciantes, com o fim
de levantar capital e amparar a borracha. Exclamou imediatamente outro associado:
“Essa exceção é ridícula. Os pequenos comerciantes nada valem?” Em defesa deles
outro respondeu: “(...) Grandes e pequenos comerciantes são hoje a mesma coisa,
em face da miséria que se alastra. E é preciso notar que quanto maior é a nau maior
é a tormenta (...)”130.
Serenada a discussão, a proposta inicial foi colocada em votação, sendo a
mesma rejeitada. Diante disso, seu autor expressou sua revolta “responsabilizando
os aviadores pela miséria que reina no Estado”131, chegando a declarar “que o
127 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.936, 9 de novembro de 1920. 128 Idem. 129 Idem. 130 Idem. 131 Idem.
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aviador sempre foi o parasita do seringueiro”132. Essa declaração foi arrematada
com este aporte: “não somos parasitas! Parasitas são os que vivem à nossa custa
no interior! ”133.
Diante da exposição fica evidente a complexidade das relações e a
dificuldade de conciliar interesses no interior da ACA. Durante todo o período
estudado nenhuma medida radical foi tomada por seus integrantes, que
intencionasse realmente resolver a situação instável. Nenhuma ação exclusiva foi
deliberada, apesar das inúmeras considerações, as divergências emergiam
impossibilitando ajustes ou concessões, interesses de cada firma eram sempre
sobrepostos ao coletivo. Não havia, portanto, unidade, a única alternativa possível
que agradava a todos era a ajuda oriunda do Poder Central. Até 1920, tal ajuda
ainda era esperada, mas não havia muita expectativa em relação a isso. Cada firma
sobrevivia de acordo com seus próprios recursos. Aquelas que diversificaram seus
investimentos para outras áreas resistiram, muitas faliram.
Quando a situação calamitosa da praça de Manaus começou a afetar
diretamente a situação econômica do país, foi organizada uma Comissão Mista de
Senadores e Deputados Federais para melhor estudar as suas causas. O Dr. Eloy
de Souza ficou encarregado de elaborar um parecer, trazendo a tona fatos, até
então, desconhecidos pelo público. O relatório emitido pelo deputado revelava que
até 1912, o governo federal e os estados do Amazonas e Pará “limitaram a sua ação
à cômoda atitude de associados do produtor”, usufruindo lucros maiores do que a
situação permitia134.
A situação de salubridade da Amazônia era pertinente ao relatório. A batalha
da borracha resultava em “milhares de mortos”, citava o deputado. Acometidos
principalmente pelo impaludismo, na sua forma mais grave, de febre
hemoglubinúrica, “parecendo que naquela zona o parasita da malária adquiriu
resistência tal, que as infecções só cedem com doses de quinino, que estão no limite
da dose manejável”135. Outras doenças também vitimavam os seringueiros e a
132 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.936, 9 de novembro de 1920. 133 Idem. 134 Revista da Associação Comercial do Amazonas, Manaus, n 67, 10 de janeiro de 1914. In: LOUREIRO, Antonio. A grande crise. op. cit., p. 136. 135 Idem.
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população interiorana, como as feridas bravas, as epidemias de varíola, as formas
malignas de disenteria, a lepra e o beribéri:
“Nunca, em parte alguma do globo, houve exemplo de tamanho sacrifício, nem
indústria alguma custou jamais, em País de civilização ocidental, um tão crescido
número de vidas, pelo abandono criminoso dos governos, desapercebidos como
estamos de que ali se perde o mais valioso capital da nação”136.
As companhias exploradoras de borracha situadas no Oriente se
preocupavam mais com a saúde de seus trabalhadores, do que os brasileiros com
seus compatriotas, deixados desamparados no interior da floresta amazônica,
continuava o relatório:
“O cuidado que não temos, têm os ingleses dando assistência médica e aos sãos
acudindo com a profilaxia. No Ceilão, embora haja grande número de hospitais
distritais, há nas sedes das plantações farmácias, médicos, e até, em algumas,
enfermarias para tratamento dos casos mais graves”137.
Citando o relatório de Osvaldo Cruz transcrevia:
“Os seringueiros cujos trabalhos não foram suficientes para obter saldo, ficam na
impossibilidade de recorrer ao médico e obter medicamentos. Entretanto são
doentes em estado grave, muitos em eminência de morte, na mais precária
condição, fatalmente condenados ao aniquilamento total se não forem
submetidos a tratamento específico regular”138.
A situação social do seringueiro era objeto de estudo do parlamentar. “O
seringueiro vive sob a mais rigorosa servidão”, acrescentava:
“Na hora do seu recrutamento, no Nordeste, informavam-lhe de que seria um
associado do patrão, sem “nenhuma submissão ou dependência, a não ser a dos
mesmos interesses”, sendo-lhe logo concedido um crédito para ajudar as
despesas de transporte e “consolar a família que ficava”. A sua viagem fazia-se
em vapores do Lóide e em gaiolas. “A aglomeração de passageiros de 3ª classe,
amontoados no convés, sem o menor abrigo, submetidos a um regime alimentar
escasso e nocivo, pela sua péssima qualidade, contribuía para que o homem
válido, antes de findar a viagem, tivesse perdido a saúde, sucedendo, não raro,
que muitos deles viessem a falecer ainda em caminho. Os que chegavam ao
destino recebiam uma certa porção de gêneros, calculados pela safra, e mais os
136 Revista da Associação Comercial do Amazonas, Manaus, n 67, 10 de janeiro de 1914. In: LOUREIRO, Antonio. A grande crise. op. cit., p. 136. 137 Idem, p. 136. 138 Idem, p. 137.
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utensílios necessários à sangria das árvores, coleta do leite e preparo da
borracha. O crédito, agora mais agravado, prendia parte deles”139.
O seringueiro iniciava sua jornada pela madrugada ao percorrer as estradas
onde ficavam localizadas as seringueiras. Com o percurso diário de quilômetros e
com pouco repouso, estendendo-se pela noite adentro na defumação do látex. Seu
trabalho era regido pela intenção de pagar os suprimentos fornecidos pelo patrão e
“pelo desejo de acumular um saldo que lhes assegurasse a subsistência entre as
safras e permitisse a remessa de algum dinheiro à família”140. Para saldar os
compromissos só contava com um único produto, a borracha.
Prosseguia o relator abordando a margem de lucro dos seringalistas, os
donos dos seringais, sobre a borracha e especialmente sobre a venda de
mercadorias a preços exorbitantes aos seringueiros. A causa principal dos altos
preços eram os fretes, para frear o fenômeno, a agricultura deveria ser
desenvolvida, com a plantação dos cinco produtos de maior consumo: o arroz, o
feijão, o milho, o açúcar e a farinha. Afirmava que a indústria da borracha deveria
ser amparada pela nação, pois sua alta qualidade em relação a do Oriente
possibilitava a concorrência. Para isso era necessário apenas a racionalização das
plantações. Caso não houvesse apoio, a ruína chegaria no prazo de 3 a 5 anos,
como consequência do despovoamento da Amazônia141.
Souza concluía criticando duramente o posicionamento e a inércia dos
governos estaduais, envolvidos, sobretudo, nas lutas partidárias e “nada tinham feito
pela indústria” da borracha. A orgia administrativa tinha marcado visivelmente os
vinte anos de vida republicana no norte do Brasil. Era, na opinião do deputado norte-
rio-grandense, essencial para superar a crise, diminuir o custo da produção e reduzir
os impostos de exportação. Finalizava reforçando a intervenção federal na
Amazônia, para evitar pior sorte a sua gente diante das administrações estaduais
despreparadas142.
O relatório alcançou pelo menos um objetivo, o posicionamento favorável de
parte da imprensa do Sul a uma melhor proteção à Amazônia. No Rio de Janeiro, o
139 Revista da Associação Comercial do Amazonas, Manaus, n 67, 10 de janeiro de 1914. In: LOUREIRO, Antonio. A grande crise. op. cit., p. 137 - 138. 140 Idem, p. 138. 141 Idem, p. 142. 142 LOUREIRO. Antonio. A grande crise. op. cit., p. 144.
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jornal do comércio, de julho de 1914, publicava o artigo “Aberrações econômicas”143
assinado pelo articulista Mário Pinto Serva. O Brasil, segundo o artigo, impunha a
Amazônia o mesmo pacto colonial dado às Américas. Por um século nada se tinha
feito pela região, que permanecia “despovoada, erma, inculta, desolada, esplêndido
deserto, despojo ótimo a despertar a cúpida ambição de outras raças”. Os produtos
necessários a sua subsistência era importado do estrangeiro e dos estados, à região
era imposto um regime aduaneiro multiplicador dos preços das mercadorias (...)144.
De resto nada evitaria a derrocada da economia gumífera dos anos posteriores.
Sabemos que as crises são fenômenos sociais que afetam a vida de um
povo, reduzindo-o em certas ocasiões a uma situação de penúria. O quadro de
instabilidade econômica e social é agravado ainda mais com a conflagração da
guerra européia. O reflexo da Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918) no Amazonas
se manifestou de várias maneiras, ora provocando as tremendas oscilações
cambiais, que como consequência trouxe o encarecimento da vida, ora dificultando a
obtenção, no estrangeiro de gêneros de cujo consumo, o Brasil não podia prescindir.
A falta de transportes cada vez mais intensificada, pelas contínuas
requisições das autoridades inglesas de seus navios, utilizados na guerra contra a
Alemanha dificultavam, o serviço de condução de cargas aos portos brasileiros e
posteriormente, aos estados, causando demora e uma série de prejuízos ao
comércio e ao povo, que pagava mais caro para obter produtos essenciais à sua
sobrevivência.
O momento beligerante aumentava ainda as tensões internas, pois tratava de
isolar Manaus do contato com o restante do país ao suspender, os três ou quarto
navios do Lloyd Brasileiro que aportavam mensalmente na cidade145. Sem meios de
transporte para dar saída aos gêneros de exportação, os estoques de borracha e
castanha se avolumavam cada vez mais. Em 1919, o porto de Manaus não registrou
a entrada de nenhum barco estrangeiro, tendo de remeter sua produção para Belém
e de lá a embarcavam para o exterior. A esse respeito os jornais indicam uma
situação econômico-financeira cada vez mais precária. Onde os telegramas com
promessas falazes tentavam amenizar a situação. O comércio e o governo estadual,
143 Revista da Associação Comercial do Amazonas, Manaus, n 74, 10 de agosto de 1914. In: LOUREIRO, Antonio. A grande crise. op. cit., p. 144. 144 Idem. 145 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.747, 17 de julho de 1917.
65
congregados em busca de uma solução apelavam novamente para o Poder Central,
e este por sua vez não emitia respostas animadoras. O Pará acusado de tentar
prejudicar o comércio amazonense, por afastar a navegação do porto de Manaus,
era alvo preferencial da fúria dos discursos:
“Com este estado de coisas fica patente o pouco caso dos poderes da União para
com o Amazonas, terra abandonada pelos que poderiam no sul auxiliá-lo, evitar a
sua queda, dia a dia, cada vez maior. E, enquanto vai o Estado perdendo a sua
força, com o enfraquecimento do comércio, em face de muitas causas que têm
ocasionado a sua decadência, o Pará vai tirando grande proveito, um lucro
estupendo, à custa dos nossos sacrifícios, porque está sendo servido por navios
ingleses, nacionais e norte-americanos, isto é, tem a praça de Belém, à sua
disposição, os paquetes do Lloyd que vão a Nova York, os navios ingleses que
trafegam para Europa, e duas novas linhas yankees, que acabem de iniciar o
tráfego, uma de Pernambuco a Nova York, com escalas por Belém e Barbados e
outra diretamente de Belém a Nova York. (...) Como se vê, a situação é esta: tudo
para o Pará, nada para o Amazonas. Vamos de mal a pior: estamos aqui, estamos
reduzidos a porto de lenha, se os poderes estaduais não tomarem a peito o
caso”146.
Quase sempre, porém a imprevidência dos dias de prosperidade, não
consegue prever a aproximação do mal, que é tantas vezes consequência do abuso
do crédito comercial, como no caso amazônico. O êxodo de grandes capitais afetou
bastante o comércio, e as casas melhores aparelhadas sentiram dificuldades para
enfrentar a crise. Nesta hora, os dirigentes do Estado podiam implantar medidas
para atenuar a situação. Com as rendas em declínio progressivo, o chefe do poder
executivo estadual resolveu aumentar e criar novos impostos, como o de consumo
instituído desde 1915. Os reclames do comércio soavam fortes contra o governo:
“Como, pois aumentar-lhes os encargos pecuniários, quando é certo que lhes
diminuíram os proventos? É preciso atender a um fato muito importante: o
movimento comercial de há quatro anos, não é o de hoje. Muita gente deixou o
Estado... Sim, o movimento comercial sentiu-se, sobre tudo depois da retirada das
forças federais de Manaus, da extinção da Escola de Aprendizes Marinheiros, da
extinção da Região Militar e também da retirada de milhares de pessoas que aqui
viviam, levando seus capitais. São forças econômicas que desapareceram e que
não deixaram de afetar a classe que mais paga impostos: a comercial. Ora,
diminuindo esse movimento, justa é a redução dos referidos impostos”147.
146 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.728, 28 de junho de 1917. 147 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.523, 27 de novembro de 1916.
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Os setores envolvidos abriam espaços para negociações e mediações
complexas, onde cada um defendia seus interesses. As expectativas em comum era
a ajuda proveniente do Poder Central, que por muito tempo foi solicitada e esperada.
A retirada de entidades federais do território amazonense expressava visivelmente,
a intenção da União em não fornecer auxílio à região. Na política econômica
nacional, os interesses cafeeiros estavam no cume da lista de prioridades.
Historicamente, em tempos de crise o Estado nacional desempenha um papel
fundamental nesse processo: diminuindo os impostos, realizando concessões,
reduzindo despesas e criando obras públicas com a finalidade de gerar trabalho e
emprego. No Amazonas, a crise econômica desencadeou sucessivas crises
políticas, principalmente, porque o Poder Central deixava que a política local fosse
conduzida por grupos oligárquicos interessados apenas em manipular o poder para
defender seus interesses particulares, muitas vezes associados à comercialização e
a exportação da borracha e outros produtos extrativos148. Parte de seu quadro
político era composto por representantes da ACA.
Os erros e desmandos de governos corruptos, que se digladiavam pelo
controle do poder político local acentuaram o momento de instabilidade econômica,
visto que não desenvolveram nenhuma alternativa para a superação da crise. A
desordem financeira de longa data tornou-se caótica, sem recursos monetários para
custear a máquina administrativa e a manutenção dos serviços essenciais ao bem-
estar da coletividade, o poder público exerceu um papel as “avessas” sendo às
vezes paradoxal como nos casos a seguir:
”a redução das despesas públicas é outra medida que se impõe, sem necessidade
dos grandes cortes que se têm feito na remuneração dos servidores do Estado.
Não existe razão plausível para que, por um mesmo motivo, se reduzam os parcos
vencimentos destes e, ao mesmo tempo, se aumentem os impostos”149.
Na realidade, a elite política local em sintonia com a ACA, apesar dos
esforços empreendidos não conseguiram consolidar uma política de defesa da
borracha150. Muitas foram as tentativas de inibir o refluxo da crise no decorrer da
década de 1910 a 1920, nenhuma deu resultado positivo. Nos momentos mais
148 SANTOS, Eloína Monteiro dos. op. cit., p. 29 - 33. 149 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.523, 27 de novembro de 1916. 150 PRADO, Maria Lígia. CAPELATO, Maria Helena. op. cit., p. 307.
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críticos, o governo federal implementou medidas paliativas visando apenas minorar
a situação e não resolvê-la definitivamente.
Algumas ocorreram tarde demais, como, por exemplo, a redução de dez por
cento no imposto sobre a exportação de borracha. O feito mediado pelo governador
Alcântara Bacellar junto ao governo federal ocorreu somente em 1918. Tamanha
demora só acentuou o quadro incerto da economia estadual, reforçando a notória
idéia de que a União só queria cobrar os impostos referentes à borracha, nada
fazendo para viabilizar sua valorização.
Durante a Primeira Grande Guerra, a valorização do principal produto de
exportação da Amazônia foi ficando cada vez mais distante. Assim, a crise persistia
cada vez mais acentuada. Sem compradores, os estoques de borracha aumentavam
nos armazéns e alvarengas, ocasionando o êxodo da população interiorana do
Amazonas e do Acre para Manaus ou a outros lugares. Os extratores de borracha
resolveram abandonar os seringais em bandos turbulentos a depredarem e a
destruírem as propriedades particulares por onde passavam151. A falta de trabalho
nos seringais e a fome originaram um quadro desolador. A miséria era tamanha que
em vários seringais, os sacos que envolviam os paneiros de farinha d’água, eram
disputados para serem utilizados como roupa dos flagelados152. O êxodo iniciado em
1921 era assim relatado por uma testemunha:
“Grandes parte dos seringais suspendeu os seus serviços, em virtude da
desvalorização da borracha deixando ao céu da sorte centenas de infelizes, que
hoje tateiam, como espectros humanos, através das margens do rio com o fim de
implorar alimentos e passagens aos comandantes e passageiros das
embarcações que singram as artérias fluviais”153.
Quanto aos seringalistas estavam sujeitos à mesma contingência, envolvidos
pela névoa do momento não sabiam o caminho a seguir:
“O preço da borracha não chega para as despesas com o serviço de extração e
direitos de transporte. O comerciante da Amazônia, não menos prejudicados,
fechou-lhes as portas, deixando de fazer os indispensáveis aviamentos. É claro
151 Mensagem do Governador do Estado do Amazonas, Sr. Cesar do Rego Monteiro, 14 de julho de 1923. p. 16 - 17. 152 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.462, 22 de abril de 1922. 153 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.084, 6 de abril de 1921.
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que, sem mercadorias, sem gêneros alimentícios, nenhum seringal poderá manter
pessoal no serviço”154.
Alguns passaram a se dedicar à agricultura, mas a maior parte permanecia
estagnada, indecisa, na expectativa de que a borracha ainda voltasse a ser cotada
no mercado europeu.
Com a saída de grupos humanos do Amazonas, algumas medidas atinentes à
solução do fenômeno apareceram com a finalidade de reter o despovoamento do
solo, “(...) o que o governo devia fazer era desapropriar seringais, dividi-los em lotes
e entregar essas terras aos seringueiros que necessitam de localizar as suas
famílias e estão dispostos a cultivar a agricultura, único problema de salvação
pública”155. Mas como as ideias necessitam de ação e as elites locais, entre os quais
aparecem, os donos de seringais, não eram propensas a investimentos a longo
prazo, que em troca retribuía-lhes poucos lucros, esta como outras ideias não se
concretizaram.
A fórmula mais prática, segundo o governo, seria a localização das vítimas
em núcleos coloniais. Como a situação financeira do Estado não permitia uma obra
de tamanho vulto, as autoridades constituídas aproveitaram a situação de penúria do
interior para solicitarem auxílio imediato da União. O governo federal realizava
grandes obras contra as secas no Nordeste, por isso São Paulo já não era mais
citado, o referencial nesse momento era o Nordeste:
“ (...) Venha o governo federal em nosso auxílio à semelhança do que tem feito
com os nossos irmãos do nordeste. Se não se torna possível, de pronto a
valorização da borracha, ao menos favoreça-nos com um bom serviço de
colonização, localizando e aproveitando, na agricultura, as grandes levas de
famintos que andam sem trabalho no interior do estado”156.
O Presidente da República nada fez para evitar o êxodo dos sem trabalho, ao
contrário disponibilizou passagens nas companhias de navegação autorizadas, para
aqueles que quisessem emigrar para os estados do Nordeste. Ao governador Rego
Monteiro coube apenas: “limitei-me a assistir, imponente para impedi-los, aos
embarques quase diários de levas de famílias e trabalhadores que se dirigiam,
154 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.084, 6 de abril de 1921. 155 Idem. 156 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.104, 26 de abril de 1921.
69
apressados e alviçareiros, para os pontos em que supunham encontrar a
salvação”157.
A desvalorização do produto proveniente da superprodução mundial atingiu
níveis críticos em 1922. Nessa época, a Inglaterra preocupada com o mais
importante produto de suas colônias no Oriente, a borracha, aprovou o Plano
Stevenson com a intenção de reduzir os excessos de stocks existentes e a
regularizar os fornecimentos futuros, no intuito de estabelecer um equilíbrio entre a
oferta e a procura.
O Plano diminuiu os grandes estoques mundiais possibilitando que o preço da
borracha subisse a partir de 1924. O surpreendente crescimento do consumo
industrial, não passou de um jogo especulativo entre duas grandes potências
financeiras, uma detentora da hegemonia de produção e outra da hegemonia do
consumo, a Inglaterra e os Estados Unidos. Enquanto o jogo durou a produção
amazônica renasceu, trazendo para a região uma nova injeção de ânimo até 1926.
Nesse ínterim, com a valorização da borracha levas de migrantes nordestinos
foram trazidos para a Amazônia. O ministro da Agricultura, Dr. Miguel Calmont,
atendendo um pedido da ACA ordenou o fornecimento de passagens nos navios do
Lloyd Brasileiro, para aqueles que desejassem regressar para a extração da
borracha158.
O plano deixou de repercutir de forma favorável pela falta de apoio das
colônias holandesas e pelas manobras dos americanos, interessados em formar
novos seringais em áreas periféricas, como a Fordlandia, na Amazônia. A Grande
Depressão de 1929 ocasionou a queda dos preços que atingiram o insignificante
valor de 1$150 réis o quilo, em agosto e setembro de 1931159.
Em 1930, o preço irrisório valia menos que o valor do transporte para a
borracha de qualidade inferior:
“O que se produz hoje não dá para cobrir os gastos da produção, acontecendo
que, em alguns casos as despesas de transporte excedem ao preço por que está
sendo vendido o gênero, atualmente na praça de Manaus. Daí o fato de evitarem
157 Mensagem do Governador do Estado do Amazonas, Sr. Cesar do Rego Monteiro, 14 de julho de 1923. p. 22 - 23. 158 UCHÔA, Samuel. Dois anos de saneamento: 1923. op. cit., p. 8. 159 LOUREIRO, Antonio. Tempos de esperança. op. cit., p. 9.
70
as embarcações carregar o sernambi e o caucho abandonados pelo interior,
porque o seu valor é inferior aos gastos do transporte”160.
Paralelo a isso, a partir da década de 1930 crescia em território nacional a
indústria de artefatos de borracha, nova fonte consumidora, que vinculava a
Amazônia ao Centro-Sul. Favorecendo no Amazonas, o aparecimento de uma
indústria de lavagem ou crepe e anexando pela primeira vez a região ao contexto
econômico brasileiro, a qual nunca estivera integrada161.
O aparecimento da borracha sintética colocou um ponto final na exportação
do produto amazônico, forçando os dirigentes políticos e as elites locais a buscarem
outras soluções para viabilizar economicamente o Estado.
Crise muitas vezes está associada à decadência. Como enfatizamos a crise
foi do principal produto de exportação da Amazônia, ou seja, da borracha que entrou
realmente em decadência, possibilitando a descentralização da economia, até então,
baseada na extração desse produto. Sendo a crise, portanto, profícua para a região,
pois obrigou a mesma a direcionar suas atividades para outros produtos. Os
extrativos continuavam liderando a lista e apareciam como sendo únicos fatores
econômicos da riqueza do Estado: a castanha, o guaraná, as madeiras, o cacau, o
pirarucu, a piaçaba, o óleo de copaíba e os couros de animais silvestre162.
O Interventor Federal, Alfredo Sá, na mensagem de 1925 afirmava que até o
referido ano, a agricultura permanecia em abandono no Amazonas, pouco ou quase
nada produzindo, mesmo para suas necessidades internas. Desprezando o
exemplo do Pará que em 1918 estava entre os dez maiores produtores do Brasil de
milho, feijão e arroz, como produtor de farinha de mandioca ocupava a quarta
posição163.
Em Manaus, a indústria permanecia quase em completa inércia, os
empresários particulares acreditavam que o exemplo caberia ao poder público e este
aos empresários particulares:
“O governo ainda não compreendeu que a vitória das grandes ideias ou dos
planos de caráter econômico e financeiro depende exclusivamente da iniciativa do
160 Jornal do comércio, Manaus, n 9.026, 25 de maio de 1930. 161 LOUREIRO, Antonio. Tempos de esperança. op. cit., p. 10. 162 REIS, Arthur C. Ferreira. O processo histórico da economia amazonense. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. p. 93. 163 WEINSTEIN, Barbara. op. cit. p. 248.
71
poder público que, dando o exemplo, abre caminho à introdução de outros
empreendimentos da caráter particular”164.
Algumas iniciativas foram consolidadas, como a instalação em 1912, no Plano
Inclinado, bairro industrial de Manaus, da Fábrica de Cerveja Amazonense de
propriedade da Firma Miranda Corrêa e Companhia, também proprietária da Fábrica
de Gelo. Em 1919, um jornal informa a inauguração de uma usina de pilar arroz165, a
indústria de Charque no Amazonas aparece em 1928166. A Fábrica Brasil-Hevea de
J. G. Araújo fundada há tempos na cidade iniciou apenas lavando a borracha, com o
tempo passou a produzir borracha crepe, saltos e válvulas e em 1930 principiou o
preparo de tapetes, passadeiras e chinelos a cores, empregando a borracha
vulcanizada167.
A borracha natural não desapareceu da lista de exportação completamente,
sua supressão foi acontecendo de forma gradual. Em relação ao comércio, em 1923
o setor parecia já está superando a crise: “vencendo grandes tropeços, o comércio
exulta com a melhoria que socorre e salva o Amazonas e trabalha ativamente. Já
me referi, antes das condições d’agora, à resistência assombrosa do comércio à
crise”168. O comércio em escala menor continuou abastecendo o interior como faz
até nos dias atuais.
O mundo do trabalho não afetado pela crise continuou caminhando. Em 1914,
o governo isentava de impostos estaduais uma fábrica de curtumes de couros e
outra, de beneficiamento de cereais que solicitavam instalação nesta capital169. O
mesmo aconteceu em 1918, quando os Srs. Menezes e Rocha fundaram uma
fábrica de brinquedos170. Um dos recursos utilizados com resultados positivos pelo
Estado para atrair novos investimentos foi a isenção de impostos:
“Vai de vento em popa a indústria de beneficiamento de óleos e essências vegetais,
criada recentemente aqui é indústria de grande futuro, se atendermos a reserva
formidável que possuímos de matéria-prima e ao consumo formidável, que hoje se
registra, dos produtos em questão. Chega-nos agora a notícia da inauguração, de uma
usina de beneficiamento de essências e de óleos, a segunda instalada pela Empresa
164 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.160, 8 de setembro de 1918. 165 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.403, 19 de maio de 1919. 166 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.335, 28 de fevereiro de 1928. 167 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.928, 1 de fevereiro de 1930. 168 UCHÔA, Samuel. op. cit. p. 10. 169 Leis, Decretos e Regulamentos, Tomo XVII, ano de 1914. 170 Leis, Decretos e Regulamentos, ano de 1918.
72
Industrial e Agrícola Limitada, (...). (...) Ainda ontem o secretário geral do Estado,
recebendo a participação da inauguração do mencionado estabelecimento e o pedido
de isenção de impostos baseado nos termos do contrato firmado com o Estado, (...)”171.
Na tentativa de ajudar algumas fábricas em situação aflitiva, como as de
aguardente e bebidas alcoólicas, o representante do poder executivo estadual,
isentava as mesmas de alguns impostos, visto que, estas empresas concorriam para
os cofres públicos com grandes quantias oriundas de outros impostos, a que
estavam sujeitas. Como observamos a seguir:
“Decreto nº 1.100 de 7 de janeiro de 1915.
Isenta do imposto de consumo os produtos alcoólicos fabricados no Estado do
Amazonas e já existente no mercado.
(...)
Considerando que as indústrias de aguardente e bebidas alcoólicas no Estado, tem tido
vida efêmera por não as socorrerem os poderes públicos do Amazonas, onde o braço
operário é caríssimo; e mais,
Considerando que as que atualmente existem, lisongeiramente iniciadas, se encontram
em desesperada situação, asfixiadas quase pela crise econômico-financeira que nos
assoberba; finalmente,
Considerando que está iminente o desaparecimento delas (que concorrem para os
cofres públicos com grandes quantias provenientes de outros impostos a que estão
sujeitas) se a proteção do Estado não lhes vier em auxílio; e
(...)
Decreta:
Ficam isentas do imposto de consumo (...)”172.
No percurso da crise algumas medidas tardias foram expedidas pelo
governo estadual com o fim de incentivar a plantação racional de seringueiras. A lei
nº 832 de 9 de outubro de 1915 concedia: “(...) anualmente diversos prêmios a
pessoa ou empresa que plantar e organizar um seringal, ou um castanhal, ou um
cacaual, ou um coqueiral (...)”173. Para receber o prêmio em dinheiro, a lei exigia
“haver plantado, no mínimo, cinco mil pés de uma das espécies acima referidas”. A
iniciativa árdua deveria ser totalmente particular sem ajuda do poder público, talvez
por isso não se tenha notícia da conquista dos prêmios.
171 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.380, 19 de abril de 1928. 172 Revista da Associação Comercial do Amazonas, n 79, 10 de janeiro de 1915. 173 Leis, Decretos e Regulamentos do Estado do Amazonas. Tomo XVIII. 1915.
73
Com o passar do tempo “Campos Experimentais”, local onde o governo do
Estado passou a realizar plantações de seringueiras, começaram a surgir ao longo
das estradas de penetração nos arredores de Manaus. Está iniciativa era na
realidade uma forma de realizar propaganda de um solo visto como promissor, onde
segundo as elites, a borracha florescia em qualidade superior a oriental. Uma vez
vingada a plantação passaria as mãos de particulares, “porque neste assunto o
interesse público deve limitar-se somente à propaganda, sem objetivos industriais
maiores”174. O outro centro de propaganda da cultura da hevea foi o Seringal Miry,
de propriedade da Associação Comercial do Amazonas. Tais iniciativas não
conseguiram prosperar, pois tanto, o poder público estadual quanto a ACA não
estavam dispostos a consolidar empreendimentos deste porte.
Outra lei decretada nesse período e sancionada pelo governador do Estado
Alcântara Bacellar foi a de nº 963 de 4 de setembro de 1918, proibindo a saída do
território nacional de sementes de hevea:
É expressamente proibida a exportação de sementes de hevea, em todas as suas
espécies botânicas e bem assim sementes ou mudas de vegetais de ouricury,
inajás, tucumã e todas as palmeiras da mesma natureza ou que se prestarem á
defumação da borracha, bem assim sementes de guaraná, sob pena de multa de
dez contos de réis (10.000$000), que será cobrada mediante ação executiva175.
Devido ao descaso do governo e a imensidão do território dificilmente essa lei, se
sancionada em tempos anteriores evitaria o envio clandestino de sementes de
hevea por Henry Wickman, em 1876. As sementes foram remetidas ao Jardim
Botânico de Kew, na Inglaterra, onde muitas brotaram nos viveiros, sendo
transportadas para o Ceilão e depois para outras colônias inglesas no Oriente.
Com a crise da borracha, as elites locais desenvolveram projetos políticos e
planos econômicos para valorizar e vender o produto, inclusive, procurando outros
centros comerciais. Como forma de externar as riquezas da Amazônia, a
propaganda através do cinema foi um meio de divulgação de seus interesses. O
chefe do poder executivo estadual propôs a “organização de um vantajoso serviço
que compreenda a exposição permanente dos produtos do Estado e indústrias
174 Mensagem do Governador do Estado do Amazonas, Sr. Ephigenio Ferreira de Salles, 14 de julho de 1928. p. 112. 175 Leis, Decretos e Regulamentos do Estado do Amazonas, 1918.
74
anexas e sua propaganda no país e no estrangeiro, por todos os meios de sucesso,
inclusive a cinematografia...”176.
Silvino Santos e Agesilau de Araújo com o patrocínio da firma J. G. Araújo
documentaram em vários filmes as potencialidades dos produtos extrativos e as
possibilidades econômicas da região. No paiz das Amazonas, filme de 1922,
propunham a implantação racional da pecuária nos campos das ex-fazendas
nacionais do Rio Branco, localizadas nos dias de hoje em Roraima177.
Algumas revistas também foram lançadas com o intuito de realizar a
propaganda do Amazonas no Brasil e no estrangeiro. A Revista Redenção em sua
primeira fase (1924 - 1927) surgiu dessa iniciativa. Seu subtítulo era: Resenha
Mensal de Propaganda do Estado do Amazonas, complementando-se como: Revista
Política, Literária, Econômica, Social e Comercial. Seu primeiro número foi lançado
em novembro de 1924 e em suas páginas transitavam intelectuais como: Álvaro
Maia, Paulo Eleutherio, Péricles Moraes, João Leda, Joaquim Gondim, Aurélio
Pinheiro, Araújo Lima, Adriano Jorge, Leopoldo Peres, Cosme Ferreira Filho,
Raymundo Nonato Pinheiro, em sua maioria membros do Instituto Geográfico e
Histórico do Amazonas e da Academia Amazonense de Letras.
Redenção surgia também, como um dos instrumentos do discurso regionalista
desenvolvido e difundido pelas elites locais nesse período. No primeiro momento,
esse regionalismo assumia uma face romântica, onde o índio, o caboclo, a
abundância de recursos naturais existentes na grande floresta, assim como, o amor
do povo à sua terra eram exaltados e serviam para consolidar a construção de uma
identidade coletiva que enfatizava a igualdade entre as classes, destacando os seus
valores comuns e a tradicional relação de solidariedade existente entre as mesmas.
No segundo momento, o regionalismo expressava a sua face política, denunciando a
indiferença e o descaso do governo federal para com a região Norte do país: “A
união tem preconceito com o norte, e a ACA, que esse tempo todo propôs soluções
vem sendo ignorada pela União”178. A elite econômica local usava esse discurso
como forma de pressionar as autoridades estaduais, objetivando, principalmente,
barganhar e garantir benefícios financeiros, mas também, tentava com essa
176 Revista da Associação Comercial do Amazonas, n 118, março de 1919. In: COSTA, Selda Vale da. Eldorado das ilusões. op. cit., p. 116. 177 COSTA, Selda Vale da. Eldorado das ilusões. op. cit., p. 116 - 117. 178 Revista da Associação Comercial do Amazonas. Manaus, n 101, 10 de novembro de 1916.
75
iniciativa, mascarar as divergências existentes entre esse segmento social e seus
trabalhadores, redimensionado, portanto, suas insatisfações179.
Neste contexto, Redenção tornava-se, portanto, instrumento de divulgação
das ideias de reorganização econômica e valorização regional, além de fomentadora
de debates no campo político, econômico e literário. Inicialmente seu objetivo era
exaltar a Amazônia, usando para isso vários artifícios, entre eles o uso de imagens
que procuravam chamar a atenção para a beleza regional através de seus aspectos
físicos, naturais e humanos. Seguindo firmemente o propósito de fazer propaganda,
em suas folhas apareciam, também, os principais pontos turísticos de Manaus como
o Palácio Rio Negro, a Alfândega, o Teatro Amazonas, o Palácio da justiça, e etc.
Juntamente com as forças políticas locais que tentavam perante o governo
federal viabilizar economicamente uma saída para a crise, nas páginas dessa revista
surge o elemento intelectual com temáticas regionais, apresentando que, embora
um futuro promissor fosse incerto e distante, poderia ser alcançado pela exploração
das riquezas, reservas naturais e potencialidades de recursos aqui existentes. Trata-
se de um discurso-proposta para reabilitar o Amazonas, beneficiando não só a elite
local, da qual faziam parte, mas segundo eles toda a “coletividade”.
Sua produção discursiva foi dominada pelo passado áureo da borracha e pela
inevitável decadência do presente. Em um desses discursos, Paulo Eleutherio
enfatizava as possibilidades agrícolas e extrativas das terras amazônicas,
principalmente, o plantio do algodão, a cultura e exploração racional da seringueira e
o aproveitamento regular das exuberantes florestas180. Na mesma crônica, o autor
insiste que venha do Sul um auxílio, igual aquele dos pais que socorrem os filhos
gastadores, ou que acolhe sob o teto de sua casa aqueles que um dia partiram para
o grande mundo:
“Dê-nos o Governo Federal trabalho e custeie esses serviços com assiduidade e
interesse, mobilize os seus capitais – para os quais tanto contribuíram nossas
rendas – e assim teremos em breve um aspecto novo na nossa terra e na nossa
gente, ainda capazes de surpreendentes conquistas nos diversos ramos da
atividade humana”181.
179 AVELINO, Alexandre Nogueira. op. cit., p. 118. 180 ELEUTHERIO, Paulo. Ouro branco, ouro negro e ouro verde. In: Revista Redenção, n 2, dezembro de 1924, p. 5. 181 Idem.
76
As pessoas que ilustravam suas páginas pertenciam às elites locais e eram
ligadas às atividades políticas e econômicas da cidade. Eram eles, os mais
interessados em reviver os tempos de fausto. A revista noticiava sobre a cidade de
Manaus, o que mais interessava a esses segmentos sociais, seu teor de civilidade,
apresentava-se bela e atraente aos investidores, embora os discursos fossem
contraditórios, passando a ideia de uma crise econômico-financeira sem solução
imediata.
Citamos anteriormente que a ideologia contida nos discursos da imprensa
elaborados e difundidos pelos intelectuais pretendia mascarar a realidade, pois entre
as suas funções está segundo Marilena Chauí (2007), o ocultamento ou a
dissimulação do real. Sendo assim, os discursos camuflavam a intencionalidade das
elites de recuperar as vantagens econômicas de outrora. Afirmavam que agiam em
nome da coletividade, mas por ela, pouco faziam. Para corroborar está afirmação
vejamos o que Agnello Bittencourt relata sobre um livro denominado: Geographia
Commercial escrito por Lindolpho Xavier em 1922.
No citado livro seu autor aborda um pouco sobre a realidade amazônica,
incluindo a extração da borracha, especificamente, comenta:
“(...) Na região Amazônica o que dificulta é o intricado da mata virgem, o
isolamento, a falta de recursos. O SERINGUEIRO É UM ENTE PROSCRITO DO
MUNDO, QUANDO AFUNDA NO AMAZONAS, MORREU PARA A SOCIEDADE.
O impaludismo o empolga desde logo e ele fica marcado para sempre. Os insetos
o atordeam. As serpentes e as feras o espreitam. Entre os animais que o cercam,
o mais inofensivo é o índio selvagem. (...)”182.
Bittencourt denomina o livro de mentiroso e continua a sua análise condenando o
autor: “(...) para o autor das linhas transcritas, o Amazonas não é somente o inferno
verde simbolizado e descrito pelo sr. Alberto Rangel. É pior ainda. Penetrar esta
terra, na qualidade de extrator, equivale a transpor a porta inferi, da soturna e
apavorante região bíblica, pois “o seringueiro é um ente proscrito do mundo”. (...)
Não vale a pena contestar esta e as precedentes protervias, porquanto está ainda
vivo na memória de todos assinalado nas estatísticas, o formidável movimento de
passageiros entre o porto de Manaus e os do Nordeste. No fim de cada safra os
navios abarrotados de indivíduos endinheirados, de regresso aos lares, onde iam
182 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.707, 15 de janeiro de 1923.
77
passar o inverno, gozar os proventos do trabalho e de novo, retornar ao
Amazonas”183.
Xavier continua sua abordagem: “(...) Os objetos custam ali (nos seringais) VINTE E TRINTA VEZES MAIS do que
nos outros lugares. Os aviados são cativos para toda vida. No fim do ano
entregam o que fizeram e estão em dívidas crescentes. MORREM SEM PODER
VOLTAR. Mas é desta gente que se está povoando a Amazônia. É principalmente
o homem do nordeste acossado pela seca. Fogem de um flagelo e caem no outro.
(...)
A Amazônia nada cultiva. Extrai a borracha, o cacau, o cumaru, o açaí, a
castanha, a sapucaia, a baunilha; (...)”184.
Já viram os leitores maior soma de despautérios em tão pequena quantidade de
linhas? Pergunta Bittencourt acusando o autor de proferir através de seu livro
“inverdades caluniosas” sobre o Amazonas.
O que levaria um professor altamente respeitado em sua região a querer
encobrir determinadas verdades sobre as condições de vida do seringueiro e as
relações sociais de trabalho no interior da floresta? Ele compunha o quadro das
elites locais e assim como outros intelectuais estava interessado na manutenção dos
privilégios desses segmentos sociais, do qual fazia parte. O discurso em prol da
coletividade era um engodo. As opiniões ideológicas que professavam seriam, no
essencial, apenas o produto de uma estratégia para recuperar os benefícios e os
privilégios econômicos proporcionados pelo apogeu de uma época que só eles
usufruíram e que paulatinamente a crise soterrava.
Muitas vezes, a imprensa do Sul emitiu a sua opinião sobre a crise da
borracha. Em vários desses momentos, as críticas não poupavam adjetivos aos
comerciantes de Manaus e ao governo local, denominando-os de “nababos
mendicantes, perdulários, imprevidentes, inaptos, esbanjadores, inconscientes e
desonestos”185, e culpando-os explicitamente pelo momento de instabilidade
econômica que atravessava o Estado. Esse comportamento aguçava ainda mais a
disputa política travada entre os representantes do café e da borracha pelos
recursos e proteção da União. Tal postura era objeto de queixas da imprensa local:
183 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.707, 15 de janeiro de 1923. 184 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.707, 15 de janeiro de 1923. Grifo meu. 185 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.450, 4 dezembro de 1913.
78
“Na realidade, o procedimento da maioria da imprensa carioca, teve todos os risos de
desumanidade, quando em fins de setembro, por alguns dias, se ocupou da crise
amazônica; pois, quando um enfermo carece dos auxílios médicos, não é justo
recriminá-lo pelos erros cometidos, que lhe originaram a doença, em vez de aplicarem
os remédios necessários, a fim de proporcionar-lhe o seu restabelecimento”186.
Ao comentar uma reportagem da imprensa do Sul, o representante dos
grandes comerciantes locais, Armindo R. da Fonseca, em sua coluna intitulada Ouro
Negro, expressava o comportamento de São Paulo perante as sucessivas crises
vivenciadas pelo café, que ao contrário do que ocorria no Amazonas, diversificava
seus investimentos mesmo contando com a proteção e ajuda do governo federal: “O Estado de São Paulo, atingido pela crise, em vez de desanimar, tem tratado de
multiplicar os seus meios de defesa, elevando ao triplo o capital do Banco Hipotecário e
Agrícola, cria novos armazéns gerais, alargando os créditos aos produtores, a fim, de
dar aos produtos e ao comércio os meios de não se deixarem dominar pelas manobras
dos compradores, e poderem lutar eles de potência em potência.
Continua a mesma folha dizendo que a atividade do povoamento do solo, a
multiplicação da mão de obra agrícola, o aperfeiçoamento dos métodos de cultura e a
diversidade de produtos da terra, continua a exercer-se, durante a crise, como era
exercida nas horas da mais invejável prosperidade; e que neste exemplo que deviam-
se inspirar os homens de Estado, que têm a pesada responsabilidade da situação
econômica do país”187.
Segundo o autor da coluna Ouro Negro, o mesmo não podia ser feito no
Amazonas e na tentativa de corroborar a sua defesa, ilustrava a gradual
desvalorização dos seringais amazônicos:
“De tudo que em São Paulo se está fazendo, nada se pode fazer aqui, embora as leis
sejam as mesmas. Em São Paulo, as propriedades têm valor, maior ou menor, e há
quem sobre elas faça transações. Aqui, falando-se em – seringais – atualmente, todos se riem, porque estão totalmente desvalorizados. Há os penhores agrícolas,
mas não há quem os aceite. Estão decretados os armazéns gerais, porém ainda não
existe nenhum, e se existisse, sucederia o mesmo que aos penhores agrícolas e aos
seringais. Em S. Paulo, o solo não é mais rico do que no Amazonas. O que ele tem
tido, é mais proteção e felicidade de ser atendido em todos os seus pedidos, vantagem
que sempre gozou”188.
186 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.490, 13 de janeiro de 1914. 187 Idem. 188 Idem.
79
Em um dos embates travados, a imprensa do Sul, consciente da situação real
que envolvia o sistema de aviamento, acusou as casas aviadoras de dominadoras e
exploradoras dos seringueiros189, despertando a ira da imprensa local, que logo saiu
em defesa desses empreendimentos comerciais: “(...) Convêm que se saiba no sul do país, onde o comércio faz as suas operações
cercado de todas as garantias, que os seringueiros na Amazônia, em geral, não
dispõem de capital e negociam com o crédito, que lhes dão as casas aviadoras.
Estas aviam os seringueiros aos cinquenta, cem, duzentos, quinhentos, e mesmo
mil contos de réis, sem que estes tenham um real para garantir créditos tão
elevados. Se são felizes, dentro de alguns anos fazem fortunas, à custa do crédito que obtiveram das casas aviadoras. Quando assim acontece, obtêm o
seu capital e quase sempre o seu sonho dourado é abrir uma casa comercial
aviadora na capital, julgando que dobrarão de fortuna com os lucros colossais
que deixam os negócios de aviamentos. Raro é o que escapa. A falências, com
pequenas exceções, lhes bate às portas.
Se, pelo contrário, são infelizes não pagam os aviamentos, que lhes foram feitos e
as casas aviadoras, vítimas das suas facilidades, são subjugadas pelas falências
(...)190.
“(...) Não acusem, pois, as casas aviadoras, já de si tão sacrificadas com tão
tormentosa crise. Elas procuram solucionar a crise da melhor forma e para o bem de
todos”191 apelava o editor mascarando, dessa forma a realidade das relações de
poder existentes nos seringais. Esses lucros colossais foram originários da
exploração, a que foram submetidos os seringueiros, que em suas longas jornada de
trabalho proporcionaram às casas aviadoras e não o contrário.
Internamente, as vozes dissonantes daqueles, que ousavam criticar as elites
locais pela sua falta de iniciativa e reação à crise, vociferavam, principalmente contra
a não modernização dos métodos de produção empregados nos seringais,
destacavam a urgência do plantio racional de seringueiras e reclamavam do tempo,
que esses segmentos sociais ficaram a espera de soluções para a instabilidade
econômica, na qual estavam envolvidos desde 1913, limitando-se: “a esperar... dez,
onze, doze anos, que o preço da borracha subisse, como afinal subiu a partir de
1924"192:
189 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.998, 26 de março de 1918. 190 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.998, 26 de março de 1918. Grifo meu. 191 Jornal do Comércio, Manaus, 26 de março de 1918. 192 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.350, 15 de março de 1928.
80
“(...) Por um espaço de dez anos veio o comércio da borracha amazônica sofrendo a
inclemência de semelhante situação. Mas, ao invés de aparelhar-se convenientemente,
ao invés de modernizar os seus métodos de produção, de maneira a aumentar, nos
seringais, o rendimento, per capita, de seus trabalhadores, já realizando sua
independência alimentar, facilmente obtenível em terras que quase tudo produzem, já
praticando a medida, ainda hoje indispensável do plantio em grande escala, capaz, por
si só, decuplicar a produção com o mesmo elemento racial e numérico, já preparando
racionalmente o látex, de forma a evitar a lavagem pré-manufatura, ao invés de tudo
isto, de onde resultaria, inevitavelmente, o barateamento da produção e suas
consequentes possibilidades de lucro a qualquer tempo, manteve-se a indústria da
borracha (se é licito chamar indústria a simples colheita e subsequente endurecimento,
por métodos primitivissimos, do precioso sangue vegetal das seringueiras) no uso de
seus lamentáveis processos iniciais, aparecendo ainda hoje, em todos os mercados
como um produto silvestre, inçado de vícios e prejuízos, que fábricas têm a corrigir
antes de seu aproveitamento industrial. (...)”193.
Diante de um sebastianismo inconfessável das elites locais que ainda
acreditavam em uma melhor cotação do preço da borracha, os críticos locais
insistiam:
“(...) tenhamos a coragem de reagir construindo, semeando como os outros as
sementes da árvore bendita e, como os outros, realizando a indústria regular da
borracha, que colocará o produto amazonense, a mercê de várias circunstâncias
particulares em condições de superar o estrangeiro em preço mínimo e qualidade, os
dois atributos essenciais e inseparáveis para sua definitiva hegemonia”194.
Para parte deles, mesma com a produção asiática subindo ano a ano, a saída viável
ainda seria o investimento no plantio racional de seringueiras. A borracha por muitos
anos permanecia sendo vista como a grande riqueza da Amazônia, somente o
aparecimento da borracha sintética vai definitivamente, soterrar, as ilusões e os
sonhos que ainda perduravam no imaginário das elites locais.
Alguns governadores do Estado, já sem esperança em 1928, manifestavam
pelo menos teoricamente, uma certa preocupação com os novos rumos do trabalho
no Amazonas: “(...) nestas terras é preciso plantar; quando, afinal nos convencermos
que não mais devemos viver apenas do que a natureza nos oferece (...)”195. Na
prática onde era fundamental mão-de-obra, trabalho e investimentos, o que se viu,
193 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.350, 15 de março de 1928. 194 Idem. 195 Mensagem do Governador do Estado do Amazonas, Sr. Ephigenio Ferreira de Salles, 14 de julho de 1928.
81
difere do proposto. A castanha, o cacau, o guaraná, a madeira, enfim, os extrativos
ainda figuravam com os principais produtos da economia do Estado.
Apesar dos incontáveis apelos ao governo federal, o auxílio esperado não foi
concretizado. Isso nos faz rever alguns itens relevantes. Como alguns autores têm
demonstrado a inteligibilidade da sociedade subdesenvolvida latino-americana, só
se torna possível quando considerada como parte integrante da expansão capitalista
da Europa Ocidental, a partir do século XVI. No Brasil, o desenvolvimento do
sistema capitalista possibilitou a implantação e o declínio de uma economia de
exportação, centralizada inicialmente no Nordeste e depois, em Minas Gerais e
Centro-Sul (cana-de-açúcar, ouro e café). As regiões que não participaram
ativamente desse processo ficaram marginalizadas, suas relações com os núcleos
modernos ou capitalistas não foram de oposição, mas de complementaridade196.
As regiões do Brasil voltadas para o comércio exterior estavam assentadas
na propriedade da terra e suas oligarquias rurais, dada a sua importância
desenvolveram um certo poder sobre o governo central. O que não foi possível na
Amazônia, desde os tempos coloniais sua economia foi baseada no extrativismo, o
que impossibilitou a formação de uma elite poderosa197.
Os discursos conjunturamente de crise que emanam das documentações
citadas retratam as elites locais – fração que é da classe dominante nacional – como
marginalizada. A crise do seu principal produto de exportação ocasionou a lenta
perda de seu poder político, que na realidade só complementava e obedecia a um
poder maior. Enquanto isso, a fração cafeeira rotulada nos discursos de províncias
do Sul, devido a força econômica e política de suas elites conseguem alguns
privilégios retardando, dessa forma a queda do café.
Subserviente e incapaz de grandes embates com a classe dominante
nacional composta de grandes latifundiários e de uma burguesia industrial
emergente passaram a frequentar as ante-salas do poder, pedindo, solicitando,
sempre embalados nas asas da quimera, a espera de providências que nunca
passaram de paliativas. Internamente, pouco, fizeram para debelar a crise, na qual
196 FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: historiografia e história. 16 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 116-117. 197 NOGUEIRA, Ricardo José Batista. Amazônia e questão regional: um regionalismo sufocado. In: GEOUSP: Espaço e Tempo. São Paulo: Revista publicada pelo departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1999. p. 72.
82
estavam imersos. Acostumadas com lucros grandes e rápidos oriundos do sistema
de aviamento realizaram investimentos superficiais, acreditando que essa iniciativa
deveria partir do poder público estadual e este da iniciativa privada. A mentalidade
extrativa predominante desde a inserção da Amazônia na economia de mercado,
onde era mais fácil extrair do que investir, cultivar e produzir contribuiu para essa
postura.
Para Marilena Chauí, o discurso ideológico pretende anulando as diferenças,
engendrar uma lógica de identificação que unifica pensamento, linguagem e
realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos com
uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante198. Os
discursos apelativos proferidos e escritos pelos intelectuais eram fomentados em
nome da coletividade, buscavam resgatar uma identidade coletiva invocando para
isso, um inimigo comum, no caso específico a crise, porém como a grande parte da
população pouco usufruiu do apogeu da economia gumífera, as elites não
conseguiram sua adesão para juntos somar forças perante a União. A Amazônia
viveu um bom período de ostracismo voltando a ser lembrada pelo Brasil, somente a
partir da Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), quando novamente a produção
asiática foi interrompida.
198 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. op. cit., p. 15.
83
Capítulo 2
Mundos do trabalho e a crise
2.1 – Mundos do Trabalho em Crise
2.1.1 – Os caixeiros
Nas duas primeiras décadas do século XX alguns grupos de trabalhadores
pobres do Brasil influenciados por diversas ideologias iniciaram um processo lento
de organização operária. A partir dessa iniciativa surgiram sociedades de benefícios
mútuos, “partidos de trabalhadores”, associações dos operários católicos, grupos
socialistas e anarquistas, e sindicatos. Todos de uma forma geral tinham como
prioridade unir os trabalhadores e defender seus interesses199.
Manaus não ficou imune a esse novo momento histórico. Associações
beneficentes e mutualistas aparecem com certa frequência nos jornais: Sociedade
Italiana de Mútuo Socorro (1900); Sociedade Beneficente União dos Foguistas
(1906); Corporação dos Maquinistas do Amazonas (1906); Associação dos
Empregados no Comércio do Amazonas (1906); Sociedade Beneficente dos
Práticos no Amazonas (1906); Associação Beneficente dos Oficiais Aduaneiros de
Manaus (1908). Com o tempo, novas agremiações sindicais passaram a configurar o
universo do trabalho urbano buscando, pelo menos no nome, um afastamento com
as sociedades consideradas mutualistas: Sindicato dos Estivadores (1914);
Federação Marítima (1914); Sociedade das Artes Gráficas do Amazonas (1913);
Sindicato dos Trabalhadores Gráficos (1914); Comitê Obreiros Unidos (1914); União
Operária Nacional (1917); União dos Foguistas (1914), União dos choferes,
Carroceiros e Bolieiros (1914)200.
Pesquisas recentes realizadas pela nova historiografia regional apontam para
duas correntes ideológicas predominantes em diferentes níveis no movimento
199 HAHNER, June E. Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil (1870- 1920). trad. Cecy Ramires Maduro. Brasília: Edunb, 1993. p. 239. 200 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus (1899 - 1925). 2 ed. Manaus: Edua, 2003. p. 142 - 143.
84
operário organizado em Manaus: a dos socialistas reformistas e a dos
anarquistas201. A primeira considerada predominante no interior do movimento
operário amazonense pregava o advento de uma sociedade melhor. Para isso era
necessário lutar contra os capitalistas, o que só seria possível mediante a junção de
forças entre os trabalhadores. A estratégia a ser seguida era nitidamente centrada
na reforma social, e não na revolução violenta. As reformas sociais almejadas só
poderiam ser concretizadas através de leis, sendo fundamental a inserção político-
partidária do operariado no regime republicano. Na concretização desse projeto
defendiam a participação e o diálogo com outros segmentos sociais e em grande
medida, a colaboração entre as classes202.
Conforme o programa defendido pelos socialistas reformistas, o trabalhador
deveria se organizar via partido político e por isso precisava não só se unir em
associações de artes, profissões e resistência, como também deveria combater o
álcool e à ociosidade. O trabalhador ideal seria aquele elemento moralmente digno e
voltado para o trabalho, o que consequentemente lhe daria legitimidade para a
participação política. Nas lutas eleitorais, o projeto pregava uma ação permanente
de qualificação eleitoral, com o direito de voto para todos os cidadãos a partir de 18
anos, inclusive para as mulheres. Em relação ao Estado, reivindicava a elaboração
de uma legislação em defesa do trabalho. Quanto ao patronato defendia a existência
de mecanismos de pressão como a greve para se conseguir a limitação das horas
de trabalho, os aumentos salariais e a conquista de direitos sociais. A educação da
classe trabalhadora era considerada como elemento fundamental para a sua
ascensão social203.
O anarquismo, corrente ideológica de menor abrangência, entre os
trabalhadores locais defendia mudanças fundamentais na estrutura da sociedade.
Seus seguidores rejeitavam a luta política e a autoridade do Estado que através da
ação econômica direta e disputa ideológica - não disputa política - seria substituída
por alguma forma de associação e cooperação entre indivíduos livres. Os sindicatos
eram responsáveis pela organização e resistência dos trabalhadores. Por se
201 COSTA, Francisca Deusa Sena da. op. cit., p. 175 - 202; TELES, Luciano Everton Costa. A vida operária em Manaus: imprensa e mundos do trabalho (1920). Dissertação de Mestrado em História. Manaus: UFAM, 2008. p. 139 - 147. 202 GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 51 - 53. 203 Idem.
85
recusarem a cumprir função de serviço social, os anarquistas se opunham às
associações de auxílios mútuos acusadas de criar falsas expectativas entre os
trabalhadores. Na luta contra o capital pregavam a “ação direta” que incluía greves,
boicotes, sabotagens e manifestação públicas. Para o alcance de uma sociedade
libertária, a liberdade absoluta, toda a liberdade, o caminho a ser trilhado pela classe
trabalhadora seria a educação204.
A exposição sucinta acima se fez necessária devido à influência dessas
vertentes ideológicas nas ações políticas de organização e mobilização, resistência
e luta de algumas categorias de trabalhadores urbanos no decorrer da crise
econômica. Não estamos afirmando que tais vertentes comandavam as ações dos
trabalhadores na cidade, porque mesmo filiados às associações ou sindicatos esses
segmentos sociais mantinham certa autonomia na condução de seus atos. Como
sujeitos históricos, os trabalhadores participaram de forma ativa do processo por
eles vivenciado. No período estudado, Manaus passou por momentos de
efervescência social onde os trabalhadores expressaram o seu inconformismo e
suas reivindicações através de greves e manifestações coletivas de protesto.
O fazer-se dos sujeitos históricos em sua prática social será recuperado
seguindo o conceito de classe defendido por Edward Thompson. O historiador inglês
num diálogo constante com as fontes, realizando as possíveis leituras de outras
experiências, de outras realidades afirmava que “a classe acontece quando alguns
homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem
e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos
interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus (...)”205. A classe, afirmava,
não surgiu como o sol em uma determinada hora “estava presente ao seu próprio
fazer-se”206, é no processo de luta que se forja a identidade social da classe
trabalhadora.
Ao elaborar um fazer-se histórico diferente do praticado nas universidades
britânicas, propunha resgatar as “experiências” vividas dos trabalhadores, não
considerando somente o aspecto econômico como pregava a teoria marxista, mas
204 HAHNER, June E. op. cit., p. 249 - 250. 205 THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. In: FENELON, Déa Ribeiro. E. P. Thompson. História e política. Projeto História, nº 12, out. 1985, p. 81. 206 “A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição”. In: THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. v. 1, p. 9 - 12.
86
também, a cultura, na qual estavam envolvidos: “visto que a classe é uma formação
tanto cultural como econômica”. Pretendia, dessa forma, valorizar a luta diária do
trabalhador, seu modo de vida, hábitos, valores, formas de vestir e morar, de cantar,
de festejar, de transmitir suas tradições orais, de resistir às possíveis transformações
do seu cotidiano propondo consequentemente, uma nova maneira de ver a luta de
classes em seu processo histórico207. Assim, pretendemos analisar dentro de nossas
limitações o universo do trabalho em Manaus não só enfatizando a tradicional
relação entre patrão e empregado, capital e trabalho, mas também valorizando as
experiências vividas dos trabalhadores, seja no ambiente do trabalho ou em outra
espacialidade. Resgatando as estratégias de sobrevivências de atores sociais
citadinos que tentavam sobreviver à crise.
Para sabermos com quem a classe trabalhadora interagia de forma direta
realizando embates muitas vezes tensos e conflituosos se faz necessário elencar o
patronato de Manaus no período estudado. Alexandre Nogueira Avelino (2008) em
um estudo recente aponta que esse patronato era composto basicamente de
comerciantes, em sua grande maioria de origem portuguesa (importavam gêneros
de primeira necessidade como alimentos e até vestuários, exportando borracha,
castanha e outros produtos regionais); de donos de seringais (alguns oriundos deste
comércio ou da atividade de aviamento); aviadores que forneciam mercadorias
necessárias para o trabalho e a sobrevivência do seringueiro nos seringais; e em
menor número de donos de embarcações, pequenos comerciantes, industriais e
políticos208.
Ainda no encalço do mesmo autor citamos por peso econômico e prestígio
político, os patrões que comandavam a atividade produtiva no Amazonas. Para isso
tomamos a liberdade de alterar a ordem seguida pelo referido historiador. De acordo
com o critério estabelecido, as empresas concessionárias de serviços públicos em
conjunto com os representantes das empresas alemães, francesas e inglesas que
dominavam o comércio exportador de borracha (Desendschon, Zarges e Cia.,
Scholz e Cia., Albert H. Alden, Gordon e Cia., Delagotellerie e Cia.) ocupavam o
207 FENELON, Déa Ribeiro. E. P. Thompson. História e política. Projeto História, nº 12, out. 1985, p. 86. 208 AVELINO, Alexandre Nogueira. op. cit., p. 39.
87
primeiro lugar, seguidas pelos comerciantes portugueses que lideravam o comércio
interno de aviamento e recebimento de borracha e depois, os donos de seringais209.
Como a cidade era movimentada pelo comércio foi esse o setor mais afetado
pela crise. No comércio trabalhava uma das maiores categorias de trabalhadores
urbanos existente na cidade, os caixeiros ou comerciários. Francisca Deusa Sena da
Costa (1997) afirma que esta categoria englobava desde o guarda-livros, um
instruído caixeiro encarregado da escrituração dos livros mercantis, chefiava a
tesouraria e a contabilidade, até os pequenos e explorados aprendizes.
Diferenciavam-se de outras categorias urbanas por serem em sua maioria
alfabetizados ou minimamente iniciados nas letras”210. Em sua grande parte eram
descendentes de portugueses e em número reduzido de judeus211.
Os caixeiros fundaram em 11 de novembro de 1906, a Associação dos
Empregados no Comércio do Amazonas (AECA)212, uma agremiação mutualista, a
exemplo do que ocorria a nível nacional. Com o passar do tempo a AECA tornou-se
o órgão representativo da prática política desse segmento social.
Essas associações eram organizadas por algumas categorias de
trabalhadores urbanos, que não gozavam de nenhuma proteção, no quadro da
sociedade oligárquica vigente na Primeira República. A consequente exclusão
política e social contribuiu de forma incisiva para que os trabalhadores elaborassem
algumas respostas para combater tal situação, uma delas foi a associação213.
A associação era considerada um instrumento capaz de produzir “união” e
“coesão”, elementos fundamentais ao processo de luta operária. Em seu interior
ocorriam debates referentes às questões de trabalho, a vida da classe trabalhadora
209 AVELINO, op. cit. p. 40 - 41. 210 COSTA, Francisca Deusa Sena da. op. cit. p. 193 - 196. 211 Nas listas de sócios encontradas nos relatórios da Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas são frequentes nomes de origem lusitana como: Antônio, Francisco, João, Joaquim, José, Luiz, Manoel e Raimundo, e em escala menor de origem judáica: Abraãm, Ezequiel, Isaac, Isaias, Jacob, entre outros. 212 Os relatórios da Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas encontrados no IGHA nos indicam sua tendência mutualista prestando assistência médica e com o tempo, jurídica a seus associados, assistência a acidentados, auxílio falecimento, entre outros. O relatório de 1928 prever desconto de 25% nas diárias para os sócios que se internarem na Santa Casa de Misericórdia e Sociedade Portuguesa Beneficente e abatimento de 10% em 3 drogarias da cidade. Ficava situada à Rua Barroso nº 28. 213 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Política e trabalho no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 93 - 96.
88
e suas demandas. Para Cláudio Batalha214 o mundo associativo era em parte uma
resposta produzida pelos trabalhadores frente a um sistema político que os excluía e
os colocava à margem da sociedade.
As ações dos trabalhadores do comércio eram pautadas por caminhos
diferentes daqueles defendidos pelos socialistas reformistas e anarquistas. No
primeiro número do periódico, Tribuna do Caixeiro, no qual eram ligados,
conclamavam: “somos, porém, avessos às digladiações de partidos políticos; a
nossa missão é grande demais para consentirmos a dispersão das nossas energias
em lutas estéreis215”. Defendiam uma postura moderada com ênfase no diálogo para
resolver os conflitos existentes com o patronato e o poder público.
A relação paternalista vigorava no âmbito do trabalho dos comerciários. Costa
argumenta que:
“(...) Numa jornada de 15/16 horas diárias, que se iniciava às 6 horas da manhã e
estendia-se até as 21/22 horas, os caixeiros estavam presos por laços de dominação
presentes nas relações de dependência pessoal que extrapolavam a esfera do trabalho
e refletiam diretamente na relação com seu empregador paternalista. Muitos deles
eram tutelados, o que significava estar sob laços de extrema dependência do patrão;
outros tantos moravam nos porões ou em anexos da casa comercial. Para estes a
jornada de trabalho se estendia para além das 16 horas. Morar com o patrão significava
estar disponível 24 horas por dia, (...). Existiam ainda aqueles que tinham o patrão
como avalista em aluguéis. As relações de parentesco também inibiam uma relação
formal de trabalho, além da nacionalidade pois, estar sob “proteção” de um comerciante
conterrâneo fazia-os sentir-se avalizados e identificáveis na massa urbana, tendo em
vista as constantes investidas policiais sobre estrangeiros na cidade”216.
Na Amazônia o patronato usava a máscara do paternalismo, ou seja, o patrão
era visto como o pai que proporcionava trabalho, proteção e integração social. Por
isso muitos empregados submetiam-se sem reclamar ao controle total de sua vida
profissional e privada, obedecer todas as determinações patronais para demonstrar
fidelidade e assim permanecer no emprego e sob a proteção pessoal do patrão era
um dos requisitos essenciais nesta relação. Por trás do pai protetor e amigo estava a
intenção patronal de melhor controlar as queixas de seus trabalhadores, de inibir
suas reivindicações e de conhecer suas estratégias de luta para melhor reagir contra 214 BATALHA, Cláudio. Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.). op. cit., p. 180. 215 Tribuna do caixeiro, Manaus, n 01, 21 de abril de 1908. 216 COSTA, Francisca Deusa Sena da. op. cit., p. 200.
89
eles. A harmonia fictícia reproduzida por essa relação escondia na realidade laços
de dominação e exploração que estavam subjacentes no interior de muitas casas
comerciais.
Como símbolo de proteção e distribuição dos rendimentos, o patrão tornava-
se instrumento por excelência da integração social, tornando possível o consenso
referente ao sentido do mundo social. Dessa forma contribuía para a reprodução da
ordem social perante aqueles atores sociais que mais a contestavam, ou seja, os
trabalhadores217.
Dentre as categorias de trabalhadores urbanos, os caixeiros eram os mais
desejosos a subir a escala social. O pequeno auxiliar aspirava ser caixeiro e este por
sua vez, um futuro comerciante218. Para a brasilianista June E. Harner:
“ao contrário de muitos outros trabalhadores, (... ) eles não viam a si mesmos como
empregados pobres e subalternos para sempre, pois eram “futuros comerciantes
honrados”. (...) Os donos das lojas encorajavam seus empregados a acreditar que
eram todos “comerciários” e que “comerciantes e balconistas tinham diferença
apenas de grau (...)”219.
Por isso, “preferiam não fazer distinções muito radicais entre si e seus patrões, aos
quais aspiravam igualar-se”220. A crença na mobilidade social era reforçada pela
carreira de sucesso de Irineu Evangelista de Sousa, barão de Mauá221, inicialmente
um “humilde caixeiro (...) que chegou às posições mais elevadas no alto comércio222.
Com apenas nove anos de idade, o futuro barão começou a trabalhar em uma
grande loja no Rio de Janeiro, numa época em que “quase um terço dos caixeiros
contratados pelos comerciantes tinha menos de catorze anos de idade”223.
Desempenhou a função de pequeno caixeiro, arrumava mercadorias nas prateleiras,
varria o chão, fazia pequenos serviços e:
“Como a maior parte dos caixeiros, passou a morar na loja; de noite dormia no meio
das mercadorias, de dia usava o balcão como mesa de refeições. Essa fusão de casa e
217 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, s/d., p.10. 218 COSTA, Francisca Deusa da. op. cit., p.196. 219 HAHNER, June E. op. cit., p. 104 - 105. 220 Idem, p. 105. 221 O barão de Mauá como ficou conhecido começou a trabalhar em uma grande loja no Rio de Janeiro, sede dos negócios do português João Rodrigues Pereira de Almeida que era ao mesmo tempo, comerciante, banqueiro, industrial, armador – além de cortesão e manipulador político. In: CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 70. 222 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.232, 30 de outubro de 1927. 223 CALDEIRA, Jorge. Op. cit., p. 61.
90
local de trabalho era tão comum que estava prevista inclusive nas leis, como a de 30 de
agosto de 1770, que regulamentava a moradia no emprego como parte dos ganhos dos
caixeiros: “Devem ser, além disto, providos de casa, cama e mesa pelo negociante que
servirem, como entre eles é costume geral”224.
Com o tempo, Irineu passou a trabalhar como caixeiro de balcão, atendendo
os clientes de passagem pela loja, habilitou-se com isso a desempenhar a função de
caixeiro de fora, levava títulos para cobrança, ia à Alfândega tratar dos serviços
burocráticos como o despacho e recepção de mercadorias. As barreiras e intrigas
advindas da profissão eram respondidas com trabalho e estudos. A vaga de caixeiro
de escritório era o próximo objetivo a ser alcançado. Para isso se fazia
imprescindível um ritual de preparação, o primeiro passo incluía certos
conhecimentos como o estudo de contabilidade, saber fazer cálculo de juros, ter
noções de títulos e garantias creditícias, e até ler e escrever em língua estrangeira,
se a empresa negociasse no mercado externo. No decorrer do tempo, depois de
uma longa e solitária jornada de aprendizado, assim como seu patrão, o português
João Rodrigues Pereira de Almeida, passou a ser comerciante, banqueiro, industrial
e o primeiro grande empresário do Império225.
No contexto local, a qualificação profissional era um dos requisitos para a
possível ascensão social e uma necessidade para os patrões desejosos de mão-de-
obra especializada. Sendo assim, tornou-se fundamental colocar em prática um
projeto educacional defendido também pelos socialistas reformistas e anarquistas,
que incluía uma biblioteca226 e aulas noturnas, na realidade um passaporte para
acessar a Escola Municipal do Comércio227 localizada na sede da AECA. Sua função
principal era preparar jovens trabalhadores para as exigências do capital.
224 CALDEIRA, Jorge. op. cit., p. 61. 225 Idem, p. 55 - 70. 226 A biblioteca, uma das mais ricas da cidade, contava em 1911 com 5.500 volumes, entre obras de literatura e em menor número de ciência. Em seus salões de leitura também eram encontrados os seguintes jornais e revistas: Malho, Mala da Europa, Seculo, Pimpão, The Gruphic, La vie au grande ir, Je sais tout, Correio da Manhã, Illustração Portugueza, Illustração Brazileira, Illustration Française, Illustrazione Italiana, O Caixeiro e outros. In: Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, relatório da administração de 1911. p. 10 - 11. 227 A Associação mantinha em proveito dos associados, inicialmente dois cursos: Primário e de Música. O curso primário completo comportava: Português, Aritmética, Escrituração Mercantil e Francês e era destinado aos associados que desejavam ingressar na Escola Municipal do Comércio (criada conforme a Lei n° 578 de 26 de novembro de 1909 na administração do Superintendente Municipal Coronel Agnello Bittencourt) ou simplesmente adquirir as noções preliminares dos vários conhecimentos necessários para exercer as funções mercantis. Segundo Francisca Deusa da Sena Costa a citada escola foi inaugurada somente em 22 de fevereiro de 1910 e sua manutenção era de
91
A escola fazia parte de um plano maior de qualificação da mão-de-obra
existente na cidade. A ACA (Associação Comercial do Amazonas), principal órgão
do patronato local, procurou disseminar através de escolas profissionalizantes de
formação comercial e técnica, a prática do trabalho dedicado, contínuo e ordeiro
como meio de promover a ascensão social. O trabalho, mola impulsionadora do
progresso, era considerado o elemento essencial para a produção de riquezas.
Como valor social supremo da modernidade, o trabalho era fundamental para a
sociedade e o indivíduo, na medida em que proporcionava desenvolvimento material
à uma região e a regeneração moral do trabalhador.
Nos discursos da AECA quase sempre em sintonia com as exigências
patronais em relação ao trabalhador ideal valorizava-se o trabalho e o trabalhador,
tendo como incentivo uma aspiração antiga de seus associados utilizada pelos
patrões para aumentar seus rendimentos “a co-participação dos lucros comerciais”.
Neste sentido, o comerciário era visto como “(...) o elemento vital do comércio,
porque representa o trabalho que o anima, o trabalho que o estimula, o trabalho que
o engrandece (...) pelo vosso labor fecundo, (...) ver realizado o supremo sonho de
vossa aspiração – a coparticipaçao dos lucros comerciais (...)”228.
A exaltação ao trabalho foi uma construção ideológica característica das
sociedades que experimentaram mudanças violentas no setor econômico e social
como Manaus entre os anos de 1890 a 1920 e visava prioritariamente eliminar as
velhas tradições, os velhos hábitos e costumes predominantes em grande parte da
população. O trabalhador ideal teria que deixar de lado seus costumes antigos e
assimilar novos hábitos voltados para o desenvolvimento do setor comercial que
incluía uma nova rotina de horários e comportamentos229.
Para disciplinar e tornar assíduo o trabalhador, a biblioteca dos comerciários
exerceu um papel inovador, pois objetivava contribuir “para o cultivo espiritual dos
associados – que ao invés de irem às diversões fúteis, vêm sobre esse palio
responsabilidade do Município. In: Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, relatório da administração de 1913. p. 17. 228 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, relatório exercício social de 1929, p.16. 229 “Organizações são também agentes controladores, tanto internos, sobre os membros da organização, como externo, atuando no meio ambiente organizacional relevante”. In: FLEURY, e FISCHER (orgs). Cultura e poder nas organizações. São Paulo: Atlas, 1989, p. 38. Elementos considerados pertinentes à cultura organizacional (devoção moral ao trabalho, dedicação, meticulosidade na execução de tarefas, honestidade) p. 42.
92
bendito, auferir conhecimentos, ilustrando a inteligência na leitura sadia dos bons
escritores”230.
Segundo as representações construídas pelo patronato, os trabalhadores
eram vistos como uma classe formada por indivíduos promíscuos e potencialmente
predisposta aos vícios e orgias mundanas como a vadiagem, o fumo, os jogos e o
álcool. As diversões consideradas fúteis eram condenadas porque ocasionavam a
dispersão do trabalhador de seu ambiente de trabalho e consequentemente a
diminuição nos lucros do patrão231.
No contexto nacional June Hahner comenta que muitos trabalhadores
urbanos escolhiam passar seu tempo livre nas tavernas consumindo bebidas
alcoólicas “em vez de seguir propósitos educacionais”. Essa prática tornou-se um
alvo constante das reclamações do patronato por ter grande aceitabilidade entre os
pobres, estes acreditavam adquirir através dela, força extra para completar o
trabalho do dia. O alcoolismo “fruto do trabalho excessivo, brutalizante e exaustivo,
permaneceu profundamente enraizado nas classes trabalhadoras”, sendo também
condenado pelas associações e sindicatos operários que o consideravam “um
obstáculo à organização do trabalhador”232.
Ilustrativo de tal preocupação foi a realização na sede da AECA de uma
conferência antialcoólica. Diante de altas autoridades, comerciantes e inúmeros
consórcios, o palestrante proferia sobre os males do álcool e “os prejuízos advindos
de tão perigoso vício”. Procurava “incutir no espírito dos ouvintes, o horroroso futuro
reservado aqueles que se entregam ao uso de bebidas alcoólicas”233. O poder
público também reagiu contra essa prática amiúde relacionada com o crescente
aumento no índice de criminalidade234. Para combatê-la estabeleceu posturas
disciplinadoras, que além de penalidades incluíam a restrição dos espaços de
consumo de bebidas e a imposição de novos horários para o funcionamento de
bares, quiosques, botequins e cabarés. 230 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, relatório da Administração de 1911, p.10. 231 AVELINO, Alexandre Nogueira. op. cit., p. 72. 232 HAHNER, June E. op. cit., p. 233 - 234. 233 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, relatório do exercício social de 1929. p. 5. 234 “(...) entre nós, numa cidade pequena, como Manaus, em 381 prisões efetuadas de janeiro a 15 de maio do corrente ano, 97 foram simplesmente por embriaguez” In: Mensagem do Governador do Estado do Amazonas, Sr. Antonio Clemente Ribeiro Bittencourt, 10 de julho de 1910 (Relatório da Chefatura de Polícia), p. 82.
93
Na análise realizada nos relatórios da AECA, representante de uma parcela
dos comerciários, ficou perceptível a transitoriedade das lideranças dessa categoria
pelas esferas do poder estadual e principalmente municipal235, para onde recorriam
com frequência quando os comerciantes burlavam e desrespeitavam as leis. Além é
claro, da explícita ligação com a Associação Comercial do Amazonas e com a
Associação Comercial dos Retalhistas, as duas grandes forças do comércio local,
onde muitos de seus patrões eram associados. Dispostos a colaboração entre
classes, quando necessário também, aliavam-se à alta intelectualidade e aos grupos
sociais com poder de voz (médicos, advogados, professores) na sociedade local.
As relações muitas vezes amistosas das lideranças com o patronato não foi
empecilho, para que a maioria dos caixeiros lutasse pelos seus direitos e
denunciasse através dos jornais, as relações sociais de trabalho predominantes em
muitas casas comerciais onde era gritante a exploração, da qual eram vítimas. Um
jornal de cunho operário denunciava: “pena que o comércio de Manaós, salvo
poucas exceções, obrigue os empregados a trabalhar mesmo de portas fechadas
nos dias de festa nacional”236. Em 1914, seis anos após a regulamentação da lei que
proibia o comércio local de abrir suas portas depois das 18:00 horas, outro periódico
transcrevia o apelo dos comerciários aos poderes constituídos:
“empregados no comércio escrevem-nos pedindo atenção da superintendência para o
fato de diversos negociantes obrigarem, as portas cerradas, os seus auxiliares a
trabalhar até tarde da noite nos dias comuns a até quase ao meio dia nos feriados”237.
A luta pelo fechamento de portas do comércio às 18:00 horas foi o marco
inicial dessa luta. Consequentemente, o fechamento de portas no horário previsto
diminuía a longa jornada de trabalho iniciada às 6:00 horas da manhã indo até às
11:30, recomeçava às 12:30 e terminava às 18:00 horas, trabalhavam portanto, 11
horas consecutivas238. As horas trabalhadas muitas vezes prolongavam-se por 15
horas, segundo as denúncias de suas lideranças muitos comerciários ficavam até às
9:00 e 10:00 horas da noite, “prisioneiros nas casas comerciais onde trabalham, a
235 Em uma das comemorações do Dia do Empregado no Comércio foi colocado no “Salão de Honra” da Associação o retrato do Exmo. Sr. Dr. José Francisco de Araújo Lima, prefeito de Manaus. “Considerado um grande batalhador da causa caixeiral”. In: Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, Relatório correspondente ao exercício de 1928. 236 Tribuna do Caixeiro, Manaus, n 03, maio de 1908. 237 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.485, 8 de janeiro de 1914. 238 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, Relatório da administração de 1911.
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pretexto de fazerem as celebres arrumações noturnas”239. Sendo assim,
acreditamos que parte da categoria morava como afirma Costa, nas casas
comerciais onde labutavam ou então residiam no centro da cidade, as fontes
indicam que até por volta de 1919, os bondes partiam da área central de Manaus às
10:00 horas da noite em direção às oficinas da companhia situadas na Cachoeirinha,
impossibilitando se fosse o caso, o retorno do caixeiro que trabalhava até o horário
citado para sua respectiva casa localizada nos bairros periféricos.
Pressionado pela AECA devido as constantes denúncias contra o patronato,
o Sr. Coronel Domingos José de Andrade, presidente do Conselho Municipal,
sancionou a Lei nº 528 de 02 de dezembro de 1908 regulamentando o fechamento
de portas do comércio às 18:00 horas. O entusiasmo dos caixeiros mediante essa
conquista foi externado com uma passeata cívica ocorrida em 24 de dezembro do
mesmo ano.
A execução dessa lei se tornava difícil por vários motivos, entre eles a má
vontade dos comerciantes e outro de grande relevância: o texto da lei possibilitava
uma gama de interpretações que os comerciantes tentavam reverter a seu favor. O
caráter pendular da legislação, oscilando mais sob a pressão de comerciantes do
que de comerciários possibilitou a criação de várias leis referentes ao mesmo
assunto. O parágrafo abaixo exemplifica o que foi descrito:
“Tendo a Associação dos Retalhistas desta cidade impetrado uma ordem de habeas-corpus ao Superior Tribunal de Justiça do Estado, dizendo-se coata na sua liberdade
de comércio por não poder, em virtude de leis municipais, abrir seus estabelecimentos
depois das 6 horas da tarde nem nos dias de domingo e nos dias santificados ou de
festas móveis consagradas pela religião católica e especificados nas mesmas leis, o
referido Tribunal concedeu a ordem solicitada, para o fim exclusivo de serem os ditos
estabelecimentos abertos nestes últimos dias de festas móveis, atendendo ao princípio
constitucional de separação da Igreja do Estado”240.
Nesse momento crítico, a principal preocupação dos caixeiros se resumia em
consolidar a relevante conquista. A conquista inicialmente tolerada pelo patronato
comercial foi motivo de várias tensões entre os dois setores envolvidos. Muitas
vezes os comerciantes tentavam burlar as leis, cerravam as portas de seus
239 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, Terceiro Relatório, correspondente ao ano de 1909. 240 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, Relatório da Administração de 1911. p. 21. Grifo meu.
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estabelecimentos no horário determinado por lei, porém não liberavam os seus
empregados. Diante dessa realidade denunciavam com frequência: ”(...) casas há,
meus Srs., e vós sabeis bem quais são, que desde 1908 não fecharam 30 dias seus
estabelecimentos, sem que os caixeiros trabalhassem até 9 e 10 horas da noite,
excetuando os Domingos”241. Essa situação motivou os caixeiros a solicitarem uma
fiscalização mais rigorosa por parte da Municipalidade e a exigirem a intervenção e a
mediação das autoridades competentes.
É bastante ilustrativo um fato que só foi possível graças às constantes
tentativas dos comerciantes em não respeitar as leis. O desrespeito chegou a tanto
que a Municipalidade tomou medidas consideradas drásticas. Queixavam-se os
comerciantes “(...) passou-se a uma época em que as exigências foram tão
absurdas a ponto de não permitirem a entrada do comerciante em certos e
determinados dias no seu estabelecimento, sob pena de multa e prisão caso aquela
não fosse satisfeita”242. Semelhante “arbitrariedade” era segundo o discurso do
representante dos retalhistas “um atentado à liberdade individual, garantida pela
Constituição Federal”. Baseados nesse argumento recorreram ao Supremo Tribunal
Federal que julgou o pedido por falsa causa, motivo que levou diversos membros da
Associação dos Retalhistas a tentarem anular o julgamento.
Os comerciários, enquanto esperavam o julgamento colocaram-se em
posição de confronto. Desse posicionamento emergia as representações que os
patrões emitiam sobre eles:
“certo número de indivíduos é força confessá-lo, mais inteligentes que a maior parte
dos seus colegas, valendo-se de ocasião tão propícia, fazendo uso de meetings e de
artigos publicados nos jornais desta capital, pôde com grande facilidade ludibriar seus
colegas e incutir-lhes no espírito pouco cultivado e apenso à pouca reflexão a
necessidade peremptória de combater de olhos fechados as pretensões desta
Associação”243.
O impasse vivenciado por patrões e empregados continuava sendo relatado
segundo o olhar do representante comercial e evidenciava algumas estratégias de
luta empregadas pelos caixeiros :
241 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, Quarto Relatório Concernente ao ano de 1910. p. 12. 242 Associação Comercial dos Retalhistas, Relatório da Administração de 1912. p. 6. 243 Associação Comercial dos Retalhistas, Relatório da Administração de 1912. p. 5 - 6. Grifo meu.
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“Nunca campeou o ódio com tão acendrado entusiasmo de uma coletividade, nunca
se viu o despeito tomar foros tão avultados. Tudo porquê? Há uma resposta – a única
tolerável. Somente a ignorância na fase da sua maior desenvoltura, poderia fornecer
esses elementos perniciosos, que assobiavam à porta da moradia dos nossos diretores e vaiavam homens, sim homens limpos, comerciantes de ilibadas tradições”244.
O momento de tensão revelava alguns indícios da relação patrão e
empregado vigente em parte do universo do trabalho em Manaus. Os ânimos
exaltados dos caixeiros surpreenderam e preocuparam o patronato comercial. Os
mecanismos de dominação e controle utilizados por esse patronato muitas vezes
não funcionavam. Quando necessário os comerciários lutavam de forma ativa pela
manutenção e em defesa de seus direitos. O quadro esboçado acima, além de
evidenciar as estratégias de luta e resistência organizada de parte dos membros
dessa categoria nos remete novamente a visão que tinha sobre eles seus
“estimados patrões”.
A expressão, “estimados patrões” citada algumas vezes pela liderança dos
comerciários nos remete a um ponto relevante. Michelle Perrot (1988) alertou os
historiadores para a importância de se perceber as representações operárias
referentes ao patronato, ou seja, de como os operários viam os seus patrões. Tais
denominações davam indícios da densidade dos conflitos vivenciados por esses
segmentos sociais. Essa relação de convivência muitas vezes orientava as ações
políticas dos trabalhadores analisados245.
Assim, no confronto com o patronato, os caixeiros evitavam a “ação direta”
proposta pelos anarquistas, como por exemplo, a greve. Nas fontes pesquisadas
não encontramos referência sobre esse mecanismo de pressão. Ao contrário,
vociferavam contra ela: “estamos convencidos de que alcançaremos pela força
persuasiva da palavra o que outros só o tem conseguido a poder de esforços e
sacrifícios inauditos”246. A decisão em evitar o confronto direto reforça a existência
da relação de dependência existente em parte das casas comerciais em Manaus, o
que não impediu as constantes denúncias anônimas registradas nos jornais da
época pelos caixeiros, principalmente contra a exploração de sua força de trabalho e
244 Associação Comercial dos Retalhistas, Relatório da Administração de 1912. p. 5 - 6. Grifo meu. 245 PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres, prisioneiros. Trad. Denise Bottmann. 3 ed. Rio de Janeiro. 1988. p. 81 - 100. 246 Tribuna do Caixeiro, Manaus, n 06, 25 de maio de 1908.
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sobre as diversas tentativas do patronato em burlar as leis já regularmente
instituídas.
O artifício mais utilizado pelos representantes da AECA para contornar os
conflitos vivenciados entre patrão e empregado foi o diálogo. Muitas vezes a
mediação através desse recurso obteve êxito “(...) com a interferência amigável
desta Associação, encontramos várias firmas comerciais de Manaós, aceitando
simpaticamente as nossas justas ponderações a bem dos interesses dos nossos
associados (...)”247, porém, quando o patronato insistia em não respeitar as leis, o
poder executivo ou o judiciário entrava em cena.
Era antiga a praxe entre os comerciantes aqui estabelecidos de dispensarem
seus auxiliares abruptamente:
“(...) numerosos rapazes, que exerciam a dura profissão de empregados no comércio,
trabalhando com afinco e honradez para manter uma posição definida, embora
modesta, na sociedade, eram do dia para a noite lançados à rua, nas mais das vezes
por injusto capricho dos patrões”248.
Esse cenário começou a mudar somente a partir de 1928, quando o patronato sob
pressão da AECA passou a respeitar o velho princípio consagrado no artigo 81 do
Código Comercial, “segundo o qual o patrão é obrigado a pagar ao empregado que
despedir de seu serviço o salário de um mês, si a essa dispensa não precedeu
aviso, com antecipação de um mês”249. Antonio Dias, um dos primeiros a se
beneficiar pela citada lei, foi dispensado sem aviso prévio. Na luta pelos seus
direitos moveu uma ação no Tribunal de Justiça do Amazonas contra seus antigos
patrões que foram condenados a pagar “integralmente, a indenização reclamada e
mais as custas do processo, em que foram condenados”250.
Em setembro de 1913 imersos na crise econômica, os comerciantes liderados
pela ACA decidiram o fechamento do comércio local como forma de pressionar a
ajuda solicitada ao governo federal. Durante esse fato comentado no tópico anterior,
247 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas. Relatório da Administração de 1926. p. 20. 248 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas. Relatório da Administração de 1928. p. 14. 249 Idem. 250 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas. Relatório da Administração de 1928. p. 13.
98
a Delegação do Comércio responsável pelas negociações solicitou ajuda à AECA, o
objetivo em comum unia a duas forças antagônicas:
“(...) em consequencia da crise que avassalou e ainda avassala o honrado comércio de
Manáos, esta Diretoria agiu nos limites de suas posses, ora dirigindo telegramas a suas
congêneres no Rio de Janeiro e Pará, ora tomando outras providências em minorar a
situação dos nossos estimados patrões, demonstrando-lhes assim a mais franca
solidariedade”251.
Para atenuar os prejuízos causados pelos dias em que o comércio
permaneceu fechado, os comerciantes lançaram uma proposta inesperada aos
caixeiros, parceiros na luta, mas empregados na prática, fazendo emergir as
representações sobre as relações de poder no ambiente de trabalho:
“(...) o senhor Porfírio Pires, proprietário da fábrica de cigarros “Ravachol”, depois de
expor o fim da reunião, apresentou a proposta de que os caixeiros não recebam seus
ordenados, enquanto o comércio se conservar fechado. Só assim poderão eles
demonstrar que nenhum interesse pessoal os move nesta campanha e que todos
pugnam pelo mesmo ideal: o soerguimento do comércio” 252.
A proposta não foi aceita pelos caixeiros. A situação de instabilidade forçava
a união entre patrões e empregados. Os comerciários sabiam que estava em jogo a
manutenção de seus empregos. Nesse momento, o discurso apesar de sutil visava
prioritariamente, o aumento da exploração, expressando a não preocupação dos
patrões com o bem-estar de seus empregados.
A crise mais agravada com a conflagração européia colocou a maioria das
atividades produtivas em completa indecisão, acarretando-lhes sensíveis atropelos e
prejuízos. Os comerciantes através de uma de suas associações davam indícios do
reflexo da instabilidade econômica em seus negócios:
“(..) esta intensa e prolongada crise social, tendo obrigado muitos comerciantes a
fecharem os seus estabelecimentos, dentre eles alguns dos nossos associados,
obrigando também outros a atrasarem-se no pagamento de suas quotas e ainda outros
a retraírem-se de entrar para o quadro social (...)”253.
As consequências da crise foram sentidas também na AECA com a diminuição de
sua receita “o número de sócios em atraso com os cofres sociais, vai n’um
251 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas. Relatório da Administração de 1913. p. 6. Grifo meu. 252 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.383, 27 de setembro de 1913. 253 Associação Comercial dos Retalhistas. Relatório da Diretoria de 17 de janeiro de 1915. p. 15.
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crescendo espantoso, o que de certo modo nos põe um sobressalto constante pelos
destinos da Associação”254. Muitos sócios já sem empregos não tinham como pagar
suas mensalidades.
Em tempos de crise, as relações sociais de trabalho mudam de acordo com o
grau em que as atividades econômicas envolvidas são atingidas. Nesse período,
enquanto algumas categorias de trabalhadores realizavam greves reivindicando
maiores salários, melhores condições de trabalho e uma jornada de oito horas, a
exemplo do que ocorria a nível nacional. Os comerciários à medida que a situação
se agravava faziam concessões a exemplo desta: “a classe caixeiral, atingida
cruelmente por essa anormalidade, está sofrendo duras privações, devido ao corte
dos seus ordenados de quarenta e cinquenta por cento, quando tudo está caro. Já
estão desempregados quatrocentos caixeiros”255.
A redução de 40 a 50% nos salários era um reflexo das negociações vigentes
entre o patronato e os trabalhadores neste período. Sem condições de impor
maiores reivindicações, já que o comercio foi o setor mais afetado pela crise, os
caixeiros, diante da possibilidade da perda de seus empregos e com receio de
passarem maiores privações, cediam às propostas pouco atraentes dos patrões.
Em 1921 diante do preço ínfimo da borracha, a AECA enviou um apelo ao
Presidente da República onde solicitava ajuda ao comércio local “(...) mediante a
compra da borracha, no mínimo a três mil réis, o quilo, única providência de
momento que evitará a ruína da indústria da borracha e a nossa ameaçadora
miséria (...)”. A ajuda que poderia minorar a ameaçadora situação em que se
encontravam seus associados e patrões, caso não viesse ocasionaria o fechamento
de várias casas comerciais deixando aproximadamente cerca de três mil caixeiros
desempregados. Argumentavam que “sendo a indústria da borracha o único
sustentáculo do comércio, este será brevemente forçado ao extremo pungentissimo
de fechar as portas, deixando deslocados, sem meios e privados de manutenção,
cerca de três mil caixeiros”256.
Concomitantemente a crise, os empregados do comércio não aceitaram
recuos em direitos já adquiridos e lutavam para conquistar ainda mais benefícios. A
254 Associação dos Empregados no Comércio de Manaus. Relatório da Administração de 1913. p. 9. 255 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.077, 30 de março de 1921. 256 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.077, 30 de março de 1921. Grifo meu.
100
lei municipal nº 1059, de 22 de outubro de 1920 determinava que: “nenhum escritório
ou estabelecimento comercial poderá abrir as suas portas nos domingos e dias
feriados” e que “nos dias úteis abrirão essas casas às sete horas e fecharão às
dezoito, com intervalo, para descanso, das onze às treze”257. Considerada um
avanço para a categoria, ainda em 1926 esta lei permanecia sendo burlada por parte
do patronato “(...) em diversos ofícios e conferências pessoais, expusemos a
situação da classe perante a lei citada, fazendo ver como era esta burlada e
solicitando do ilustre gestor da Prefeitura medidas tendentes a tornar uma realidade
os direitos daqueles de quem somos representantes”258.
Muitas vezes, o patronato comercial tentou frear essas conquistas com
ameaças e intimidações. Em uma delas iniciou uma campanha para pagar seus
auxiliares por dia e não por mês como a lei determinava. A AECA defendendo os
direitos de seus associados se colocou em posição de confronto “não recuamos nem
exitamos na luta”. Como mediador das partes interessadas foi acionado o então
Prefeito Municipal, Sr. Dr. José Francisco de Araújo Lima. No final desse importante
caso o presidente da agremiação desabafou: “a lei vai sendo cumprida; o
empregado do comércio continua com remuneração mensal; e crentes estamos de
ter cumprido o nosso dever, prestando à nossa classe um serviço inestimável”259.
O comércio já tinha sobrevivido à crise por volta de 1926 e a AECA contava
em seus registros com cerca de 2000 sócios260. Embalados pelo surto de
revigoramento da economia proporcionado pelo Plano Stevenson, que valorizou por
poucos anos, o preço da borracha, os caixeiros passaram a reivindicar o pagamento
de serviços extraordinários à noite e nos feriados. Em um memorial entregue à
Associação Comercial do Amazonas reivindicavam:
“Recompensar com cinquenta por cento, equivalente ao ordenado, o trabalho nos dias
feriados até às onze horas e à noite, nos dias úteis, até às vinte três horas. Passando
essa hora será cobrado duas vezes mais. Não será permitido trabalhar à noite mais do
que duas vezes por semana, salvo em termino de balanço, que será de quatro vezes,
257 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, Relatório da Administração de 1926. p. 3. 258 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, Relatório da Administração de 1926. p. 4. 259 Associação do Empregado no Comércio do Amazonas. Relatório da Administração de 1926. p. 5. 260 Associação do Empregado no Comércio do Amazonas. Relatório da Administração de 1926. p. 27.
101
não podendo o tempo do balanço durar mais do que um mês. Ficarão os domingos
para descanso. (...)”261.
No decorrer do tempo, a nível nacional, outros direitos passaram a ser
conquistados por essa categoria, entre eles o direito às férias e ao aviso prévio. A
AECA manteve com suas congêneres em outros estados, principalmente com a do
Pará, Ceará e com a poderosa União dos Empregados no Comércio do Rio de
Janeiro, um diálogo constante e sempre manifestava apoio nas medidas que
viessem beneficiar, os comerciários em geral. Desta última partiu a iniciativa de
pleitear a lei de férias aprovada segundo o Decreto Federal nº 17.496, de 30 de
outubro de 1926 que concedeu 15 dias de férias anuais ao empregado do
comércio262. Uma das funções da AECA era fazer com que os associados
usufruíssem dessas leis e que as mesmas fossem respeitadas pelos comerciantes
locais, o que nem sempre aconteceu.
Uma posição inovadora e liberal ocorreu com a reforma dos estatutos da
AECA em 1928. A iconografia pertinente a esse período dá visibilidade a poucas
mulheres trabalhando como secretárias e datilógrafas em estabelecimentos
comerciais, o que não significa que esse número fosse inexpressivo. Elaborado para
atender a necessidade de uma época, que com certeza contava com o crescente
número de mulheres no espaço público, a AECA resolveu incluir em seus estatutos:
“(...) o direito de voto à mulher, que podendo fazer parte da Associação e tendo
obrigações, possui agora esse direito, que lhe vai sendo concedido nos dias que
correm no mundo inteiro, e, entre nós, (...)263. A mulher a partir desse momento
poderia ser sócia da agremiação e como tal tinha o direito, a voto nas assembléias.
Da documentação trabalhada foi a primeira Associação de trabalhadores, que incluía
em seu quadro social, a mulher. No ano citado foram admitidos 428 sócios, desse
número somente duas eram mulheres: Jacyra Rodrigues Madureira e Maria Laura
Vallez264, nos anos posteriores esse número aumenta gradualmente.
As transformações ocorridas na sociedade exigiram a partir de 1929 uma
nova postura dessa categoria, antes contrária a participação político-partidária. O
ano marcou a pretensão dos comerciários em ingressar na política. O primeiro passo 261 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.869, 12 de maio de 1926. 262 Associação do Empregado no Comércio do Amazonas. Relatório da Administração de 1926. p. 7. 263 Jornal do Comércio, Manaus, 13 de maio de 1928. 264 Associação do Empregado no Comércio do Amazonas. Relatório do Exercício Social de 1928. p. 44.
102
era o alistamento eleitoral, por isso anunciaram: “iniciamos este ano a qualificação
dos nossos associados que desejavam se alistar eleitores (...)”265. Os caixeiros
possuíam um requisito fundamental exigido nesse processo, eram em sua maioria
alfabetizados. Para que o trabalhador pudesse votar e ser votado era preciso ser
alfabetizado. No sistema eleitoral vigente votavam homens, brasileiros, maiores de
21 anos, alfabetizados e alistados como eleitores:
“Segundo a Constituição republicana de 1891 seriam cidadãos plenos com direito a
voto todos os homens maiores de 21 anos que fossem alfabetizados. “No Império como
na República, foram excluídos os pobres (seja pela renda, seja pela exigência da
alfabetização), os mendigos, as mulheres, os menores de idade, as praças de pré, os
membros de ordens religiosas. (...) A exclusão dos analfabetos pela Constituição
republicana era particularmente discriminatória, pois ao mesmo tempo se retirava a
obrigação do governo de fornecer instrução primária, que constava do texto imperial.
Exigia-se para a cidadania política uma qualidade que só o direito social da educação
poderia fornecer e, simultaneamente, desconhecia-se este direito”266.
O voto, sinônimo de protesto, mudança e renovação era o único instrumento
capaz de afastar aqueles que marginalizavam as demandas dos trabalhadores.
Talvez a inserção no cenário político local possibilitasse ao comerciário, mesmo
como eleitor, atuar no sentido de colocar nos espaços formais de decisões políticas,
pessoas que olhassem para os problemas e para as insatisfações presentes no
mundo do trabalho. Pessoas, no caso homens que se comprometessem a defender
as demandas dos trabalhadores. Ou talvez, esta minoria de trabalhadores
qualificados e articulados dispostos a colaboração entre classes estivesse sendo
alvo de políticos interessados em seu apoio. Uma terceira possibilidade para
justificar sua inserção na política seria o início de uma nova postura, visto que na
década de 30 a AECA passou a ser sindicato, o que requeria uma atuação política
mais acirrada.
Segundo Cláudio Batalha, o número de operários que participava do processo
político eleitoral seja como candidato ou como eleitor era reduzido:
“Todo o processo eleitoral era controlado pelo partido situacionista, propiciando
fraudes, e não havia voto secreto, deixando os eleitores a mercê de todo tipo de
pressão. Assim, durante a Primeira República, as eleições de candidatos operários 265 Associação do Empregado no Comércio do Amazonas. Relatório do Exercício Social de 1929. p. 8. 266 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 44 - 45.
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foram fenômenos raros, limitados a uns poucos casos: como o do tipógrafo João
Ezequiel, eleito deputado estadual, em 1913, em Pernambuco graças a sua inclusão na
lista oficial do governador general Dantas Barreto; e, em 1928, a eleição dos
comunistas Minervino de Oliveira e Octávio Brandão para o Conselho Municipal do
Distrito Federal pelo Bloco Operário e Camponês. As características do funcionamento
dos legislativos, com garantia de ampla maioria para o situacionismo, tornavam as
eleições de eventuais candidatos muito mais um feito propagandístico do que uma
possibilidade para mudanças significativas no sistema político”267.
Esta realidade não era diferente em Manaus. No decorrer da pesquisa não
encontramos documentos de trabalhadores ocupando cargos no parlamento
estadual ou no conselho municipal. Esse novo momento dos comerciários deve ser
objeto de pesquisas de outros historiadores.
É difícil inserir os caixeiros em uma das vertentes ideológicas expostas. Boris
Fausto a elas agrega uma terceira denominada de trabalhista, que na visão desse
historiador “corresponde aos que pretendem obter tão-somente a conquista de
alguns direitos operários, sem pôr em questão os fundamentos do sistema social,
inclinando-se a incentivar implicitamente a heteronomia sindical”268. Diante das
diversas correntes políticas em choque no interior do mundo do trabalho, os
comerciários transitavam com uma autonomia própria, embora, permeáveis a
cooptação patronal presente na sua trajetória de trabalhadores organizados. O
relacionamento “amigável” que tentavam manter com os patrões, nem sempre
ocorreu. Na documentação trabalhada, as constantes denúncias e a luta pela
conquista de seus direitos demonstram dimensões reais de um universo conflituoso.
Na crise perderam seus empregos, tiveram seus salários reduzidos, mas não
aceitaram retrocessos nos direitos conquistados. Passada a tempestade e suas
adversidades, esse segmento social da classe média, já reabilitado empreendeu
novas lutas em busca de novas conquistas.
267 BATALHA, Cláudio. Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.). op. cit., p. 173. 268 FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890 - 1920). São Paulo: DIFEL, 1986. p. 41.
104
2.1.2 – O Funcionalismo Público
Depois do comércio, a crise afetou diretamente as rendas do Estado e do
Município. A queda prolongada do preço de seu principal produto de exportação
determinou a redução da receita a um ponto, que não foi mais possível manter o
pagamento do funcionalismo público em dia. O atraso no pagamento do
funcionalismo vinha de tempos atrás, a crise na realidade só possibilitou que essa
prática se tornasse mais frequente. A afirmação de 1908 confirma esse fato: “cinco
contos constituem o atraso de vencimentos devidos ao funcionalismo público do
Estado do Amazonas; e esta já elevada soma promete aumentar, d’aqui para
Dezembro, cerca de cinquenta por cento”269.
A ambiência vivenciada pelo funcionalismo neste período foi recuperada
através do Jornal do Comércio cujo interesse principal era como elencava em seu
primeiro número defender os interesses comerciais do Estado:
“Alistando-se, hoje em as nobres fileiras da Imprensa brasileira e entrando na arena
das lutas e discussões jornalísticas em prol da justiça e da verdade, o Jornal do
Comércio, órgão da opinião pública, trás antes de tudo e sobretudo a nobre e a
levantidia missão da defesa quotidiana dos grandes e sagrados direitos e interesses
comerciais deste futuroso Estado. Fazendo-se órgão do principal elemento de ordem e
de progresso, que é o comércio, este jornal vem, inegavelmente, satisfazer a uma das
mais palpitantes necessidades do nosso meio social e suprir a lacuna de que, já há
muito, se ressente a vida manauense – um diário que preferentemente advogue e
defenda os interesses comerciais desta vasta e rica região do Brasil”270.
A partir de 1913, quando o comércio da borracha entrou em decadência e
ocorreram constantes greves em Manaus, este importante periódico passou a apoiar
o movimento dos trabalhadores. Em muitos casos, procurou dar “voz” às
reclamações dos trabalhadores através da seção “Queixas do Povo”, onde pessoas
dos vários segmentos populares reclamavam sobre assuntos relacionados ao
sistema de bondes, à limpeza da cidade, segurança pública, saneamento,
iluminação, água, enfim, sobre os problemas cotidianos da cidade.
269 Jornal do Comércio, Manaus, n?, 15 de agosto de 1908. 270 Fundado pelo comerciante português Sr. Joaquim Rocha dos Santos em 02 de janeiro de 1904. In: Jornal do Comércio, Manaus, n 1, 2 de janeiro de 1904.
105
O citado jornal intencionalmente divulgava até as rendas mensais do Estado,
numa tentativa de forçá-lo a honrar seus compromissos e com isso ajudar o
comércio. Rendas que na maioria das vezes eram suficientes para pagar os
vencimentos em atraso do funcionalismo público: “uma boa notícia para o
funcionalismo estadual: o tesouro rendeu, na semana passada, o numerário
bastante para pagar a todos os empregados da capital pelo menos um mês”271. O
impacto da falta de pagamento afetava especialmente o comércio a retalho
ocasionando um reflexo negativo para a economia:
“(...) Referiu-se à sorte do funcionalismo público, dizendo que o não recebimento
dos seus vencimentos importa em grande prejuízo para o comércio, porque os
retalhistas têm nele, um bom comprador e o alto comércio, por sua vez, não pôde
viver sem o concurso dos retalhistas (...)272.
O dinheiro que poderia fluir na praça iria atenuar a situação agonizante do
comércio, várias tentativas foram feitas visando normalizar essa situação:
“A Associação Comercial e o comércio em grosso, por meio de comissões,
procuraram ontem, às duas horas da tarde, o dr. governador do Estado, afim de
que este solicite do governo federal providências no sentido de ser fornecido ao
Estado, por empréstimo, a quantia necessária ao pagamento total dos
vencimentos dos empregados públicos afim de atenuar as condições precárias,
desta praça, especialmente as do comércio a retalho...”273.
Na análise das fontes em vários momentos, os jornais da época relatam as
greves dos trabalhadores da limpeza pública. O motivo era o atraso de vários meses
em seus ordenados. Os operários encarregados dos serviços da limpeza pública na
cidade não eram funcionários públicos, todavia seus salários dependiam diretamente
do repasse feito pela Municipalidade. O serviço era terceirizado e a Municipalidade
demorava a repassar a verba para a empresa fornecedora do serviço, e esta aos
trabalhadores, ocasionando vários embates entre esse segmento social, seus
patrões e o poder municipal.
Um deles nos chamou atenção por iniciar de forma organizada e utilizar como
mecanismo de pressão, o roubo de peças. Sendo a maioria, pais de família e com
seis meses de salários atrasados, vários trabalhadores se dirigiram a redação do JC
para comunicar à opinião pública e à imprensa seus atos. “(...) Estavam ali, em três 271 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.936, 11 de abril de 1915. 272 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.934, 27 de novembro de 1920. 273 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.358, 27 de agosto de 1913.
106
turmas diversas, cerca de quarenta homens, todos empregados na limpeza pública e
todos sem a percepção dos seus ordenados há seis longos meses!”274.
No decorrer do artigo, os trabalhadores insistiam que a manifestação era
apenas um protesto e “(...) não a declaração de greve, a suspensão dos trabalhos:
esperariam até o dia quinze do corrente pelo pagamento, ao menos, de um mês”.
Caso, a exigência não fosse cumprida ameaçavam: “caso não se faça o pagamento,
caso a Intendência não se mova, a greve, nessa data, será um fato”275.
Passados alguns dias, o impasse não foi resolvido e a greve foi declarada.
Aderiram imediatamente aos seus colegas de ofício, os varredores e os
trabalhadores de carrinhos de mão. Um fato considerado “anormal” pelos patrões
chamou a atenção da sociedade: “Eis que, na manhã de ontem, deixou de se realizar a tarefa do arrecadamento do lixo,
visto como, de véspera, dando vazão ao seu descontentamento, haviam os condutores
de carroças e caminhões arrancado aos veículos em número de dezoito as porcas dos
parafusos respectivos.
Assim, logo à noite, tendo de sair o caminhão destinado ao apanhamento do lixo da
varrição geral, verificou com surpresa o encarregado desse serviço especial que lhe
faltavam as aludidas peças, impossibilitando desta forma o carro do necessário
movimento276.
As resistências implementadas pelos trabalhadores principalmente no interior
do espaço de produção, ou seja, dentro das fábricas, como roubo de peças, a
destruição de equipamentos, a sabotagem, o boicote, além das greves eram
altamente valorizadas pelos anarquistas e anarco-sindicalistas. Margareth Rago
(1985) afirma que essas lutas miúdas traduzem uma atividade radical de
contestação por parte dos trabalhadores277. Vincular os operários da limpeza pública
de Manaus a determinada corrente política, sem a documentação e o estudo
necessário não seria correto. Isso, porém, não anula a possibilidade de atuação das
mesmas, no interior dessa categoria de trabalhadores. O que afirmamos é que eles
conheciam os mecanismos de pressão utilizados por outros trabalhadores e
adaptaram essas práticas à sua realidade. As informações provenientes de outras
regiões do Brasil chegavam a Manaus e difundiam não só as dificuldades, mas 274 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.518, 10 de fevereiro de 1913. 275 Idem. 276 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.563, 28 de março de 1914. 277 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplina. Brasil (1890 - 1930). 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 27.
107
também as conquistas da classe trabalhadora. O roubo de peças que impediu a
locomoção dos carros da coleta e transporte do lixo foi o único meio de contestação
capaz de paralisar os serviços e suscitar a atenção da sociedade para suas
privações.
Durante as negociações com os contratantes, um paredista justificou a
deflagração da greve:
“Um da multidão reclamante, usando então a palavra, em termos simples, mas claros e
verdadeiramente comovedores na essência das dolorosas verdades expostas, explicou
e justificou perante os contratantes e o público ali presente a greve e os seus fins justos
e pacíficos”278.
O contratante visivelmente “emocionado” diante do que foi exposto
argumentou:
“(...), aconselhando-lhes calma, prudência e reflexão no momento; tratou das
dificuldades de ordem econômica e financeira que atravessa o município; ponderou que
em breves dias um novo gestor efetivo estaria à frente dos negócios da comuna, só ele
podendo no caso tomar umas tantas deliberações e medidas, pelo que todos deveriam
aguardar, confiantes e esperançosos, a sua posse próxima; conclui, garantindo, que
por estes oito ou dez dias, empenharia todos os esforços para que a intendência
efetuasse qualquer pagamento em favor deles (...)” 279.
Mediante a promessa e fragilizados pelo longo período sem salários voltaram os
paredistas ao trabalho. A trégua durou somente dois meses, quando novamente
passaram a ocupar as páginas dos jornais.
Como era praxe, no final de cada semana esses trabalhadores dirigiam-se ao
escritório da empresa contratante, para receber alguma pequena importância
referente aos seus salários. Em uma determinada semana ficaram sem receber, em
virtude da Intendência não ter enviado dinheiro. Informados que não havia dinheiro
para efetuar o pagamento semanal, os ânimos dos operários da limpeza pública se
exaltaram. Um dos contratantes solicitou que: “(...) tivessem eles moderação e
paciência, aguardando a próxima semana”280. Os trabalhadores não se conformaram
com a declaração peremptória “(...) e dali o surgimento de protestos em voz alta,
gritos de insubmissão, ameaças de abandono do serviço etc”281.
278 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.564, 29 de março de 1914. 279 Idem. 280 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.640, 14 de junho de 1914. 281 Idem.
108
Mais tarde, porém, “já na rua uns seis lixeiros, os mais revoltados e
insubmissos, acharam que se podiam colocar a um certo ponto, proferindo dos
mesmos palavrões inconvenientes”282. Os comportamentos anti-sociais,
principalmente no centro urbanizado da cidade não eram tolerados e exigiam
providências, a polícia foi chamada e (...) chegando ao local da denúncia apenas
veio a encontrar dois dos tais, o espanhol de nome Raphael Espindola e o lusitano
Joaquim Monteiro. Ambos foram presos”283.
As greves deflagradas pelos operários da limpeza pública no período de
instabilidade econômica foram constantes. Notamos que no decorrer do tempo, o
mecanismo de pressão utilizado por eles, ainda persistia, o roubo de peças. O alvo
mudava de acordo com a ação dos contratantes e da Municipalidade, na greve de
1919 deflagrada por falta de recepção de seus salários, os lixeiros implementaram
uma reação ao patronato utilizando novamente esse mecanismo de pressão.
Com a paralisação dos serviços, a Municipalidade numa tentativa de
amenizar a situação da cidade contratou um auto-caminhão para executar a coleta
do lixo, mas para a surpresa do superintendente “todo o lixo arrecadado não foi
incinerado porque se verificou que haviam escondido uma das polias da máquina
assim como feito desaparecer várias peças da mesma, de modo que não era
possível funcionar o forno crematório”284. Diante do recurso imposto pelo
representante do poder municipal, eles só tinham uma alternativa, sumir com
algumas peças do forno crematório impossibilitando a queima do lixo.
As tensões desencadeadas no confronto e a presença da polícia mostravam
claramente a pouca disposição do superintendente em negociar com os grevistas.
No decorrer do embate, a Municipalidade rescindiu o contrato com a empresa
fornecedora do serviço e o exército de reserva sempre atento aos chamados dos
empregadores foi acionado, pulverizando, assim, o possível êxito da greve. Com
isso, a varrição das ruas foi restabelecida, e pelo menos no primeiro momento
passou a ser fiscalizada pelo próprio superintendente municipal acompanhado de
praças de cavalaria porque, “por duas vezes, os grevistas, em grupos de seis,
tentaram impedir o serviço dos novos varredores”285.
282 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.640, 14 de junho de 1914. 283 Idem. 284 Jornal do Comércio, Manaus, n. 5.504, 8 de dezembro de 1919. 285 Idem.
109
Muitos impasses foram contornados mediante o recebimento de pequenas
quantias referentes aos seus salários como vimos acima. O que não ofusca as lutas
desencadeadas por eles na defesa de seus diretos e do que a eles pertencia.
Quando os atrasos nos salários se tornavam frequentes declaravam-se em greve
até que seus patrões resolvessem negociar ou voltassem atrás em suas
deliberações, o que nem sempre ocorreu. Em muitos casos perderam seus
empregos, na luta para receber o filão essencial para a sobrevivência de suas
famílias, o salário.
A falta de pagamento do funcionalismo público composto de ativos e inativos,
aposentados e pensionistas era trivial nas manchetes do JC e se tornava mais
frequente conforme as eleições se aproximavam. O Jornal do Comércio desde sua
fundação costumava passar a ideia de imparcialidade para seus leitores, entretanto,
como defensor de uma elite comercial constituída principalmente de luso-brasileiros
intervêm no cenário político e social conforme os interesses do setor oligárquico que
representa. As intrigas político-partidárias, da qual foi protagonista engendraram
realidades de uma época, com esta, por exemplo:
“No Amazonas atualmente impera o absolutismo. O sr. Jonathas Pedrosa não governa:
é um títere nas mãos dos filhos e do chefe de policia (...) Não se paga a ninguém,
apesar do Estado possuir uma renda relativamente animadora. No ano passado, por
exemplo, o Tesouro rendeu $492:618$917. Sabe-se isto por causa da estatística
publicada pela Manáos Harbour, pois o governador proibiu. Terminantemente, a
publicação da renda. Os jornais da capital, não podendo obter informes a esse respeito,
recorreram ao London Bank, a quem o Tesouro é obrigado a entregar mensalmente
vinte por cento do imposto sobre a borracha, o que serviria de base para os seus
cálculos. E por último até esse banco o governador proibiu que desse qualquer informe
sobre os créditos. O povo, assim, podia ser mais facilmente enganado”286.
Em outra, o JC acusava alguns membros do governo de Jonathas Pedrosa
(1913-1917) de praticarem um ato já conhecido na capital, a compra dos salários
dos funcionários públicos com a agiotagem de oitenta por cento do valor real:
“Como se sabe, pois já é um fato conhecido nesta capital, os dinheiros públicos são
desperdiçados em compra de atestados e ordenados do funcionalismo com a
agiotagem de oitenta por cento. Há emissários para essa patifaria. Os funcionários com
vinte, vinte e cinco e mais meses de atraso, vivendo quase como mendigos à porta do
286 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.960, 6 de maio de 1915.
110
Tesouro, batidos pela fome, entregam-se a esses intermediários e, uma vez feita a
transação, imediatamente recebem as importâncias”287.
Aqueles que reclamavam e falavam contra o governo, os oposicionistas eram
lançados ao índex e ficavam sem receber seus vencimentos, como um magistrado
do interior que começou a militar nas fileiras do partido liberal e “nunca mais lhe
pagaram um mês de vencimentos, remetido que foi ao índex negro dos antipáticos
ao governo”288.
Em 1918, na administração do governador Alcântara Bacellar (1917-1920) a
realidade não era diferente. Os vexames pelos quais passavam os funcionários em
geral e os pensionistas ainda eram cruciantes. Os proprietários dos prédios em que
moravam, não podendo mais esperar pelo pagamento dos respectivos aluguéis
exigiam as casas e os ameaçavam de despejo e apreensão dos parcos móveis. Os
donos das mercearias, por sua vez tendo compromisso a atender, não podiam mais
vender a crédito, sem saber quando receber, o mesmo acontecia com o padeiro289.
Os efeitos da Primeira Guerra Mundial refletiram-se negativamente no
quatriênio desse governador devido a falta de transporte para os produtos de
exportação do Estado. No referido ano nenhum navio vindo da Europa ancorou nos
portos de Manaus. Apenas seis embarcações de origem norte-americana chegaram
à cidade trazendo os porões, em parte comprometidos com a carga paraense.
Enquanto os produtos amazonenses apodreciam nos depósitos, as rendas públicas
diminuíam sensivelmente.
Os magistrados incluídos na lista de funcionários públicos e assim como os
outros, sem a recepção de seus vencimentos aliaram-se em 1918 aos outros
poderes constitucionais do Estado, que por meio de um telegrama solicitavam à
União a intervenção federal do Amazonas. A sessão realizada no Supremo Tribunal
de Justiça pelos magistrados esboçava um quadro nebuloso do momento político,
econômico e financeiro do Estado. Segundo eles, a situação precária tornava-se
mais grave:
“(...) pelo desperdício das rendas públicas, nesta fase dificílima em que a receita
orçamentária do Estado é calculada em dez mil contos, a arrecadação chega a onze
287 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.960, 6 de maio de 1915. 288 Jornal do Comércio, Manaus, n. 3.936, 11 de abril de 1915. 289 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.221, 11 de novembro de 1918.
111
mil e tantos e o governo gasta mais de treze mil, sem se saber como e por que motivo”290.
No debate, os magistrados expressavam opiniões favoráveis e contrárias à
intervenção federal. O desembargador Sá Peixoto justificava o seu posicionamento
contrário afirmando:
“(...) não precisamos da intervenção ampla do governo federal (...), mas unicamente de
providências de ordem econômica e financeira, que visem dar maior incremento a
exportação dos nossos produtos para os Estados Unidos, o único mercado consumidor.
Essas providências só podem ser tomadas pelo governo federal, que mantém relações
externas, motivo por que foi dirigido o telegrama em questão.(...)”291.
Esplanando-se, a favor da medida, o desembargador Estevão de Sá declarou
que o momento presente requeria atenção especial por outro motivo:
”(...) era preciso esclarecer que os magistrados não são como outros funcionários,
outros profissionais que encontram margem para ganhar recursos em outros misteres,
fora dos limites das suas funções. O magistrado só vive dos seus vencimentos e, uma
vez privado desse recurso, está no direito de estrebuchar para não morrer de inanição.
A fome é uma coisa cruel, apavorante, e ninguém a pode suportar de braços cruzados.
(...)292.
O orador referiu-se em seguida ao poder legislativo do Estado “(...) há o
inexplicável descaso do poder legislativo do Estado, que não passa de um
gramophone, nada tendo feito até hoje senão criar uma linha de navegação e uma
outra de tiro293”. Em considerações claras e precisas abordou a situação geral do
Amazonas:
“(...) dizendo que temos de preferência, enfeixado as rédeas do poder executivo nas
mãos de coronéis, quando para o desempenho de cargos administrativos se torna
preciso que o homem conheça o direito e viva em comunidade com as leis que regem
os destinos do povo. (...)294.
Concluindo o seu discurso, o desembarcador Estevão de Sá ainda citou o
movimento financeiro do Estado:
“(...) lamentando que o governo atual não siga o exemplo do dr. Lauro Sodré,
governador do Pará, que manda publicar pela imprensa o resultado das rendas
290 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.118, 26 de julho de 1918. Grifo meu. 291 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.118, 26 de julho de 1918. 292 Idem. 293 Idem. 294 Idem.
112
arrecadadas diariamente e a relação de vencimentos pagos ao funcionalismo ou de
outros compromissos descriminadamente”295.
A intervenção federal foi sinalizada pelo judiciário uma vez passada, lembrou
o desembargador Bonifácio de Almeida, “mas o governo pagou e tudo ficou em paz”.
Foi o que deve ter acontecido nesse caso, porque o recurso solicitado não
aconteceu. O governo realizava o pagamento e os ânimos se acalmavam, pelo
menos momentaneamente.
A intervenção federal voltou a ser manchete nos jornais em 1919, quando o
deputado federal Ephigenio Salles apresentou e justificou à câmara federal um
projeto sobre a intervenção da União, no Amazonas. Entre os vários motivos que
endossavam o pedido citamos: a indevida e violenta intervenção do chefe do poder
executivo na constituição do poder legislativo; o desrespeito do governador pelo
poder judiciário, no qual, por interesses partidários deixava de cumprir sentenças
proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado; a incapacidade do representante do
poder executivo local para governar e administrar o Estado. Esse argumento
repousava no fato do credor estrangeiro haver realizado protesto judiciário,
publicado no Diário Oficial da República, por falta de cumprimento de obrigações
oriundas de contratos solenes entre o Estado e o mesmo credor; o fato de estarem
sem receber os seus vencimentos, os funcionários públicos de Manaus há mais de
dez meses e os do interior do Estado há mais de vinte. Para corroborar esse fato, o
deputado lembrava “já terem os funcionários do Estado, inclusive os membros do
Supremo Tribunal de Justiça, solicitado a intervenção do governo federal, para que
lhes fossem pagos os vencimentos atrasados”296.
Em outro momento, a constante falta de seus vencimentos motivou o
magistrado a deliberar uma reação drástica: o fechamento do Palácio da Justiça.
Essa ação assustou o comércio local, pois consequentemente todo o movimento
forense foi paralisado preocupando os comerciantes da praça privados de exercitar
em juízo, os seus direitos. O presidente da ACA em reunião anunciava:
“É de domínio público que o egrégio Superior Tribunal de Justiça do Estado, levado por
circunstância imperiosa, qual seja a falta de pagamento dos ordenados dos respectivos
295 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.118, 26 de julho de 1918. 296 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.524, 18 de setembro de 1919.
113
juízes, consoante a justificativa do ato de verdadeiro desespero, fechou o fórum,
paralisando deste modo, todo o serviço da justiça”297.
Aludindo ao fechamento do tribunal acentuou o presidente: “Não se deve exigir o
impossível! Ninguém tem o dever de trabalhar sem remuneração”298.
Quanto aos professores, no quatriênio de Jonathas Pedrosa não recebiam em
dias “(...) os seus vencimentos e as escolas eram desprovidas de todo o material
necessário ao seu funcionamento”. Algumas escolas na capital deixaram de
funcionar por mais de um ano299. A instrução pública no Estado do Amazonas atingiu
o seu apogeu no governo do coronel Antonio Bittencourt e entrou em pleno período
de esfacelamento, no governo do citado governador.
Dados estatísticos mostram o aniquilamento desse importante serviço público.
Em 1912 eram mantidas 262 escolas no Estado, com uma freqüência média de
5.259 alunos. O número de escola foi baixando ano a ano, até que em 1916 chegou
a 138, frequentadas por 3.131 alunos. Somente a partir de 1917 adquiriu um novo
revigoramento300.
O funcionalismo no ano de 1917, na administração do governador Alcântara
Bacellar foi satisfeito em dia com seus vencimentos, a partir de 1918 em diante não
foi mais possível manter esse beneficio. Entre os motivos estavam o decréscimo
acentuado na arrecadação do Erário e os pagamentos de exercícios findos e outros
gastos, como a compra do Palácio Rio Negro por 200:000$000 para a sede do
governo. Se diante das críticas, o governador afirmava que foi uma compra
vantajosa, porque o edifício valia três vezes mais, é inconteste que aconteceu em
uma hora de grandes apertos301.
Peculiar desse período foi a greve do Ginásio Amazonense iniciada dia 4 de
maio de 1920 e liderada pelos professores catedráticos Raymnundo de Carvalho
Palhano e Olympio Martins Menezes. A base do descontentamento estava segundo
o ofício expedido ao Inspetor Federal do Ensino, a falta de pagamentos de seus
vencimentos e a precária situação de alguns:
297 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.759, 13 de maio de 1920. 298 Idem. 299 Jornal do Comércio, Manaus, n. 4.833, 13 de outubro de 1917. 300 Idem. 301 BITTENCOURT, Agnello, Corografia do estado do Amazonas. Manaus: ACA-Fundo Editorial, 1985. p. 311.
114
“Sr. Dr. Sebastião Barroso Nunes, Inspetor Federal junto ao Gymnasio Amazonense -
Comunicamos a V. Exc. pedindo que leve o fato ao conhecimento do Egrégio Conselho
Superior de Ensino, que por falta de pagamentos dos nossos vencimentos de
professores do Gymnasio Amazonense, achando-nos na impossibilidade de exercer o
magistério, deixamos de dar as aulas das respectivas matérias que professamos.
Outrossim protestamos contra qualquer ato lesivo aos nossos direitos que jamais
renunciamos, visto como voltaremos imediatamente ao cumprimento dos nossos
deveres, desde que sejamos pagos, portanto, desde que ao menos com equidade o
Governo cumpra também o seu dever”302.
Posteriormente, o ofício foi assinado por outros professores: Coriolano
Durand, Agnello Bittencourt, Dr. Adriano Jorge, Dr. José Francisco de Araújo Lima,
Cônego Dr. Israel Freire da Silva e Plácido Serrano Pinto de Andrade. A intenção
era fechar o Ginásio com a adesão de todos os professores, o que não aconteceu.
Como nas greves existem sempre os fura-greves, os professores grevistas entravam
nas salas de aulas proferindo discursos no sentido de provocar a simpatia dos
alunos.
Na visão do diretor, Vivaldo Palma Lima, os professores subversivos queriam
instalar a anarquia no estabelecimento e:
“(...) não tinham razão; os atrasos nos pagamentos estavam muito mais reduzidos no
mês de Maio do que em Fevereiro, porque com a arrecadação do imposto de indústria
e profissão, em Março o governo pagara, não somente aos professores como também
ao pessoal do corpo administrativo muitos meses dos vencimentos atrasados, sendo
que o professor Coriolano Durand havia recebido os seus vencimentos do ano anterior
e o professor Olympio nove meses de uma vez”303.
A greve no importante colégio público da cidade, único de ensino secundário,
teve reflexo imediato e no dia 10 de maio, o Tesouro do Estado pagou a folha
correspondente a janeiro de 1920 do Ginásio Amazonense instalando a dissidência
no movimento. No dia 12, o professor Agnello Bittencourt apresentou-se pronto para
o serviço e continuou depois a ministrar suas aulas. O confronto entre professores e
poder estadual personificado na pessoa do diretor gerou várias consequências como
nomeações de professores substitutos, exonerações, a declaração de
disponibilidade envolvendo os dois líderes do movimento e mais o professor Plácido
Serrano. Estes pediram ao Supremo Tribunal de Justiça do Estado uma ordem de
302 Documentos do Ginásio Amazonense cedidos pela mestranda: Elissandra Lopes Chaves Lima. 303 Idem.
115
habeas - corpus no sentido de serem mantidos em suas respectivas cadeiras, ordem
essa que lhes foram concedida. Não se conformando com a decisão do Tribunal, do
qual era presidente o chefe de oposição ao partido situacionista, o diretor resolveu
suspender por 30 dias, os professores líderes. As consequências oriundas do
impasse indicam inicialmente a ineficácia das medidas punitivas, já que elas não
frearam o movimento, e a resistência de um grupo de professores às imposições do
governo.
Na falta de seus pagamentos muitos funcionários públicos exerciam outras
profissões para sobreviverem, entre eles os professores:
(...) outras não são honradas com a presença dos respectivos professores porque estes
exercem outras profissões incompatíveis com o magistério, alegando eles que essa
falta de cumprimento de dever é resultante da impontualidade no pagamento de seus
vencimentos”304.
A situação financeira do Amazonas tornou-se aflitiva em 1924, “(...) a redução
de sua receita que minguando sempre veio até a angustiosa situação que atravessa
– não poder pagar os juros e amortização de sua dívida externa, não poder pagar os
juros de suas apólices e empréstimos internos e que vai até ao extremo de não
poder pagar seu Funcionalismo”305. A minguada renda que se conseguia arrecadar
era absolvida pelo pagamento do funcionalismo ativo e pelos serviços mais
essenciais do Estado.
Os movimentos tenentistas que eclodiram pelo Brasil afora como as rebeliões
de 1922, 1924 e a Coluna Prestes não deixou de fora o Amazonas. Os
revolucionários contestavam o poder das diversas oligarquias regionais. Em 1924, o
tenente Ribeiro Junior expulsou do Amazonas a oligarquia corrupta de Rego
Monteiro estabelecendo um governo popular que durou pouco mais de 30 dias. A
Revolução Tenentista liderada por Ribeiro Junior instituiu o Tributo da Redenção
“meio indireto de reaver dos dilapidadores os dinheiros públicos que eles
alapardaram do Tesouro”306. Com isso, a revolução tomou contornos perigosos para
as elites locais confiscando dinheiro e realizando leilões com bens móveis dos
poucos endinheirados da cidade. Com essa atitude, Ribeiro Junior adquiriu capital e 304 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.179, 10 de julho de 1921. 305 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.381, 13 de dezembro de 1924. 306 Discurso do 1º tenente Alfredo Augusto Ribeiro Júnior ao povo amazonense. JORNAL DO POVO: “órgão reivindicador das liberdades nacionais”. Manaus, 26 de julho de 1924. In: SANTOS, Eloína Monteiro dos. op. cit., p. 87.
116
providenciou o pagamento do funcionalismo público. O restante seria distribuído
entre a população miserável existente, dessa forma garantiu a popularidade do
movimento entre esse segmento social.
Em 1925 o interventor federal, Alfredo Sá revelou o drama financeiro do
Estado e do funcionalismo ativo e inativo:
“Quando assumi a administração em 2 de dezembro de 1924, encontrei em cofre
apenas a soma de 1:490$000 e os pagamentos desse ano ao funcionalismo ativo feitos
somente até o mês de junho inclusive, não se falando nos inativos, aos quais nenhum
pagamento se fizera. Esses atrasos provém de muitos anos já, tendo, por isso, os
funcionários ativos e inativos avultados créditos no Tesouro”307.
Para melhorar essa situação tomou várias medidas em sua administração,
possibilitando o aumento nas rendas do Estado. Expediu um ato suspendendo, o
que considerava uma injustiça, a cobrança do imposto sobre os vencimentos do
funcionalismo público de acordo com a lei orçamentária nº 1.216, de 3 de dezembro
de 1923 “(...) não só por não serem exagerados os vencimentos do funcionalismo
estadual como por não ser licito à administração mandar fazer este desconto quando
não era pontual nos pagamentos aos empregados públicos”308. Durante o período
em que esteve no governo, o Tesouro arrecadou numerário suficiente para
regularizar a situação vexatória em que se encontrava o funcionalismo e ainda
acudir às obras de reparo e conservação de edifícios públicos, pontes, estradas e
outros.
Quando as oligarquias locais voltaram ao poder as práticas viciosas, a
corrupção e a desordem voltaram a reinar nas várias ramificações do poder. Ainda
em 1929, uma prática não tão antiga permanecia sendo usada conforme as charges
publicadas no JC:
- Uma esmola, minha senhora. - O Snr. Não está empregado?
- Estou, mas há quatro meses não recebo. - E quanto tem a receber?
- Nada mais. Vendi com oitenta por cento...309.
Outra charge dava indícios da aplicação do dinheiro público:
- Quantos são os pecados mortais?
307 Mensagem do Interventor Federal no Amazonas, Sr. Alfredo Sá, 15 de dezembro de 1925. p. 9. 308 Mensagem do Interventor Federal no Amazonas, Sr. Alfredo Sá, 15 de dezembro de 1925. p. 14. 309 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.801, 8 de setembro de 1929.
117
- São sete.
- Diga alguns.
- As placas, [das inaugurações das obras públicas], as estradas, as gratificações...
- Basta, menino!310.
No final da Primeira República o funcionalismo ainda não conseguia receber
seus salários em dia:
“(...) Havia dentro e fora umas oitocentas pessoas. (...) Homens e mulheres se
acotovelavam na ânsia de chegar o momento de abrir-se o guichet da pagadoria. (...)
Era que haviam prometido pagar o funcionalismo com o dinheiro que fosse apurado
com a renda que deixasse o [navio] Hildebrand. Nessa convicção, movimentaram-se
velhos servidores do Estado, que estampavam na fisionomia o sinal do sofrimento, a
miséria íntima que os vem torturando de cinco meses a essa parte, sem receber um
real de seus vencimentos. Lá encontravam também os pensionistas do montepio, (...).
Os aposentados, (...). O magistério (...). O magistrado (...)”311.
Suspendam as obras! Paguem o funcionalismo! Era a manchete do JC de 21
de dezembro de 1929. Apesar de não ter dinheiro para pagar o funcionalismo com
cinco meses de atraso em seus vencimentos. Dinheiro tinha para as obras, estradas,
e outros meios considerados pelos políticos essenciais para justificar seus fins
eleitoreiros e garantir o poder. As oligarquias cada vez mais pobres e decadentes se
apropriavam da única fonte rentável no Amazonas, ou seja, do poder. De onde
inteiramente divorciadas da opinião pública procuravam atender somente aos seus
interesses particulares e beneficiar os apadrinhados que transitavam em sua órbita
de influências. Se quisessem pagar o funcionalismo poderiam fazê-lo como fez o
interventor federal, mas somente os privilegiados, os apadrinhados recebiam o
pagamento em dia.
310 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.939, 13 de fev. de 1930. 311 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.880, 10 de dezembro de 1929.
118
2.2 – O Universo do Trabalho em Manaus
[...] a história não pode ser comparada a um túnel por onde um trem expresso corre até levar sua carga de passageiros em direção a planícies ensolaradas. Ou então, caso o seja, gerações após gerações de passageiros, nascem, vivem, na escuridão e, enquanto o trem ainda está no interior do túnel, aí também morrem. Um historiador deve estar decididamente interessado, muito além do permitido pelos telcologistas, na qualidade de vida, nos sofrimentos e satisfações daqueles que vivem e morrem em tempo não redimido.
E. P. Thompson. “As peculiaridades dos ingleses”.
A expansão da economia gumífera proporcionou a diversificação do mundo
do trabalho em Manaus e uma nova configuração à classe trabalhadora, além dos
nativos da terra, imigrantes nacionais como os nordestinos e estrangeiros, entre
eles: portugueses, espanhóis, italianos, ingleses, franceses, alemães, sírios, turcos,
árabes, marroquinos, barbadianos, somados aos latinos passaram a compor as
diversas categorias de trabalhadores urbanos.
A maioria desses trabalhadores era composta de analfabetos. Aqueles que
dominavam a arte da escrita e da leitura em Manaus pertenciam ao segmento médio
da sociedade (professores, advogados, médicos, comerciantes, militares, etc.), a
eles estava agregada somente, uma pequena parcela de trabalhadores qualificados,
em geral estrangeiros. Em uma sociedade ainda marcada pela oralidade é relevante
observarmos que “por vezes, a introdução da escrita, menos que desarticular ou
sobrepujar o pensamento oral, vê-se apropriada por ele e submetida a seus próprios
termos”312. E assim, é necessário perceber não só “as limitações estruturais, mas
também as estratégias empreendidas pela cultura letrada para se impor dentro
312 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Letramento e periodismo no Amazonas (1880 - 1920). Tese de doutorado em História. São Paulo: PUC, 2001. p. 65 - 66.
119
desse contexto cultural adverso”313. Dentre as estratégias utilizadas enfatizamos a
leitura coletiva de jornais e panfletos realizada nas ruas, botequins, bares, cafés,
clubes, associações de classe, ambiente escolar e etc. Este tipo de leitura se
destaca enquanto estratégia da cultura letrada para se fazer presente em um
ambiente cultural adverso, marcado ainda, em grande parte pela oralidade.
Na aquarela de rostos misturavam-se de forma majoritária os nativos e os
nordestinos. Trabalhadores de várias nacionalidades labutavam nos serviços
públicos, nas áreas de educação, saúde e saneamento como médicos, enfermeiras,
juízes, delegados, policiais, professores, amanuenses, engenheiros, etc. Na
expansão da economia gumífera, a crescente receita oriunda da arrecadação fiscal
tornou o poder público, um dos principais empregadores desse período. O comércio
também abarcava uma significativa quantidade de trabalhadores entre eles:
balconistas, caixeiros, secretários e guarda-livros. Ao iniciar o século XX, o comércio
contava com mais de três mil trabalhadores314.
Uma das características do trabalho urbano em Manaus foi a concentração no
setor de serviços do maior contingente de trabalhadores. Nesse ramo estavam os
trabalhadores ligados ao porto: catraieiros, carroceiros e estivadores e os
trabalhadores marítimos: marinheiros, taifeiros, maquinistas, práticos, pilotos e
foguistas, além das categorias ligadas à prestação de serviços urbanos (água,
bondes, esgoto, luz, telefonia e etc.)315.
Outra característica pertinente ao mundo do trabalho em Manaus foi a
predominância masculina, uma vez que a presença feminina apenas começava a
ganhar visibilidade no espaço público. No âmbito do privado, as mulheres
continuavam a exercer funções tradicionais como de domésticas: cozinheiras,
passadeiras, lavadeiras, estas muitas vezes realizavam seus trabalhos na beira dos
igarapés. No final do século XIX, o trabalho feminino avança em direção ao
magistério infantil e posteriormente para as funções de secretárias e datilógrafas.
Nas atividades fabris, as mulheres labutavam na Fábrica de Roupas Amazonense e
nas fábricas de beneficiamento de castanhas. Em todos os casos, embora
313 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte. op. cit., p. 65 - 66. 314 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Nos meandros da cidade: cotidiano e trabalho na Manaus da borracha (1880-1920). In: Associação Nacional de História – ANPUH. XXIV Simpósio Nacional de História – 2007. 315 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Nos meandros da cidade. op. cit.
120
realizasse a mesma jornada de trabalho dos homens, seus ganhos eram inferiores
aos destes. A maioria dessas mulheres era pobre e não podia recusar o ganho
proveniente das atividades exercidas, a necessidade estava acima dos preconceitos
sociais em voga316.
O trabalho infantil317, graças às iconografias existentes, também vigorou na
Manaus da borracha. A transitoriedade desses pequenos atores sociais se
materializava no viver da cidade, seja como entregadores de encomendas e recados
ou como jornaleiros, engraxates, vendedores ambulantes, pequenos caixeiros e etc.
O trabalho do menor, assim como, da mulher era frequentemente necessário para
complementar os ganhos e a renda da família. Em diversas ocasiões, as firmas
locais e a concessionária inglesa Manáos Harbour utilizaram essa força de trabalho,
como alternativa estratégica para a manutenção da acumulação de capitais. A baixa
remuneração também foi regra predominante nesse meio318.
Enquanto, o setor terciário (comércio e serviços) englobava uma grande
quantidade de trabalhadores, o setor fabril pouco se desenvolveu alocando um
pequeno número de trabalhadores em empresas de beneficiamento de produtos
regionais como a castanha, na fábrica de gelo e cerveja, nas de vassouras, sabão,
funilarias ou ainda nas oficinas gráficas locais319.
A ampliação do mercado de trabalho na cidade se processou ancorado
nessas bases. Com isso diversas categorias profissionais vão se consolidando e
posteriormente, devido os embates travados na relação capital e trabalho, algumas
delas passam a fomentar o lento processo associativo. Neste sentido, a organização
dos trabalhadores era vista como essencial para empreender movimentos visando
mudanças e melhorias em prol de melhores condições de trabalho e de vida:
“Mas, como opormo-nos a estas condições, como obtermos a melhoria de nossa
situação, forçando o capital a concedê-las? É bem justo pedirmos, mas o operariado
pedindo sozinho e desamparado do apoio de seus companheiros de classe fica em
situação inferior ao patrão. O medo de perder o seu trabalho tira-lhe a coragem de
protestar ou pedir. É certo que um operário só, ou os operários de uma só fábrica
isolada das outras, não tem meios de defender-se, pois o patrão é quem pode exigir e
316 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Nos meandros da cidade. op. cit.,. 317 Ver o importante trabalho realizado pela historiadora: PESSOA, Alba Barbosa. Infância e trabalho: dimensões do trabalho infantil em Manaus (1890 - 1920). 318 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Nos meandros da cidade, op. cit.,. 319 Idem.
121
ditar as condições. Recusando o pedido de seus operários, o patrão está certo da
vitória, porque as necessidades de manter a família, e a própria fome, os forçarão, em
poucos dias, a capitulação ao trabalho. De fato, o patrão pode registrar longo tempo; o
operário só, não. Os recalcitrantes são substituídos facilmente, mas trabalho novo é
difícil de encontrar, porque o patronato fica os conhecendo como rebeldes.
(...)
Desta situação nasceu a necessidade das associações (...) a associação, nós bem o
sabemos, dá ao operariado coesão e meios de pedir, e de exigir, se necessário for
resistindo por longo tempo, pois a associação solidariza os operários (...). Assim, os
patrões perdem as vantagens de tratar com um só operário, fraco e isolado, e serão
obrigados a tratar com a associação, tão forte como eles”320.
Essas associações inicialmente beneficentes e mutualistas passaram a atuar
como sindicatos em pleno período de recessão econômica, e seu interesse maior se
resumia em defender os direitos e as demandas do trabalhador. A relevância da
organização dos trabalhadores era um consenso nos jornais operários da época,
tanto os Reformistas quanto os Anarquistas apoiavam e incentivavam essa iniciativa.
A crise afetou em graus diferenciados a população citadina, tanto o
trabalhador que vivia das rendas das casas comerciais e do transporte de
mercadorias, agora com pouco fluxo, assim como àqueles que dependiam
indiretamente do pouco dinheiro trazido pelos seringueiros para ser gasto na cidade.
Estes foram os primeiros a sentirem os efeitos da convalescença econômica
regional. Em meio à crise, as elites locais teimavam em encontrar um culpado, e
para eles a culpa era dos trabalhadores, dos seringueiros especificamente, por sua
ineficiência produtiva e sua incapacidade de reação às demandas externas 321.
Esqueceu esse segmento social privilegiado dos seus desperdícios e delírios
modernistas centralizados mais na preocupação em embelezar o espaço central da
cidade, do que em realizar investimentos visando renovar e aprimorar o processo
produtivo, e da inércia das autoridades públicas que na sua ganância por mais
impostos sobre as exportações, não implementaram políticas públicas visando evitar
a derrocada da economia gumífera.
Nos debates entre o patronato e os trabalhadores, sobre a culpabilidade da
crise, os líderes sindicais foram enfáticos ao afirmar: se havia uma crise ameaçando
320 O Extremo Norte, Manaus, n 19, 20 de maio de 1920. 321 AVELINO, Alexandre Nogueira. op. cit., p. 102 - 103.
122
a todos, esta existia não por culpa dos trabalhadores, seja ele da cidade ou dos
seringais, a culpa era da acomodação dos patrões, que ficavam de braços cruzados
a esperar a terminação da crise, ou então, a ajuda federal “cair dos céus”322.
O cotidiano dos trabalhadores, mesmo durante o apogeu da economia
gumífera foi permeado de dificuldades, os baixos salários, a longa jornada de
trabalho e a carestia de vida, agregados ao desemprego tornaram-se mais
acentuados na vigência da crise. A crise agravada a partir de 1913 passou a ter
reflexo na vida dos trabalhadores causando desemprego e ameaçando sua
sobrevivência. A queda gradual do preço da borracha e a consequente retração
comercial deixaram pencas de desempregados transitando pela cidade em busca de
novos postos de trabalho. No início da crise esse objetivo se tornava mais difícil.
Uma testemunha da época relatava que: “(...) foi abordado por um “barbadiano” que
lhe pediu um níquel, para comprar um pão, declarando lhe que tem procurado
emprego e que por toda a parte o repelem”323.
O desemprego atingiu em graus variados, os trabalhadores de diferentes
nacionalidades, a começar pelos portugueses, a maior colônia estrangeira na
cidade, nos legando quadro como este:
“Alguns portugueses que se encontram desempregados e, nesta quadra difícil de crise,
desesperançados de conseguir trabalho, escreveram ontem ao JORNAL pedindo-nos
[que] solicitássemos ao cônsul português o fornecimento de passagens para o sul do
país, onde, de certo, encontrariam mais probabilidade de conseguir colocação. Lembra
esse grupo de lusitanos que assim procede para com os seus patrícios o cônsul da
Espanha”324.
Os lusitanos controlavam boa parte do comércio lojista, padarias e mercearias
da cidade e ainda segundo o cônsul português: “a colônia portuguesa em Manaus
[possuía] mais da metade da propriedade urbana, que [rendia] anualmente a
Portugal cerca de mil contos fortes”325. Para aqueles desprovidos de tais recursos
restavam os trabalhos oferecidos pela cidade e foram esses, que mais sentiram os
efeitos da crise. A brasilianista June Hahner relata que poucos imigrantes desejavam
cortar os laços com a terra natal. Sempre que possível, enviavam dinheiro para seus
parentes na Europa. Em geral, os imigrantes celebravam os feriados de seus países 322 AVELINO, Alexandre Nogueira. op. cit., p. 100. 323 Jornal do comércio, Manaus, n 3.242, 7 de maio de 1913. 324 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.509, 1 de fevereiro de 1914. 325 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros. op. cit., p. 88.
123
de origem, filiavam-se às associações de bem-estar baseadas na nacionalidade, e
esperavam que os representantes de seus governos os protegessem em tempos de
crise326.
No contexto local, as afirmações da brasilianista foram aplicadas tanto no
caso dos portugueses, como dos espanhóis. Estes últimos, assim como os
portugueses, fundaram na cidade sociedades beneficentes como a Sociedad
Espanola Recreativa y de Beneficencia e a Sociedad Espanola de Soccorros
Mútuos. No momento difícil de crise, a única saída para aqueles em precárias
condições de vida foi recorrer ao cônsul, na expectativa de serem ajudados ou
auxiliados pelo governo espanhol, como demonstra o caso a seguir:
Sensibilizada com a sorte de alguns patrícios que se encontram, nesta cidade, em
precárias condições, uma comissão de espanhóis, composta dos srs. Joaquim
Azpilicueta, Adrião Ruiz Breval e Anselmo Garcia, convidara o respectivo cônsul e
todos os membros da colônia para uma reunião, cujo objetivo era tomar providências
em amparo dos indigentes.
Essa reunião realizou-se ontem, às dezesseis horas, na sede do Luso Brasileiro Sport
Club, comparecendo à mesma oitenta espanhóis. O cônsul fez-se representar pelo seu
secretário, sr. Adolpho Martins, que presidiu os trabalhos, ladeado pelos presidentes da
Sociedad Espanola Recreativa y de Beneficencia e da Sociedad Espanola de
Soccorros Mutuos.
Lembrou um dos oradores que se redigisse e enviasse ao governo espanhol, por
intermédio do cônsul, um minucioso memorial, descrevendo a situação em que se
encontram os espanhóis nesta cidade, e pedindo-lhes um auxílio no sentido de serem
repatriados, com urgência, os súditos necessitados. (...)327.
No período de efervescência da economia gumífera grandes contingentes de
população pobre se deslocava para Manaus, a procura de trabalho. É importante
ressaltar que mesmo nessa época existia desemprego, principalmente para os
trabalhadores com pouca qualificação profissional. Na crise, as oportunidades de
emprego tornam-se mais difíceis e raras. Os infortúnios pelos quais passavam os
trabalhadores latinos em Manaus, no período de recessão econômica, emergem de
forma parcial em um artigo de jornal, onde várias questões se destacam. Muitos
latinos, no caso específico os peruanos, saíam de sua terra natal em busca de
trabalho, expulsos pelas adversidades da vida. Em geral, era gente do campo com
326 HAHNER, June E. op. cit., p. 253. 327 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.061, 14 de março de 1921.
124
pouca qualificação, imbuídos de expectativas e atraídos pelas falsas promessas de
trabalho promovidas pelos agenciadores de trabalhadores. Quando chegavam à
cidade se deparavam com outra realidade, não existia trabalho para todos, os
poucos que conseguiam empregos não eram pagos pelos agenciadores, ou então,
não recebiam, destes, os salários prometidos, aqueles que insistiam em seus
direitos eram abandonados a própria sorte. A situação delicada de vários
trabalhadores peruanos era preocupante em 1928, como não tinham nenhuma
ocupação eram considerados pela polícia como vagabundos, sendo alvo constante
de perseguição e repressão policial. O cônsul peruano, único elo com a terra natal,
articulava com diversas empresas, passagens gratuitas para mandá-los de volta ao
mundo que outrora deixaram. Como poucos imigrantes latinos contribuíam com os
seus governos, nos momentos difíceis se tornavam um peso extra para estes. Eis o
teor do artigo:
“LA MÁLA SITUACION DE LOS TRABALHADORES PERUANOS EM MANAOS
Por comunicaciones diversas dirigidas a la Prefectura por el Consulado General del
Peru en Manáos, se tiene conocimiento que los trabajadores peruanos que se
encuentran por esas regiones atraviezan una situación bastante delicada a
consecuencia de causas diversas, especialmente la falta absoluta de trabajo y el
engano de que son victimas nuestros compatriotas que son llevados a esos lugares,
atraidos por las falsas promesas que los hacen ciertos individuos inexcrupulosos; pues
una vez Allá, los abandonan completamente y no les quierem pagar sus salarios
dejándolos a su propria suerte en esos solitarios parajes.
El Consul tiene que estar gestionando con empresas diversas el que traigan a nuestros
desdichados compatriotas gratuitamente hasta Remate de Males, para que de alli
puedan regresar nuevamente al Peru. En uno de los parrafos el Consul dice que la
policia brasilera está persiguiendo a infinidad de peruanos que como no tienen trabajo,
los consideran como VAGOS; y entre otras cosas dice: “Como es enorme el numero de
peruanos que se encuentran en estas condiciones he creido necesario llamar sua
atención a fin de ver si le es possible evitar en alguna fórma la emigración de nuestra
gente de campo tan poco capacitado para obtener trabajo y creo que seria conveniente
poner algun aviso em los diarios indicado que aqui no hay trabajo y que si alguno viene
a buscarlo debe pensar en que no puede contar con la idea de ser regresado al Peru
por cuenta del Gobierno”.
125
Com todo agrado damos a la publicidad este hecho, para que los obreros peruanos no
se dejen surprender y vayan al extranjero a suffrir padecimientos y miserias
incalculables”328.
Nessa conjuntura de crise e desemprego não só os caixeiros tiveram seus
salários diminuídos, outras categorias citadinas foram vítimas desse artifício utilizado
pelos patrões, como por exemplo, os estivadores329, agregado, neste caso, ao
aumento da jornada de trabalho. Diante da nova realidade imposta e da exploração
de sua força de trabalho, esse segmento social protestou e reclamou. Em vários
momentos de sua história declararam-se em greve quando necessário, e bradaram
contra a diminuição gradativa dos salários, frequentes desde 1914 e pela falta de
pagamento da jornada extra:
“Em nome de cinquenta e quatro companheiros de trabalho esteve ontem, nesta
redação o estivador Manoel Gomes, ex-empregado da Manáos Harbour Limited, o qual
nos contou o seguinte: Há mais de seis anos são empregados nessa companhia no
serviço de capatazias. Antes da guerra européia recebiam alguns deles duzentos e dez
mil réis mensais e outros cento e noventa mil réis. Com a declaração da guerra
passaram a receber cinco mil trezentos e trinta e três réis nos dias de trabalho,
acontecendo que a companhia quando trabalhavam à noite não o gratificam pelo
serviço extraordinário como fazia outrora, pagando oito mil por meia noite de trabalho e
dezesseis mil réis por uma noite. Nestes últimos meses cortaram essas gratificações,
percebendo os queixosos os cinco mil trezentos e trinta e três réis, embora o trabalho se prolongue pela noite a dentro.
328 “A má situação dos trabalhadores peruanos em Manaus. Por comunicações diversas dirigidas à Prefeitura pelo Consulado Geral do Peru em Manaus, se tem conhecimento que os trabalhadores peruanos que se encontram nessas regiões, passam por uma situação bastante delicada, em conseqüência de causas diversas, especialmente a falta absoluta de trabalho e o engano de que são vítimas nossos compatriotas, que são levados a esses lugares, atraídos por falsas promessas feitas por certos indivíduos inescrupulosos; pois uma vez lá, os abandonam completamente e não querem pagar seus salários, deixando-os à própria sorte nessas paragens solitárias. O cônsul tem que estar tramitando com diversas empresas para que tragam os nossos miseráveis compatriotas gratuitamente até Remate de Males, para que dali possam regressar novamente ao Peru. Em um dos parágrafos o cônsul disse que a polícia brasileira está perseguindo uma infinidade de peruanos que, como não tem trabalho, os consideram vagabundos, e entre outras coisas disse: “Como é enorme o número de peruanos que se encontram nestas condições. Creio que é necessário chamar atenção a fim de ver se é possível evitar de alguma forma, a emigração de nossa gente do campo, tão pouco capacitada para obter trabalho, e creio que seria conveniente pôr algum aviso nos diários, indicando que aqui não há trabalho e que se alguém vier em busca deve estar ciente de que não pode contar com a idéia de regressar ao Peru por conta do governo”. Com satisfação publicamos este fato, para que os operários peruanos não se iludam e venham ao estrangeiro padecer e sofrer misérias incalculáveis”. In: Jornal El Dia de Iquitos, edição de 24 de julho de 1928. Apud.: Jornal do Comércio, Manaus, n 9.110, 2 de setembro de 1930. 329 Ver o importante trabalho sobre essa categoria específica em: PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus 1899 - 1925. 2 ed. Manaus: Edua, 2003.
126
No serviço de descarga e carga do Anselm [navio] esses estivadores trabalharam
quatro dias e quatro noite consecutivas, o que acharam demasiado, pois ficaram
esfalfados. Entenderam então, reclamar uma gratificação por tão pesado trabalho,
desde que a companhia cobra do comércio capatazia dobrada, quando o serviço é feito
à noite. O reclamante adiantou-nos que houve promessa de atendê-los, mas, quando
terminaram o trabalho, foram todos expulsos apesar de mais de seis anos de bons
serviços”330.
Os carroceiros e os bolieiros também foram vítimas dessa prática. Em 1917,
Manuel Maria, membro da União dos Carroceiros, informou que estavam em greve,
o motivo foi terem os patrões diminuídos seus ordenados:
“(...) é a exigüidade dos ordenados, principalmente na época que atravessamos (...).
Adiantou-nos que outrora percebiam os carroceiros e bolieiros duzentos e quarenta e
trezentos mil réis mensais, respectivamente. Os patrões baixaram esses ordenados
para duzentos e duzentas e cinqüenta mil réis, o que, no entender deles, não
compensa o trabalho”331.
Sobre a remuneração do trabalhador, as fontes indicam que na maioria das
vezes, não eram suficientes para suprir as exigências mínimas de sobrevivência. A
baixa remuneração predominante no apogeu do extrativismo da borracha persistiu
na crise. Como destaca o artigo abaixo, qualquer imprevisto no cotidiano do
trabalhador, como por exemplo uma doença, tornava a situação mais crítica, uma
vez que compromissos assumidos não seriam cumpridos. Outro item relevante
refere-se ao atraso nos pagamentos, frequentes para diversas categorias como, por
exemplo, o funcionalismo público e os gráficos da imprensa oficial:
“Não há cousa mais triste, do que a vida do pobre trabalhador numa quadra como esta
(...). A desgraça bate-lhe a porta e vai encontrá-lo vacilante e acabrunhado, pensando
como há de sustentar a prole, com tão mesquinho salário que percebe (e as vezes não
recebe); que não chega a atender as primeiras necessidades do lar. Então pensativo, e
dentro do círculo de ferro em que se acha exclama: que miséria! Não tenho dinheiro
nem crédito!...
É uma verdade. Porque se recorre ao taverneiro que é seu amigo (...) pede-lhe logo
crédito, este logo lhe diz: não posso! Outros dizem sim, mas... exploram tão
estupidamente o pobre trabalhador, que não sabe o meio de julgá-lo. E ai daquele que
diz; não posso pagar esta semana; tenha um pouco de paciência. Fica
terminantemente cortado, e entregue à sua própria desventura... Não sabem eles que o
330 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.567, 11 de janeiro de 1917. Grifo meu. 331 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.785, 24 de agosto de 1917. Grifo meu.
127
pobre é honrado, e se não lhe pôde pagar foi por não ter recebido, ou teve que atender
à doença em casa, e o que ganhou, não deu para o médico e farmácia. Mas que há de
fazer? (...)”332.
Um aspecto que deve ser sublinhado nesse período é a falta de pagamento
do salário do trabalhador. A política de atrasar os salários dos trabalhadores era
uma das muitas vicissitudes pelas quais passava o operariado, e ilustra bem as
condições inseguras do trabalho permanente em Manaus:
“Escreveram-nos ontem uma carta vários operários que trabalharam na oficina “Nova
Empreza”, dizendo-nos, relativamente a uma notícia anteontem incerta nessa folha,
que todos eles se acham no desembolso das importâncias que venceram, quando ali
trabalharam, acrescentando que são maltratados pelo gerente Borges sempre que
procuram receber o que lhes devem”333.
No parque industrial brasileiro durante o primeiro grande surto de
desenvolvimento, não existia o contrato de trabalho com garantias legais, sendo a
admissão e dispensa do operário, acertos resolvidos de forma oral, sem aviso prévio
e sem indenização ao trabalhador demitido. Os trabalhadores viviam
constantemente amedrontados, o medo de perder seu emprego era iminente, não
havia direito à estabilidade no trabalho. Não havia “direitos adquiridos” e soluções
jurídicas ao alcance dos empregados, às quais eles pudessem recorrer para
reclamar as reduções, o atraso e mesmo a falta de seus pagamentos. Nessas
circunstâncias, o único recurso utilizado para pressionar os empregadores e fazer
valer os seus direitos era a greve334.
Em Manaus, são poucos, mas existentes, os casos onde os trabalhadores
mesmo não tendo “direitos adquiridos” procuraram de alguma forma reaver os
ganhos do trabalho realizado. Uma tentativa nesse sentido foi realizada por um
grupo de trabalhadores que pretendia entrar na Justiça solicitando, principalmente,
os pagamentos dos salários sonegados pelos patrões. Jeronymo Antonio Garcia,
Malchiades Pauxis, Gregório Fortes, Celso Ferreira de Souza, Faustino Galdino,
Antonio Oliveira, Francisco Aureliano de Araujo e Antônio Paes declararam ser
tripulantes da lancha Bazilio, respectivamente, na ordem de colocação de seus
nomes, maquinista, prático, mestre, moço de convés, marinheiro, foguista e taifeiro.
332 Vida Operária, Manaus, n 6, 14 de março de 1920. 333 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.3.19, 12 de dezembro de 1914. 334 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador na cidade de São Paulo (1890 - 1914). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. p. 81.
128
Todos eram trabalhadores do porto e delegaram poder através de uma procuração,
a um advogado, para que este defendesse os seus direitos perante o juízo local e
federal contra os proprietários da lancha citada, por se recusarem a pagar as
soldadas vencidas, os quatro últimos declararam ao tabelião, não saber ler e nem
escrever, elementos estes recorrente ao mundo do trabalho vigente335. A procuração
demonstra o inconformismo desses atores sociais com determinadas decisões
patronais e a luta para receber os ganhos provenientes da labuta diária. A derrocada
da economia gumífera reduziu drasticamente o fluxo de cargas e passageiros no
porto de Manaus, o que pode ter ocasionado o fato, trivial também na época de
grande movimento portuário.
A recessão econômica mais visível e acentuada, a partir de 1920 impôs ao
trabalhador pobre outro agravante, o elevado custo de vida começou a corroer os
salários, muitas vezes já reduzidos, dificultando ainda mais o viver na cidade:
“É tenebroso, principalmente para os operários, falar em carestia de vida, porque para
dizer o que ela é vai ferir muita gente boa.
A alta de preços na velha Europa é um fato, porém aqui no Brasil, é uma fonte de
riqueza dos senhores comerciante que famintos do ouro, e sedentos de ver os seus
capitais aumentarem de dia para dia, lançam mão de todas as especulações.
É verdade que em todas as praças houve alterações, devido a exportação que até
então era nenhuma, mas, o que não chegou a tanto, como os senhores apregoam.
Admito mesmo que tudo custe o olho da cara, porém não admito é a exploração que
esses mesmos senhores são useiros e vaseiros.
(...)
Não admito que esses senhores sedentos de ouro, amparados pela mentira
convencionada, sustentados pela necessidade do Povo, explore esse mesmo Povo,
sem dó nem piedade.
(...)
O ano atrasado eles aproveitaram-se da miséria do Povo, vendendo a caixa de
kerozene a 80$000, quando as duas casas representantes desse líquido, vendiam a
27$500.
No mesmo ano na quadra calamitosa da gripe, certo taverneiro da E. Epaminondas
vendeu a lata de leite a 5$000!
Durante uma semana o açúcar oscilou de 800 a 3$000.
Alguns comerciantes obtiam o leite no Cambixe a 300 réis, e venderam a 3$000.
(...)
A maior parte dos retalhistas possui dois ternos de peso e medida! 335 Manuscritos encontrados no Arquivo Público de Manaus.
129
Entra ano, sai ano, e cada vez tudo mais caro.
O Povo além de comprar caro é ludibriado no peso e na medida.
(...)
O freguês, não tem dinheiro suficiente para satisfazer todas as necessidades de sua
casa, vai comprando de tudo um pouquinho, nesta mercadoria perde meio tostão,
naquela outra, e no fim de suas compras perdeu 200 ou 300 réis.
E quem ganhou? O negociante (...)”336.
Segundo o historiador Luciano Everton Costa Teles (2008), o elevado custo de
vida em Manaus era explicado a partir de três elementos. O primeiro corresponde à
ênfase dada ao extrativismo da borracha, relegando ao segundo plano a agricultura.
Os gêneros de primeira necessidade, com exceção do pescado, eram oriundos de
outras regiões, a farinha de trigo provinha basicamente dos Estados Unidos, o feijão
de Portugal, o arroz da Argentina e Estados Unidos, o charque do Rio grande do Sul
e do Prata, a farinha, produto de consumo popular era importada do Pará. O mesmo
ocorria a nível nacional, o Brasil ainda era um grande importador de alimentos.
Por sua vez, o segundo relaciona-se à crise da economia gumífera associada
às consequências da Primeira Guerra Mundial. A literatura sobre o desenvolvimento
da industrialização na região Centro-Sul informa que a Guerra possibilitou a uma
parcela de cafeicultores, a diversificação de seus investimentos. Estes passaram a
produzir produtos cujo fornecimento fora interrompido nesse período, impulsionando
um incipiente processo de industrialização. Para a Amazônia, os efeitos da Guerra
foram desastrosos contribuindo para intensificar a crise na cidade de Manaus, “para
esses senhores, ainda não terminou a guerra, as mercadorias, a cada dia sobem de
cotação, nunca se fartam, sempre famintos”337, esclarecia o jornal.
A centralização da venda de gêneros alimentícios no mercado público surge
como foco principal do terceiro fator. O contrato com a empresa concessionária
Manáos Markets provocou um aumento nos preços dos produtos comercializados
naquele recinto, devido às constantes elevações das taxas correspondentes aos
boxes alugados aos feirantes. O contrato proibia também, a venda praticada pelos
vendedores ambulantes, o que se acontecesse atenuaria o custo de vida, no
entanto, este obrigava a população citadina a abastecer-se somente no
336 Vida Operária, Manaus, n 3, 24 de fevereiro de 1920. 337 TELES, Luciano Everton Costa. A vida operária em Manaus: imprensa e mundos do trabalho, trabalho (1920). Manaus: UFAM (dissertação de mestrado), 2008. p. 74.
130
estabelecimento público citado. Sobre o monopólio exercido pela firma inglesa,
Pinheiro relata:
“Com o arrendamento do mercado público em 1905 a Alfredo de Azevedo Alves, e
no ano seguinte o seu repasse a The Manáos Markets Slaughterhouse Limited,
provocou um aumento abusivo dos gêneros, em função das constantes elevações
das taxas que recaiam sobre a utilização dos seus boxes e sobre os gêneros
comercializados. Essa política de centralização, amparada por um contrato que
dava plenos poderes à firma inglesa, gerou proibições e dificuldades às vendas
dos ambulantes, obrigando dessa forma, a população manauara a abastecer-se
exclusivamente ali”338.
Nesse período foram constantes os embates entre a Manáos Markets e os
trabalhadores do mercado público, o motivo basicamente era sempre o mesmo. “(...)
Veio declarar-nos, na qualidade de interprete dos demais colegas, que vendem
carne de porco e de carneiro naquele logradouro público que, desde honte-hontem,
que se achavam em greve pacífica, em virtude de não se conformarem com as taxas
que estão sendo cobradas pela Manáos markets”339. A Municipalidade também
vivenciou vários embates com a empresa inglesa acusando-a não só de sugar o
sangue do povo, mas também do desequilíbrio das finanças municipais340.
O alto custo de vida em Manaus foi argumento para diversas categorias de
trabalhadores pleitearem aumento salarial. Os carroceiros, agora membros da
Associação Beneficente dos Carroceiros, muitas vezes declararam-se em greve em
função desse motivo, todavia, para que isso acontecesse era necessário o aumento
do preço das carradas de carga conduzida, o que incentivava também a adesão dos
carroceiros particulares:
“Os carroceiros amanheceram ontem em greve pacífica. Havia pouco tempo grevaram
eles pedindo aumento de preço de carradas, de dois mil e quinhentos para três mil réis.
Agora, alegando a carestia da vida, com a subida do preço dos principais gêneros de
consumo resolveram fazer outra parede pleiteando desta forma, novo aumento”341.
As greves deflagradas por essa categoria nem sempre se mostraram coesas,
o medo de perder seus empregos não dava unidade às greves, em uma delas os
338 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros. p. 71. 339 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.334, 9 de março de 1919. 340 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.466, 30 de janeiro de 1925. 341 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.495, 3 de março de 1925. Grifo meu.
131
não grevistas chegaram a solicitar proteção policial, a fim de continuarem a labuta
diária. Sobre esse fato comenta o jornal:
“A cidade foi, quando devia principiar a parede, policiada desde manhã por soldados da
força do Estado, pelo delegado auxiliar e por diversos comissários, afim de que não se
registrassem atos reprováveis, nem fossem desacatados, por se haverem inibido de
tomar parte na greve, diversos carroceiros que haviam solicitado providências às
autoridades afim de poder exercer livremente a sua profissão”342.
Essa atitude mostra claramente não haver solidariedade de classe entre eles,
entretanto, em três greves analisadas as principais reivindicações foram atendidas, o
que não significa que os carroceiros obtiveram êxito em todas as paralisações
realizadas:
“Terminou a greve dos carroceiros de modo favorável a estes. A proposta apresentada
pelos proprietários de veículos, para fazer vigorar a tabela de trezentos e quarenta mil
réis para os choferes e ajudantes e de duzentos e oitenta mil réis para os carroceiros,
não foi aceita pela Associação Beneficente dos Carroceiros. Em vista disso, a
Associação Comercial resolveu tratar novamente do caso, realizando ontem uma
sessão, na qual ficou solucionada a questão, pois os proprietários [de carruagens]
cederam aos desejos dos carroceiros343”.
O saldo positivo nas greves consistia na importância desses trabalhadores
para a economia. Eles movimentavam a cidade, transportando em carroças as
mercadorias recém chegadas ao porto para o abastecimento do comércio local.
Enquanto, as carroças, em número superior aos caminhões nesse período não
trafegavam devido a paralisação, o JC revelava a reação do patronato diante da
situação: “(...) o transporte de mercadorias, saídas ontem do armazém dez da
Manáos Harbour foi feito em carrinhos de mão e por diversos carregadores, a fim de
evitar que as mesmas ficassem molhadas pela chuva”344. A pressa em solucionar as
greves evitava principalmente, prejuízos avultados à praça comercial.
Os cigarreiros também pleiteando aumento salarial se confrontaram com um
fenômeno pertinente ao mundo do trabalho em Manaus, ou seja, o avanço crescente
das mulheres no mercado de trabalho. A necessidade econômica forçava a entrada
das mulheres em um mundo majoritariamente masculino onde eram miseravelmente
exploradas. No contexto nacional, June Hahner comenta a atitude ambivalente da
342 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.840, 2 de junho de 1923. 343 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.497, 5 de março de 1925. 344 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.495, 3 de março de 1925.
132
liderança operária masculina em relação ao trabalho feminino. Essa atitude torna-se
evidente no relatório da União dos Alfaiates, norteado pelo sindicalismo, do Rio de
Janeiro, enviado ao II Congresso Operário Brasileiro em 1913. Os líderes desse
sindicato com associados prejudicados pelo trabalho feminino demonstravam não só
a sua compaixão pelo sofrimento das trabalhadoras, quanto o medo pela competição
feminina, “as mulheres são de longe as pessoas mais exploradas em nossa
profissão e, embora lamentemos dizer isto, agora são nossas competidoras mais
perigosas, contribuindo enormemente para nossa situação angustiosa”345.
A greve dos cigarreiros foi assim anunciada no Jornal do Comércio: “acham-
se em greve os cigarreiros. Exigem eles de seus patrões o aumento de salários.
Ganhavam três mil reis por milheiro de cigarros e agora desejam que este serviço
seja pago a quatro mil réis”. Os proprietários das tabacarias deliberaram aumentar
apenas quinhentos réis, comprometendo-se, porém, a pagar, de janeiro em diante,
os quatro mil réis por milheiro de cigarros. A proposta não foi aceita pela maioria dos
cigarreiros. A minoria divergente concordante com a proposta feita pelos patrões e
disposta a iniciar o trabalho foi ameaçada pelos grevistas que cobravam
solidariedade de classe. Em vista do impasse entre os membros da mesma
categoria de trabalhadores, a opção encontrada foi a mão-de-obra barata feminina:
“a Tabacaria Globo fez um anúncio, nesta folha, dizendo precisar de moças para ali
trabalhar na confecção de cigarros”. Diante da ameaça e concorrência feminina,
quando o chefe da oficina explicava o serviço a uma pretendente, “penetraram na
dita tabacaria quatro grevistas e declararam que o serviço não podia ser feito sem
que fosse dada uma solução para o caso”. Com o quadro de animosidade, o
proprietário solicitou a intervenção da polícia, e esta mandou resguardar todas as
tabacarias da cidade, por praças da força policial. As contradições internas inerente
a cada categoria de trabalhadores, as divergências de opiniões entre os grevistas e
os não-grevistas aguçadas pela presença feminina foram motivos de acaloradas
discussões, havendo segundo o jornal até lutas corporais entre eles, em uma praça
da cidade346.
As fontes trabalhadas sinalizam a presença feminina no comércio como
secretárias e datilógrafas, na instrução primária como professoras, na área de saúde
345 HAHNER, June E. op. cit., p. 257. 346 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.996, 6 de novembro de 1923.
133
desempenhado o papel de enfermeiras, nos ateliês, nas tabacarias, nas fábricas de
beneficiamento de castanhas, na Fábrica Brasil-Hevea e na Fábrica de Roupas
Amazonense347.
O filme do português Silvino Santos, No paíz das Amazonas, de 1922 mostra
mulheres trabalhando em uma fábrica de propriedade da firma J. G. Araújo & Ca.,
dedicada a exportação em grande escala de castanhas descascadas. Nessa época
ainda não existiam máquinas automáticas específicas para essa atividade, o
trabalho sob o olhar vigilante masculino era realizado manualmente de forma
repetitiva, contínua e monótona exigindo, das operárias, grande agilidade com as
mãos. Como sabiam que estavam sendo filmadas, algumas se arriscavam em sorrir
timidamente, enquanto, a maioria permanecia séria e produtiva, concentrada no
trabalho rotineiro, já que a principal finalidade do filme era, no momento de crise,
evidenciar as potencialidades das terras amazônicas objetivando atrair novos
investimentos para a região.
As trabalhadoras eram pagas de acordo com que produziam, ou seja, aquelas
que trabalhavam mais, recebiam maior remuneração por tarefa realizada em
detrimento das outras, dessa forma os patrões forçava-as a aumentar o rendimento
e instalava entre elas a concorrência e a rivalidade, o que deve ter gerado muitos
conflitos. Infelizmente, a fonte utilizada sobre essas trabalhadoras se restringiu
somente ao filme, não tivemos acesso a outra documentação, por isso, as doenças
oriundas dessa atividade, a luta por maiores salários e por uma jornada de trabalho
menos extenuante, assim como as relações de poder existentes no interior da
fábrica, a opressão e vigilância das quais, com certeza, eram vítimas ainda teimam
em ficar obscuras. Esperamos que novas pesquisas desencadeadas no âmbito
acadêmico possam dar visibilidade aos impasses protagonizados por essas
mulheres nos espaços de produção, enfatizando não apenas sua condição de
trabalhadora e sua reivindicação por melhores condições de trabalho, mas também
sua vivência em outros espaços de sociabilidade, até agora silenciados pela
historiografia local.
347 O historiador Eric Hobsbawn afirma que a utilização da força de trabalho feminina se deu inicialmente nas pequenas indústrias domésticas (tecelagem manual, bordados, tricotagem e etc.), posteriormente se estendeu para o setor de serviços e para a indústria (têxtil, confecções e alimentos), para somente depois, de posse do ensino primário, as mulheres direcionaram-se para as lojas e escritórios. In: HOBSBAWM, Eric J. A era dos Impérios. (1875 - 1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 271 - 306.
134
Na Fábrica de Roupas Amazonense labutavam cerca de sessenta
costureiras, a maioria de origem lusitana, assim como, seus proprietários. Sobre as
condições de trabalho no espaço da fábrica pouco sabemos, porém o relato do
jornal anarquista A Lucta Social ao abordar o ritual de comemoração do dia 1º de
maio em Manaus, informando sobre o relevante dia dedicado ao trabalho e sobre
como o trabalhador utilizava a área central da cidade para tornar públicas as suas
reivindicações, assemelha a fábrica à uma bastilha, sinalizando os mecanismos de
dominação, controle e vigilância que atuavam em seu interior:
“(...) Foi assim que o operariado amazonense interpretou e sagrou o 1º de maio
levando a cabo manifestações diversas quer internas quer externas. Aquelas nas
associações de classe, e estas na praça pública, tendo por ponto de partida o largo de
S. Sebastião, o qual às 16 horas se juntaram proletários e estudantes dando início ao
comício o acadêmico Adail Couto (...). (...), o qual foi procedido no uso da palavra pelo
artista gráfico, J. Azpilicueta (...) concluiu exortando os presentes a seguirem pelas ruas
da cidade a fim de receber diversas corporações que aguardavam a passagem dos
manifestantes para se incorporar. (...). (...) os manifestantes encaminhavam-se pela
avenida Eduardo Ribeiro, dando entusiásticos vivas ao operariado livre, aos
estudantes, e abaixo os tiranos sintetizados nos governos e estes caracterizados no
Estado salva-guarda da burguesia infrene. Pacificamente observando a maior e mais
sensata cordura, ás vezes em silêncio sepulcral, interrompido pelas pisadas dos
homens de trabalho a onda humana proletária caminhou serena à rua da Instalação,
detendo-se em frente da pequena bastilha denominada Fábrica de Roupas Amazonense, onde as operárias d’aquela indústria receberam os seus companheiros
de trabalho como outrora, os cristãos o fizeram a Jesus cobrindo a rua com aromáticas
flores, que também derramaram sob as cabeças do operariado, desde o alto do
edifício, orando em seguida a operária Cecilia Miranda que leu um belo discurso no
qual hipotecava a solidariedade de sua classe ao operário irmão em luta e em
sacrifícios. (...). Da janela da Casa Avaneza, também orou o acadêmico Euclides
Bentes (...). Terminou saudando as operárias da Fábrica e convidando-as a seguirem
no préstito dos trabalhadores, pois que elas também eram exploradas! (...). Uma voz
fez-se ouvir então, e, de repente, a multidão operária desfilava levando na vanguarda o
grupo de operárias da fábrica, em direção ao teatro Alcazar (...)”348.
Os mecanismos de dominação e controle se estendiam para fora da bastilha
simbólica, nas diversas vezes em que o paternalismo manipulou as operárias para
conseguir diante da ameaça de fechamento da fábrica e da perda de seus
empregos, barganhar principalmente, do poder público, benefícios a seu favor. Em
348 A Lucta Social, Manaus, n 3, 1 de junho de 1914. Grifo meu.
135
1913, a fábrica não conseguia solver os compromissos assumidos e ameaçava
fechar as portas. A despesa só com a energia elétrica atingia a mais de setecentos
mil réis mensais, perante isso, as operárias com a ajuda de seus patrões resolveram
retribuir a visita do governador do Estado realizada anteriormente ao
estabelecimento onde trabalhavam, o ritual que envolveu tal visita reforça a
afirmação do envolvimento do patronato. Essa retribuição consistia, prioritariamente,
em solicitar à mesma autoridade, auxílio à fábrica e a imediata redução da taxa de
energia:
“Domingo último, as operárias da Fábrica de Roupas Amazonense, precedidas da
banda de música do batalhão militar, foram à residência do governador do Estado
agradecer-lhe a visita feita à mesma fábrica, por ocasião da inauguração da caixa de
socorros.
Em presença da mesma alta autoridade, foi lida a mensagem que lhe dirigiram as
operárias e na qual, após hipotecaram à S. Exc.ª sua gratidão pela visita feita ao seu
estabelecimento, dizem das condições precárias em que se acha a fábrica e pedem
seu valioso auxílio para que continue ela dar a tantas moças o pão que honradamente
ganham.
S. Exc.ª, agradecendo, expôs as condições difíceis em que se encontra o Estado,
assoberbado de prementes compromissos; prometeu, entretanto, que empregaria seus
esforços para corresponder ao apelo das operárias”349.
Na luta contra o possível fechamento do local da labuta diária, as operárias
contaram com o apoio da imprensa local que noticiava seus atos e comunicava as
últimas resoluções tomadas: “sabemos que a Fábrica de roupas feitas Amazonense
reclamou da Manáos Tramways um abatimento de cinquenta por cento sobre o seu
consumo de energia elétrica, prometendo fechar, caso não seja atendida”350.
Como o prazo marcado pela referida firma para a espera da resolução da
companhia estrangeira expirou, sem que esta se manifestasse de forma favorável,
os proprietários anunciaram para o dia seguinte, o fechamento da fábrica. Uma
comissão formada pelas obreiras: Maria Coelho, Santina de Jesus, Maria da Silva
Jitahy, Rosa Del Aguila, Possidonia Coelho, Rosa Lima resolveu intermediar o
impasse:
“Acabamos de saber que, em vista da teimosia da Companhia da luz, não atendendo
ao pedido de abatimento sobre o preço da energia elétrica que se gasta na fábrica,
349 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.200, 25 de março de 1913. 350 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.339, 13 de agosto de 1913.
136
estamos sem serviço de segunda-feira em diante, por ter a firma proprietária resolvido
assim proceder devido às enormes dificuldades com que vem lutando para dar-nos pão
e trabalho.
E como, conosco ficam a sofrer as torturas da fome perto de trezentas pessoas de
nossas famílias, a quem sustentamos com os esforços de nossos labores, apelamos
para todas as classes sociais de Manáos, a fim de que sejam solidárias conosco na
defesa dos nossos interesses”351.
A comissão ficava reunida na própria fábrica “por gentileza do gerente da
mesma”352 e deliberou manter-se unida na defesa de sua causa, para isso
recorreram às várias sociedades de classes existentes na cidade conforme nos
relata uma delas, a Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas:
“A 16 de agosto do ano que findou [1913], fomos surpreendidos pelo pedido de auxilio
que nos foi feito em ofício, bem como a outras Associações, pelas operárias da Fábrica
de Roupas Amazonense, sita à Rua da Instalação.
Essas patrícias nossas estavam na iminência de ficarem sem pão para acudir as
necessidades da família, pois que a Manáos Tramways cobrava taxa exorbitante da
energia elétrica derivada para a fábrica, para mover os maquinismos.
A firma Cunha & Ca., proprietária do estabelecimento, não podendo fazer face às
despesas, resolveu fechar a fábrica, daí a reclamação justa dessas operárias. A 19 do
mesmo mês atendemos após havermos deliberado, conjuntamente com as sociedades
Artes Gráficas, União Acadêmica, Núcleo Ginasial e Centro Agronômico, as
reclamações que nos eram feitas.
Em conseqüência, mandamos um comissionado nosso, entre os outros das sociedades
já mencionadas, a entender-se com os Srs. Cunha & Ca., proprietários da Fábrica,
resultando daí sermos todos gentilmente atendidos: a Fábrica de Roupas Amazonense
começou então seus trabalhos”353.
As articulações se mostraram positivas para as operárias, pelo menos nesse
primeiro momento, resultando na manutenção de seus empregos. Empregos que já
estavam ameaçados pela introdução de máquinas elétricas com capacidade para
cortar uma grande quantidade de calças, fazer caseados, pregar botões, entre
outras funções. Na tentativa de aprovar um projeto que isentasse “(...) dos impostos
municipais, por cinco anos, a Fábrica de Roupas Amazonense (...)”354, o gerente da
351 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.343, 17 de agosto de 1913. 352 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.343, 17 de agosto de 1913. 353 Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, Relatório da Administração de 1913. p. 7. Grifo meu. 354 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.307, 12 de julho de 1913.
137
fábrica apresentava às autoridades constituídas, os equipamentos onde se
concentrava o capital investido:
“O diligente gerente da Fábrica, Sr. Tenreiro Júnior, fez, perante a numerosa
assistência, experiências com os maquinismos elétricos, instalados no
estabelecimento, procedendo ao corte de roupas, caseamento e pregamento de
botões, tudo com a máxima presteza e acabamento, sendo de notar que, em quatro
minutos, foram cortadas cento e duas calças”355.
Em 1875, um jornal feminista no Rio de Janeiro acertadamente realizou uma
previsão sobre a introdução das máquinas, principalmente, a de costura e tecer,
afirmando que tais inovações, ao mesmo tempo em que beneficiaria a
“humanidade”, custaria o emprego de “milhares de mulheres”356.
Para manter seus empregos e salários que mesmo sendo baixos e
insuficientes, a exemplo do que acontecia no Sul do Brasil onde as mulheres:
“concentradas em um número pequeno de indústrias, (...) trabalhavam em alguns dos
mais exigentes e menos desejáveis empregos de fábricas, por salários até mais baixos
do que a ninharia paga aos homens. As tecelagens, processamento de alimentos e
indústria do vestuário que fabricavam mercadorias anteriormente produzidas por
mulheres em suas próprias casas, permaneciam como seus maiores empregadores.
(...) Enquanto, um terço dos operários brasileiros ganhava de 4$000 até 8$000 por dia,
somente um décimo das mulheres estava nessa classe. No Rio de Janeiro, onde
aproximadamente um quarto de todos os trabalhadores industriais conseguia emprego,
as mulheres adultas recebiam um salário médio de 4$600, enquanto os homens
ganhavam 6$900, cinqüenta por cento a mais. (...) Mesmo quando as mulheres faziam
o mesmo trabalho dos homens, elas recebiam menos. De acordo com o Sindicato dos
Trabalhadores em Fábricas de Tecidos do Rio de Janeiro, em 1913, homens e
mulheres trabalhavam em condições iguais nas fábricas, mas nas divisões de tecidos
de lã os homens geralmente ganhavam 3$000 por dia e as mulheres 2$000. Os
homens que produziam tecidos de linho e algodão recebiam uma média de 4$000 por
dia, enquanto as mulheres recebiam somente 2$000. Os salários industriais das
mulheres continuariam a ficar atrás dos dos homens”357.
As operárias tornaram-se vulneráveis à manipulação paternalista, principalmente
porque os salários complementavam a subsistência cotidiana beneficiando cerca de
trezentas pessoas de suas famílias, porém esses laços de dependência não eram
355 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.306, 11 de julho de 1913. 356 HARNER, June E. op. cit., p. 220. 357 HARNER, June E. op. cit., p. 214 – 215.
138
fortes o suficiente para impedir, que elas ameaçassem paralisar suas atividades e
entrassem em greve pacífica surpreendendo a sociedade da época:
“Não sabemos ao certo se as ideias revolucionárias das terríveis e turbulentas
sufragistas chegaram a se inocular no espírito pacato e ordeiro da mulher brasileira. O
feminismo, em verdade é coisa quase completamente esquecida entre nós,
principalmente nestas terras das Amazonas, (...). Esses conceitos nos vêm a propósito
de uma “greve” pacífica em que se declararam ontem cinquenta e seis representantes
do belo sexo, operárias da fábrica de roupas “Amazonense”. A causa não foi, como
sucede nas “greves” masculinas, interesses pecuniários: não se cogitou de aumento de
salário, nem tampouco da diminuição de horas de trabalho. (...)” 358.
Elas exigiam a volta do gerente da fábrica que teria abandonado o cargo
depois de um desentendimento sério com um dos sócios do estabelecimento:
“Diversas costureiras, inquiridas por um nosso repórter, declararam que Rosário tratara
por vezes a Tenreiro muito grosseiramente, sendo este, entretanto, um funcionário
probo e trabalhador. Devido a isso, Tenreiro viu-se na contingência de abandonar a
casa. As costureiras então, descontentes com o procedimento de José do Rosário,
resolveram não voltar ao serviço enquanto Tenreiro Júnior não voltasse a seu cargo”359.
Diferente das greves masculinas, elas não cogitavam aumento de salário e
nem diminuição das horas de trabalho conforme indica o JC, no entanto, ao
questionarem as atitudes de um dos sócios exigindo que este se retratasse
mostravam, no mínimo, que determinadas decisões patronais não eram, por elas,
aceitas passivamente. Na época em que viveram, mesmo sob as condições acima
citadas, as fontes trabalhadas indicam que foram as primeiras mulheres a lutar
diretamente pela manutenção de seus empregos e a iniciar mesmo de forma
pacífica, uma ação direta de contestação como a greve. Na comemoração do dia 1º
de maio diante do olhar confinado de outras mulheres, cercadas de uma multidão
masculina, de trabalhadores, que assim como elas, tentavam dar visibilidade as
suas reivindicações acerca das relações de trabalho, elas saíam pelas ruas da
cidade intervindo na cena histórica e escrevendo elas próprias, as suas incontáveis
histórias. Histórias silenciadas, no primeiro momento pela ausência de
documentação disponível e pela exclusão, a elas dada, pela historiografia
tradicional. À nova historiografia regional cabe resgatar e inserir a mulher no
processo histórico, no qual sempre esteve presente.
358 Jornal do Comércio, Manaus, 14 de novembro de 1912. 359 Idem.
139
De volta ao mundo do trabalho masculino, Richard J. Blackburn (1992) afirma
que no decorrer da história as classes dominantes para legitimar a sua dominação
invocam um inimigo comum ou fictício, como fonte de alguma ameaça iminente a
toda sociedade, facilitando com isso a cooperação entre os segmentos ligados ao
poder e justificando medidas repressivas e de austeridade perante as classes
subalternas360. A crise foi utilizada pelo patronato como uma ameaça que a todos
afligia e visava como isso diminuir as conquistas da classe trabalhadora, gerando,
portanto, perdas para os trabalhadores. O corte nos salários, nos benefícios e até as
demissões decorrentes das retrações conjunturais do setor produtivo, eram
justificadas pelo patronato como medidas necessárias para gerar algum capital
circulante durante o período de queda do preço da borracha. A intenção era diminuir
ao máximo os custos com mão de obra, investimentos em segurança e corte de
benefícios, para que o patrão pudesse manter seus rendimentos num patamar
positivo361.
A crise nos jornais operários de Manaus surge como mais um dos recursos
utilizados pelo patronato para aumentar a mais valia na força de trabalho. Na visão
dos trabalhadores, os patrões simplesmente mentiam para aumentar ainda mais a
exploração sobre os seus empregados, o que obviamente gerava greves e protestos
cada vez mais frequentes na cidade. Sobre o fechamento do comércio em 1913, um
jornal argumentava:
Os burgueses pançudos e encharcados de dinheiro querem nós matar de fome... o Zé
povinho é quem paga o pato, pois os malditos... além de explorarem
escandalosamente, ainda acham pouco e agora inventam que a crise os arruína...
fecham as portas de seus estabelecimentos, pouco se importam que os pobres morram
de fome a míngua, porque eles são ricos e nada lhes faltam.(...) Em vez do dinheiro
que eles querem, devemos dar-lhes pau, pau, muito pau para ver se assim eles ficam
mais humanitários e menos exploradores; e depois de uma boa sova, mandarmos eles
plantar batatas lá em Portugal362.
As greves para o patronato local não eram vistas como um ato reivindicatório
por melhores condições de trabalho, quase sempre “eram taxadas como ações de
arruaça movidas por pessoas que queriam ter uma “vida mansa”, sem muito
360 BLACKBUNS, Richard James. O vampiro da razão: um ensaio de filosofia da história. São Paulo: UNESP, 1992. p. 301. 361 AVELINO, Alexandre Nogueira. op. cit., p. 121. 362 O Chicote, Manaus, n 13, 27 de setembro de 1913.
140
trabalho”363. Segundo a ACA, os trabalhadores que se aventuravam nas greves
estavam em busca de aumentar ainda mais seus salários, com isso estavam
penalizando o patronato com mais uma despesa. Para os patrões, os trabalhadores
grevistas e arruaceiros deveriam ser punidos por atrapalharem o processo produtivo
e o crescimento da sociedade: “Acabe-se com a indisciplina industrial e comercial,
estabelecendo-se crédito apenas para os que trabalharem deixando-se os
preguiçosos levar uma vida digna deles”364. O discurso punitivo que incluía
demissões e multas oscilava entre uma série de iniciativas onde o patronato cedia e
realizava concessões face às reivindicações dos grevistas. O que se pretendia de
fato era depreciar as manifestações operárias e enfraquecer seu processo
associativo.
Por volta de 1917 a 1920, uma onda de greves se espalhou pelo Brasil afora
trazendo em seu bojo a luta pela diminuição da jornada de trabalho365. Esse período
foi considerado um dos mais ativos na história das organizações operárias no
decorrer da Primeira República. Ações como passeatas, comícios, greves e demais
manifestações foram intensificadas pelos trabalhadores. Como exemplo deste
fenômeno foi criado em São Paulo, o Comitê de Defesa Proletária, cujo programa
contemplava às oito horas de trabalho, semana de cinco dias e meio, fim do trabalho
infantil, segurança do trabalho, pagamento pontual e aumento de salários366. Em
Manaus, movimentos grevistas marcaram todo o período de instabilidade econômica
variando de intensidade e formas segundo as conjunturas.
A luta pela jornada de oito horas de trabalho remonta a última década do
século XIX367. Em comum acordo com que ocorria no eixo Sul-Sudeste do país, a
363 AVELINO, Alexandre Nogueira. op. cit., p. 115. 364 Revista da Associação Comercial do Amazonas. Manaus, n 52, 10 de outubro de 1912. 365 “Em 1917, uma onda de grandes greves correu pelo Brasil todo. Não apenas trabalhadores qualificados mas também grupos nunca antes efetivamente sindicalizados, (...). Os anos de 1917 até 1920 marcaram um dos períodos mais ativos na história das organizações operárias, durante a Velha República, antes que o movimento operário fosse esmagado pelo governo”. In: HAHNER, June E. Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil (1870 – 1920). Trad. Cecy Ramires Maduro. Brasília: Edunb, 1993. p. 306. 366 PINHEIRO, Paulo Sérgio. O proletariado industrial na Primeira República. In: FAUSTO, Boris. (org). História geral da civilização brasileira. Vol. 9. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 156 - 157. 367 Na década de 1890, o Rio de Janeiro presenciou a fundação de três Partidos Operários. Um deles liderado por Luiz França e Silva teve vida efêmera desaparecendo depois das eleições de 1890, na qual seu animador e outro candidato receberam respectivamente 804 votos. “Em 1892, França e Silva organizou o chamado I Congresso Operário Nacional, ao qual compareceram cerca de 400 pessoas. O programa aprovado na reunião foi lido na Câmara dos Deputados pelo Deputado Lauro
141
greve geral eclodiu em 1919 deixando a cidade agitada. Várias categorias de
trabalhadores urbanos: choferes, boleeiros, carroceiros, estivadores, oficiais de
alfaiate, padeiros, lixeiros, oficiais de sapateiros, operários da construção civil, em
conjunto com os trabalhadores das firmas inglesas Amazon Engineering, Booth Line,
Manáos Harbour e Manáos Tramways participaram de forma decisiva, na luta pela
regulamentação das oito horas de trabalho vivenciando momentos de animosidade e
se confrontando:
“de forma incisiva com o patronato e as autoridades locais para fazer vigorar na
cidade a jornada de oito horas, alvo, naquele momento, de intensas manifestações
no Sul e Sudeste do País. Nitidamente a greve aparece como sendo uma forma
de pressão pela aprovação do projeto de lei que tramitava na Câmara Federal em
vias de ser votado em plenário”368.
A participação política desses trabalhadores com a deflagração da greve no
dia 13 de maio inquietou e paralisou a economia da cidade. Muitos curiosos
aglomeravam-se nas principais ruas e praças de Manaus, o centro urbanizado era o
espaço utilizado pelo trabalhador para tornar públicas as suas reivindicações.
Entre os curiosos com certeza havia muitos trabalhadores informais, que transitavam
pela área central com seus armários, paneiros, carrinhos, tabuleiros, etc., na
tentativa de improvisar sua sobrevivência na cidade. Muitos acreditavam na
possibilidade de uma greve geral, outros na iminência de graves acontecimentos,
em virtude de alguns estabelecimentos e principalmente, das companhias
estrangeiras resistirem à limitação do trabalho para oito horas. No decorrer do dia
várias categorias aderiram ao movimento paredista369.
Para negociar com o patronato, as várias categorias de trabalhadores
urbanos em greve criaram o Comitê de Operários Amazonenses cujos líderes,
Nicodemos Pacheco, Anacleto Reis, Elesbão Luz, Cursino Gama entre outros, eram
velhos conhecidos do meio operário local. O programa do Comitê visava resolver o
problema do operariado usando a moderação e a prudência, e insistia que dentro da
ordem os operários persistissem na greve pacífica distribuindo o seguinte boletim:
“Oito horas de trabalho – O comitê operário do Estado do Amazonas previne aos
estivadores e às classes trabalhadoras em geral que não voltem ao trabalho sem uma
Muller, que defendeu a instituição das oito horas diárias de trabalho”. In: FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890 - 1920). 4 ed. São Paulo: DIFEL, 1986. p. 44. 368 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros. op. cit. p. 172. 369 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.398, 14 de maio de 1919.
142
resolução definitiva e segura das companhias inglesas Manáos Harbour, Amazon
Engeneering, Manáos Tramways e Amazon River – Pela ordem! – Avante
companheiros! – Vivam as oito horas de trabalho! – A união faz a força – O comitê”370.
Em geral, as notícias sobre a greve expressam uma maior aceitabilidade por
parte do patronato local, em relação à limitação do trabalho para oito horas,
entretanto, os representantes das firmas estrangeiras mantinham um
posicionamento contrário a nova carga horária proposta. Essa atitude gerou
descontentamento e ansiedade entre os trabalhadores grevistas dessas últimas, o
que obrigou o exército e a força policial que já transitavam pelo centro da cidade, a
fim de evitar tumultos e violências, a guardar e vigiar seus estabelecimentos
comerciais. Tal pretensão não foi exclusividade desse momento, em 1915, os
trabalhadores da Manáos Harbour, já sinalizavam neste sentido:
“os empregados da “Manáos Harbour Limited”, no justo desejo de ver diminuído o
tempo de serviço diário a que são obrigados, apresentaram, ontem, uma petição
coletiva ao diretor, solicitando que a hora de entrada para o trabalho seja às sete horas
e não às seis como tem sido”371.
A ordem defendida pelo Comitê como sendo necessária para o sucesso da
greve, em alguns momentos não existiu gerando pequenos confrontos entre o
patronato e os trabalhadores, contornados mediantes intervenções das autoridades
constituídas. O primeiro deles aconteceu na oficina da Manáos Tramways, na
Cachoeirinha, de onde saiam às 6:00 horas, os bondes em direção ao centro da
cidade. Como estavam em greve os motorneiros e condutores, o gerente de tráfego
deliberou a saída dos bondes sob a direção dos trabalhadores de linha, sem
qualificação para executarem esse serviço. Avisado pelos grevistas que ali se
encontravam com o fim de obstruir a saída dos veículos, o comandante da força
policial, alegando a falta de habilitação daqueles trabalhadores, suspendeu o
serviço, pelo menos naquele dia372. O chefe de polícia nos momentos de confronto
representava o papel de “mediador” da situação tentando acalmar os ânimos,
especialmente dos trabalhadores.
No dia seguinte, os bondes saíram das oficinas, guiados pelos diretores da
Manáos Tramways, para evitar qualquer atentado solicitaram a ajuda das
370 Jornal do Comércio, Manaus, n. 5.399, 15 de maio de 1919. 371 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.905, 10 de março de 1915. 372 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.399, 15 de maio de 1919.
143
autoridades, do chefe de polícia e do delegado auxiliar. Em virtude desse fato, os
grevistas romperam o silêncio e protestaram aos gritos, e quando o primeiro bonde:
“(...) dobrava a curva, quase em frente à feira municipal, d’aquele subúrbio, o carro foi
interrompido na sua marcha por uma onda de paredistas que atravessava a linha,
tomando todos os pontos de passagem. (...) O chefe de polícia, que viajava no veículo,
desceu do mesmo e pediu aos operários que não fizessem o menor obstáculo, pois o
Brasil é um país essencialmente livre e a companhia tinha o direito de locomover os
seus bondes. (...) Na sua chegada à praça do Comércio que estava literalmente cheia
de grevistas, os carros foram abordados, ouvindo-se, por essa ocasião, diversas
manifestações de desagrado. Alguns populares tentaram virar os carros, sendo nisso
obstados pelo coronel Luiz Marinho de Araujo, que conseguiu acalmar os ânimos e dar
passagem aos bondes, os quais trafegaram d’ahi por diante, livremente em diversas
ruas da cidade, recolhendo-se às dez horas às oficinas da companhia”373.
Diante do acontecido, a reação dos grevistas foi imediata. Eles decidiram
inutilizar “(...) a agulha de desvio que fica em frente à Bolsa Universal, bem como a
que demora no meio da praça do Comércio”374. Outro momento de animosidade
aconteceu quando os trabalhadores souberam da demissão do motorista da Manáos
Tramwyas, Antonio Dias de Oliveira acusado de ser um dos principais insufladores
da greve. As perseguições individuais contra os líderes do movimento iniciaram, os
operários sabendo da demissão dirigiram-se à Praça do Comércio. Em grupos
isolados eles iam chegando e se fixaram em frente ao escritório da companhia, onde
protestaram contra o ato do gerente, exigindo que o motorista fosse readmitido. O
chefe de polícia solicitou à multidão que se contivesse, porém mais tarde “(...) os
operários romperam em novos protestos, originando-se dahi uma confusão infernal,
que chegou aos paroxismos da loucura”375. Em face da situação, a autoridade
insistiu que não poderia permitir que se alterasse a ordem pública e ameaçou: “si
não evacuarem o local, farei cumprir as minhas ordens por meios violentos”376.
Diante da ameaça, os operários recuaram, sem calar completamente o protesto.
Pouco depois ficaram sabendo que o chefe de polícia conseguiu junto ao gerente da
Manáos Tramwyas, a readmissão do motorista. Ciente disso, a multidão foi se
dispersando aos poucos, ainda envolvida pela névoa de animosidade gerada pelos
últimos acontecimentos.
373 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.400, 16 de maio de 1919. 374 Idem. 375 Idem. 376 Jornal do Comércio, Manaus, n. 5. 401,17 de maio de 1919.
144
A recusa das firmas inglesas em aderir à limitação da jornada de trabalho
para oito horas fez com que o governador do Estado entrasse nas negociações e
prometesse ao Comitê intervir junto às mesmas. Na reunião realizada entre o
Comitê, o representante do governador e as companhias estrangeiras tornava-se
cada vez mais difícil chegar a um consenso que agradasse a todos. O advogado da
Manáos Tramwyas alegava: “que a anuição das oito horas importava, para a
companhia, num prejuízo anual de cento e vinte contos de réis visto que seu pessoal
tinha de ser aumentado”377. Em virtude da relutância dessas companhias, o
representante do governador realizou algumas concessões:
“(...) O representante do governador ponderou que, a vista das ponderações do
advogado da companhia e desde que o tráfego dos bondes não ficasse paralisado, o
Estado se comprometia a entrar com uma parte dos prejuízos resultantes da limitação
do trabalho, isto é, com quarenta contos de réis, por ano (...)”378.
As negociações entre os representantes dos trabalhadores e as firmas
estrangeiras avançavam, porém, os representantes do capital inglês na cidade
deixaram claro que, sua anuência a jornada de oito horas era temporária e
dependiam de uma resposta definitiva de Londres. Enquanto a resposta não
chegava o gerente da Manáos Tramways aceitou a proposta do governador
limitando para oito horas o trabalho nas oficinas da companhia, seguido pelo gerente
da Manáos Harbour, responsável pelos serviços do porto, que alegava:
“(...) prejuízos gerais para o comércio, desde o dia quatorze do corrente, tornando-se
cada vez mais difícil a solução desse caso. Achando-se no porto sem poder carregar e
descarregar várias embarcações de alto mar e fluviais, provocando reclamações dos
interessados, esta gerência, tendo em atenção as obrigações contratuais da companhia
com o governo federal (...) começa a efetuar os serviços dos armazéns alfandegados,
de acordo com o horário imposto pelo Comitê de Operários, (...)379.
Com a adesão dessas firmas, a greve do operariado parecia terminada. E no
dia seguinte os estivadores, a maior categoria de trabalhadores envolvidos na greve,
da Manáos Harbour, da Amazon River e da Booth Line compareceram a hora
regulamentada e iniciaram a labuta diária. Os carroceiros também colocaram em
marcha seus respectivos veículos.
377 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.400, 16 de maio de 1919. 378 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.400, 16 de maio de 1919. 379 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.401, 17 de maio de 1919.
145
Diante do pequeno número de grevistas cujos patrões não aderiram à jornada
de oito horas, entre eles, os da Amazonas Engineering, ou talvez cientes das
respostas dos representantes do capital estrangeiro na cidade, as autoridades
demonstravam sua impaciência e intolerância com o movimento, baixando a
seguinte portaria:
“O chefe de polícia do Estado, no intuito de evitar a reprodução das cenas lamentáveis
desenroladas nesta capital nos dias 14, 15 e 16 do corrente, por ocasião da greve geral
promovida pelo operariado determina ao sr. delegado auxiliar e a todas as demais
autoridades da polícia civil, que tomem enérgicas providências no sentido de não
admitirem, em absoluto, aglomerações de pessoas nas ruas e praças da cidade,
promovendo arruaças, impedindo o trânsito público e, sobretudo, obstando que os
operários e trabalhadores, livremente, se dirijam aos seus pontos de trabalho afim de
exercitarem sua atividade; devendo as referidas autoridades observar strictamente as
disposições do Código Penal da República e o regulamento da polícia civil. Tomando
esta providência, a bem da ordem e da tranquilidade públicas, a polícia civil do Estado,
com o auxílio das forças armadas de que usará, se for mister, empregará toda energia
na repressão de qualquer movimento subversivo. Cumpra-se. Chefiatura de polícia
(...)380.
Londres finalmente se manifestava anunciando a resposta negativa para a
jornada de oito horas preterida pelos trabalhadores da Manáos Tramwyas e Light
Company Limited, e assim colocava um ponto final no acordo provisório realizado
por esta, com o comitê e o governo estadual. A diminuição nas rendas da empresa e
o encarecimento do material por ela utilizado nortearam essa decisão. Aos
trabalhadores anunciaram: “(...) a gerência lealmente comunica aos seus empregados (operários e trabalhadores):
Primeiro – que pagará aos mesmos os seus salários, sem diminuição durante os dias
em que vigorou o acordo provisório, demonstrando assim, a sua boa fé:
Segundo – Que, de hoje em diante, aceitará e porá em vigor para os que quiserem, o dia de oito horas, com diminuição proporcional dos salários: Terceiro – Que manterá também o regime antigo observado, sem alteração de horário
e salários”381.
A Manáos Harbour também voltou a adotar o antigo regime equivalente a dez
horas de trabalho, para aqueles que quisessem trabalhar oito horas, os salários
380 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.403, 19 de maio de 1919. 381 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.404, 20 de maio de 1919. Grifo meu.
146
seriam diminuídos em duas horas. A empresa na intenção de defender seus direitos
e lucros argumentava:
“A companhia, tomando esta providência, tem em vista acautelar seus interesses, num
período de crise que, especialmente no Estado do Amazonas, afeta todos os ramos de
atividade, atingindo a todos os ofícios e profissões, nas suas múltiplas especialidades,
com prejuízo evidente do capital. Usa de um direito, que lhe é garantido em toda sua
plenitude pela Constituição da República Brasileira”382.
Sem força para arregimentar novamente os trabalhadores e sem o apoio das
autoridades locais, o Comitê foi expulso de seu local de funcionamento e em
seguida dissolvido:
“O dr. Hamilton Mourão, chefe de polícia, foi ontem, às quinze horas, no edifício do
grupo escolar Marechal Hermes, onde funcionava a sede da União Operária Nacional e
ai cientificou ao comitê operário que o governador do Estado deliberara não mais ceder
o prédio para as sessões operárias, visto necessitar do mesmo para trabalhos
exclusivamente escolares”383.
Na fala de seus líderes: “a missão do comitê havia sido terminada com a solução da
greve, que se não foi radical, ao menos trouxe algumas regalias para o
operariado”384. As regalias exíguas foram usufruídas por pouco tempo,
paulatinamente, a maioria das firmas voltou a adotar o horário de nove ou dez horas,
entretanto, essa pretensão não deixou de ser bandeira de luta dos trabalhadores
locais.
Alguns dias depois, a cidade estava novamente sob a perspectiva de uma
greve agora dos operários da construção civil: pedreiros, carpinteiros, estocadores e
pintores. Na greve do operariado, as firmas construtoras se comprometeram a
adotar o horário de oito horas para o serviço diário, no entanto, algumas voltaram a
trabalhar com o horário antigo, motivo pelo qual os trabalhadores resolveram
deflagrar a greve. Um dos construtores concedeu ao jornal uma entrevista, na qual
explicava que a aceitação do horário exigido na greve geral do operariado estava
condicionada a um fator ”(...) se as demais empresas e companhias continuassem a
adotar esse horário, de modo definitivo, nós também o adotaríamos, muito embora
em prejuízo dos nossos interesses. No caso contrário voltaríamos ao horário
382 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.404, 20 de maio de 1919. Grifo meu. 383 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.404, 20 de maio de 1919. 384 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.495, 21 de maio de 1919.
147
antigo”385. A argumentação do construtor engendrava e expressava o
comportamento do mundo do trabalho, depois da greve, que uniu várias categorias
de trabalhadores urbanos:
“Até mesmo as serrarias já estão observando o horário de dez horas, sem que haja,
entretanto, a menor reclamação por parte de seus operários. Eles compreendem
perfeitamente que, na época atual, as coisas estão difíceis não se podendo fazer certas
concessões que, por muito razoáveis que sejam, só podem redundar no sacrifício dos
patrões. (...)”386.
As firmas que adotaram o horário de oito horas de trabalho, pelo menos
inicialmente, eram as preferidas dos trabalhadores e muitos, como os grevistas da
construção civil, passaram a procurar empregos nessas construtoras. A
determinação com que a Associação das Quatro Artes e a União dos Pedreiros
defendia os interesses de seus filiados desencadeou por parte dos construtores, a
iniciativa de fundar a Sociedade dos Construtores e Mestres de Obras387. Tal
associação tinha poderes especiais para agir em relação a greve dos operários,
como também para defender os interesses gerais de todas as firmas construtoras.
Ângela de Castro Gomes (1994) afirma que as eclosões do operariado muitas vezes
encontravam um patronato ainda despreparado, sendo justamente por essas razões
que eles começam a se articular em associações e a planejar medidas mais
eficientes para a proteção de seus interesses388.
Devidamente legalizada, a Sociedade dos Construtores e Mestres de Obras
da cidade iniciou uma ação no sentido da amparar os interesses da classe que
representava, conseguindo a adesão de todos os sócios ao horário de serviço
estabelecido. O horário imposto correspondia a nove horas de trabalho para os
operários da construção civil389.
A crise foi usada também pelo patronato local como desculpa para os
trabalhadores voltarem ao labor de nove ou dez horas por dia: “a crise tenebrosa
385 Jornal do Comércio, Manaus, n. 5.418, 4 de junho de 1919. 386 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.418, 4 de junho de 1919. 387 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.419, 5 de junho de 1919. 388 GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 45. 389 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.420, 6 de junho de 1919.
148
que atravessamos, não permite a redução do trabalho para oito horas”390, insistia
um deles.
O jornal O Construtor Civil lançado no ano de 1920, em seu primeiro e último
número abordava de forma fugaz, a vida árdua e difícil do operário da construção:
“(...) o operário empresta dinheiro a juros de 6 e 10 por 100 e que ele vive que nem um
nababo, todo aborrecido e empertigado; negando-se a receber os credores, quando
sonolento se encontra a fazer a digestão do almoço. (...), um pequeno calote de vinte
mil réis, é o bastante para fazer oscilar até aos alicerces, as depauperadas finanças
d’um operário? (...)”391.
Embates e conflitos permearam as relações de trabalho entre as firmas
estrangeiras e seus trabalhadores, dentre as formas de resistência, segundo os
jornais, a mais utilizada continuou sendo a greve. A luta pela jornada de oito horas
de trabalho, ainda persistia como meta, principalmente, entre os trabalhadores da
Manáos Tramways e Light Company Limited. Em 1925, os empregados da oficina da
Cachoeirinha e da luz pública e particular, ainda labutavam nove horas diárias e
declararam-se em greve pleiteando as oito horas de serviço, a eles associaram-se
os motoristas e condutores da mesma empresa. Estes requeriam aumento diário de
dois mil réis nos salários, a reforma de alguns dispositivos do regulamento da
empresa, a extinção da classe de empregados extranumerários (não pertencente ao
quadro efetivo dos funcionários ou empregados) e a readmissão de dois
companheiros demitidos392.
Com a greve dos motoristas e condutores da Manáos Tramways, as
contradições do mundo do trabalho emergiam e davam conta de um patronato
pouco propenso as negociações e as confrontações internas. Os embates também
ocorriam entre os membros da mesma categoria, o que enfraquecia o movimento,
ocasionando perdas significativas para o mesmo. Os fura-greves eram um problema
a mais para os trabalhadores grevistas, estes muitas vezes por medo de perderem
seus empregos davam funcionalidade aos serviços das empresas em detrimento do
interesse da classe, a qual pertenciam. Na greve de 1925, os bondes em número
reduzido não deixaram de trafegar “(...) conduzidos por empregados da oficina da
companhia, que não aderiram à parede, fiscais e empregados do escritório da
390 Jornal do Comércio, Manaus, n. 5.418, 4 de junho de 1919. 391 O Construtor Civil, Manaus, n 1, 5 de janeiro de 1920. 392 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.515, 23 de março de 1925.
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mesma empresa, sob a guarda de praças da força policial, devidamente
embaladas”393.
As reivindicações acima citadas foram colocadas em negociação por Pedro
Ribeiro da Silva, presidente da União Operária Amazonense, acompanhado de uma
comissão de grevistas e do advogado destes, Paulo Eleutherio. Nessa reunião, a
companhia atendia em parte, as reivindicações dos paredistas deixando de atender
ao pedido de aumento salarial e a readmissão dos dois motoristas dispensados.
Numa segunda reunião, a Manáos Tramways resolveu readmitir, por interferência do
chefe de polícia, o motorista Leopoldo Araújo. Este passava a partir da readmissão,
a trabalhar na oficina e não mais em convívio com seus companheiros, a desculpa
fornecida recaía sobre seu estado de saúde. A empresa delegava aos grevistas, a
responsabilidade pelo comparecimento e assiduidade do motorista ao serviço, sob
pena de ser novamente demitido. Quanto ao outro trabalhador demitido, Arnaldo
Cruz, a empresa não quis readmiti-lo prontificando-se apenas a fornecer-lhe uma
passagem para Belém394.
Depois de analisar as recentes propostas, os grevistas da Manáos Tramways
resolveram: “Concordar com os quatros primeiros itens, nos quais a Tramways se propõe a
readmitir, em atenção ao pedido do dr. chefe de polícia, apenas o motorista vinte um,
Leopoldo Araújo, em outro serviço, na oficina, em virtude de seu estado de saúde;
revogar as disposições do regulamento que os grevistas pleiteiam; a extinguir o
quadro de extranumerários e a aumentar a classe dos reservistas, obrigando todos
ao fardamento e fiança; e a só dispensar empregados quando estes caíssem em
grave falta.
Ao quinto, no qual a companhia declara não poder aumentar para dois mil réis o
salário diário dos motoristas e condutores, os grevistas formularam uma nova
proposta pedindo, ao invés de dois mil réis, o aumento de mil réis. Quanto ao sexto, em que a Tramways declara não poder satisfazer presentemente o
horário de oito horas de trabalho, solicitado pelos operários da oficina da
Cachoeirinha e empregados da luz pública e particular, e pede que os grevistas
aguardem a chegada do gerente efetivo para resolver o caso, não foi aceito,
mantendo os paredistas de pé a sua proposta.
O sétimo e último, em que a companhia não quer readmitir o motorista quarenta e
quatro, de nome Arnaldo Cruz, mas se compromete a dar-lhe uma passagem para
393 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.515, 23 de março de 1925. 394 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.515, 23 de março de 1925.
150
Belém, desapareceu em virtude do interessado haver declarado que abria mão dos
favores que lhe eram dispensados e se considerava demitido da companhia, não
pretendendo voltar mais para esta, ainda mesmo que a greve fosse vitoriosa”395.
Nada sabemos sobre os itens do regulamento da firma estrangeira que foram
priorizados pelos grevistas, todavia, sabemos que os extranumerários eram uma
ameaça constante aos trabalhadores efetivos, sendo acionados sempre que
necessário, como por exemplo, nas greves “muitas dessas pessoas já prestaram
serviços a Manáos Tramways, contando-se também alguns motoristas que
trabalharam em Belém e Recife”396.
Como acontece na maioria das greves, o impasse e a demora nas
negociações acabam ocasionando o retorno gradual dos grevistas ao trabalho, e
assim o movimento a cada dia vai perdendo coesão e força, a premissa neste caso
não foi diferente, “(...) manifestaram-se também os grevistas da luz pública e
particular, dizendo que, já tendo alguns furado a greve, voltaram ao trabalho das
nove horas”397.
Esse tipo de estratégia utilizada pelo patronato foi muitas vezes reforçada
através da pressão e cooptação exercida, principalmente, sobre aqueles
encarregados das negociações em nome dos grevistas. Neste caso, como os
paredistas não recuavam em suas reivindicações, o fim da greve deveria ser
apressado, a cooptação recaiu sobre o presidente da União Operária Amazonense,
ocasionando dissonância entre este e a base do movimento. Essa postura tornou-se
visível através das linhas a seguir: “o sr. Pedro Ribeiro da Silva, presidente da União
Operária Amazonense, resolveu não mais ceder a sede desta sociedade para serem
realizadas as reuniões que os grevistas ali vinham efetuando com relação ao caso
em foco”398. Os interesses antagônicos entre o capital e o trabalho colidiram, e o
mais forte impôs a sua vontade:
“Foi lido o ofício, no qual a companhia se negava a satisfazer o aumento de mil réis nos salários, ultimamente proposto. Negava-se também a atender o pedido dos
empregados da oficina e da luz pública e particular, sobre as oito horas de trabalho. No
referido ofício, (...), a companhia lamentava a resolução dos grevistas em não
quererem voltar mais ao serviço se não fossem atendidos, declarando-lhes que se via
395 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.516, 24 de março de 1925. Grifo meu. 396 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.517, 25 de março de 1925. 397 Idem. 398 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.516, 24 de março de 1925.
151
forçada nessas condições, a considerá-los despedidos e a procurar outros auxiliares”399.
A ameaça de substituir os grevistas por outros trabalhadores e a imposição
da concessionária inglesa forçava os grevistas a reconsiderarem determinadas
posições, e em virtude disso voltaram ao labor e reintegraram-se a normalidade da
vida citadina. Como em greves anteriores, a crise do extrativismo foi novamente
usada como desculpa para a firma estrangeira não conceder o reajuste salarial
reivindicado:
“A situação atual do mercado cambial, a crise continuada que desorganizou econômica
e financeiramente este Estado, trazendo como consequência a redução de nossas
rendas, tudo isso, impossibilita esta companhia, muito a contragosto, a não poder
atender o aumento do salário desejado”400.
Sobre a jornada de nove horas de trabalho foi assim justificada:
“(...) quanto aos empregados das nossas oficinas, eles atualmente percebem dez
dias de salários pelas nove horas que trabalham. Reduzir esse trabalho para oito
horas com a remuneração das mesmas dez horas, redundaria num aumento de
vencimentos ou salários, em prol de uma classe em detrimento e prejuízo das outras
que servem esta companhia e que olhamos com as mesmas simpatias”401.
Um fato singular nos chamou atenção nessa greve, essa singularidade recaía
sobre Arnaldo Cruz, aquele trabalhador demitido, a quem a Manáos Tramways
prometia fornecer uma passagem só de ida para Belém e recusou terminantemente
incluí-lo novamente em seu quadro de funcionários. Para chegarmos até ele é
necessário inicialmente, uma explicação. Nas greves analisadas dos motoristas e
condutores da Manaós Tramways, o Jornal do Comércio não cita que os
trabalhadores demitidos eram na realidade, os líderes operários. Ao serem
novamente readmitidos como uma das exigências dos grevistas, os mesmos não
voltavam mais ao convívio social direto com seus companheiros de trabalho,
passavam a exercer outras funções dentro da companhia, porém longe daqueles
que tinham influenciados e liderados, como aconteceu com Leopoldo Araújo. Na
greve de 1927, depois dos embates travados, outro líder operário anônimo tinha o
mesmo destino ”a companhia readmitirá no quadro do seu pessoal, mas em serviço
399 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.517, 25 de março de 1925. 400 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.517, 25 de março de 1925. 401 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.517, 25 de março de 1925.
152
diferente, o condutor, chapa número dezoito, que havia sido precedentemente
despedido ”402. Para os outros grevistas determinava: Segundo – Do total dos condutores e motoristas que aderiram à greve, abandonando o
serviço, trinta serão readmitidos imediatamente ao serviço, por ordem de antiguidade,
sendo que vinte e dois irão para o quadro efetivo e oito para o da reserva efetiva;
Terceiro – Os quinze restantes grevistas ficarão na reserva, devendo ser aproveitados
sempre que o serviço da Companhia permitir, por aumento de tráfego, no mínimo na
razão de dois, por ordem também de antiguidade. (...)403
Quanto a Arnaldo Cruz, que predicados caberiam a este homem? Seria ele
um anarquista, “criador de problemas”, ou simplesmente, um propagandista de
ideologias políticas, ou quem sabe, um insuflador de greves com capacidade
suficiente para influenciar e mobilizar trabalhadores na luta por melhores condições
de trabalho? O que afirmamos é que além de líder operário404, ele representava uma
ameaça constante, um perigo que a Manaós Tramways desejava ver longe de seu
território, preferencialmente em uma outra cidade. A fala de Arnaldo Cruz revela
indícios de sua personalidade, ao saber que a firma inglesa não pretendia mais
readmiti-lo e intencionava dar-lhe uma passagem para Belém, este havia declarado:
“(...) que abria mão dos favores que lhe eram dispensados e se considerava
demitido da companhia, não pretendendo voltar para esta, ainda mesmo que a greve
fosse vitoriosa”405.
Depois da greve de 1925, os motoristas e condutores da Manaós Tramways
não se mantiveram calmos por muito tempo. Em 1927, declararam-se novamente
em greve por não aceitarem a demissão de dois companheiros de trabalho. O caso
a seguir exemplifica a referida situação, “pela manhã de ontem os condutores e
motoristas da Manáos Tramways entraram em greve pacífica. Procurando saber a
causa dessa resolução, fomos informados de que eles assim procederam em virtude
de haver a companhia dispensado dois colegas seus”406. Ambos pertenciam à
diretoria da recém fundada Sociedade dos Motoristas e Condutores. A diversidade
de experiências vividas e os diferentes processos de politização, nos termos
defendidos por Thompson, por essa categoria de trabalhadores, principalmente na 402 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.103, 2 de junho de 1927. Grifo meu. 403 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.103, 2 de junho de 1927. 404 Jane Hahner afirma que a liderança operária era em grande parte composta por trabalhadores qualificados, tanto brasileiros quanto europeus, o que significa que no mínimo eles sabiam ler e escrever. In: HAHNER, June E. op. cit., p. 255. 405 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.516, 24 de março de 1925. 406 Jornal do Comércio, Manaus, n. 8.193, 21 de maio de 1927.
153
greve de 1925 deixaram lições claras e uma certa consciência de classe,
impulsionando à organização de uma sociedade cujo objetivo maior era a defesa de
seus interesses. Isso colocava em pauta uma série de demandas e visavam
prioritariamente modificar as suas condições de trabalho e de vida.
O movimento paredista de 1927, no qual se envolveu essa categoria obteve o
apoio de grande parte das associações pertinentes à classe trabalhadora de
Manaus, e demonstra como estava organizado o mundo do trabalho na cidade, no
final da Primeira República. Para apoiar mais uma greve dos motoristas e
condutores da Manáos Tramwyas compareceram em sua sede provisória, os
delegados das seguintes sociedades: Associação dos Empregados no Comércio do
Amazonas, União Beneficente dos Taifeiros, União Beneficente dos Práticos, União
dos Choferes, Associação das Quatro Artes, União Beneficente dos Cigarreiros,
União Operária Amazonense, União Beneficente dos Foguistas e Sindicato dos
Estivadores407.
No período estudado, o conjunto de trabalhadores urbanos manauaras se
confrontou com inúmeras vicissitudes pertinentes ao universo do trabalho, ainda
sem direitos adquiridos legalmente, lutaram através de vários mecanismos de
pressão, que incluía denúncias, apelos às autoridades constituídas, roubo de peças
e principalmente greves, por aquilo que acreditavam melhorar as suas condições de
trabalho e de vida. Magareth Rago afirma que “a profusão de manifestações
combativas desmitifica o mito do atraso político dos operários em geral”408, as lutas
implementadas a nível local corroboram para tal afirmação e afastam
consequentemente, o estigma de trabalhadores “ordeiros e pacatos” existente
somente no imaginário disciplinar das elites.
Os mecanismos de pressão por eles utilizados indicam que no interior de
cada categoria, diversas correntes de orientação social reformista e anarquista
atuavam. O que não significa como afirma Pinheiro (2003) que sua simples presença
tenha desencadeado de fato as posturas políticas tradicionalmente associadas a
essas formas de organização409. As contradições internas e os dilemas não
resolvidos pertinentes a cada categoria, onde muitos trabalhadores, poucas vezes
407 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.199, 28 de maio de 1927. 408 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. op. cit., p. 30. 409 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros. op.cit., p. 146.
154
ou talvez nunca tenham ouvido falar sobre as posturas políticas citadas
anteriormente, possibilitaram a esses sujeitos históricos transitar de forma autônoma
pelo mundo do trabalho em Manaus, mais preocupados com a sua sobrevivência, do
que com a crise.
Para eles o discurso de crise difundido pelo patronato, como procuramos
demonstrar, não funcionou. A crise não fazia parte do conjunto de preocupações
desses trabalhadores, nessa conjuntura desfavorável, eles tinham reivindicações de
caráter mais imediatista exercida principalmente pela carestia de vida e pela fome,
na realidade viviam em crise permanente, na labuta diária para adquirir recursos
mínimos necessário à subsistência. Nas greves deflagradas bradaram contra as
reduções, o atraso e mesmo a falta de seus pagamentos e reivindicaram: jornada de
oito horas, melhores condições de trabalho e aumento salarial, este último refletia
em termos módicos, na sua qualidade de vida.
As lutas evidenciadas e esboçadas neste trabalho colaboram para afirmar
que o movimento operário em Manaus não era incipiente como afirmam alguns
historiadores. Essa luta inicia antes do processo de urbanização da cidade e
permeia toda a fase de expansão e euforia da economia gumífera, se acentuando no
período de recessão econômica, devido a própria dinâmica cotidiana de
sobrevivência, que dificultou ainda mais a vida do trabalhador pobre na cidade e o
intercambio realizado na esfera nacional com as novas exigências da “classe
trabalhadora”. A preocupação em sobreviver na cidade não restringiu a luta desses
trabalhadores somente a nível local. A luta pela jornada de oito horas de trabalho
refletia não só a sintonia com as demandas dos trabalhadores do Sul e Sudeste do
Brasil, mas evidenciava também, uma maior preocupação com o movimento da
“classe trabalhadora” que avançava em suas conquistas pelo mundo afora.
155
2.3 - Trabalho Informal e Pequenas Ocupações Autônomas
Ao lado do mercado formal de trabalho no período estudado, observa-se a
predominância acentuada do trabalho informal e das pequenas ocupações
autônomas. A maioria dessas pequenas ocupações independentes e trabalhos
ocasionais vigoraram tanto nos tempos de euforia e expansão, como também na
derrocada da economia gumífera. Geralmente, o grosso da população pobre,
economicamente ativa, sobreviva trabalhando por conta própria e vivia por meio de
expedientes variados, à base do trabalho não-institucionalizado.
No tempo de crise e recessão econômica, o mercado de trabalho assalariado
ficou restrito e as dificuldades vividas no setor informal da economia tornaram-se
acentuadas, por isso o aumento da população miserável cresceu consideravelmente
embalado pelos grandes contingentes de seringueiros depauperados que chegavam
à cidade. Os recém chegados juntaram-se aos citadinos pobres e foram condenados
ao semi-emprego crônico tentando sobreviver das pequenas ocupações autônomas
e do trabalho informal. O estudo superficial que realizamos a partir dos
acontecimentos miúdos da vida diária manauara nos permite citar uma profusão
acentuada de pequenos profissionais autônomos, entre os quais: calceteiros,
carvoeiros, lenheiros, vidraceiros, pintores especializados, carpinteiros, marceneiros,
ferreiros, ourives, escultores, gravateiros, sapateiros, cabeleireiros, barbeiros,
alfaiates, capinadores, garapeiros, confeiteiros, açougueiros, magarefes, jornaleiros,
carreiros, roçadores, varredores, capatazes, trabalhadores em olarias, talhadores
em pedra, carreteiros, tintureiros, serradores, embaladores, cordoeiros, mecânicos,
torneadores, envernizadores, cuteleiros, etc.
Entre o trabalho informal pertinente a paisagem agitada e movimentada de
Manaus, os mascates se destacavam. Em um caso relatado pelo JC, os vendedores
ambulantes, especificamente, os mascates, também chamados de teques, nos
legaram um pouco de seu cotidiano ao desencadearem certa resistência, ao
pagamento do imposto de indústria e profissão410. O pagamento do referido imposto
era necessário para quem desejasse vender mercadorias no centro da cidade.
410 Instituído conforme a Lei nº 840, de 18 de outubro de 1915.
156
Para amenizar a situação das rendas públicas em declínio nesse momento, o
poder público estadual aumentava os impostos. O aumento do imposto de indústria
e profissão para o ano de 1916 escondia a intencionalidade do Estado em atender
as constantes reclamações dos comerciantes locais, em relação aos vendedores
ambulantes, a quem amiúde atacavam exigindo a tributação de modo a colocá-los
em igualdade de condições, quanto aos impostos, com os retalhistas estabelecidos:
“(...) o comércio fixo por mais de uma vez tem formulado contra a desleal concorrência
que lhe é feita por essa praga daninha que se derrama por todos os cantos e recantos
da cidade, ora carregando e conduzindo caixões e carrinhos que mais parecem
grandes armazéns, ora carregando e conduzindo miseras caixinhas e caranguejolas de
bufarinheiros, sem contudo ter logrado obter dos Poderes Públicos medidas que
colocassem essa extravagante classe comercial, ao menos, em relativo grau de
igualdade tributária411.
Para que o comércio regularmente estabelecido não continuasse a ser
prejudicado com a concorrência dos vendedores ambulante, a Associação
Comercial dos Retalhistas representando 48 firmas “sugeria”:
“Achando razoáveis, como de fato eram, as ponderações que nos permitimos fazer
junto aos Poderes Públicos, a Lei Orçamentária do Estado para o exercício de 1916
elevou o imposto de indústria e profissão de negociantes ambulantes, que era de 200$
e 400$000, para 500$000 e 1:000$000, criando ainda a nova classe de negociantes
ambulantes de miudezas e quinquilharias, para a qual fixou a taxa de 200$000; e o
Conselho Municipal coletou-os com taxas que atingem a cerca de 500$000 anuais,
resoluções estas que se tornam credoras dos nossos agradecimentos”412.
Os mascates considerados “os mais rebeldes contribuintes” se negaram a
realizar o pagamento referente ao ano de 1916, já com o aumento sugerido pela
Associação Comercial dos Retalhistas, o que tornou o comércio ambulante proibido
para muitos deles. Depois dos sucessivos prazos dados pela fazenda estadual para
o pagamento do imposto, o pega-pega iniciou e a polícia, a serviço da repartição
arrecadadora, exercia sua atividade capturando, de preferência as mercadorias dos
chamados “teques”. Essa denominação provém do som, peritamente arrancado por
eles a dois longos pedaços de madeira, vibrados um contra o outro e que lhes serve
de metro. Em seus armários ou carrinhos envidraçados carregam mercadorias de
411 Associação Comercial dos Retalhistas. Relatório da Diretoria de 17 de janeiro de 1915. p. 7 Grifo meu. 412 Associação Comercial dos Retalhistas. Relatório da Diretoria de 17 de janeiro de 1915. p.8.
157
todos os gêneros e qualidades, desde o simples papelinho de agulhas Garibaldi e do
dedal de ferro, até as mais custosas cambraias e coleções de finíssimas e apuradas
rendas413. Esses atores sociais, assim justificavam o momento de impasse junto ao
Tesouro Estadual:
“A taxa de indústria e profissão a pagar pelos mascates, tem sido, a cada ano, que
passa aumentada, duplicada, triplicada a ponto de pelo orçamento em vigor, encontrar-
se o seu comércio taxado proibitivamente. O resultado foi que, ao contrário dos outros
anos, grande parte desses vendedores ambulantes, cuja mercadoria apregoada muitas
vezes não chega à importância do imposto cobrado, viu-se obrigada a entregar aos
agentes do fisco estadual as caixas de bugigangas, chitas e armarinhos, todo o stock
de seu negócio ao Tesouro do Estado, aos que pagaram, devolvem, posteriormente, o
objeto de seus negócios, resolvendo meter em leilão as caixas daqueles que até hoje
não tivessem pago o tributo devido. (...)”414.
Com as mercadorias confiscadas pela polícia e prestes a serem leiloadas, um
grupo de 28 mascates devedores, a maioria turcos415, entrou com um mandato no
Supremo Tribunal de Justiça para suspender o leilão, no qual foi favorecido. O
remédio judiciário determinou a suspensão do leilão e que se fizesse cessar os
constrangimentos, que sofriam os peticionários. Posteriormente “(...) obrigava a
entrega aos mascates das mercadorias, que os agentes daquela repartição haviam
capturado, a fim de garantir o aumento do imposto de indústria e profissão, na coleta
deste ano416.
A vitória dos mascates na Justiça inflamou a cólera de seus velhos rivais, os
comerciantes, que ao expressarem a sua insatisfação, sinalizavam os meios
empregados por esses vendedores ambulantes para burlarem as leis:
“São os teques ou mascates [...], singulares comerciantes sem residência fixa
publicamente conhecida, alapando-se hoje aqui, amanhã ali e no outro dia acolá,
adotando nomes de esquisitas firmas comerciais que variam, momentaneamente,
consoante o seu capricho, e que, portanto, os transforma, e os oculta às vistas do fisco.
E desta forma estabelecem tremenda e desleal concorrência ao comércio regularmente
estabelecido, porque conseguem eximir-se ao dispêndio de avultadas somas para
custeio do negócio e fugir ao cumprimento de obrigações impostas por lei”417.
413 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.409, 5 de agosto de 1916. 414 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.407, 3 de agosto de 1916. 415 Alli Mamud, Ibrahem José, Assen Calil, Ligan Antonio, Abbib Azrau, Sallin Alli, Assem Assen, José Ismail, (...). 416 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.409, 5 de agosto de 1916. 417 Idem.
158
No combate aos mascates, os componentes da Associação Comercial dos
Retalhistas insistiam em solicitar ao governador do Estado, a mesma tributação para
o ano vindouro de 1917, assim como, a elaboração de leis para obrigá-los a pagar o
imposto de Indústria e Profissão no primeiro mês do ano, evitando dessa forma o
calote no Estado:
Exm.º Snr. Dr. Governador do Estado. (...) animou a Diretoria da Associação Comercial
dos Retalhistas a ir solicitar os bons ofícios de V. Ex.ª junto ao Poder Legislativo do
Estado, para que sejam mantidas na Lei Orçamentária para o exercício de 1917, as
taxas de imposto de Indústria e Profissão que lhes foram aplicadas para o exercício de
1916. Seria também de bom aviso, Exm.° Snr. Dr. Governador do Estado, para que
eles não consigam escapulir-se novamente ao cumprimento das obrigações que devem
ao Estado, rastejando pelas dobras e refegos de qualquer outra decisão judiciária
semelhante àquela que os libertou milagrosamente do encargo do imposto de Indústria
e Profissão relativo ao primeiro semestre do exercício corrente, legislar-se também de
maneira a obrigá-los a satisfazer seus impostos no decurso do primeiro mês do ano
econômico; pois, de contrário, ficarão sempre com longo prazo para exercerem
livremente a sua safra e acabarem por calotear o Estado depois de terem prejudicado a
seu bel-prazer o comércio regularmente estabelecido, com uma concorrência
alimentada pelo próprio capital fornecido pela economia do pagamento de Impostos”418.
Para os vendedores ambulantes em geral, os comerciantes locais requeriam
o aumento dos tributos e mais rigor nas cobranças dos mesmos, no entanto, para
eles usando como desculpa a crise comercial solicitavam sempre que houvesse
conveniência, a prorrogação do prazo para o pagamento sem multa do citado
imposto:
“Ainda em virtude de reclamações que lhe foram dirigidas, baseadas nos efeitos da
terrível crise que tem assoberbado o comércio, oficiou esta Diretoria a S. Ex.ª o Snr. Dr.
Governador do Estado, solicitando-lhe a prorrogação do prazo para pagamento sem
multa do imposto de indústria e profissão dos 1º e 2º trimestres do ano corrente, tendo
S. Ex.ª atendido, e fazendo publicar o Decreto Nº 1116 de 30 de junho, que prorrogou
aquela cobrança até 31 de agosto. (...)”419.
O trabalho dos mascates ou teques era árduo e na tentativa de obter recursos
para sobreviver, pequenos contrastes na prática cotidiana de alguns ocasionava
sérios atritos entre eles, como relata o caso a seguir. O turco Felippe Jorge, de 25
anos descia a Rua Joaquim Nabuco, lá pelo final da tarde, o suor a escorrer pelo
418 Associação Comercial dos Retalhistas. Relatório da Diretoria de 1916. p. 7. 419 Associação Comercial dos Retalhistas. Relatório da Diretoria de 1915. p. 17.
159
rosto, arriou lentamente a sua caixa de miudezas sobre uma calçada, descansando
de agitar o metro no seu compassado e infindável teque-teque. E na calma, no
repouso daquela via pública começou a pensar no seu dia, a freguesia procurou-o
muito e o resultado disso estava em seu bolso e afagou satisfeito, o embrulho
machucado das cédulas. O barulho seco de outro teque-teque feriu-lhes os ouvidos,
outro patrício se dirigia até ele, arrastando o peso de suas bugigangas, e depois
mais um e mais um. Três companheiros que junto dele pararam para descansar as
fadigas do dia. No decorrer da conversa ficaram sabendo que Felippe Jorge
praticava o comércio de seus objetos pela metade do preço e com isso não
concordaram. Insistiam que essa prática os prejudicava imensamente e foi motivo,
para que os três conterrâneos de Felippe pegassem o metro e a ele desferissem
vários golpes abrindo-lhe uma brecha na cabeça. Enquanto os agressores Aristides
Ali Mustaphá, Jorge Maria e Jorge Camillo se dirigiam para a delegacia, Felippe
recebia curativos na Santa Casa de Misericórdia420.
No ano de 1917, também os quitandeiros que circulavam em volta do
movimentado Mercado Público Municipal foram beneficiados por um habeas corpus
“(...) concedido pelo Superior Tribunal de Justiça do Estado, a favor dos quitandeiros
que circundam o Mercado Público, permitindo-lhes que negociem aos domingos e
dias feriados, até o meio dia”421. Inconformados com a permissão concedida aos
quitandeiros, os comerciantes achando esta concessão em manifesta discordância
com as exigências da Lei Municipal sobre o Encerramento dos Estabelecimentos,
tentaram saber se tal concessão não importava em nulidade desta lei. À autoridade
municipal pediam providências e coerência na aplicação da Lei, baseados no
princípio que a mesma a todos deve obrigar por igual.
Os exemplos citados mostram os embates e conflitos desenvolvidos no
interior do espaço urbano, frutos da expansão da economia gumífera e seus
desdobramentos, com destaque para a urbanização e modernização, e mantidos
também na recessão econômica. As tensões desencadeadas no confronto com os
setores dirigentes mostram que muitas vezes, esses atores sociais não aceitaram
passivamente as decisões impostas de cima para baixo e que em alguns casos
420 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.332, 17 de maio de 1916. 421 Associação Comercial dos Retalhistas, Relatório da Diretoria de 1917. p. 8.
160
conseguiram reverter determinada situação a seu favor, quando não, burlavam as
leis na tentativa de sobreviver na cidade.
Era muito comum a presença, nas ruas, do engraxador ambulante com seus
rústicos instrumentos de trabalho: o caixote com graxa, no qual também sentava
para realizar o trabalho diário, escovas, panos de ilustrar e um vidro de água, além
do suporte para o pé do freguês. Eles permaneciam horas inativos, a espera de
fregueses e ficavam nas esquinas das ruas de maior movimento, como por exemplo,
na Rua Municipal (hoje 7 de setembro) com a Joaquim Nabuco, apesar do preço
irrisório cobrado por estes profissionais, seus ganhos eram complementados
algumas vezes pelas gorjetas provenientes da boa vontade dos clientes. O imposto
de indústria e profissão também os atormentava, não só pelo fato de terem de
pagar, mas também pelos imprevistos dele oriundo:
“Veio dizer-nos, ontem, Francisco Constanci, engraxador ambulante, que apesar de
haver pago o imposto de indústria e profissão, referente a este ano, o respectivo
lançador, prende-o, ontem, fazendo-o recolher à delegacia de polícia, onde esteve
preso das dezessete horas e meia até às vinte”422.
O imposto de indústria e profissão necessário também para evitar a desordem
urbana, segundo o olhar dos setores dirigentes, foi motivo para declararem-se em
greve pacífica, os horteleiros da cidade. Dois colegas em atraso com o citado
imposto foram executados judicialmente, por não terem efetuado o pagamento,
sendo proibidos pelo fisco estadual de venderem os seus produtos. Os horteleiros
em solidariedade a estes, resolveram deixar de efetuar as vendas no Mercado
Público, nas ruas e nos domicílios:
“As bancas do mercado público acharam-se ontem desprovidas de verduras, não se
notando também nas ruas da cidade nenhum dos vendedores ambulantes de
hortaliças. (...) Procurando indagar a causa desse fato, soubemos que dois horteleiros
haviam sido executados judicialmente para o pagamento dos impostos de indústria e
profissão, em atraso, para com o tesouro estadual, sendo compelidos a não vender os
seus produtos, sem que satisfizessem primeiro aqueles compromissos”423.
Um expressivo número de desempregados do comércio, do setor de serviços
e seringueiros, desde que pudessem pagar o imposto de indústria e profissão podia
422 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.945, 20 de abril de 1915. 423 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.288, 27 de outubro de 1921.
161
facilmente empregar-se como vendedores ambulantes, já que esse tipo de trabalho
sem exigência de qualificação, não requeria nenhuma habilitação específica.
Os choferes, os cocheiros e vendedores ambulantes no ano de 1917
deflagraram-se em greve pacífica, a fim de conseguirem a revogação de uma
portaria do chefe de polícia, que proibiu a prática estabelecida pelas delegacias de
Manaus, até então convertidas em cobradoras de contas perdidas:
“Os choferes, os cocheiros, os vendedores ambulantes quando se viam enganados
pelos seus fregueses caloteiros corriam a uma das delegacias, apresentavam uma
queixa contra o devedor relapso e dentro de pouco tempo era este levado preso à
presença da autoridade de permanência e intimado a liquidar a sua conta.
Si cumpria a ordem e pagava, era mandado em paz, mas si ou por não ter dinheiro ou
por ser mesmo um caloteiro negava-se a satisfazer o pagamento, era o denunciado
metido no xadrez até efetuar o pagamento ou dar as devidas garantias ao credor,
comprometendo-se a indenizá-lo brevemente ”424.
A campanha contra essa prática foi liderada pelo Jornal do Comércio. A
cobrança de dívidas conforme alegava o representante do JC, não era da alçada da
polícia e nenhuma lei do país permitia a praxe que vinha tomando foros em Manaus.
A portaria determinava aos delegados que orientasse os seus auxiliares para não
tomar conhecimento de queixas sobre dívidas de automóveis, carros de praça, de
hotéis, e quaisquer outras, sob pena de suspensão ou demissão nos casos de
reincidência.
Os choferes e os cocheiros dos carros de praça sentindo-se prejudicados com
a portaria declararam-se em parede, como não conseguiram novas adesões e nem
o apoio da população, a greve não obteve êxito, mantendo o chefe de polícia a
referida portaria. No decorrer da greve para acalmar os ânimos, a citada autoridade
“ordenou mais que fosse efetuada a prisão de alguns grevistas, dentre os quais
Alfredo Silva, cinesphoro do auto número trinta e oito, conhecido pela alcunha de
Medalha e apontado como cabeça do movimento”425.
As cobranças realizadas pelas delegacias e abolidas pelo chefe de polícia
são indícios dos constantes calotes recebidos por esses trabalhadores informais e
da instabilidade financeira, por eles vivenciada. Os choferes ficavam ao longo da
Avenida Eduardo Ribeiro à espera de entrar no serviço. Às vezes, o tempo sem 424 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.768, 7 de agosto de 1917. 425 Idem.
162
ocupação remunerada era abundante e de um modo geral havia uma coexistência
entre o trabalho e a diversão, enquanto o trabalho não aparecia reuniam-se em
agrupamentos às portas dos botequins, nessas concentrações informais, falava-se
dos problemas da vida diária, comentavam-se os crimes noticiados pelo JC,
abordava-se a situação política do momento, a crise e as greves do operariado,
trocavam-se convites para alguma festa, ainda por acontecer, além é claro de
tomarem alguns tragos de cachaça.
A prática de permaneceram às portas dos botequins foi alvo de uma ação
conjunta entre o chefe da Municipalidade e o chefe de polícia, este último “(...)
determinou ao delegado do segundo distrito providências no sentido de evitar que os
choferes abandonassem os seus autos em meio à Avenida Eduardo Ribeiro e outros
pontos para se reunir em agrupamentos às portas dos botequins”. Devendo “(...) os
choferes se conservarem sempre à boléia do seu veículo, ou, pelo menos, às suas
aproximidades”426. O JC focado no combate aos velhos costumes, também
reclamava do cotidiano desses trabalhadores informais:
“(...) há um abuso que ultrapassa os outros. É posto em ação pelos choferes. Acontece
isso de dia e de noite, em pleno sol canicular ou em plena treva densa. Levam os autos
numa carreira desabalada, fazendo curvas perigosas, verdadeiras curvas da morte. E,
como um hino de zombaria, vão esses autos soltando fon-fons! estridentes ruas afora.
Parados ao longo da Avenida Eduardo Ribeiro, não deixam o costume velho.
Empregam-no para seduzir os que passam. O fon-fon! (...)”427.
A comercialização dos mais variados doces e salgados está relacionada com
a existência de um vasto exército de trabalhadores casuais disponíveis no mercado,
com o trabalho caseiro de suas famílias e com o esforço coletivo destes
trabalhadores para sobreviver no espaço citadino428.
Os doceiros, os padeiros e os vendedores ambulantes de guloseimas eram
alvos frequentes do JC, por conduzirem pelo centro da cidade e pelos bairros pobres
mais populosos, seus tabuleiros sem a devida cobertura, “sob um nojento chuveiro
de moscas”429, a mercê de várias doenças. Essas práticas sinalizavam segundo o
jornal, uma cidade ainda mergulhada em seus velhos costumes, fora dos domínios
426 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.134, 18 de janeiro de 1913. 427 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.301, 14 de abril de 1916. 428 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador na cidade de São Paulo (1890 – 1914). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. p. 153 - 154. 429 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.312, 27 de abril de 1916.
163
do progresso. No combate aos velhos hábitos e costumes não condizente com a
civilidade imposta pelas elites, o jornal solicitava providências das autoridades, seu
principal argumento era as crianças, as vítimas mais expostas que cheias de
gulodice podiam adquirir por cem réis, uma calamidade que poderia durar a vida
toda. Os vendedores ambulantes de guloseimas devem trazer o seu produto dentro
de uma cobertura especial, livre do pernicioso inseto, era o que indicava as regras
da boa higiene, afirmava o jornal.
Na campanha realizada pelo jornal visando incutir na população regras de
higiene, peculiar ao mundo civilizado aspirado pelas elites, os barbeiros também
foram alvos do JC. Em relação a estes, chamava a atenção das autoridades
constituídas para os desleixos de certos barbeiros, frisando a necessidade urgente
de serem desinfetadas as suas respectivas navalhas430.
Muitos vendedores de guloseimas que transitavam com seus tabuleiros,
paneiros, cestas e carrinhos de cocadas, bolos, pés-de-moleque, bananas em
caldas e fritas, pastéis, salgados e outras iguarias regionais, principalmente pelas
ruas e praças do centro urbanizado, por onde transitava um maior número de
pedestres, traziam seus produtos, em grande parte, arrumados e cobertos, a
fiscalização das autoridades sanitárias nesse perímetro da cidade era mais rigorosa.
Assim, doces, quitandas e petiscos caseiros confeccionados pelas mulheres de suas
famílias eram vendidos aos trabalhadores em trânsito, homens de negócios,
funcionários públicos, moças chics, senhoras elegantes vestidas em muitos casos à
francesa, habitualmente as crianças e adolescentes constituíam o grosso da
freguesia. Uma minoria, porém, continuou sob o olhar atento da população que
reclamava solicitando “providências de quem de direito a fim de ser proibido que os
doceiros, que andam a apregoar guloseimas pelas ruas da cidade, tragam as suas
caixas descobertas, enchendo assim de poeira os doces que as mesmas contêm”431.
A capacidade de criar novos meios informais de ganhos, mesmo que esses
ganhos fossem parcos, mas o suficiente para lhe propiciar sobreviver, não deixa de
constituir a cultura de resistência do homem marginalizado pela barbárie de um
430 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.312, 27 de abril de 1916. 431 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.859, 21 de junho de 1923.
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capitalismo emergente, como no caso da Amazônia, que o condenava a perecer no
desemprego crônico432.
Os carregadores avulsos também faziam parte da agitada paisagem social de
Manaus. Os locais preferidos por esses trabalhadores casuais eram os arredores do
Mercado Público, conforme relata o JC em uma de suas páginas: “um grupo de
carregadores italianos, estacionados às sete horas da manhã, no portão principal do
Mercado Público, aguardando quem o chame para condução de compras”433, e
também, as principais esquinas da cidade onde esses imigrantes paupérrimos
ficavam a espera de chamados.
Os chamados variavam de acordo com a corrente de sociabilidade
desenvolvidas por eles com outros trabalhadores e a clientela. As conversas banais
realizadas nas ruas com os companheiros eram o meio usual de tornar-se conhecido
e ser inserido em um amplo círculo, onde através de referências, esse trabalhador
poderia ser contratado para realizar pequenos serviços ou arranjar trabalho.
A citação abaixo demonstra a grande relevância de desfrutar da “amizade” e
“simpatia” de algumas pessoas, isso aumentava a possibilidade se serem preferidos
ou não para a realização de algum trabalho:
“Vários carregadores, que trabalham junto aos armazéns da “Manáos Harbour”, vieram
ontem, em comissão, a esta redação, afim de que tornemos público o procedimento
que ali tem o vigia de nome Salvino Gabriel da Silva, pois que este, sem motivo, os
persegue, não consentindo que recebam bagagens dos passageiros, quando é certo
que outros carregadores e indivíduos, porque se “expliquem” melhor com o referido
vigia, têm franco acesso na ponte e podem ganhar, sem vexame, o produto de seu
trabalho”434.
Além dos imigrantes italianos, os carregadores avulsos da cidade
comportavam também nordestinos e nativos da terra. Entre eles, era comum ficarem
bebendo cachaça e contando histórias, enquanto aguardavam serviço, por isso no
final da tarde, quando se encerrava o dia árduo de trabalho, quase sempre alguém
desmaiado de fome ou de pinga, ou da combinação desses dois fatores era
432 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador na cidade de São Paulo (1890 – 1914). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. p. 155 - 156. 433 Jornal do Comércio, Manaus, 14 de setembro de 1912. 434 Jornal do Comércio, Manaus, n 3.443, 27 de novembro de 1913.
165
recolhido pelos guardas de quarteirão ou mais precisamente pelos companheiros de
luta435.
Como os ganhos eram pagos ao termino de cada serviço, estes poderiam de
vez em quando praticar algum tipo de jogo existente na cidade, na tentativa de
aumentar os parcos recursos. Jogos como o entrudo, a rasa, a roleta, o jaburu, o
bilhar, a tabola, o quino eram frequentemente condenados pelos jornais da época: “o
jogo, surgiu a princípio, num botequim escuro onde operários e pobres homens iam
ao delírio de poucas horas, atirar ao azar o ganho de uma semana, o saldo de um
mês, enquanto, no lar humildemente a família pacientemente esperava”436. A
jogatina também considerada uma fonte de desgraça para os trabalhadores em
geral era atacada com veemência pelos jornais ditos operários: “(...) a maior parte
das vezes, infelizes operários, atraídos por esse maldito quino perdem o último
vintém, e no dia seguinte, as suas famílias ficam entregues aos negrumes da fome.
Além de tudo estes antros perniciosos convertem os habitues em alcoólatras
invertebrados, maus cidadãos e maus chefes de família (...)”437.
As denúncias constantes na imprensa sobre o jogo indicavam o crescimento
dessa prática em Manaus: “não bastava a crise aniquiladora, não chegavam os
cortejos de desgraças, que nos aguilhoam, que nos matam. Faltava alguma coisa,
com efeito, para perfazer as sete pragas do Egito”438. Assim, se referia o JC para a
chegada na receptiva cidade de mais um jogo, as loterias.
Segundo Pinto (1994), este tipo de trabalho casual não envolvia nenhuma
habilidade específica do trabalhador e devido a grande invasão cotidiana dos
concorrentes e a superabundância de trabalhadores casuais, os ganhos pagos por
tarefa realizada eram insignificantes e intermitentes e geralmente estavam abaixo do
nível mínimo de sobrevivência439.
Carregando seus rústicos tabuleiros, os peixeiros ofereciam peixes de água
doce, muitas vezes pescados por eles mesmos aos moradores da cidade, em troca
de pouco dinheiro, alimentos ou roupas usadas. Em geral, eram populações pobres,
ribeirinhas, pescavam para a sua sobrevivência diária e comercializavam os
435 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência. op. cit., p. 145. 436 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.296, 9 de abril de 1916. 437 Vida Operária, Manaus, n 21, 25 de julho de 1920. 438 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.296, 9 de abril de 1916. 439 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência. op. cit., p. 144.
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excedentes de porta em porta nos domicílios urbanos. O cotidiano dos peixeiros que
moravam na cidade e viam nesta atividade, o único meio de sobrevivência não era
fácil. Seu Raimundo tinha o rosto duro e sofrido, acordava de madrugada e se dirigia
para a orla do Mercado Público onde comprava: jaraqui, matrinxã, tambaqui,
curimatã, sardinha, pacu, acari-bodó, tucunaré e outros peixes regionais para vender
em frente de sua casa ou nas principais ruas do bairro onde morava, para facilitar a
vida de seus fregueses trazia também limão, cebolinha, pimenta cheirosa e cheiro
verde. Os ganhos oriundos dessa prática eram suficientes para a compra do dia
seguinte, o pouco que sobrava era gasto com bebidas e mulheres.
As ruas eram ainda o centro onde se efetuava o pequeno comércio
ambulante de aves, ovos, leite, quelônios e miúdos de carne. A maneira rústica com
que certos vendedores ambulantes conduziam o seu produto, inúmeras vezes
tocando o animal solto pelas ruas ou sobre suas respectivas cabeças, exigia desses
trabalhadores certas habilidades e muita paciência. Apesar de atraírem contra si as
queixas de alguns moradores, a resistência e os atritos com inúmeros comerciantes
de mercearias estabelecidos nas adjacências por onde circulavam, e a intolerância
do pessoal da limpeza pública, estes ambulantes atraíam a simpatia da maioria das
donas-de-casa, por ofereceram produtos a preços baixos e conquistavam a
criançada que ficavam afoitas e alegres ao presenciarem as algazarras realizadas
pelos animais440.
Os vendedores ambulantes de galinhas e ovos que comercializavam seus
produtos no interior do Mercado Público foram acusados de contribuir para o
elevado custo de vida da cidade, por venderem a preços excessivos suas
mercadorias, no intuito de conter a alta, o Superintendente Municipal deliberou “a
administração do Mercado Público Municipal que entrasse diretamente no comércio
das aves e dos seus produtos. Por intermédio de empregados do Mercado fazia-se a
provisão suficiente de galinhas e ovos, que eram revendidos ao público pelo preço
de aquisição”441. Isso foi o suficiente para que os mercadores de galinhas e ovos se
reunissem e fossem a presença do Superintendente solicitar a retirada da
Municipalidade do mercado, mediante determinadas condições, aceitas pelo chefe
440 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência. op. cit., p. 126. 441 Relatório do Superintendente Municipal. Dr. Hugo Ribeiro Carneiro, 1925 (2ª sessão ordinária, 1 de outubro de 1925). p. 29 - 30.
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do poder municipal, este então passou a tabelar esses artigos a preços que
considerava justos, a contento geral da população.
Movendo-se com muita agilidade de uma rua a outra, o padeiro, português na
maioria das vezes ou descendentes de portugueses, com seu tabuleiro à cabeça ou
cestos aos ombros, fazia a entrega bem cedo, ao raiar do sol, das encomendas para
os habituais fregueses. Muitos deles dormiam nas próprias panificadoras para
realizar esse tipo de serviço e com certeza recebiam frequentemente as
reclamações sobre o elevado preço do pão e a redução do seu tamanho. No período
estudado foram constantes os protestos da população contra o alto custo de vida
que imperava na cidade. O mais popular dos alimentos contribuiu para esse fato, em
1917, o JC publicou um artigo sobre o extraordinário preço desse alimento e
apontava para uma prática vigente nas panificadoras que consistia em burlar o peso
mínimo do pão regulamentado por lei:
“Ainda ontem, depois de termos recebido diversas reclamações, veio a nossa redação
o Sr. Febrônio Cabral, que nos trouxe o pão da fábrica Biju, pesando 55 gramas e
vendido por cem réis. O Sr. Febrônio declarou-nos que sendo freguês daquela fábrica,
vinha notando, dia a dia, a diminuição do peso e do tamanho do pão. Para não
reclamar injustamente foi a uma farmácia e em uma balança de precisão verificou que
o pão de cem réis da Biju pesava somente 55 gramas o que importa em custarem
2$000 1.100gramas”442.
Em 1925, ainda persistia na cidade essa prática:
“Pedem-nos que reclamemos contra o tamanho do pão que está sendo vendido em
certas padarias, pois, com a baixa do preço da farinha de trigo, não justifica essa
escassez. Ainda ontem veio à nossa redação um cavalheiro e aqui deixou um pequeno
pão de cem réis, que comprara em uma mercearia, à Avenida Joaquim Nabuco. O pão
era de tamanho menor do que os antigamente vendidos a dois por um tostão”443.
Os leiteiros também faziam parte do universo cultural da cidade e percorriam
várias ruas, bem cedinho, com o caldeirão de leite às costas e pequenas vasilhas
equivalentes a um e meio litro, um funil e colher, instrumentos necessários para tirar
o leite da lata e despejar na garrafa do freguês, e em muitos casos, surgiam
puxando uma vaca para vender o produto tirado na hora444.
442 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.702, 2 de junho de 1917. 443 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.736, 8 de dezembro de 1925. 444 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência. op. cit., p. 123.
168
Esses vendedores ambulantes apareciam nas páginas dos relatórios
municipais por praticarem atos considerados ilícitos e perigosos, à saúde da
população, visando aumentar a produtividade do animal, e com isso os seus ganhos
adicionavam sempre que possível água ao leite. Depois de inúmeras reclamações, o
Superintendente Municipal baixou um decreto proibindo:
“(...) aos condutores de vacas para a venda de leite o uso de mais vasilhas que não as
de um e meio litro, as quais são hoje obrigados a mostrar, sempre que as queiram ver,
assim aos fiscais como aos compradores. Esses leiteiros costumavam trazer uma
bolsa, onde conduziam garrafas, umas vazias ou cheias de leite, outras contendo água
o bastante para a rendosa operação que já agora não lhes é possível”445.
Os aspectos pitorescos do cotidiano da cidade incluíam o vendedor de
tartarugas, de tracajás e quelônios, em geral. Dedicavam-se a essa profissão, os
caboclos da terra, acostumados com as agruras da floresta e a domar o grande rio.
Moravam na zona rural do Município e chegavam cedo, de canoa, catraia ou
batelões, junto com os trabalhadores rurais que vinham trazer seus produtos
agrícolas para abastecer a população citadina. Equilibravam o animal vivo sobre a
cabeça com a ajuda de uma rodinha de pano. Deles lembram os ingleses, que
moraram na cidade: “[...] o vendedor de tartaruga, carrega sobre a cabeça (viva) [...]
Tartar Ruga! Tartar Ruga! Ele chama [...] Aí você escuta Peixe Fresco! [...] não usa
sino, mas tem de corneta para neblina. Aí você ouve uma estranha cançoneta e a
voz de uma mulher: - Tartar Ruga Ova! Tartar Ruga Ova! (ovos de tartarugas),
[...]446. Os ovos crus misturados à farinha transformavam-se em arabus, uma iguaria
peculiar da região muito consumida com café pela população cabocla que habitava
os bairros periféricos.
Os tripeiros monopolizavam o comércio de miúdos de boi, porco, frango,
carneiro, entre as vísceras era comum encontrar: fígado, coração, tripas, rins,
mocotó, pés. O preço baixo desses produtos possibilitava que fossem amplamente
comprados nos bairros em que se concentravam famílias de trabalhadores pobres.
Da memória do grande poeta emerge a prática do ofício do tripeiro:
“(...) Não me lembro da figura humana do vendedor de miúdos, só lembro do seu
tabuleiro com tampa e cavalete. Mas guardo até hoje a música, o andamento rítmico e
445 Relatório do Superintendente Municipal. Dr. Basílio Torreão Franco de Sá, 14 de julho de 1920. p. V. 446 PENNINGTON, David. Manaus e Liverpool: uma ponte marítima centenária (Anos finais do Império/ meados do século XX. Manaus: EDUA/ UNINORTE, 2009. p. 257.
169
a sequencia do seu pregão, que andei repetindo para os meus amigos ( os rapazes de
infância) em tantos lugares deste mundo. Primeiro era o anúncio da mercadoria: Miú-ú-
ú-dos, o ú demorava até o fim da última reserva de ar no pulmão (eram miúdos de
porco e de boi, ele os adquiria no Curro). Depois era a exaltação da qualidade:
“Frescos, fresquin-in-in-in-nhos”, e afinava a voz num agudo pianíssimo, entretanto
audível a muita distância. E afinal o chamamento, que se repetia em ritmo sincopado.
“Quem-vai-querer! Quem-vai-querer!”. Ora quem não queria pelo menos lá da nossa
rua ele voltava de tabuleiro vazio; (...)”447.
Depois de uma noite ao vinha-d’alhos, com muito louro, cheiro-verde e chicória e
empregando fórmulas especiais de cozimento, a panelada era cozida ao fogo de
lenha, e posteriormente servida a toda família.
Os vendedores de gelo atendiam uma restrita clientela de famílias com certo
poder aquisitivo. De madrugada, as inúmeras carroças puxadas por burros
sonolentos dirigiam-se para a fábrica de gelo, onde também ficava localizada a
fábrica de cerveja, no Plano Inclinado. No extenso pátio da fábrica, cada um recebia
o seu quinhão de pedras com que serviam a freguesia durante toda a manhã,
vendendo-as em pedaços de um e meio quilo aos domicílios localizados no centro
da cidade e sua adjacência. Ao passar na casa da freguesa, o geleiro que podia ser
um ex-seringueiro parava a carroça e buzinava denunciando a sua presença.
Naquele tempo não havia geladeira, a luz fornecida pela Manáos Tramways era
deficiente e o gelo era consumido na hora do almoço, quando as famílias
precisavam beber alguma coisa gelada. Como o número de carroças era grande,
cada uma atendia uma parte da cidade, cujos fregueses já conheciam448.
Nesse mundo masculino, as mulheres pobres circulavam pelo espaço social
transitando com uma certa desenvoltura. Sobre o cotidiano de seu trabalho,
precariamente documentado nas fontes escritas, incluindo os jornais da época, nos
deparamos com fragmentos de discursos e realidades díspares, resquícios de uma
existência autônoma que se insinuava pela cidade. Sem oportunidade de emprego e
tendo que sobreviver, o serviço doméstico, mais que os empregos nas incipientes
fábricas, no comércio, no funcionalismo público, nos ateliês, nas tabacarias
continuou a prover trabalho para as mulheres das classes populares. Nos anúncios
447 MELLO Thiago de. Manaus, amor e memória. 4 ed. Manaus: Valer, 2004. p. 67. 448 ANDRADE, Moacir. Manaus: ruas, fachadas e varandas. Manaus: Humberto Calderado, 1985. p. 109 -110.
170
dos jornais era frequente a procura de copeiras, costureiras, cozinheiras, amas,
lavadeiras, criadas, empregadas e mulheres especialistas em doces.
Era expressivo o número de mulheres casadas, com filhos, que ganhavam
dinheiro “pegando encomendas para fora”, realizadas em suas casas, assim
permaneciam ao lado dos filhos, que em muitos casos ainda precisavam de
cuidados e orientação. Organizavam a sua rotina de trabalho de modo a incluir os
afazeres domésticos do cotidiano, as funções de subsistência da família: cozinhar,
lavar, passar, arrumar a casa, cuidar da higiene das crianças, amamentar, e nos
intervalos executavam o trabalho encomendado. Este trabalho prolongava-se até
altas horas da noite, quando não terminavam, acordavam de madrugada para
executá-lo, para elas inexistiam feriados, sábados e domingos. Apesar da dura
rotina de trabalho, das pesadas responsabilidades que assumiam, das noites mal
dormidas em consequência de uma rotina de muito trabalho, essas mulheres
acreditavam ser melhor para elas e para a família aceitar encomendas que
pudessem ser realizadas em seus domicílios. Muitas, para ajudar no orçamento
familiar, aceitavam encomendas variadas e qualquer tipo de trabalho temporário que
pudesse ser realizado no lar, desde trouxas de roupas para lavar, engomar e passar,
a pedidos de doces e salgados449.
As lavadeiras, toda a semana, pegavam a trouxa com roupas na casa da
freguesa, na maioria das vezes traziam essas trouxas em cima da cabeça, o que
consistia em um esforço a mais nessa árdua e trabalhosa profissão. Sentadas em
um jirau ou em cima de uma tora de madeira na margem de um, dos inúmeros
igarapés que cortavam a cidade, lavavam as roupas de seus fregueses ricos, entre
elas, os ternos de “linho branco” muito usado na época pelos burocratas da
sociedade e muitas recebiam salários mensais. Outras realizavam o mesmo trabalho
buscando as trouxas nos navios recém chegados à cidade: “depois do “raid” da
alfândega, chegavam ao navio as lavadeiras, levavam a roupa para lavar. Sempre
traziam de volta. Nunca houve um caso da roupa de alguém sumir”450. Tagarelando
com suas colegas de profissão contavam as novidades da redondeza e reclamavam
da quantidade de roupas sujas, aos seus olhos sempre crescentes, e pelo mesmo
preço. Lá por volta das 11:00 horas estendiam as roupas sobre a grama à margem 449 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência. op. cit., p. 174. 450 PENNINGTON, David. Manaus e Liverpool: uma ponte marítima centenária (Anos finais do Império/ meados do século XX. Manaus: EDUA/ UNINORTE, 2009. p. 257.
171
do igarapé sob o olhar atento ou quase atento de seus filhos, dessa forma tentavam
evitar que as roupas já limpas fossem pisadas por animais como: vacas, porcos,
cachorros, carneiros, inerentes a paisagem natural onde praticavam os seus
ofícios451. Mesmo tomando o maior cuidado com as roupas de seus fregueses não
evitavam certos imprevistos:
“Os amigos do alheio penetraram, ontem, no quintal da casa da lavadeira Amélia da
Silva, à Avenida Japurá e surrupiaram, de um coradouro, dois vestidos de linho branco
e dois lençóis, no valor de trezentos mil réis, pertencentes a família do dr. Alfredo da
Mata. A ocorrência foi levada ao conhecimento da polícia, que prometeu capturar os
laparios”452.
Depois de lavadas, as roupas eram mergulhadas em um recipiente contendo
goma de mandioca para endurecer e armar as roupas, só depois de engomadas ou
não, dependendo do gosto do freguês, eram secas e passadas. Cada lavadeira
possuía um ferro médio com uma abertura onde era colocado o carvão vegetal,
ateava-se fogo ao carvão, para disseminar esse fogo assoprava-se várias vezes,
longo das roupas limpas, é claro, pois as cinzas poderiam sujá-las, quando o ferro
começava a esquentar, a etapa final da lavagem era iniciada e entrava noite
adentro.
Para fazer frente à situação difícil, ao grande número de filhos para sustentar,
um número considerável de mulheres vivia de costura, ofício que haviam aprendido
no contato diário com suas mães e avós desde a infância. Seus afazeres domésticos
eram realizados de modo que sobrasse tempo para essa atividade, em geral,
permaneciam curvadas longas horas sobre a máquina de costura, principalmente
em tempos de festas, como no carnaval, por exemplo. Uma charge saudosista do JC
reverenciava um tempo não muito longínquo e reforça essa afirmação: “– No ano
passado, no dia de hoje, os fabricantes de doces, os músicos, as costureiras, os
vendedores de bugigangas carnavalescas não tinham mãos a medir. O Zé Pereira
roncava e a gente estava a noite no meio do turbilhão no Ideal Club! (...)”453. Além de
costurar e receber baixos rendimentos, muitas mulheres também bordavam e faziam
451 ANDRADE, Moacir. Manaus: ruas, fachadas e varandas. Manaus: Humberto Calderado, 1985. p. 191. 452 Jornal do Comércio, Manaus, n 6.065, 18 de março de 1921. 453 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.794, 13 de fevereiro de 1926.
172
arranjos artificiais de flores, enxovais de bebê, sob encomenda, para as senhoras da
alta sociedade454.
Aquelas que precisavam trabalhar fora, geralmente concentradas no serviço
doméstico, na casa de pessoas ricas, seja, pelo sistema de remuneração mensal ou
como diaristas, viviam um dilema diferente em relação aos filhos e as atividades
cotidianas da casa. Sobrecarregadas com as tarefas domésticas e o compromisso
com a clientela, era comum, os filhos mais crescidos ajudarem suas mães nos
afazeres mais leves e cuidarem do irmão menor, muitas famílias pobres iniciavam os
seus filhos, desde pequenos, na rotina do trabalho, através dessas pequenas
responsabilidades comunitárias. Outra saída para o núcleo familiar era colocar o
filho mais velho para trabalhar como jornaleiro, engraxate, vendedor ambulante,
carregador, pequeno caixeiro e etc., se fosse menina poderia trabalhar em casa de
família ou cuidar de uma outra criança, na expectativa que os ganhos destes,
contribuíssem para a sobrevivência da família.
A vida dessa trabalhadora era mais fácil quando vários membros das famílias
viviam próximos uns dos outros, isso possibilitava que parentes como avós, tias, e
sogros tomassem conta dos filhos menores, para que as mães pudessem
desempenhar funções de lavadeiras, passadeiras, cozinheiras, quituteiras ou
realizar o serviço necessário para deixar uma casa limpa e organizada em alguma
residência de família abastada455. A preferência na cidade era pelas portuguesas,
principalmente quando as famílias solicitantes eram de origem lusitana: “Precisa-se
de uma criada, de preferência portuguesa, para serviços de pequena família,
pagando-se bem. A tratar á rua Luiz Antony, n. 85”456.
Foi para essas mulheres intrépidas e operosas que viviam uma jornada de
trabalho extenuante, dedicada às tarefas do lar e de mercado, em sua maioria
analfabeta, que em 1916:
“Dona Rachel Fonseca de Castro e Costa comunicou ao Jornal que, ontem, iniciou os
trabalhos da Escola Operária Noturna, que fundou nesta cidade à rua Vinte e Quatro de
Maio número cento e quatorze e destinada ao ensino do curso primário às meninas e
454 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência. op. cit., p. 175. 455 Idem, p. 173 - 175. 456 Jornal do Comércio, Manaus, n 7.858, 29 de abril de 1926.
173
moças empregadas em fábricas, serviços domésticos, costureiras, gomadeiras e outras
que desejarem instruir-se”457.
Sobre a Escola Operária Noturna destinada ao ensino do curso primário às
moças empregadas em fábricas, serviços domésticos, costureiras, gomadeiras e
outras engajadas no mundo do trabalho, pouco sabemos, todavia, esperamos que
pesquisas futuras possam iluminar sua trajetória. Afirmamos, no entanto, que como
a referida escola funcionava no período noturno, essa iniciativa beneficiou as
mulheres trabalhadoras que moravam no centro da cidade. Para um grande número
de mulheres que residia nos bairros periféricos como Educandos, São Raimundo e
Colônia Oliveira Machado cujo principal meio de transporte era as catraias e não os
bondes, pois nesse período, os citados bairros ainda não usufruíam desse meio de
transporte, tal iniciativa foi inviável.
A instrução como meio de conquistar uma vida melhor, um bom trabalho,
diferente daquele praticado por suas mães e avós ou mesmo mais independência na
vida cotidiana, motivou muitas mulheres da classe trabalhadora a saírem do âmbito
do privado e trilhar esse novo caminho. Em 1919, admirado com a crescente
presença feminina na Escola Municipal do Comércio, o superintendente Municipal
exclamou: ”(...) a presença de alunas que já sobem a 16, evidencia até que ponto
essa instituição veio despertar no balo sexo de nossa capital o sentimento de sua
independência pela conquista de um meio de vida (...)”458. Para o diretor da escola:
“O número crescente destas, (...). Expressa também a concorrência, do elemento
feminil na conquista de uma das profissões liberais, para a qual, a mulher, nos
últimos tempos, tem dado provas de alta capacidade”459. O número parece irrisório
para a população feminina da época, porém era o começo de novas conquistas e de
uma outra história.
Como a maioria dos trabalhadores autônomos não estava sujeita à rotina
regular do emprego fixo e ao controle direto ou indireto do patrão, isso possibilitava
ao mesmo, organizar o seu próprio ritmo de vida, integrando indiferentemente no
seu cotidiano o tempo-trabalho e o tempo-lazer. O tempo era determinado pelo
ritmo da natureza, seguiam o nascer e o pôr-do-sol, muitos vendedores ambulantes, 457 Jornal do Comércio, Manaus, n 4.232, 4 de fevereiro de 1916. 458 Relatório do Superintendente Municipal. Dr. Antônio Ayres de Almeida Freitas, 14 de julho de 1919. p. XVIII. 459 Relatório do Superintendente Municipal. Dr. Antônio Ayres de Almeida Freitas, 14 de julho de 1919. p. 53.
174
caboclos amorenados de pele enrugada e queimada pelo tórrido sol exerciam suas
profissões, enquanto, a luz do dia teimasse em iluminar a cidade. As variações nas
condições atmosféricas interferiam diretamente no exercício das profissões
efetuadas nas ruas, os dias muitos chuvosos prendiam em casa inúmeros
trabalhadores, deixando as ruas mais movimentadas de Manaus e dos bairros
pobres mais populosos, silenciosas e quase desertas460.
Muitos trabalhadores flutuantes que exerciam suas profissões na área central
da cidade, depois de um almoço pouco nutritivo (o preço de uma refeição fora de
casa, por mais simples que se apresentasse, tornava-se inviável para eles, pois
“consumiria parte significativa dos seus soldos. Em janeiro de 1924, os proprietários
de hotéis, restaurantes e pensões de Manaus cobravam $800 réis para um “prato
comum” em um estabelecimento “de 2ª classe e $700 réis para as casas de terceira
classe”)461 descansavam das fadigas da manhã e realizavam suas sestas no espaço
público da cidade, enrolados na luz morna do começo da tarde, era comum naquela
época, os transeuntes observarem:
“(...) Dorsos recostados aos troncos das árvores da Praça Matriz, carregadores
italianos, mascates árabes, caboclos trabalhadores braçais – estiravam-se no fofo da
relva, sossegadamente a ressonar. Na Praça Tamandaré era a mesma coisa. Ali pela
rampa do Mercado o descanso era amaciado pela brisa que chegava do rio. Os
estivadores faziam a sua sesta lá mesmo pelo roadway, sobre a maciez das pranchas
de itaúba”462.
Ao cair da noite, depois do jantar, colocava-se em prática, uma das
esplêndidas instituições culturais da Manaus daquele tempo, a conversa de calçada.
Nesse espaço de sociabilidade, trabalhadores, mulheres e crianças juntavam-se
para ouvir fascinados grandes conversadores, excepcionais contadores de casos e
histórias do rio e da floresta463. Os últimos acontecimentos da cidade e da
vizinhança também eram colocados em dia, durante o momento de descontração
outras práticas diárias recorrentes nesse espaço eram alvos de queixas no JC:
“Pessoas residentes à Rua Demetrio Ribeiro pedem as vistas das autoridades para os
moradores de uns “cortiços” e quartos, existentes no princípio da mesma via pública.
460 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência. op. cit., p. 230. 461 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros. op. cit., p. 73. 462 MELLO, Thiago de. Manaus: amor e memória. op. cit., p. 48. 463 Idem, p. 47 - 48.
175
Neles residem vários indivíduos e trabalhadores que, à tarde ao cair da noite, tomam
conta da calçada, divertindo-se em atirar pilhérias a pessoas que por ali passam” 464.
Na conjuntura de crise caracterizada pela depreciação dos preços da
borracha, dada as limitadas oportunidades ocupacionais, o desemprego, os baixos
salários, a carestia de vida, a instabilidade profissional, os “excluídos do látex”
continuaram a desenvolver no espaço urbano estratégias de sobrevivência diversas,
tais como o furto, a mendicância, a prostituição, e outros expedientes como a venda
ambulante, na tentativa de obterem algum recurso para amenizar as dificuldades
vividas no dia-a-dia.
Estratégias ou manipulação das relações de forças (Certeau, 1994) foram
triviais no período estudado. Para satisfazer as necessidades mínimas da existência
cotidiana, diversos atores sociais pobres empregaram várias estratégias na luta para
sobreviver na cidade. Membros de uma mesma família, não tiveram outra saída a
não ser partilhar seus recursos e ganhos limitados:
“Das 8.000 casas que a constituem, mais de 2.000 estão desabitadas, inclusive
inúmeras nas principais ruas comerciais. As famílias menos abastadas tiveram de
constituir verdadeiras repúblicas, para assim, reunidas, repartindo as despesas,
poderem fazer em face das dificuldades da vida”465.
Para burlar as leis ou os mais poderosos recorreram a uma série de recursos
clandestinos de sobrevivência:
“Diversas pessoas que se consideram, como muitas outras, prejudicadas, escreve-nos
dizendo que, sobrecarregadas com impostos, nas suas indústrias, entretanto estão a
sofrer a competência de uma porção de indivíduos que, sob o pretexto de festejar este
ou aquele santo, desenvolvem, nos arrabaldes, um comércio sem que um ceitil de
imposto lhes seja cobrado, tendo para auxiliá-los na atração do público, música
gratuita, iluminação, etc., o que não é justo nesta época em que o comércio se debate
na maior crise”466.
A recorrência às práticas ilícitas de ganho, como o roubo, muitas vezes
associadas aos pequenos e grandes ladrões profissionais e aos desocupados, foram
também recorrentes ao trabalhador pobre destituído dos mínimos bens de
sobrevivência. Eric Hobsbawm467 sugere que o roubo, nessa perspectiva, deve ser
464 Jornal do Comércio, Manaus, n. 3.385, 29 de setembro de 1913. 465 Revista da Associação Comercial do Amazonas, n 78, 10 de dezembro de 1914. 466 Jornal do Comércio, Manaus, n 8.548, 4 de novembro de 1928. 467 HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense/ universitária, 1975. p. 7 - 23, 35 - 53.
176
analisado como parte integrante da cultura de resistência das classes pobres, sua
precária condição de vida, a miséria vivenciada no dia-a-dia, a exigência mínima de
ter comida, pelo menos para os filhos, fizeram esse trabalhador praticar diversas
formas de rapinagem, entre elas, uma citada pelo JC, o roubo de lâmpadas elétricas.
A venda dessas lâmpadas proporcionava recursos irrisórios, mas fundamentais e
suficientes para satisfazer as necessidades imediatas de sua família:
“Aproximando-se o dia da comemoração dos defuntos, esse dia respeitado por todos
os fiéis, lembramo-nos de invocar o valioso concurso dessa ilustrada redação, no
sentido de conseguir do chefe de polícia, a adoção de medidas enérgicas tendentes a
fazer cessar a ladroeira de lâmpadas elétrica, que ultimamente vai se desenvolvendo
de maneira assombrosa no campo santo de São João. Dantes, em tempos que não vão
longe, havia o máximo respeito e a mais pronunciada veneração pela memória
daqueles que passaram ao segundo período da evolução vital, de maneira que a
ordem, o acatamento à lei, eram mantidos nos cemitérios, eram irrepreensíveis, ao
sabor de todos que ali tinham um parente querido, um ente idolatrado. Hoje, porém, e
depois que a Manáos Tramways começou a fazer o serviço de iluminação elétrica, mais
em condições com os deveres dos fiéis, numa época de crise pavorosa, que todos nós
atravessamos sabe Deus como – desenvolveu-se a roubalheira nos lugares sagrados,
a apavorar os mais valentes!”468.
O desemprego estrutural forçou um grande contingente de trabalhadores
pobres a ocupar empregos temporários e instáveis ligados a tarefas informais e
flutuantes, na tentativa de obter ganhos mínimos para sua subsistência. Uma
população que realizava trabalhos em casa sob encomenda, até altas horas da
madrugada, com uma jornada de trabalho extenuante, enquanto, outra parte
transitava intensamente pelas ruas com armários envidraçados, tabuleiros, paneiros,
caixas, carrinhos e cestos carregando produtos variados. Na luta cotidiana
esbarravam nas leis e desafiavam os mais poderosos, como os comerciantes locais,
que não hesitavam em acionar as autoridades constituídas e a força, caso
necessitassem para reprimi-los e afastá-los, principalmente das ruas de maior
movimento da cidade. Nesse momento, sobreviver na cidade era apenas mais um,
dos inúmeros desafios enfrentados pela população pobre de Manaus.
468 Jornal do Comércio, Manaus, n 5.924, 28 de outubro de 1920.
177
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como afirmamos no decorrer do trabalho, a crise foi um fato e seu reflexo foi
sentido em diferentes graus por todos os setores envolvidos com a economia
gumífera, do urbano ao rural. Apesar do drástico efeito da crise sobre a economia do
Amazonas e da cidade de Manaus, a instabilidade econômica não chegou a causar
a desaceleração completa da economia, visto que, a supressão da borracha foi
acontecendo gradualmente, e não abruptamente. Esse fator agregado ao outro lado
do mundo do trabalho não afetado diretamente pela crise proporcionou a vivacidade
da cidade e consequentemente, de sua economia.
O comércio, o setor mais afetado pela crise, apesar dos inúmeros discursos
proferidos por seus representantes, que na realidade tentavam desesperadamente
perante, o governo federal uma política de valorização da borracha ou ajuda
financeira com a intencionalidade de resgatar as benesses usufruídas no apogeu da
economia da goma elástica, oriundas dos grandes lucros provenientes do sistema
de aviamento, já em 1923 aparecia revigorado da convalescença econômica e
abastecendo em escala menor, como faz até nos dias atuais, o interior do Estado.
Quanto ao mundo do trabalho, a crise foi utilizada pelo patronato local como
uma fonte de ameaça iminente a toda sociedade, com isso esse segmento social
privilegiado visava, prioritariamente, frear e diminuir as conquistas da classe
trabalhadora. Trabalhadores de diversas categorias não aceitaram passivamente os
recuos e retrocessos em suas conquistas. Nas greves realizadas contra as
reduções, o atraso e mesmo a falta de seus pagamentos, trivial nesse período,
também reivindicaram aumento salarial e em sintonia com a luta implementada pela
classe trabalhadora no resto do Brasil pleitearam: jornada de oito horas e melhores
condições de trabalho.
As peculiaridades da economia informal foram vivenciadas por um grande
número de trabalhadores pobres, assim como, por seringueiros depauperados que
chegavam à cidade na luta constante pela sobrevivência e se dedicavam às
pequenas ocupações autônomas e ao trabalho informal. Muitas vezes, além das
jornadas de trabalho extenuantes, do sol tórrido, da chuva e de ganhos irrisórios, ou
seja, dos obstáculos naturais pertinentes às suas atividades se confrontavam com
178
os embates desencadeados com os setores dirigentes. Em muitos casos, esses
atores sociais citadinos não aceitaram passivamente as decisões impostas de cima
para baixo e tentavam reverter determinada situação a seu favor, quando isso não
era possível, burlavam as leis na tentativa de sobreviver na cidade.
179
FONTES
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Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos do Estado do Amazonas (1910 – 1930);
Coleção das Falas, Relatórios e Mensagens dos Governadores do Estado do
Amazonas (1910 – 1930);
Coleção das Falas, Relatórios e Mensagens da Intendência do Município de Manaus
(1910 – 1930).
2. Periódicos
A Lucta Social (1914)
Jornal do Comércio (1910 – 1930)
O Chicote (1913)
O Construtor Civil (1920)
O Extremo Norte (1920)
Tribuna do Caixeiro (1908)
Vida Operária (1920)
Revista: Associação Comercial do Amazonas (1910 – 1919)
Revista: Redenção (1924 – 1927)
3. Outras Fontes:
Associação Comercial dos Retalhistas, Relatório da Administração (1912 – 1918);
Associação dos Empregados no Comércio do Amazonas, relatório da Administração
(1908 – 1928);
Documentos do Ginásio Amazonense (1920);
Filme: No paiz das Amazonas (1922);
Indicador Ilustrado do Estado do Amazonas (1910 e 1919).
180
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ENCARTE FOTOGRÁFICO
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Um trecho do bairro de São Raimundo, vendo-se ao fundo o rio Negro. Jornal do Comércio, nº 3.631, 5 de junho de 1914.
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Jornal do Comércio, n° 3.230, 24 de abril de 1913.
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Enquanto a produção amazônica caía drasticamente, a produção de borracha cultivada nas colônias inglesas subia a cada ano. Charge do Jornal do Comércio, n º 4.292, 5 de abril de 1916.
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Para satirizar o momento econômico e político do Amazonas, os jornais da época publicavam charges salientando o descaso da União. Na charge do Jornal do Comércio, nº 6.221, de 21 de agosto de 1921, a mulher representava a Vontade Nacional sob o olhar atento do governador César do Rego Monteiro.
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Turcas vendedoras ambulantes vindo da praça General Ozório para a rua Vinte e Quatro de
Maio. Jornal do Comércio, nº 3.641, 15 de junho de 1914.