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A CULTURA DO EXAME COMO INDICADOR DE QUALIDADE DA E NA
ESCOLA: ENCONTRANDO SENTIDOS NO COTIDIANO ESCOLAR
Claudia de Souza Lino
Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias/RJ
Resumo:
O presente texto faz parte de uma pesquisa concluída apresentada em dissertação ao
Programa de Pós Graduação em Educação, Comunicação e Cultura em Periferias
Urbanas, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, apontando as repercussões da
cultura do exame no cotidiano de duas escolas públicas localizadas na periferia urbana de
um município do Rio de Janeiro. Discute as concepções de qualidade que impulsionam
as políticas públicas em educação que contemplam um modelo hegemônico de educação,
desconsiderando os desafios e a complexidade do cotidiano escolar, sugerindo um olhar
sobre o conceito de qualidade alardeado como universal, a partir dos sujeitos que
compõem a rede municipal de Duque de Caxias. Traz a contribuição de estudos que
auxiliam na compreensão da qualidade com base em uma perspectiva polissêmica, onde
a concepção de mundo, sociedade e de educação evidencia e define os elementos que
possam ser avaliados em sua natureza, atributos e finalidades, tudo dentro de um processo
mais amplo de qualidade social, do qual o processo educativo é apenas parte. Lançando
mão de uma metodologia que considera o cotidiano escolar como contexto que imprime
aspectos de contradição, de acomodação, de resistência, de reinvenção e ressignificação
dos fazeres da escola, seguindo as trilhas do paradigma indiciário, foi possível perceber,
através da interpretação de sinais e indícios, os sentidos de qualidade que professores e
equipe pedagógica atribuem à escola, mormente, desprezados na concepção que vem se
criando de uma escola de qualidade. Na realização de duas atividades com alunos e
professores que integram as unidades escolares, assim como no relato de algumas
entrevistas, vislumbram-se indicativos de concepções contrarreguladoras que podem vir
a desencadear processos avaliativos internos, na construção de uma escola de qualidade
pautada num paradigma inclusivo, dialógico e formativo. Palavras-chave: Qualidade. Cotidiano Escolar. Paradigma Indiciário.
Primeiras palavras: apontando os caminhos investigativos
Este artigo traz apontamentos de uma investigação, que culminou numa
dissertação de mestrado, onde se debate a qualidade da escola verificada por instrumentos
avaliativos externos e a qualidade na escola vivida no cotidiano, por meio de transações.
Nesta investigação, discutimos as correlações entre qualidade e avaliação educacional,
bem como o papel do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) como
ferramenta de aferição da qualidade das escolas. As repercussões da cultura do exame no
cotidiano de duas escolas públicas de ensino fundamental e o lugar que estes exames
assumidos como avaliações ocupam, foi o tema central do trabalho.
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Trago a expressão “cultura do exame” ao me referir aos usos (e desusos) das
avaliações externas dentro da escola e nestas se constituírem hoje “num instrumento no
qual se deposita a esperança de melhorar a educação” (DÍAZ BARRIGA, 2003, p.51).
Embora não desconsidere o fato de que o exame sempre esteve presente na ideia de
avaliação, a notoriedade ganha por este instrumento, neste tempo, e a utilização dos
resultados deste, mexe consideravelmente com nossa cultura escolar.
O interesse na pesquisa surgiu da experiência de vinte anos da pesquisadora nesta
rede de ensino, onde atua como orientadora pedagógica. O ingresso no curso de mestrado
em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, na linha de pesquisa Escola e seus Sujeitos Sociais, trouxe a
oportunidade de desenvolver estudos teóricos que vieram a subsidiar as muitas questões
que se impuseram à pesquisadora.
Procurando conhecer os sentidos da qualidade percebidos pelos sujeitos do
cotidiano das escolas de ensino fundamental e a possível interferência dos resultados das
avaliações externas nesta percepção de qualidade, a investigação retrata duas escolas da
Rede Municipal de Duque de Caxias, maior rede da Baixada Fluminense, sendo composta
por 174 escolas de ensino fundamental. O município, localizado na região metropolitana
do Estado do Rio de Janeiro possui grandes disparidades econômicas e sociais, pois, ao
mesmo tempo em que possui o 2º maior Produto Interno Bruto (PIB) do Estado, 15ª maior
economia municipal do Brasil, mantém um médio Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH), de 0,753, que o coloca na 52ª posição no critério do IDH estadual.
Ao realizar este trabalho investigativo, ressalto a necessidade de concentrar o
olhar num contexto repleto de experiências e conhecimento, comumente negligenciados
na concepção hegemônica de qualidade da escola e qualidade da educação, propostas
como metas nos documentos oficiais (BRASIL, 2007).
Santos e Meneses (2010) chamam-nos a atenção à necessidade de regressarmos
aos lugares para pensarmos a sua reinvenção, observando sua(s) diversidade(s), sua(s)
potencialidade(s), sua(s) forma(s) de ressignificar os fazeres, para além do pensamento
globalizante, que busca pensar o mundo a partir de uma única ótica, negando as
particularidades e essencialidades de cada lugar. Não se trata de confrontar a lógica
presente na cultura do exame, propondo outra lógica. Trata-se de trazer à discussão
perspectivas outras que surgem a partir da problematização desta lógica já implementada
no cotidiano das escolas. Longe da ideia de ausência do rigor epistemológico de uma
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metodologia, busco compreender os sentidos do conceito de “qualidade” tão alardeado
como universal, a partir dos sujeitos que compõem a rede de Duque de Caxias.
Mas pode um paradigma indiciário ser rigoroso? [...] Mas vem à dúvida
de que esse tipo de rigor é não só inatingível, mas também indesejável
para as formas de saber mais ligadas à experiência cotidiana – ou, mais
precisamente, a todas as situações em que a unicidade e o caráter
insubstituível dos dados são, aos olhos das pessoas envolvidas,
decisivos [...] Em situações como essas, o rigor flexível do paradigma
indiciário mostra-se ineliminável. (GINZBURG, 1989, p.178)
Este estudo foi desenvolvido na compreensão de que a escola é um palco político
e seus integrantes os atores sociais; que as pessoas que fazem o cotidiano escolar não são
expectadores, que apenas contemplam o cenário e a atuação das políticas públicas. Nesta
visão, a escola é sujeito e, portanto, principal interessada na qualidade construída por sua
prática e por uma prática de qualidade.
Qualidade em questão, uma questão de qualidade
O conceito de qualidade, tão abrangente e diverso, tem sido empregado num
discurso padrão e consensual, infringindo na criação de uma nova retórica conservadora
no campo educacional (GENTILI, 1995): a retórica da qualidade. Enguita (1995) comenta
sobre este fato:
Se existe hoje uma palavra em moda no mundo da educação, essa
palavra é, sem dúvida, “qualidade”. Desde as declarações dos
organismos internacionais até às conversas de bar, passando pelas
manifestações das autoridades educacionais, as organizações de
professores, as centrais sindicais, as associações de pais, as
organizações de alunos, os porta-vozes do empresariado e uma boa
parte dos especialistas, todos coincidem em aceitar a qualidade da
educação ou do ensino como objetivo prioritário ou como um dos muito
poucos que merecem consideração. (ENGUITA, 1995, p.95)
Ao fazer um desenho sobre o(s) conceito(s) de qualidade (s), Enguita (1995)
chama-nos a atenção para três lógicas que sustentam tal discurso. A primeira diz respeito
à dotação de recursos públicos para a educação. Desta forma, a qualidade seria medida
tendo como referência a quantidade de recursos investidos na educação. A segunda
possibilidade estaria assentada não mais nos recursos investidos e, sim, nos processos
educacionais baseados na máxima: “fazer mais com menos”. Otimização, então, seria o
mote deste discurso sobre a qualidade. Podemos observar, nas duas primeiras lógicas,
uma transição de um conceito alicerçado nos ideais do Estado-provedor para um conceito
baseado na lógica da iniciativa privada, a lógica empresarial. A terceira visão,
predominante nestes dias (RAVITCH, 2011), tem a ver com os interesses do mercado e
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traz o foco para o indivíduo, aquele que está diretamente envolvido no processo
educacional. Tal lógica baseia-se na concorrência, nos rankings, onde a eficiência e a
eficácia seriam observadas:
Hoje em dia se identifica antes com os resultados obtidos pelos
escolares, qualquer que seja a forma de medi-los: taxas de retenção,
taxas de promoção, egressos dos cursos superiores, comparações
internacionais de rendimento escolar, etc. Esta é a lógica da competição
no mercado. (ENGUITA, 1995, p.98).
Há um grande número de estudos que apontam o que seria possível realizar para
a melhoria da qualidade da educação. Daí, a grande ênfase, nestes dias, na construção de
programas que impactem decisivamente sobre os resultados educacionais. São políticas
de formação de gestores, professores, ampliação da jornada escolar, tudo com o propósito
de alavancar a qualidade educacional.
O documento “Indicadores da Qualidade na Educação”, produzido pelo MEC
(2004) em parceria com a iniciativa privada, também nos dá algumas pistas sobre este
discurso de qualidade da educação enviesado pela lógica do mercado. Embora este
documento em sua redação seja apresentado como uma ferramenta gerencial, inclusive
deixando claro que as informações geradas pela aplicação deste instrumento nas escolas
não devem ser utilizadas para fins de ranqueamento ou mesmo de comparações entre
escolas, o próprio desenho do documento aponta indícios bem caraterísticos desta forma
de conceber a educação. No tópico “Como utilizar os indicadores”, por exemplo, há uma
clara sugestão para que as unidades escolares utilizem os dados estatísticos disponíveis
na base de dados do INEP “para a comunidade comparar seus resultados com os das
outras escolas” (BRASIL, 2004, p.16).
Ao sugerir a análise de diversas dimensões da escola, é possível observar que o
documento coloca a responsabilidade da qualidade do processo educativo nos sujeitos da
escola, sugerindo certa isenção de responsabilidade do poder público, colocando a
avaliação como a “chave” para qualidade da escola, inclusive sugerindo a centralidade
dela no processo educativo, valorizando a aplicação deste instrumento (Indicadores da
Qualidade) como uma ferramenta que possa:
Apoiar a comunidade escolar para que a avaliação seja um instrumento
participativo para a melhoria da qualidade da escola. Portanto, se sua
escola está utilizando este instrumental, é sinal de que essa avaliação
ampla sobre a qual estamos falando, de alguma forma, está
acontecendo. (BRASIL, 2004, p.27)
Tal centralidade sugere uma visão tradicional que marca a avaliação como juízo
de valor (DIAS SOBRINHO, 2003; FERNANDES, 2009), quando ela é usada como
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única ferramenta e parâmetro para tomada de decisões, em detrimento da análise do(s)
processo(s) educativo(s) em sua complexidade.
Esta preocupação, aparentemente, exacerbada com a qualidade da educação nos
suscita algumas perguntas: A qualidade é um fim em si mesmo? Será que ao lutar por
mais qualidade não estamos nos afastando da luta pela educação? Qual o papel da
educação na constituição da cidadania? Como estabelecer padrões que contemplem às
necessidades do cidadão? Quem seria este cidadão? Quem delineou este perfil? Ao invés
de pensarmos na adoção de padrões de qualidade, nossa discussão não deveria estar
voltada pra definição de condições de qualidade?
Sá (2009) pondera sobre os riscos de se pensar uma avaliação com vistas à
qualidade. Para o autor, inspirado nos modelos avaliativos vigentes em Portugal,
dificilmente seria possível construir instrumentos que pudessem verificar a real qualidade
das escolas. Seria possível, sim, criar instrumentos que projetassem a qualidade requerida
pelas escolas e seu real alcance nas escolas.
Ao contrário do que se passa no campo produtivo-empresarial, o que os
promotores do discurso da qualidade no campo educativo parecem
ignorar é que a qualidade, ainda que reduzida à versão mercantil, tem
um preço. Contudo, no domínio da educação, a retórica da qualidade
surge frequentemente associada, e como fator compensatório, ao
desinvestimento público nas escolas. De fato, como denuncia Lima
(1994), a obsessão pela qualidade, e pelo seu controlo, não tem tido
correspondência numa política de promoção efetiva da qualidade. (SÁ,
2009, p.94)
De acordo com Darling-Hammond e Ascher (apud DOURADO E OLIVEIRA,
2009), há que se levar em conta dimensões e fatores de qualidade da educação que não
podem ser mensurados. Fatores como validade, credibilidade, incorruptibilidade e
comparabilidade permitem uma avaliação da escola em relação à própria escola, sua
constituição histórica, seu universo, suas práticas e potencialidades.
Estes autores chamam à atenção para a adoção de uma concepção de escola de
qualidade socialmente referenciada, onde as dimensões intra e extraescolares sejam
levadas em conta. Neste caso, reafirma-se o papel do Estado que precisa,
obrigatoriamente, garantir os insumos, as condições básicas para o exercício do direito à
educação e, a outra dimensão, não menos importante, a que leva em conta o lugar social
onde a escola está inserida, sua glocalidade.
Dourado & Oliveira (2009) chamam a atenção para o fato de a qualidade ser um
conceito histórico, construído a partir das demandas sociais de um momento histórico
onde a educação se configura. Eles afirmam:
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Caso se tome como referência o momento atual, tal perspectiva implica
compreender que embates e visões de mundo se apresentam no cenário
atual de reforma do Estado, de rediscussão dos marcos da educação –
como direito social e como mercadoria, entre outros. (DOURADO;
OLIVEIRA, 2009, p.204)
Ainda nesta direção, os autores apontam a necessidade de uma análise das
políticas internacionais, no sentido de que são estas que têm influenciado as políticas
públicas nacionais, e como estas ações e programas se refletem, ou seja, se materializam
no cotidiano escolar.
Esta transição do conceito de qualidade no campo econômico para o campo da
educação é mencionada por Silva (2009). Para a autora, dentro de um cenário comercial,
o tratar com índices, padrões hierárquicos, testes comparativos é algo comum e faz parte
da política de compra e venda em que os atributos daquilo que é útil, comparável e que
se pode qualificar, aperfeiçoam o cálculo custo/benefício. Tal abordagem descaracteriza
a educação pública enquanto direito social. Ela afirma que:
Nas políticas sociais do país, ocorre uma transposição direta do conceito
de qualidade própria dos negócios comerciais para o campo dos direitos
sociais e, nestes, a educação pública. A participação ativa e constante
dos técnicos dos organismos financeiros internacionais e nacionais na
definição de políticas sociais, especialmente a educação [...] demonstra
a adoção do conceito de qualidade, do âmbito da produção econômica,
em questões da educação e da escola. (SILVA, 2009, p.219)
Fazendo menção às necessidades específicas da educação, Paro (2011), adotando
uma concepção de qualidade socialmente referenciada, faz menção à necessidade deste
conceito estar intimamente ligado ao conceito de educação escolar para além do senso
comum, implícito nas políticas públicas em geral, onde a educação escolar se presta
apenas a transmitir conhecimentos e informações. Ele diz:
O conceito que adoto vê a educação como formação da personalidade
humana - histórica do educando, pela apropriação da cultura em seu
sentido pleno, que inclui conhecimentos, informações, valores, arte,
tecnologias, crenças, filosofia, direito, costumes, tudo enfim que é
produzido historicamente pelo homem e que, numa democracia, o
cidadão deve ter o direito de acesso e apropriação. (PARO, 2011, p.696)
Dialogando com esta concepção de educação de qualidade defendida por Paro,
esta investigação traz a fala de uma diretora, quando perguntada sobre o que é uma escola
de qualidade:
Escola de qualidade é a escola onde os alunos aprendem; que a veem
como um ambiente favorável para estar todo dia, para realizar suas
atividades, para brincar... Que seja um espaço de uma boa convivência,
mas que também tenha um olhar voltado para um ambiente bom para o
professor, para que ele consiga realizar o seu trabalho de uma forma
prazerosa. Porque se ele faz com prazer, ele também consegue fazer
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com que as crianças também aprendam com prazer. Acho que qualidade
é isso. (DIRETORA, ESCOLA Z)
Que também encontra eco nas palavras da diretora da outra escola, quando afirma:
“Para mim, uma escola de qualidade é uma escola aonde o professor se sente bem em
trabalhar nela, o aluno têm prazer em estar nela e consegue transportar o conhecimento
da sala de aula para o dia-a-dia dele” (DIRETORA, ESCOLA A).
Nesta direção, a pesquisa avançou percebendo o quanto a cultura do exame como
estratégia de aferição de qualidade apresenta-se afastada do ideário daqueles que fazem
o cotidiano escolar. Mesmo que o sistema de metas e a presença de indicadores de
qualidade tenham sua repercussão na mídia, sendo absorvido pelos sistemas mais
abrangentes de educação (por exemplo, a SME de Duque de Caxias), nas unidades
escolares permanece a ideia da escola como um lugar de desenvolvimento, com ênfase
no processo e não no produto, como sugere a cultura do exame. A fala de uma professora,
registrada numa conversa com a pesquisadora, ilustra a dificuldade de se conceituar
qualidade:
A questão é a gente saber de qual qualidade a gente está falando né?
Aqui no município de Caxias eu já passei por escolas que o banheiro
não tinha privada. Então, às vezes, você entrar em uma escola que tem
privada e tem bebedouro que funciona é dizer: Nossa! Essa aqui é uma
escola de qualidade; pelo menos qualidade de vida para o aluno. (...) É
difícil, então, eu dizer da qualidade. Eu acho que uma escola que tem
profissionais que não faltam tanto. (...) A gente sabe que tem realmente
uma estrutura maçante, que o professor trabalha muito. Mas, também
tem gente que não quer nada, como a gente costuma dizer. Então, isso
dificulta! Então, nessa escola, eu vejo assim, se tem profissional vindo,
se tem profissional que se interessa pelos resultados dos alunos, então,
é uma escola com potencial muito grande. Mas, eu ainda vejo qualidade
como aplicação também do estado no nosso trabalho. E aí a qualidade
fica um pouquinho a dever, é uma escola com potencial de qualidade
muito grande. (PROFESSORA 5º ANO, ESCOLA A)
Nesta fala, assim como nas conceptualizações de qualidade pelas diretoras, é
possível perceber indícios de elementos subjetivos no discurso das educadoras. O próprio
cotidiano delas na escola emerge e passa a permear suas impressões sobre o tema,
trazendo à discussão, não a qualidade, mas as condições para que a qualidade se efetive.
Algumas considerações a partir dos indícios encontrados na pesquisa
Procurando observar e compreender a concepção de qualidade que permeia o
discurso dos profissionais que atuam nas escolas, foi proposta uma atividade no início do
ano letivo de 2013. Os participantes receberam uma folha em branco e, por meio de uma
dobradura construíam suas respostas, sem possibilidade de visualizar a resposta anterior.
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Foram feitos os seguintes questionamentos: O que é qualidade? O que é uma escola de
qualidade? O que é um professor de qualidade? Ao final da escrita, foi solicitado ao grupo
que abrisse a folha e procurasse observar a conexão entre as respostas, relatando ao grupo,
suas impressões, caso desejassem.
Apenas uma das respostas demonstrou a necessidade de existirem metas exteriores
à própria escola, para uma compreensão de qualidade. Para esta professora, qualidade “é
um atributo”, uma escola de qualidade é aquela que se coloca “dentro de um padrão
determinado” e um professor de qualidade é aquele “que atende os requisitos do
observador”. Questionando a professora sobre suas respostas, ela disse: “Só é possível
falar de qualidade se houver uma meta”.
Tal resposta leva-nos a observar que o discurso tem sido captado pelos
profissionais da educação, senão da maioria, pelo menos de alguns. Freitas (2011) traz a
expressão “cultura de auditoria”, movimento ideologicamente relacionado ao mundo dos
negócios, para nossa discussão:
Ela refere-se ao aparecimento de sistemas de regulação nos quais as
questões de qualidade são subordinadas à logística da administração e
na qual a auditoria serve como uma metarregulação, por meio da qual
o foco está no controle do controle. (FREITAS, 2011, p.293)
Precisamos estar atentos a este discurso baseado no controle, rigidamente preso
em um padrão único, excludente, hegemônico, que não contempla as especificidades
características de cada aluno, professor, escola, rede de ensino. A expressão “que atende
os requisitos do observador” exclui o sujeito que ensina/aprende do processo decisório
sobre as intenções do ato de educar.
É interessante observar que parte das respostas, sobretudo as que se referem ao
professor de qualidade, traz a palavra/categoria compromisso (e seus sinônimos) como
uma característica essencial à construção da qualidade, que é entendida pela maioria como
algo excelente, perfeito, admirável.
Ao responderem sobre a escola de qualidade, é possível visualizar que as respostas
apontam para uma escola inclusiva: “que proporciona experiências significativas”, ou
ainda “que forma o aluno em sua totalidade”. Duas das respostas claramente apontam o
“respeito à diversidade” como principal característica de uma escola de qualidade.
Tais respostas nos alegram e dialogam com estudos que nos revelam a necessidade
de confrontarmos a colonialidade que se apresenta na escola. Os pesquisadores do grupo
modernidade/colonialidade nos trazem a concepção de que, muito embora, em grande
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parte dos lugares tenhamos rompido com o colonialismo imposto pela dominação política
e econômica, estamos sujeitos à outra forma de subalternização e silenciamento, pois
a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como
resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a uma
relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à
forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações
intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista
mundial e da ideia de raça. Assim, apesar do colonialismo preceder a
colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se
mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho
acadêmico, na cultura, no sentido comum, na autoimagem dos povos,
nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa
experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na
modernidade cotidianamente. (TORRES apud OLIVEIRA; CANDAU,
2010 p.18)
Quando os professores rejeitam uma concepção de qualidade inspirada na
padronização, que desconsidera os diferentes, que imprime ao currículo e a avaliação um
caráter uniforme, desqualificando todos e tudo que não se encaixe no “padrão”, nos
remetemos às palavras de Santos (2004, p.801): “se o mundo é uma totalidade
inesgotável, cabem nele muitas totalidades, todas necessariamente parciais, o que
significa que todas as totalidades podem ser vistas como partes e todas as partes como
totalidades”.
Observamos, ainda, com certa surpresa, que palavras bem conhecidas de todos os
planos de metas qualitativas construídos nos gabinetes, como evasão e repetência, só
aparecem em uma das respostas acerca do que é uma escola de qualidade. A mesma
professora que afirmou ser uma escola de qualidade “uma unidade escolar sem
repetência e evasão”, ao responder sobre o que seria um professor de qualidade, escreveu
que é o “professor que busca aprimoramento”. Perguntada diretamente por uma das
colegas se o professor, então, seria o responsável pelo fim da evasão e repetência, a
professora respondeu: “Não! A escola precisa de uma parceria com outras agências para
dar conta disto”. Tal discussão gerou conversas paralelas, tornando o grupo tímido,
relutante em socializar as demais respostas aos colegas.
Destacando ainda uma das respostas que chamaram a atenção, uma professora
definiu qualidade como “resultado positivo” e escola de qualidade como aquela onde há
“resultado positivo com olhar a diversidade ética, social,...”. Ao socializar sua resposta,
perguntamos se estes resultados seriam perceptíveis, ao que a professora respondeu:
“somente pelos professores e alunos em seu contexto”. Esta mesma professora escreveu
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acerca do professor de qualidade: “aquele que busca o aprendizado dos alunos através
de seu aprendizado”.
Outra professora escreveu que qualidade é algo “sem igual”; quando definiu uma
escola de qualidade, ressaltou ser um lugar de parceria onde “todos executam suas
funções” e o professor, como “alguém comprometido e interessado em fazer a
diferença”. Observando sua própria escrita, a professora acrescentou: “Realmente, não
se pode mensurar a qualidade”.
A realização desta atividade provocou múltiplas inquietações no grupo e para a
pesquisa trouxe claras contribuições, auxiliando no desvelamento de contradições,
silêncios, negações. Afinal, “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais,
indícios – que permitem decifrá-la”. (GINZBURG, 1989, p.177). Interpretando os dados
por meio do paradigma indiciário, se torna possível o entendimento de determinadas
atitudes, falas, lapsos, mecanismos de defesa trazidos à tona pela fala dos sujeitos no
contexto observado. Foi possível perceber indícios de que as impressões dos sujeitos
participantes sobre qualidade na/da educação e na/da escola estão mais voltadas às
relações sociais impressas no cotidiano escolar do que às metas disseminadas pelos
sistemas de governo. E, ainda vislumbrar a presença de proposições que podem vir a
desencadear processos de avaliação interna, de forma que a qualidade da escola possa ser
observada a partir de indicadores construídos no coletivo.
Ao realizar a mesma atividade com uma turma de alunos do 5º ano de
escolaridade, fizemos algumas adaptações nos questionamentos, que passaram a ser
quatro: O que é qualidade? O que é uma escola de qualidade? O que é um professor de
qualidade? O que é um aluno de qualidade?
Numa turma que considerava participativa e questionadora, o adjetivo “bom/boa”
foi a palavra mais utilizada pelos 29 alunos que participaram da atividade para conceituar
qualidade. O fato da retórica da qualidade se referir ao que é “melhor”, num sentido
diretamente ligado ao “produto final” é algo que nos faz refletir sobre as implicações do
uso de tal conceito ao referir-se à educação, quando tratamos de pessoas em
desenvolvimento, sujeitos em permanente construção, nunca prontos, acabados, sempre
(felizmente) diferentes.
Um dos alunos escreveu que qualidade é algo “diferente” e que uma escola de
qualidade seria “esta escola é boa pra mim”, ao ser indagado sobre o que queria dizer
com isso, foi categórico: “Qualidade é algo diferente pra todo mundo. Para mim, esta
escola é boa, para outros pode não ser. Não posso falar sobre os outros”. O mesmo
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aluno, ao definir professor de qualidade, simplifica “aquele que ensina”, chamando a
atenção para a clareza que tem sobre o que espera ser o papel do professor. Perguntei,
ainda, o porquê de ele ter escrito que um aluno de qualidade é “o aluno da escola”. Ele,
novamente, simplificou: “Quem realmente se porta como aluno na escola é de qualidade.
Tem gente aqui que não é aluno. Apenas vem pra escola”.
Outra escrita intrigante foi de outro aluno que escreveu que qualidade “é um
produto que dura mais” e que escola de qualidade “é aquela que dura mais, que existe
há anos”. Questionei o significado de suas palavras e ele argumentou feliz: “ora, se esta
escola está aqui há anos, deve ser porque é uma escola boa, do contrário teria fechado
há muito tempo”. Tal fala me reportou aos escritos de Ravitch (2011) sobre as
repercussões da cultura do exame nos Estados Unidos, quando as reformas respaldadas
pelo movimento de testagem implicaram em responsabilização, produzindo
ranqueamento e ações corretivas às escolas que não se configurassem de acordo com os
padrões estabelecidos pelos exames, podendo culminar no fechamento da escola.
No questionamento, sobre o que seria um aluno de qualidade, me impressionou o
fato deles vincularem a resposta a um tipo de aluno obediente, quieto, respeitoso, trazendo
características inspiradas, talvez, num modelo de aluno “pintado” pela sociedade. Ao
perguntar a eles, de forma descontraída, se eles eram alunos de qualidade, eles disseram,
em coro desafinado: “Pergunte à professora! Ela que sabe!”. Escolhi diretamente alguns
pra perguntar sobre suas respostas. Um deles respondeu: “eu tento mesmo ser um aluno
de qualidade, mas quem pode dizer isso é a professora”.
Tais pistas encontradas levam-nos a preocuparmo-nos deveras com a
intensificação da cultura do exame, que busca unificar os percursos, tempos e espaços
escolares, exigindo padrões mínimos de desempenho, pautados em critérios de excelência
que não contemplam a diversidade dos sujeitos, bem como os processos e as práticas
educacionais cotidianas, desprivilegiando a cultura escolar.
Considerando a construção da qualidade escolar na perspectiva da gestão
democrática, precisamos valorizar os percursos emancipatórios que se tornam viáveis
quando a qualidade é compreendida em seu caráter polissêmico, de múltiplas
interpretações e concepções variadas. Defendemos a ideia de uma qualidade negociada,
com a responsabilidade pela construção de uma escola de qualidade sendo assumida pelos
sujeitos que fazem o cotidiano escolar. Assumimos a ideia de que “a qualidade não é um
produto, não é um dado. A qualidade constrói-se.” (BONDIOLI, 2004, p.16)
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
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