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A DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS EM TEMPOS DE
RETROCESSO: O DESMONTE DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Kátia Regina Rodrigues Lima1
Resumo O artigo objetiva analisar a desconstitucionalização dos direitos sociais deflagrada com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016 e seus rebatimentos na educação brasileira. O percurso metodológico foi realizado mediante pesquisa bibliográfica e documental. A aprovação da EC 95/2016 teve como objetivo a desconstitucionalizando dos direitos sociais e a liberalização das despesas financeiras favorecendo ao rentismo. A EC viola cláusulas pétreas da CF/1988 e tem como fundamento básico o ajuste fiscal que tem como consequência o desmonte da economia e dos direitos sociais, dentre eles a educação. O retrocesso econômico e educacional em curso implicará numa conversão neocolonial do país.
Palavras-chave: EC 95/2016; Desconstitucionalização dos direitos; Retrocesso econômico e educacional
Abstract The article aims to analyze the deconstitutionalization of social rights triggered by the approval of Constitutional Amendment (EC) nº 95/2016 and its refutations in Brazilian education. The methodological course was carried out through bibliographical and documentary research. The approval of EC 95/2016 had as its objective the deconstitutionalization of social rights and the liberalization of financial expenses favoring the rentismo. The EC violates the CF/1988 clauses and has as its basic basis the fiscal adjustment that has as a consequence the dismantling of the economy and social rights, among them education. The ongoing economic and educational setback will imply a neocolonial conversion of the country. Keywords: EC 95/2016; Deconstitutionalization of rights; Economic and educational regression.
1
Pedagoga. Doutora em Educação. Universidade Regional do Cariri-URCA. E-mail: [email protected].
I. INTRODUÇÃO
Em 2010 a candidata Dilma Rousseff foi eleita, com o apoio de Lula da Silva,
derrotando José Serra (PSDB) com 56,05% contra 43,95% dos votos válidos e reeleita em
2014, com a chapa composta por Dilma Rousseff e Michel Temer recebendo 54.501.118
votos contra a chapa de Aécio Neves e Aloysio Nunes que recebeu 51.041.155 votos.
A reeleição da presidenta Dilma Rousseff já ocorreu em um cenário de crise e de
realinhamento de setores da burguesia com o PSDB e de defesa de um neoliberalismo mais
empedernido. O ajuste fiscal promovido por Dilma Rousseff desgostou os trabalhadores
porque significou a aplicação do programa do candidato derrotado, Aécio Neves, e facilitou o
caminho dos golpistas que utilizaram de demagogia e do apoio da mídia para desencadear
em 2016 a derrubada da presidenta eleita e colocar em seu lugar o vice-presidente, Michel
Temer, um inexpressivo político do PMDB de São Paulo que através de um programa
intitulado Ponte Para o Futuro pretende fazer uma regressão colonial por meio de
privatizações de portos, aeroportos, hospitais; acabar com a Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT); universalizar as terceirizações e reformar a previdência. Enfim,
implementar um programa ousado de desmonte da economia nacional e dos direitos sociais,
desfechando um ataque em regra aos trabalhadores(as)
Analisar o processo de desconstitucionalização dos direitos sociais deflagrados
com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016 e seus rebatimentos na
educação brasileira é o objetivo deste artigo.
O ensaio teve como metodologia investigativa a pesquisa bibliográfica e
documental
II. FINANCEIRIZAÇÃO MUNDIAL E DESNACIONALIZAÇÃO DA ECONOMIA
Os oito anos do mandato de FHC mudou a configuração econômica, social do
país por meio de seu Plano Real que não pode ser considerado apenas como mais um
plano de combate à inflação. O Plano real pretendia mudar aquilo que os tucanos
designavam Era Vargas, modelo de substituição de importações, protecionismo,
industrialização, regulamentação do mercado de trabalho. Para a burguesia brasileira,
encantada com o discurso da globalização e prisioneira de uma visão de curto prazo, não
tinha mais sentido ficar atrelada a um passado que havia se encerrado, o da Guerra Fria, da
luta de classes, de políticas que protegessem o mercado interno diante das flutuações da
economia mundial e possibilidade de captar recursos externos desde que aplicassem as
políticas recomendadas pelas agências multilaterais.
A frase de Paulo Renato, ministro da educação durante os dois mandatos de
Fernando Henrique Cardoso, expressou bem o programa de FHC, ao questionar para que
desenvolver pesquisa básica se pudemos adquirir o pacote tecnológico. Ou seja, era o
realismo periférico que significa na verdade o abandono de qualquer veleidade de
desenvolvimento nacional.
As políticas iniciadas na década de 90 no Brasil não conseguiram mudar essa tendência, mas introduziram nova interpretação da realidade, um tipo de realismo periférico que desmonta todo o raciocínio da necessidade de um desenvolvimento nacional autônomo. A prioridade passou a ser criar condições para que alguém produzisse ou importasse os produtos modernos. Em vez de indústrias nacionais competitivas, os esforços deveriam ser dirigidos à criação de espaços competitivos, interligados aos processos globais. Perderia, assim, o sentido de diferenciar empresas nacionais de internacionais. Em vez de impor uma agenda nacional à realidade global, dever-se-ia adaptar a realidade nacional para integrar-se, de forma mais intensa possível, ao capitalismo global. Prioridades setoriais foram subordinadas a este processo (SCHUTTE, 2004, p.14-15).
Era o que José Luís Fiori vai denominar de cosmopolitismo de cócoras, ou seja,
aquilo que sempre esteve nos planos dos pioneiros neoliberais no Brasil, como Eugênio
Gudin. Um projeto de inserção da economia brasileira totalmente subordinada à divisão
internacional do trabalho. Porém, nessa quadra histórica havia uma diferença fundamental
que era a financeirização da economia, a perda relativa da hegemonia dos Estados Unidos
e um projeto claramente imperial deste país de reverter a debilidade de sua economia,
comparada aos anos do pós-guerra, dos anos de ouro do capitalismo, de supremacia
estadunidense baseada no fato deste país ter saído como credor da guerra e seu território
não ter sido destruído por bombas, ou seja, o teatro de operações não havia sido em seu
território. O imperialismo norte-americano detinha o monopólio da bomba atômica, sua
moeda era a moeda de reserva internacional e principal veículo das transações
internacionais. As empresas norte-americanas reinavam sem concorrência. Nesse período
havia o desenvolvimento a convite que foi bloqueado, a partir do governo Nixon, com o
advento da crise internacional capitalista e com as medidas tomadas por ele que
desmontaram a arquitetura econômico-financeira de Bretton Woods.
O acordo de Bretton Woods também favoreceu aos Estados Unidos assim como
o Plano Marshall e a deflagração da Guerra Fria que disciplinou os países sob a batuta dos
Estados Unidos e justificou seu intervencionismo e gastos com o complexo industrial-militar.
Até os anos 1970 tudo transcorreu relativamente bem, foram os anos de ouro do
capitalismo. Nixon afirmou, em 1971, que “todos somos keynesianos”. Mas os sinais de
enfraquecimento e debilitamento da economia dos Estados Unidos já se mostrava com a
assunção do Japão e da Alemanha na concorrência do mercado internacional, a derrota no
Vietnã e a luta antiimperialista nos países periféricos. Esses eram sintomas do fechamento
de um ciclo de expansão a taxas elevadas. A estagflação dos anos 1970 encerrou a ilusão
de um capitalismo blindado contra crises semelhantes a de 1929.
As classes dominantes norte-americanos não ficaram passivas frente a esse
cenário e resolveram contra-atacar. O neoliberalismo foi exatamente o que Harvey formulou,
a tentativa de reverter o espaço ocupado pelos trabalhadores com suas lutas tanto nos
países centrais como nos países periféricos. Nos países periféricos o que estava em pauta
não era só a retirada de direitos, mas uma recolonização por meio da dívida externa,
inicialmente, somadas às condicionalidades do FMI e do Banco Mundial que levaram
primeiro à crise da dívida e depois, na década de 1990, à assunção das políticas
neoliberais, que o Brasil vai adotar tardiamente comparado ao Chile e a outros países da
América Latina.
O Consenso de Washington consolidou, ainda mais, as políticas neoliberais
consubstanciadas no famoso decálogo que, entre outras medidas, preconizava as
privatizações, a abertura comercial, a abertura da conta de capitais, a flexibilização das leis
trabalhistas, a desregulamentação da economia etc.
A financeirização segundo Chesnais significa um papel crescente das finanças e
de sua relativa autonomização frente ao capital produtivo. Para o economista francês esta
hipertrofia da esfera financeira teve como cortejo a
liberalização e desregulamentação dos sistemas financeiros nacionais e a transição, de um regime de finanças administradas, a um regime de finanças de mercado. É contemporâneo à mundialização financeira e explica por si só, as razões de ser deste livro (CHESNAIS, 1998, p.14-15).
Chesnais (1998) vai remontar as origens desse processo à reciclagem dos
petrodólares que criou uma massa de recursos que, devido a crise do capitalismo na década
de 1970, procuravam aplicações mais rentáveis do que a esfera produtiva. O autor adverte
que essa massa de capitais reciclados deu surgimento ao problema da dívida dos países
periféricos que carregam consigo até hoje esse óbice nas suas economias.
Devemos lembrar também que esse processo não foi só econômico. Partiu de
escolhas políticas dos Estados Unidos que, diante da reconstrução da economia europeia, e
do Japão na Ásia, estavam perdendo a competição econômica em diversas esferas no
plano internacional.
A primeira medida tomada para reverter essa perda relativa da economia dos
Estados Unidos foi a desvinculação do dólar em relação ao ouro que significou o fim do
sistema de Bretton Woods, em 1971, seguida de outras medidas tomadas pelo governo
Nixon, à época, como a desvalorização do dólar, o aumento das tarifas de importações e a
adoção do dólar flexível, o que vai trazer mais instabilidade à economia mundial, como
destaca Chesnais (1998, p. 25).
A adoção das taxas de câmbios flexíveis foi o ponto de partida de uma instabilidade monetária crônica. Ela fez do mercado de câmbio o primeiro compartimento a entrar na mundialização financeira contemporânea, e um dos compartimentos onde uma
parcela especialmente elevada dos ativos financeiros (ver quadro 2) procura se valorizar, preservando, ao mesmo tempo, a máxima liquidez.
A segunda fase desse processo de financeirização data do final da década de
1970, com Paul Volcker a frente do Federal Reserve, ainda no governo Carter, e a vitória de
Thatcher na Inglaterra. Para Chesnais (1998) começa aí, verdadeiramente, a liberalização
do controle de capitais que permitiu que eles migrassem em busca de lucros fáceis e
assumissem a magnitude que eles têm hoje.
As medidas tomadas a partir a partir de 1979 puseram fim ao controle de movimentos de capitais com o exterior (entradas e saídas), isto é liberalizaram, ou melhor “abriram externamente” os sistemas financeiros nacionais. Elas também abrangeram as primeiras fases de um amplo movimento de desregulamentação monetária e financeira (que ainda não se encerrou), cuja primeira consequência, no começo da década de 80, consistiu na rápida expansão dos mercados de bônus interligados internacionalmente. (CHESNAIS, 1998, p. 25).
A burguesia internacional pressionou para que fossem retiradas as barreiras
para a especulação internacional e o neoliberalismo, que hibernou durante décadas, foi
ressuscitado para defender um programa que atendesse aos interesses da burguesia
financeira internacional com seu diagnóstico de uma nota só, que a crise era causada pelo
excesso de intervenção, de regulamentação estatal e que o remédio era o Estado mínimo e
a desregulamentação do Estado.
Esse programa recebeu um grande alento com a vitória de Thatcher, na
Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, que passaram a difundí-lo
internacionalmente como políticas nos organismos internacionais e a pressionar os demais
países para aceitação desse receituário.
O Brasil adotou tardiamente as politicas neoliberais, mas as adotou com
sofreguidão e celeridade. O governo Collor naufragou devido a escassa base social para
aplicar essas políticas de conteúdo profundamente antinacional e antipopular. O governo
interino de Itamar, que sucedeu Collor, tentou levá-las a frente mas devido sua instabilidade,
fruto de uma coalização de partidos que tinha como único objetivo eleger o próximo
presidente que pudesse levar a cabo a política de privatizaçãos e flexibilização das relações
trabalhistas, não obteve o êxito esperado.
O último suspiro desenvolvimentista da burguesia no Brasil foi com o Plano
Cruzado. Após o fiasco deste plano a burguesia industrial aderiu com malas e bagagens ao
neoliberalismo, que já era uma política defendida pela burguesia financeira no final da
ditadura com a grita contra o suposto gigantismo e hipertrofia estatal promovidos
principalmente pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND).
O Plano Real catapultou o PSDB para a presidência e mal assumiu, escudado
na mídia, no controle da inflação e num amplo leque partidário, Fernando Henrique Cardoso
desfechou uma dura repressão ao movimento sindical a fim de implementar suas medidas.
Encerrou a greve dos petroleiros, em 1995, com forte repressão e campanha midiática para
isolar a greve e derrotá-la. Para levar a cabo seu projeto, FHC precisava contar com a
entrada de recursos externos oriundos das privatizações e com medidas como o arrocho
salarial, a desregulamentação financeira e o cambio sobrevalorizado.
FHC entronizou o Brasil no processo de financeirização mundial através de juros
astronômicos que cumpriam duas funções: de controle da inflação pela entrada de produtos
importados e de garantir ao rentismo a transferência de recursos do fundo público para
enriquecimento dos banqueiros.
Em 2002, ocorrem as eleições presidenciais e Lula vence, não devido a Carta ao
Povo Brasileiro como muitos analistas formularam, mas devido a revolta contra o governo
FHC que se expressou nas urnas. Devemos lembrar que as vitórias iniciadas com a eleição
de Chaves foi o início da derrota das políticas neoliberais que resultou em enormes
rebeliões de massas na América Latina2. Lula inicialmente aplica aquilo que estava contido
na Carta ao Povo Brasileiro e, não só não reverte as privatizações como implementa
superávits primários maiores do que aguardados pelo FMI e implementa a reforma da
previdência no setor público causando com isso grande revolta nesse setor, que foi um dos
esteios da sua eleição.
O ciclo expansivo da economia mundial permite a Lula incrementar o Programa
Bolsa Família, a criação de novas universidades federais e institutos federais, assim como
uma recuperação do poder de compra do salário mínimo, mas muito distante do cálculo do
salário mínimo feito pelo DIEESE. Lula aproveita também a bonança da economia mundial
para tentar recompor a burguesia industrial brasileira que havia sido preterida, por FHC3, em
benefício do setor financeiro. No governo Lula, o BNDES financiou as empreiteiras e o
agronegócio contemplando outras frações da burguesia. Lula também tentou reconstruir a
burguesia industrial por meio da Petrobrás com o alto preço do barril de petróleo. Foi um
projeto de conciliação entre o capital e o trabalho. Enquanto a economia ia bem, a burguesia
não tinha do que se queixar porque ela era a grande beneficiada por essa política
econômica. Para os trabalhadores houve uma expansão do emprego, em grande parte
terceirizada e mal paga. Chegava-se a falar em pleno emprego porque a taxa de
desempregados era baixa, havia concursos nas universidades públicas, bolsa família e
melhoria do salário mínimo. No cômputo geral o grande beneficiado com essa políticas foi o
2 A chave interpretativa para analisar com maior amplitude a ascensão de governos de centro
esquerda ou governos nacionalistas moderados não pode deixar de levar esse fator em conta. A mudança da correlação de forças na América Latina e o desgaste das políticas do Consenso de Washington foi que abriu espaço para os governos ditos de centro-esquerda. 3 A tal ponto que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no governo de
FHC só serviu para patrocinar as privatizações com dinheiro público.
grande capital financeiro que continuou a ser contemplado com a transferência de recursos,
quase 50% do orçamento da União ia para pagamento da dívida pública.
A crise de 2007-2008 mostrou que a crise atingira o coração da economia
capitalista mundial. As crises anteriores ficaram restritas aos países periféricos, como a de
1994, no México; a de 1997, nos países asiáticos; em 1998, na Rússia; em 2001, na
Argentina; e em 1999, a crise aportou no Brasil. Lula afirmou que a crise no Brasil seria uma
marolinha. Mas como toda economia internacional está interligada, uma crise nos países
centrais será sentida por todos os países porque o Brasil exporta commodities para a China,
este país exporta para a União Europeia e para os Estados Unidos. Enfim, gera um efeito
em cadeia, afetando todos os países, uns mais outros menos. Os países periféricos
abandonaram ao mercado suas possibilidades de tocar políticas públicas e a soberania
econômica. Assim, ficaram mais vulneráveis a flutuações da economia mundial e aos
ataques especulativos à suas moedas.
Em 2010 Dilma Roussef é eleita presidenta e reeleita em 2014, com 51,64% dos
votos válidos, contra 48,36% de seu adversário, o candidato Aécio Neves. A eleição de 2014
foi extremamente polarizada e o candidato Aécio Neves deixou patente que não aceitaria o
resultado das urnas e lutaria de todas as formas, inclusive recorrendo ao Supremo Tribunal
Eleitora e ao Supremo Tribunal Federal para apear a presidenta eleita. A aliança com o
PMDB já mostrava sinais de esgarçamento com o vice-presidente, Michel Temer
conspirando tal qual Café Filho, vice de Vargas.
A presidenta Dilma lança através de seu ministro Joaquim Levy um ajuste fiscal
que agravou a crise econômica esperando o rebaixamento do valor da força de trabalho.
Somado a isso, a Operação Lava a Jato cumpria o papel de abre-alas do golpe parlamentar
e midiático sob o pretexto de combate a corrupção. O resultado disso nós estamos
presenciando — um draconiano ataque do “governo” Temer aos direitos dos
trabalhadores(as) que representa um retrocesso, de tal forma, que nos levará a um período
anterior a década de 1930. O Golpe é uma demonstração que nem as tímidas medidas
efetuadas pelo governo Lula e Dilma são permitidas pela tacanha burguesia brasileira.
III. A DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS EM TEMPOS DE
RETROCESSO: A EDUCAÇÃO AMEAÇADA
A Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, que altera o ato das disposições
constitucionais transitórias e institui, em seu artigo 106, novo regime fiscal com duração de
20 exercícios financeiros4, foi aprovada num cenário de ataque à democracia brasileira com
o “impeachment” da presidenta Dilma Rousseff.
A EC 95, em seu art. 107, estabelece limites individualizados para as despesas
primárias, em cada exercício, dos Poderes Executivo, Judiciário, Legislativo; do tribunal de
Contas da União (TCU); do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria Pública da
União (DPU).
A aprovação dessa legislação objetiva, de fato, congelar os recursos destinados
às despesas primárias5 e investimentos em áreas fundamentais como educação e saúde
mediante a quebra de vinculação orçamentária definida constitucionalmente nos artigos 212,
para manutenção e desenvolvimento do ensino e, artigo 198, inciso I, para ações e serviços
públicos de saúde.
Para as despesas primárias de 2017 serão destinados os recursos de 2016,
corrigidos em 7,2%. Nos anos posteriores, conforme o Art. 107 (§ 1º, II), o valor será
referente,
ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou de outro índice que vier a substituí-lo, para o período de doze meses encerrado em junho do exercício anterior a que se refere a lei orçamentária (BRASIL, 2016, p. 1).
Para saúde e educação, utilizando manobra distracionista, a Emenda posterga a
quebra da vinculação orçamentária para o exercício de 2018, quando passará a vigorar o
previsto no II do § 1º do art. 107.
No caso de descumprimento do limite estabelecido, são atribuídas às seguintes
vedações: a) aumento ou reajuste salarial; b) criação de cargo, emprego ou função, e
alteração de carreira que aumentem despesas; c) admissão ou contratação de pessoal,
realização de concurso público, admitido apenas no caso de reposição de vacâncias de
cargos efetivos ou vitalícios.
A EC não menciona o controle de pagamento para despesas financeiras6 pois
parte da premissa de que a crise fiscal é fruto do aumento das despesas primárias e o
corolário dessa premissa é controlar esses gastos. Isto é, na verdade, um pseudo
diagnóstico para legitimar o desmonte do Estado social 7 e garantir a manutenção do
pagamento dos juros da dívida pública. A origem da crise fiscal, conforme Bacelar (2016)
4 Podendo ser alterado a partir do décimo ano, admitida apenas uma alteração “do método de
correção dos limites por mandato presidencial”. (EC 95/2016, art. 108). A referida emenda teve sua origem na PEC 241/55 de 2016. 5 Amaral (2016) assevera que, despesas primárias são aquelas associadas ao pagamento de pessoal
e encargos sociais, outras despesas correntes, investimentos e inversões financeiras. 6 As despesas financeiras estão relacionadas ao pagamento de juros, encargos e amortização das
dívidas interna e externa. (Amaral, 2016). 7 Vários economistas já demonstraram que o crescimento das despesas primárias é muito inferior ao
crescimento das despesas financeiras.
reside em três fatores: falta de crescimento econômico, queda da arrecadação tributária e
pagamento de juros.
O documento Austeridade e retrocesso: finanças públicas e política fiscal no
Brasil afirma que no cenário brasileiro atual, a austeridade é uma escolha equivocada e
adverte que a solução dos problemas fiscais não depende apenas de corte de gastos
primários.
O equacionamento dos problemas fiscais não depende apenas do resultado primário e do corte de gastos e a piora dos resultados primários se deve em grande parte à profunda desaceleração econômica. Em 2015, por exemplo, apesar de todo o esforço do governo para reduzir despesas, que chegou a queda real de 2,9% do gasto primário federal, as receitas despencaram e o déficit ficou ainda maior, evidenciando o caráter contraproducente do ajuste: o austericídio. Ou seja, o corte de gasto em conjunturas como a de 2015 não é garantia de melhores indicadores fiscais, com efeito, as contas públicas pioraram com a interrupção de investimentos públicos e contingenciamento de verbas para saúde e educação. (2016, p. 46-47)
A falta de crescimento econômico está associada à crise da economia
internacional que tem rebatimentos na economia nacional.
O pagamento de juros consome fatia significativa do orçamento geral da União,
conforme demonstra os dados sistematizados e apresentados no sítio da auditoria cidadã.
Em 2014, o pagamento de juros e amortizações da dívida consumiu 45,11%, enquanto que
em educação foi investido 3,73%; em saúde, 3,98%; em assistência social, 3,08%; ciência e
tecnologia, 0,28%; e cultura, 0,04%, o equivalente a 11,11%. Em 2015, 42,43% do
orçamento da união foi carreado para pagamento de juros e amortizações. Para educação
foram destinados 3,91%; saúde, 4,14%; assistência social, 3,05%; ciência e tecnologia,
0,27%; e cultura, 0,04%, totalizando 11,41%.
A queda da arrecadação tributária está associada à opção do governo brasileiro
em manter um sistema tributário que beneficia os ricos e penaliza os pobres. No país, dados
de 2013 revelam que, 70 mil pessoas mais ricas concentram 8,2% do total da renda das
famílias.
De acordo com os dados das declarações de imposto de renda, as 70 mil pessoas mais ricas do Brasil, representando meio milésimo da população adulta, concentram 8,2% do total da renda das famílias, índice este que não encontra paralelo entre as economias que dispõem de informações semelhantes. Os dados fiscais também revelam que esse seleto grupo ganhou em média R$ 4,2 milhões em 2013 e pagou apenas 6,7% de imposto de renda sobre esse montante, considerando os tributos recolhidos sobre os rendimentos financeiros e outras rendas tributáveis – carga tributária inferior à aquela paga pela maioria dos assalariados de classe média alta do país. (Austeridade e retrocesso, 2016, p. 54-55)
Medidas de tributação progressiva, mencionadas no documento Austeridade e
retrocesso (2016), sobre a renda e o patrimônio poderiam equacionar esses problemas,
como por exemplo, revisão das alíquotas do IRPF e do imposto sobre herança (ITCMD),
estabelecimento do imposto sobre grandes fortunas (IGF). Além disso, outras formas de
arrecadação poderiam ser acionadas: combate à sonegação, cobrança da dívida dos
grandes devedores da União (dentre eles grandes empresários), combate à sonegação,
retirada de privilégios de políticos e magistrados, e auditoria da dívida pública
A quebra de vinculação prejudica sobremaneira as políticas públicas. Amaral
(2016) indaga para onde irão os recursos arrecadados além do IPCA tendo em vista que,
com EC 95/2016, o governo fica impossibilitado de ultrapassar esse limite.
Comparato adverte que a vinculação orçamentária é um instrumento de
“proteção orçamentário-financeira de direitos que não podem ser minorados ou negados”
(COMPARATO, 2017, p. 1). Além disso, o jurista destaca o risco de retrocesso vedado
constitucionalmente.
A inconstitucionalidade da PEC 55/2016 é demonstrada em estudo realizado e
apresentado no Boletim Legislativo do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria
Legislativa nº 53, intitulado de As inconstitucionalidades do “novo regime fiscal” instituído
pela PEC nº 55, de 2016 (PEC nº 241, de 2016, na Câmara dos Deputados). O documento
evidencia que a PEC 55 tende a abolir cláusulas pétreas da Constituição, expressas no art.
Art. 60, § 4º, incisos II, III e IV da Constituição Federal de 1988, transcritos abaixo:
Art 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais.
A violação ao princípio da segurança jurídica, ao princípio da razoabilidade, ao
princípio da intranscendência da pena em sua dimensão institucional e ao princípio da
vedação ao retrocesso social também são ressaltadas no documento, que conclui afirmando
a inconstitucionalidade da proposição.
Em face de todo o exposto, consideramos que a PEC nº 55, de 2016, tende a abolir as cláusulas pétreas previstas nos incisos II, III e IV do § 4º do art. 60 da Constituição Federal, que se referem, respectivamente, ao voto direto, secreto, universal e periódico; à separação de Poderes e aos direitos e garantias individuais, razão pela qual deve ter sua tramitação interrompida no âmbito das Casas do Congresso Nacional. Caso isso não ocorra e a PEC logre aprovação, promulgação e publicação, entendemos estar presentes os requisitos constitucionais para que os legitimados pelo art. 103 da Constituição proponham a competente ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal arguindo, nesse momento, a inconstitucionalidade da emenda constitucional na qual a PEC tenha eventualmente se transformado. (VIEIRA JUNIOR, 2016, p. 46).
A violação ao princípio da vedação ao retrocesso social é gritante na EC
95/2016 pois, no tocante à educação, as perdas serão enormes e comprometerá a
consecução das metas do PNE (2014-2024). A primeira delas é a meta de nº 20 que
objetiva,
ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de sete por cento do Produto Interno Bruto (PIB) do país no quinto ano de vigência desta lei e, no mínimo, o equivalente a dez por cento do PIB ao final do decênio.(BRASIL, 2014)
Consoante Amaral (2016), essa meta só seria alcançada se “persistentemente o
PIB não tiver crescimento positivo — ou seja, fosse por longo período negativo — o que
levaria, por “inanição”, os mesmos recursos financeiros de 2016, corrigidos pelo IPCA
atingirem o equivalente a 10% do PIB em 2024”. (AMARAL, 2016, p. 8-9). Outras metas
também serão comprometidas porque dependem do aumento do número de matrículas, o
que requer sem dúvida mais investimentos. Destacaremos algumas. São elas: a) a meta 2
que indica a universalização, até 2016 a educação infantil (pré-escola) e ampliar a oferta em
creches8; b) universalizar o ensino fundamental de nove anos para a população de seis a
quatorze anos9; c) aumentar a taxa líquida de matrículas no ensino médio para oitenta e
cinco por cento10; d) aumentar a taxa líquida para trinta e três por cento da população de
dezoito a vinte e quatro anos11. (PNE, 2014-2024).
A educação superior pública brasileira é elitista e privatizada. O país possui
2.364 instituições de ensino superior. Apenas 295 (12,47%) são públicas e 2.069 são
privadas (87,52). A desregulamentação da educação, a venda de franquias, as fusões de
grandes corporações 12 conformam um processo de liberalização ou mundialização da
educação. Esse cenário tende a se agravar com a aprovação da EC 95/2016 que se
constitui numa grave ameaça aos direitos sociais, em especial à educação e a saúde.
IV. CONCLUSÃO
A aprovação da EC 95/2016 congela os gastos com despesas primárias por 20
anos, corrigidas apenas pelo IPCA do ano anterior e quebra a vinculação orçamentária da
saúde e educação, desconstitucionalizando os direitos sociais, e deixa livre as despesas
financeiras favorecendo ao rentismo.
A referida emenda viola cláusulas pétreas da Constituição de 1988 e seu
fundamento básico — o ajuste fiscal — denominado por muitos de austericídio, tem como
consequência o desmonte da economia e dos direitos sociais, dentre eles a educação.
8 Isso exige a criação de 3,4 milhões de matrículas na creche e 700 mil na pré-escola, segundo
UNDIME, CONGEMAS e CONASEMS. 9 Para isso seria necessário criar 500 mil matrículas no ensino fundamental, consoante a UNDIME,
CONGEMAS e CONASEMS. 10
A UNDIME, CONGEMAS e CONASEMS, indicam, nesse caso, a necessidade de criação de 1,6 milhão de matrículas no ensino médio. 11
A UNDIME, CONGEMAS e CONASEMS apontam a necessidade de criação de 2 milhões de matrículas no ensino fundamental. 12 A fusão de corporações educacionais nacionais, como a ocorrida entre a Kroton e Anhaguera, e posteriormente Kroton e Estácio de Sá, possibilitaram a concentração de 1,6 milhão de alunos, numa só instituição12, significando 23% do total de matrículas na educação superior brasileira, consoante dados da CM Consultoria Educacional.
O retrocesso econômico e educacional em curso implicará numa conversão
neocolonial do país e no rebaixamento cultural da população brasileira, inviabilizando assim
a possibilidade de construção de um projeto de nação.
REFERÊNCIAS
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diminuição dos recursos educacionais. RBPAE, Porto Alegre, v. 32, n. 3, p. 653 - 673
set./dez. 2016.
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