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208 Estilos da Clínica, 2009, Vol. XlV, n° 27, 208-229 RESUMO Considerando a importância das interações iniciais do bebê com o outro primordial, este artigo objetiva discutir as relações en- tre a constituição da represen- tação corporal e a construção do sujeito aprendente. As autoras baseiam-se em contribuições de Paín (1973) e Fernández (1991; 2001) sobre a forma- ção de sintomas na aprendiza- gem e a dimensão corporal, e em alguns teóricos da psicanálise que trabalham o aspecto constitutivo da imagem corporal, como Dolto (1984) e Aulagnier (1989), bem como o aporte freu- diano sobre a pulsão de saber (Freud, 1905). Discutem a importância da constituição da representação corporal como partícipe da construção de mo- dalidades de aprendizagem. Descritores: constituição do corpo; relações iniciais; sintoma na aprendizagem. Artigo A DIMENSÃO DO CORPO NA APRENDIZAGEM Andrea Gabriela Ferrari Regina Orgler Sordi A Introdução Psicopedagogia trabalha com sujeitos, particularmente crianças que, por diferentes razões, são impedidas de se apropriar do conhecimento for- malizado pela escola de maneira desejante. Depa- rar-se com essas dificuldades gera nos adultos uma série de sentimentos que vão desde o assombro/ perplexidade até a condenação da instituição esco- lar. O que faz com que uma criança não possa ace- der a este conhecimento? Cordiè (1996) aponta que o fracasso escolar entendido como um sintoma surgiu a partir da mo- dernidade, em função das modificações econômi- cas e, consequentemente, do ideal social que preco- nizava a produtividade como o caminho natural do ser humano. No século XIX surgiu a escolaridade Psicóloga e psicanalista, Professora do Centro Universtitário La Salle (Unilassale). Psicóloga, Docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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208 Estilos da Clínica, 2009, Vol. XlV, n° 27, 208-229

RESUMO

Considerando a importância dasinterações iniciais do bebê com ooutro primordial, este artigoobjetiva discutir as relações en-tre a constituição da represen-tação corporal e a construção dosujeito aprendente. As autorasbaseiam-se em contribuições dePaín (1973) e Fernández(1991; 2001) sobre a forma-ção de sintomas na aprendiza-gem e a dimensão corporal, e emalguns teóricos da psicanáliseque trabalham o aspectoconstitutivo da imagem corporal,como Dolto (1984) e Aulagnier(1989), bem como o aporte freu-diano sobre a pulsão de saber(Freud, 1905). Discutem aimportância da constituição darepresentação corporal comopartícipe da construção de mo-dalidades de aprendizagem.Descritores: constituição docorpo; relações iniciais; sintomana aprendizagem.

Artigo

A DIMENSÃO DOCORPO NA

APRENDIZAGEM

Andrea Gabriela FerrariRegina Orgler Sordi

AIntrodução

Psicopedagogia trabalha com sujeitos,particularmente crianças que, por diferentes razões,são impedidas de se apropriar do conhecimento for-malizado pela escola de maneira desejante. Depa-rar-se com essas dificuldades gera nos adultos umasérie de sentimentos que vão desde o assombro/perplexidade até a condenação da instituição esco-lar. O que faz com que uma criança não possa ace-der a este conhecimento?

Cordiè (1996) aponta que o fracasso escolarentendido como um sintoma surgiu a partir da mo-dernidade, em função das modificações econômi-cas e, consequentemente, do ideal social que preco-nizava a produtividade como o caminho natural doser humano. No século XIX surgiu a escolaridade

Psicóloga e psicanalista, Professora do Centro

Universtitário La Salle (Unilassale).

Psicóloga, Docente do Instituto de Psicologia da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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obrigatória e, junto com ela, a neces-sidade de acompanhar um currículoescolar elaborado em função das no-vas tecnologias que atendiam aoideário da produtividade. O não cum-primento desse novo ideal fez comque o fracasso se instalasse no âmbi-to da aprendizagem, visto que a cons-tituição do sujeito pressupõe relaçõesafetivas que estão necessariamenteatravessadas pelas expectativas e exi-gências socioculturais.

Uma das abordagens possíveispara o entendimento do fracasso naaprendizagem ocorre a partir de umaintercessão de saberes oriundos daPsicanálise e da Psicopedagogia. É apartir deste pressuposto que trabalha-remos as ideias deste texto.

Paín (1973) aponta que uma di-ficuldade de aprendizagem pode seexpressar através de uma inibição oude um sintoma. O sintoma aparecena obra freudiana como sendo umaformação de compromisso ou umaformação substitutiva, ou seja, umacordo entre as instâncias psíquicaspara que uma moção pulsional sejadescarregada pelo id, apesar das ma-nifestações do superego. O ego se vêimpelido a fazer um acordo entreambos, deixando a moção pulsionalser descarregada, mesmo que defor-mada, tendo, como custo, parte de suaautonomia. Assim, em termos freu-dianos, somente poderíamos conside-rar sintomatológico um comporta-mento que se estabelecesse após apassagem pelo conflito edípico. Já, arespeito da inibição, Freud (1926, ci-

tado por Paín, 1973) refere ser estauma limitação normal de uma funçãoque não carrega necessariamente umcomponente patológico. As funçõesegoicas que ele aponta passíveis deinibições referem-se à função sexual,função de nutrição, função de loco-moção e à inibição do trabalho. Nes-se sentido, a diferenciação entre ini-bição e sintoma refere-se à formaçãode uma nova operação psíquica, já queuma inibição pode se tornar sintomá-tica desde que represente um confli-to. Nesse sentido, Paín (1973) lembraque o sintoma seria a transformaçãode uma determinada função egoica.

O problema da formação de umsintoma na infância foi muito debati-do pela Psicanálise. Muitos conside-ravam a impossibilidade de submeteruma criança a um atendimento psica-nalítico, visto que, por não ter passa-do pelo conflito edípico, o compor-tamento inadequado não poderia serconsiderado sintomatológico, umavez que as três instâncias ainda nãohaviam se constituído (não esqueça-mos que o superego é o herdeiro doComplexo de Édipo). Superada essaquestão a partir do entendimento deque a criança faz sintoma onde o idealparental de não castração falha(Melman, 1995), adentramos em ummundo no qual as representações dacriança vão se formando a partir derepresentações que os pais encenamna interação (Aulagnier, 1990). Ouseja, a formação da representação dacriança está influenciada por aquiloque o Outro primordial representa

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sobre ela; nesse sentido, pensamosque a formação do sintoma na crian-ça também aponta para aquilo que,nascisicamente, os pais representamsobre a criança. Pensar a problemáti-ca da aprendizagem, quando esta semanifesta através de um sintoma, re-mete atentar não tanto aos conteú-dos que não estejam sendo aprendi-dos quanto à operação cognitiva queesteja fraturada (Paín, 1973), na me-dida em que a mesma está relaciona-da ao não representado e não simbo-lizado ao nível da interaçãoparental-filial.

Pelas razões expostas acima,pode-se dizer que a problemática quevai se desvelar na aprendizagem vemse estruturando no psiquismo dacriança em um momento anterior àentrada na escola. É na escola que estesintoma se revela, mas resta pergun-tar: o que será que na história dessesujeito fez com que ele não possa sa-ber? Será que se trata necessariamen-te de um segredo ou pode estar emjogo uma dificuldade no posiciona-mento como sujeito desejante desdeas primeiras interações com os pais?

A constituição do corpo

Freud (1921/1990a), iniciandosuas investigações psicanalíticas commulheres que sofriam sintomas his-térico-conversivos, já se deparava coma dificuldade de diferenciar as instân-cias somática e psíquica; de seus es-

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tudos clínicos, concluiu que o ego, em um primeiro momento, é umego-corpo.

Para a psicanálise, a noção de corpo não é dada, mas construí-da na relação com o outro. Quando a criança nasce, não diferenciao que dela faz parte e do que dela não o faz. Para que isso aconteça,é necessário que esse organismo que nasce encontre um outro serque lhe deposite e ofereça enunciados que o reconheçam como su-jeito (Aulagnier, 1990). Nesse sentido, um organismo somente setorna um sujeito desde que tenha sido pensado, antecipado por outro(Aulagnier, 1989). Desde a concepção o feto é antecipado pelospais como sendo alguém que possui características próprias que es-tão relacionadas aos desejos narcisistas desses pais. Assim, desde agestação esse corpo que está por nascer é marcado a partir de enun-ciados que o antecipam como sujeito. Quando do nascimento, ospais precisam reorganizar seu bebê imaginado de acordo com ascaracterísticas do bebê da realidade (Horstein, 1994) para poder en-trar em relação com ele, negociando, a partir de então, as expectati-vas narcísicas e idealizadas.

Paín e Jarreau (1996) apontam para uma diferenciação entreorganismo e corpo. Organismo refere-se a uma “estrutura materialque conserva a estabilidade do ser humano através de uma progra-mação reguladora. ... é capaz de registrar as coordenações sensório--motoras adquiridas de modo a que sejam utilizadas pelo sujeito demaneira automática ... é uma memória de funcionamento. A capa-cidade representativa só pode se desenvolver na condição de queuma parte de suas aquisições seja disponível sem passar pela cons-ciência. ... Se o organismo pode ser comparado a um registrador,o corpo constitui um instrumento de música. Ele é o ato vivido,presença. Na arte o possível passa pelo corpo e esse por três pla-nos” (p. 53).

O plano das coordenações sensório-motoras, o plano dos afe-tos, o plano da constituição do eu, todos em conjunto, participamda constituição do corpo. No primeiro plano, há uma coordenaçãoentre as percepções e as ações que vão formando esquemas de açõese de significações. Por exemplo, o reconhecimento ocular de umcírculo irá incluir o gesto para sua produção como possível traçadono papel. Para ser automatizado é necessário que, na execução deum gesto, o corpo encontre um máximo de eficácia e flexibilidadeconsiderando os mecanismos de assimilação e acomodação descri-tos por Piaget (1971).

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Em relação ao plano dos afetos,precisamos considerar que, no corpo,a emotividade encontra ressonância.Esta é expressa em toda e qualquerprodução considerando até as memó-rias mais primitivas inscritas no cor-po. O plano da constituição do eurelaciona-se à primeira imagem iden-tificatória com ele mesmo. “Pode-sedizer que no início, o sujeito é seucorpo: não somente a forma de seucorpo como tal como ela lhe é resti-tuída pelo espelho, mas, sobretudo,seu corpo eficaz, esse instrumentoque obedece, quando ele quer alcan-çar alguma coisa. Portanto, toda re-presentação assinala, ao mesmo tem-po, um eu-proprietário (do corpoenquanto causa) e um eu-autor (daobra enquanto efeito).” (Paín &Jarreau, 1996).

O organismo é, então, conside-rado uma infraestrutura sensorial e deinscrição. O corpo é aquele que “tomacorpo primeiramente na eficácia dosgestos aprendidos através dos quaisse incorpora ao outro e domina a açãosobre os objetos e posteriormente emsua imagem estática em espelhos eretratos. O corpo será rapidamenteinstituído, simbolizado através de umnome e do uso de um pronome”(Paín, 1998, p. 6).

Paín (1973) refere que uma dascondições internas da aprendizagemdiz respeito ao “corpo como infraes-trutura neurofisiológica ou organis-mo” (p. 25) que garante a conserva-ção, coordenação dos esquemas e adinâmica de sua disponibilidade atual,

sendo necessário considerar “o cor-po como mediador da ação e comoassento do eu formal” (p. 25). É pelocorpo que o sujeito manifesta sua ri-gidez, flexibilidade, forma de cami-nhar, de pegar os objetos, ou seja, écom o “corpo que se aprende. Ascondições do mesmo – sejam consti-tucionais, herdadas ou adquiridas, fa-vorecem ou retardam os processoscognitivos, especialmente os da apren-dizagem” (p. 25).

Cabe ressaltar que Aulagnier(1990) refere que a relação psique--soma tem origem no empréstimoque a psique faz da atividade sensori-al, sendo as primeiras representaçõesproduzidas a partir do material somá-tico. Violante (2001), para explicaressa ideia, retoma o postulado piage-tiano (Piaget, 1971) de que a inteli-gência, em um primeiro momento, ésensório-motora, ou seja, apoia-se naspercepções sensoriais. A criança, nes-se período, organiza seu conhecimen-to através das informações que lhechegam a partir do olfato, tato, pala-dar, sons, costurando-as visualmentepela observação do corpo do outro(não esqueçamos a necessidade dacriança colocar os dedos na boca,nariz, olhos do adulto quando no iní-cio da constituição da diferença eu--outro). Violante lembra que, antes deconstituir sua própria imagem, a crian-ça precisa construir os primeiros es-quemas vocais. Para que isso aconte-ça é necessário que, em um tempoanterior, ela tenha sido falada e tenhalhe sido acionado o desejo de escu-

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tar. Isso é fundamental, pois na me-dida em que a criança é convocada aescutar, vão sendo transmitidos osenunciados que a identificam comosujeito e, junto com isso, as interpre-tações sobre seu estado original, ouseja, sobre suas sensações corporais.

Inicialmente, então, a experiên-cia somática se impõe sendometabolizada em experiência psíqui-ca. Nesse sentido sofrimento orgâni-co é sofrimento psíquico. Para quenão tenha consequências avassalado-ras, é necessário que esse sofrimentopossa ser falado pelo outro no intui-to de impedir o desinvestimento docorpo e do pensar. Assim, podemosperceber a relação das primeiras ins-crições somáticas com esse inicio darepresentatividade e do pensar sobre.Se há algo que falha nessas primeirasinscrições do corpo, possivelmentehaverá uma falha na capacidade dopensamento. Nesse sentido, o corpoé considerado, para Aulagnier (1990),um mediador entre duas psiques – aprópria e a materna e entre a psique eo mundo.

Na clínica com crianças perce-be-se o poder patogênico de algumasrepresentações jogadas na criançaquando bebê. Dolto (1992) refere quea imagem do corpo é testemunha dasprimeiras inscrições libidinais acon-tecidas na relação com o Outro pri-mordial. Nesse sentido, a autora re-fere ser a imagem do corpo o todovivido relacional, partindo de que arelação mãe/bebê é fundamental efundante do sujeito.

Para pensar na importância darepresentação do corpo na sintoma-tologia futura de uma criança se faznecessário diferenciar os conceitos deimagem corporal e esquema corpo-ral. Esquema corporal é o corpo emsi a partir do qual a imagem corporalvai se constituir. O esquema corporalé aquilo que nos define enquanto per-tencentes a determinada espécie; éevolutivo e independe das relaçõescom os outros e, assim “reporta ocorpo atual no espaço à experiênciaimediata” (Dolto, 1992, p. 15). O es-quema corporal objetiva a intersub-jetividade e, nesse sentido, pode ser ointérprete da imagem corporal. A au-tora enfatiza o vivido relacional daimagem corporal fazendo com que ocorpo físico ou esquema corporal sejaaquilo que vai possibilitar que a ima-gem corporal se estabeleça. É o esta-belecimento da imagem corporal quepossibilita a saída do homem biológi-co, como espécie, para o homem cul-tural. Isso implica na possibilidade derelacionar-se com o outro. Nesse as-pecto, vemos como a concepção deorganismo e corpo de Paín e Jarreau(1996) assemelha-se ao esquema cor-poral e imagem corporal de Dolto.

Dolto (1992) tem uma concep-ção muito particular do que pode serconsiderado um bebê. Para a autora,o bebê é desde o início da sua vidaum ser predisposto à comunicação,inserido desde o nascimento em rela-ções linguageiras com aqueles quecuidam dele. Nesse aspecto, a autorainsiste na necessidade de se falar com

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a criança, e até mesmo com um bebê recém-nascido, sobre tudoaquilo que o perturba ou faz sintoma. Ela parte do princípio de queo bebê entende absolutamente tudo o que um adulto entenderia.Nesse aspecto, não é necessário fazer adaptações nas palavras, masentrar em comunicação com o bebê a partir e através da sua ima-gem corporal. Para a autora, imagem corporal é o todo vividorelacional de um sujeito e é considerada testemunha das inscriçõeslibidinais do corpo na relação com o outro primordial.

Sendo assim, segundo a autora, é o circuito libidinal que res-ponde pela condição de ser do sujeito, pois dá conta da busca cons-tante de complementação. É o corpo que está subjacente a qualquercomunicação inter-humana, sendo o primeiro mediador entre o su-jeito e o mundo.

O conceito de imagem do corpo derivou das observações dasua prática clínica com crianças neuróticas, da necessidade de utili-zar algo que mediasse a criança e seu corpo (no adulto essa media-ção acontece pela utilização da linguagem verbal) a partir do qualpudesse surgir material associativo que viabilizasse uma psicanáli-se. A eficácia na utilização de materiais gráficos e modelagens fezcom que Dolto pudesse depreender dessa prática o conceito deimagem corporal, retirando o acento da clínica e ampliando-o parao entendimento da constituição subjetiva da criança na relação como outro.

A imagem corporal muda em função das castrações. Segundo aautora, as operações psicológicas de castração humanizam as pulsões.O termo castração tem um significado bastante diferente daquelecunhado por Freud (1924, citado por Dolto, 1992) e seguido pelosoutros teóricos da psicanálise. Para Dolto (1992), as castrações re-ferem-se às provas que a criança deve passar ao longo da primeirainfância para humanizar-se. São provações que acontecem na rela-ção com o outro quando este a priva da satisfação corpo a corpoque até então lhe era permitida. A castração, então, lhe é possibilita-da pelo Outro e é esta forma de doação que determinará como estacastração será recebida pela criança. Segundo a autora, para queuma castração não tenha consequências patogênicas, ela terá quenecessariamente passar pela linguagem, garantindo, para a criança,a partir da mediação da palavra, a satisfação pulsional que está sen-do interditada pelo adulto. Com isto percebe-se também a impor-tância dos aspectos culturais na obra da autora, já que esses interdi-tos não são caprichos dos adultos, mas acontecem porque também

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neles esta satisfação pulsional foi in-terditada, estando, os adultos, subme-tidos a essa ordem maior (ordem dacultura). Neste sentido fica bem mar-cado o poder humanizante das cas-trações. Outra questão fundamentalé que a castração tem que ser dada eimplica, por parte do outro, um atode doação. Para que isto possa acon-tecer sem ambiguidades, aquele queoferece a castração também deve sesentir castrado, ou seja, impedido deque aquela satisfação aconteça nocorpo a corpo com o bebê.

Dolto (1992) desenvolve em suateoria, consoante com o desenvolvi-mento psicossexual do indivíduo, oconjunto de castrações com as quaisos sujeitos precisam lidar. Castraçãoumbilical é aquela que ocorre no par-to e funda o sujeito. Ela acontece nosdois polos da relação. Pelo lado dospais acontece a renúncia do bebê ima-ginado, aceitando o estatuto civil ediferenciado desse novo sujeito. Dolado da criança acontece um desloca-mento do cordão umbilical para aboca, o que implica em uma passa-gem de um tipo de existência fetalpara um outro tipo de existência noqual as vias respiratórias são aciona-das. Essa castração servirá de matrizpara as castrações futuras. Nessemomento primordial, mãe e bebêtransformam os comportamentosbiologicamente preestabelecidos emcomportamentos com algum sentidoafetivo.

A castração oral refere-se ao des-mame, o que impossibilita que a

pulsão se satisfaça no corpo mater-no. Pode ser entendida como um pro-longamento da castração umbilical,considerando o aspecto da separaçãocorpo a corpo. O efeito humanizantedessa castração é a possibilidade damãe não ser mais a única intérpreteda linguagem da criança. O bebê co-meça a querer se comunicar sentindomuito prazer em brincar com os ba-rulhos que saem da boca e estabele-cendo longas conversas não somentecom a mãe, mas, também, com seusbrinquedos. Se estes brinquedos nãotivessem sido apresentados seria im-possível que o processo de olhar paraoutro lugar tivesse se iniciado. Nãoestaria aqui o esboço das futuras su-blimações, tão necessárias para aaprendizagem formal? Não estaria aío efeito das metabolizações maternasdos estados físicos do bebê?

No que concerne à castraçãoanal, o que está em jogo é a interdi-ção do prazer obtido pela manipula-ção materna no corpo da criança. Apartir dessa castração a criança adqui-re autonomia motora, dispensando oscuidados dos adultos para alimentar--se, ir ao banheiro, vestir-se. A impor-tância dessa castração está associadaà maior independência dos cuidadosda mãe, propiciando à criança o vis-lumbre da possibilidade de se inde-pendizar dos desejos maternos a seurespeito. O fator humanizante dessacastração refere-se à possibilidade deadquirir a noção adequada do que élícito e ilícito e de não prejudicar osoutros. Esse efeito humanizante se faz

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possível pela capacidade de maiordomínio do corpo e a aquisição danoção dos limites físico-corporais.Além disso, pelo controle esfincteria-no propriamente dito, a criança passaa saber que pode fazer determinadascoisas em determinados lugares e nãoem todos, como até pouco tempoatrás. Além dessas, temos, ainda, apassagem da criança pela experiênciado espelho, ou seja, momento no qualela se reconhece como sendo diferen-te daquilo que até então ela se pensa-va. A experiência do espelho é vividapela criança também como castraçãohumanizante, já que, por um lado, elaperde a possibilidade de confundir--se com os objetos do seu cotidiano;mas, por outro, vai adquirindo umaidentidade. Nesta identidade, com cer-teza, estão colocadas todas as expec-tativas parentais e os resquícios dascastrações humanizantes dos momen-tos subjetivos anteriores. Do ponto devista psicopedagógico, a possibilida-de de enunciar “eu”, viabilizada pelapassagem pelo espelho, potencializaa experiência de reconhecer-se autorde sua própria experiência.

A constituição do corpo ea aprendizagem

Fernandez (1991) refere que aaprendizagem organiza-se a partir dequatro níveis: a inteligência (autocons-truída na interação); o desejo (sendodesejo do desejo do outro); o orga-

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nismo (herdado e individual) e o cor-po (construído especularmente).

A inteligência vai se construin-do a partir dos esquemas sensório--motores, pela via das interações comos objetos oferecidos pelos outros epela capacidade e possibilidade demanipulação desses objetos (Fernan-dez, 1991). “A inteligência tende aobjetivar, a buscar generalidades, aclassificar, a ordenar, a procurar o queé semelhante, o comum” (p. 73). Se,por um lado, a inteligência conformaa elaboração objetivante, o desejoconforma a elaboração subjetivante,pois faz com que cada pessoa tenhauma experiência única que está rela-cionada com a história afetiva elibidinal de cada um. Para Dolto(1992) o desejo é acionado pela cons-tituição da imagem corporal pelo tes-temunho das inscrições libidinais ou,como refere Aulagnier (1990), acio-nado pela colocação em cena e a apro-priação dos enunciados identificantesoferecidos pelo Outro primordial. Porisso, desejo do desejo do Outro. Paín(1988) refere que, teoricamente, po-dem-se propor duas dimensões paraa constituição do sujeito. Por um ladoa inteligência, que sistematiza o co-nhecimento a partir da construção deum mundo coerente e objetivo. Poroutro, a dimensão do desejo, a partirda qual o sujeito poderá instaurar omundo intersubjetivo.

O organismo, como foi dito an-teriormente, é considerado uma in-fraestrutura sensorial no qual a ins-crição de um corpo vai se estabelecer.

Fernandez (2001) refere que a apren-dizagem tem uma fonte somática e,de acordo com como o corpo foiconstituído na relação com o outro, acriança terá uma modalidade própriado aprender. A importância do cor-po para a aprendizagem refere-se a queé pelo organismo/corpo que a criançaentra em contato com o outro. A pri-meira experiência de satisfação (Freud,1905/1990b) ocorre no momento emque a mãe, sentindo que seu filho lhepede leite, oferece-lhe um para além.É por causa desse para além que acriança aceita, que poderá sair do esta-do de puro orgânico para encontrar amatéria-prima dos significados afetivose culturais (Aulagnier, 1990).

Na medida em que a aprendiza-gem é um processo “cuja matriz é vin-cular e lúdica e sua raiz corporal”(Fernández, 1991, p. 48), seu desdo-bramento criativo vai se desenvolven-do pela/na articulação da inteligên-cia e do desejo e no equilíbrio dasassimilações e acomodações.

“A modalidade de aprendizagem,tal como a entendo, é um molderelacional, armado entre a mãe comoensinante e o filho como aprendente,que continua construindo-se nas pos-teriores relações entre os personagensaprendentes e ensinantes (pais, ir-mãos, avós, vizinhos, grupo de per-tencimento, meios de comunicação,professores) ao longo de toda a vida”(Fernandez, 2001, p. 66).

Existem dois processos de ori-gem biológica que orientam a forma-ção da modalidade de aprendizagem:

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a alimentação e o olhar. Em relação àalimentação, a autora refere que “é afonte somática da modalidade deaprendizagem e das significações in-conscientes do aprender” (p. 66), poisdiz respeito ao investimento primor-dial desejante sobre aquele corpo.

“É necessário que o ensinante[mãe] experimente um prazer corpo-ral (intelectual e desejante) com seuscomponentes de identidade ... paraque o aprendente possa conectar-secom sua máquina desejante-imagina-tiva-pensante ... se [o ensinante] nãoexperimenta prazer, se não há circu-lação de uma experiência de prazercomum pela via do corpo e de umaexperiência de comunicação de auto-rias, o aprendente não receberá o ‘co-nhecimento-prazer’ de que necessita,numa forma apta para assimilá-lo ereconstituí-lo, isto é, aprendê-lo”(Fernandez, 2001, p. 67).

Para a autora, o significado daalimentação diz respeito às necessi-dades de incorporação e, nesse senti-do, o aprender está inconscientemen-te ligado à alimentação; por sua vez osignificado da fome está associado aodesejo de conhecer acionado pela fun-ção positiva da ignorância. Primeira-mente, para saciar a fome/aprender,é necessário que o outro lhe ofereça acomida/conhecimento. Para assimilara comida/conhecimento, é necessá-rio um comportamento ativo do bebêpara transformar e incorporar o quelhe é oferecido. A digestão do alimen-to/conhecimento é realizada pelasoperações de seriação e classificação.

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Mas, para que a criança efetivamente aprenda, é necessário que oensinante signifique aquilo que transmite como algo bom a ser ofe-recido para alguém significativo e único. Assim, o prazer sentidopelo ensinante é tomado pelo aprendente como desejo de conhecere este prazer passa, necessariamente, pelo corpo.

Segundo a autora, se isso não ocorre “a inteligência tem dispo-nível suas operações, mas o corpo, através do sintoma da aprendi-zagem (a inteligência e corporeidade aprisionadas), pode represen-tar a permissão não outorgada e a não autorização do sujeitoaprendente para recordar, manter, desfrutar e usar o conhecido, oupode representar frustradamente, através da inibição cognitiva, odireito a não conhecer” (p. 69).

Com relação ao olhar, como base somática do aprender,Fernandez (2001) pensa em uma linha na qual, em um extremo seencontra “o exibir e o esconder; no centro situam-se o mostrar e oguardar; e, no outro extremo, marcando a patologia, junto ao exibirdo ensinante, encontro o evitar o olhar do aprendente, junto ao escon-der do ensinante o espiar do aprendente. Só frente ao mostrar-guardardo ensinante instala-se um espaço que permite aprender-olhar”(Fernandez, 2001, p. 70, grifos do autor).

Partindo do olhar que se estabelece entre ensinante e aprendentee tomando como base os quadros psicopatológicos da psicanálise, aautora aponta para tipos de vínculos específicos. O tipo de vínculoperverso se estabelece entre um ensinante que se exibe, mostra-seconhecedor e perverte o ensinar. Por sua vez, o aprendente inibeseu pensamento, expulsa e cospe o conhecimento. O tipo de víncu-lo neurótico refere-se a um ensinante que esconde um conhecimen-to secreto e um aprendente que somente pode conhecer espiando eperturbando o processo do conhecimento ou mesmo não mostran-do o que aprendeu porque não está autorizado pelo ensinante. Noprocesso neurótico, há um deslocamento da culpa do ensinante parao aprendente. No vínculo psicótico, o ensinante desmente o conhe-cimento formulado pelo aprendente que, por sua vez, pode nãoencontrar outra saída senão utilizar seu pensamento para alucinarou anular sua capacidade pensante. Já no vínculo sadio, o ensinantemostra/guarda o conhecimento sem culpa e conhece que desco-nhece. Isso permite que o aprendente se aproprie do conhecimentoe possa efetivamente aprender.

A aprendizagem formalizada pela escola não acontece por foradas marcas das primeiras aprendizagens da criança a partir dos pri-

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meiros vínculos afetivos. A criança,nesse sentido, tende a repetir não so-mente os estilos e relacionamentosiniciais com os outros, mas, também,o estilo de aprender – somente podeaprender de acordo com as primeirasapresentações do mundo objetivo queforam metabolizadas e significadas apartir das inscrições libidinais.

Podemos pensar que é pela ca-pacidade sublimatória materna queum sujeito surge e é penetrado pelalinguagem, desenvolvendo as primei-ras representações e, consequente-mente, a renúncia do estado de in-fans. Nesse sentido, a capacidadesublimatória materna é importanteporque permitirá que ela deseje seufilho, não como instrumento de sa-tisfação pulsional, mas como aqueleque, colocado no lugar de ideal, po-derá fazer e ser mais do que ela pró-pria. É o olhar da mãe para outra di-reção, permitindo a entrada do objetode conhecimento, que possibilitaráque ambos saiam do êxtase narcísico,acionando a capacidade sublimatóriana criança.

Ao nomear a criança, a mãe a li-mita, ao mesmo tempo em que ofe-rece enunciados significantes palpá-veis que passam a ser encenados narelação. Sabemos que o ato de nomea-ção permite o ingresso da criança aomundo simbólico, momento no quala mãe passa a pintar a tela (corpo dobebê) com as tintas (enunciadosidentificantes maternos) oferecidaspela sua história (parafraseando Au-lagnier, 1990). Para que um eu se

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constitua é necessário que seja ante-cipado por outro. As primeiras mani-festações do bebê colocarão à provaas emoções dessa mãe que terá o po-der de modificá-las e isso transforma-rá a expressão de necessidade do cor-po do bebê em uma demanda a eladirigida (Aulagnier, 1990). É justamen-te por esta intervenção do outro e atransformação do puramente orgâni-co que falamos em pulsão e não eminstinto e, consequentemente, dife-renciamos organismo de corpo e es-quema corporal de imagem corporal.

Pulsão, considerada para Freud(1915/1990c) um conceito limítrofeentre o somático e o psíquico, diz res-peito à inserção do organismo, biolo-gicamente programado, em corpo,que sofre das sobre-determinaçõesculturais trazidas pelos cuidadoresprimários. Para Freud (1905/1990b)existem duas pulsões que envolvem,desde seu início, outras pessoas comoobjetos sexuais – a pulsão de ver/exi-bir e a da crueldade. Se bem que, pos-teriormente, elas se liguem à vidagenital, no início aparecem como au-tônomas. É inegável que, para a crian-ça pequena, não há motivo para a ver-gonha em relação ao seu corpo ou aocorpo do outro desnudo ou mesmodo ímpeto cruel em relação, por exem-plo, a um inseto. A inibição frente àdor do outro se desenvolve tardiamen-te na criança. É necessário pensar nainfluência destas duas pulsões para oacesso ao conhecimento.

Freud, em Tres ensayos de teoría se-xual (1905/1990b) aponta para a re-

lação da pulsão epistemofílica com asteorias sexuais infantis. A pulsão desaber não é considerada, pelo autor,como um componente pulsional ele-mentar, nem pode ser totalmente su-bordinado exclusivamente à sexuali-dade. Esta pulsão trabalha com aenergia da pulsão escópica e da for-ma sublimada do apoderamento doobjeto. A atividade de investigação dacriança é acionada, para Freud, pelaameaça da perda de amor da mãe pelachegada de um irmãozinho. Nem to-das as crianças têm irmãos, mas a im-portância desta observação reside nofato de, em algum momento de nos-sas vidas, nos depararmos com a in-cógnita do nascimento e, consequen-temente, do desejo do outro frente anós mesmos. Para Freud a gênese dapulsão de saber encontra-se na per-gunta sobre o nascimento das crian-ças. Esta pergunta pode estar ligadacom a necessidade de dar conta dafalta materna, justamente no momen-to em que a criança se depara com aperda da completude e da unidade eu--outro. Em termos lacanianos estefato está relacionado com o ingressono Édipo, momento no qual a crian-ça pergunta: o que afinal o outro querde mim?, já que, se o outro quer, ooutro deseja e, se deseja, não é com-pleto. Para que esse movimento ocor-ra faz-se necessário que a mãe apon-te para a falta, a qual, em um primeiromomento, encontra-se nela, pois mui-tas vezes não soube o que fazer comseu filho ou, simplesmente, voltou-separa outros interesses. Desde seus

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primórdios, a relação com o saber estárelacionada com aquilo que Freuddenominou de enigma da Esfinge.

As teorias sexuais infantis se im-põem, para a criança, como forma dedar conta da incógnita do desejo damãe. Nesse aspecto, Bergès e Balbo(2001) referem que a dúvida sobre osaber materno faz com que a criançaconstrua uma hipótese que lhe per-mite montar sua teoria e, consequen-temente, a mãe é capaz de se tolerardesconhecendo algo da sua criança.Assim, é como se fosse uma cartabranca que a mãe lhe oferece de sa-ber algo que ela própria não sabe.Como refere Aulagnier (1990), o sa-ber sobre as origens está na origemdo saber. Para que isto ocorra é ne-cessário renunciar à certeza.

Bergés e Balbo (2001) referemque cada um de nós está preso à suateoria, que não é geral, mas que ins-trumentaliza o sujeito na sua relaçãocom o mundo e com a possibilidadede saber sobre si. As teorias sexuaisinfantis estão na origem, segundo osautores, do pensamento, da relaçãocom a verdade e da necessidade derecalcar certas verdades. As verdadesrecalcadas são as respostas mentiro-sas que os adultos oferecem para ascrianças e, estas, pela devoção ao adul-to, acabam recalcando a hipótese te-cida anteriormente. Este processo,por outro lado, pode instaurar algofundamental para o pensamento – adúvida. A dúvida nos faz continuartrilhando algo, nos faz continuar apensar.

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Horstein (1994), apoiando-se em Aulagnier, refere que uma dasfunções do eu é o pensar, que se estabelece a partir dos enunciadosidentificantes oferecidos pelo outro materno. O pensar possibilitanomear imagens, afetos, refletir sobre si mesmo e se reconhecerpela possibilidade de assumir como seus alguns daqueles enuncia-dos identificantes que o outro lhe ofereceu. Assim, “o que é dizívelconstitui a qualidade característica das produções do eu. Aquilo quenão está enlaçado à representação de palavra não tem existênciapara o eu, o que não quer dizer que não sofra dos seus efeitos”(Horstein, 1994, p. 63). O eu, para enfrentar as mudanças do seumeio, lugar onde se encontram os objetos de prazer, vê-se condena-do a investir. O eu é historiado, visto que é necessário ancorar-seem certos referentes (memória) que garantam a sua permanência.Isto é fundamental para poder investir na atualidade, tempo impos-sível de ser agarrado, mas que permite vislumbrar um futuro. As-sim, a entrada na cena do eu refere-se à possibilidade deste ter sido,desde sua pré-história, historiado. O eu pode, então, metabolizar asrepresentações fantasmáticas, transformando-as em representaçõesrelacionais. O eu faz um trabalho interpretativo da realidade quepercebe, caso contrário, corre o risco de desaparecer.

“Estás condenado por e para toda a vida a uma colocação empensamentos e em sentidos do teu próprio espaço corporal, dosobjetos-meta de teus desejos, desta realidade com a qual deverásco-habitar, que lhe assegure para sempre permanecer como supor-tes privilegiados de teus investimentos” (Aulagnier, citado porHorstein, 1994, p. 67). “Este veredicto marca o eu desde seu surgi-mento na cena psíquica: pensar seu corpo, pensar seu estatutodesejante e a realidade que deverá proteger do risco do desinvesti-mento definitivo” (Horstein, 1994, p. 67).

Assim, a tarefa do eu é pensar, investir e sofrer: pensar e inves-tir para não sumir da cena; sofrer é o preço a ser pago para se man-ter nela.

O processo secundário é caracterizado pela tentativa de esta-belecer uma relação causal dos fenômenos que se apresentam parao eu. A interpretação elaborada e a colocação de sentido precisamser garantidas pela verificação. A dúvida se instaura sendo, paraHorstein (1990), o equivalente da castração. A partir de então, o eupoderá aceitar ou não uma ideia em função do prazer/desprazeracarretado, mas precisará submeter esses enunciados à prova. Nes-se processo, a instância terceira é colocada para desempenhar um

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papel de garantia. A dúvida instauraum processo de separação do “inves-timento da voz que enuncia, do in-vestimento do enunciado” (Horstein,1994, p. 70); assim, uma ideia aceitaou rechaçada não acontecerá peloamor ou ódio sentido por determi-nada voz, já que a voz continuará sen-do investida. O que será colocado àprova será a ideia enunciada por essavoz. Aqui se encontra a diferença en-tre sublimação e idealização. A crian-ça, para poder pensar, precisa subli-mar. A sublimação implica realizarcertos ideais em nome próprio.

A sublimação pode ser conside-rada um destino da pulsão que é pro-cessada a partir da historicidade iden-tificatória de um sujeito (Horstein,1993). Ela permite que sejam deslo-cados, simbolicamente, os objetosprimordiais. O autor refere que su-blimação e idealização resultam de umtrabalho psíquico de elaboração quesepara a pulsão do seu apoio primiti-vo, conduzindo-a para outra direção.A diferença reside em que, na ideali-zação, a modificação ocorre somenteno objeto, sendo, então, consideradaum fenômeno parcial.

Já na sublimação, algo especialocorre com a finalidade e o objeto dapulsão: “Sem desaparecer, a sexuali-dade alcança um valor social e éticomais elevado. A sublimação somentepode ser definida pelas vicissitudes deuma história singular e pela valoriza-ção que uma atividade passa a ter porestar em concordância ou discordân-cia com os valores coletivos ... A su-

blimação, à diferença da adaptação,transgride frequentemente os valoresque são admitidos no campo cultu-ral. Por isso, uma das questões a de-senvolver é o apoio, mas também adivergência, do ideal do eu com osideais coletivos” (Horstein, 1993, pp.60-61).

Uma questão importante parapensar a sublimação refere-se à di-mensão estética como uma dimensãodo pensamento. Nela a comoção nosenvolve gratuitamente antes de podercodificar este aparecimento. Estes fe-nômenos simplesmente nos envol-vem em uma dimensão afetiva har-mônica com a nossa, mas que não énossa (Paín, 1998). Ou seja, podemospensar em algo que está, ao mesmotempo, fora e dentro de nós mesmos.Fora porque não é nosso, mas dentroporque conseguimos decodificá-lo eharmonizá-lo com nosso corpo. Algosimilar ao processo de estranhamen-to (Freud, 1919/1990d), mas às aves-sas, pois gera em nós um deixar noslevar pela situação. Esta noção de estru-tura estética foi pensada, pela autora,a partir dos escritos de Meltzer &Williams (1994), no qual a hipótese éde que, para o bebê saciado e relaxa-do, o mundo aparece-lhe como umaunidade que é esteticamente interes-sante. Disso decorre a disponibilidadedo ser humano de captar as situaçõesinternas e externas harmonicamente.

A estética é considerada comouma estrutura própria do corpo quese encontra aquém da linguagem e daação. O corpo, na dimensão estética,

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seria aquele que vivencia a presençaatual das coisas. Tem a capacidade,por um lado, de ser capturado quan-do em tensão, o que permite o surgi-mento da emoção, e, por outro, de sercapturado quando distraído, o quepermite a surpresa. A sensação esté-tica passa necessariamente pelo cor-po, pela capacidade deste de metabo-lizar as exigências do mundo, de darum sentido ao que nos convoca. As-sim, a função da dimensão estética dopensamento culmina, para Paín, emum pressentimento – sentimento pré-vio que permitirá significar o que vemde fora/dentro.

Nesse sentido, não está “nem nopensamento lógico-simbólico nem nocontorno marcado pelo horizontehistórico, mas, no encontro contin-gente mas não arbitrário do sujeito eo limite pensável para sua época. Nãoo limite entre o desejável e o proibido,que marca a distância do prazer à rea-lidade, tão estudado pela psicanálise,mas o limite próprio ao im-previsí-vel, ao im-prepensável, ainda que sejapela imaginação” (Paín, 1998, p. 11).

É por algo ser imprevisível eincognoscível que se permitirá pen-sar além da memória e das expectati-vas, permitindo que vários cenáriosse estabeleçam.

“Sem o fundamento estético aformulação do pensamento não sai-ria das suas dobradiças para ganharespaços desmedidos e absurdos. Aestética é a substância da ignorânciaque se orienta a uma manifestaçãoenigmática” (Paín, 1998, p. 12).

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Nesse sentido, quando se pensaque a aprendizagem passa necessaria-mente pelo corpo, potencializa-se oseu sentido estético de ser o meio decaptura da incógnita, da surpresa, domistério. Não é à toa que Freud(1905/1990b) coloca que o que acio-na a pulsão de saber na criança é aiminência da perda de amor da mãeque a retira do estado de êxtase e aconvoca a tentar responder sobre oenigma da esfinge, ou seja, todos os por-quês possíveis e impossíveis de serempensados e não respondidos.

Assim, Horstein (1994) refereque na relação sublimada o objetodo pensamento é desejado por simesmo, pois revela uma parte da ver-dade, não para impor ao outro umarivalidade mortífera, mas paranegociá-lo narcisicamente. O encon-tro com o pensamento do outro ofe-rece um exemplo de prazer sublima-do na atividade discursiva. “Nessescasos a comunicação repousa sobreum jogo identificatório onde os limi-tes do narcisismo são superados emproveito de um funcionamento recí-proco” (p. 58).

Conclusão

Pensar a aprendizagem comopartícipe das origens do sujeito psí-quico faz com que valorizemos suasmúltiplas dimensões e compreenda-mos que, quando a criança chega naescola, grande parte de sua modali-

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dade aprendente/ensinante já estáconstituída.

Por sua vez, é quando surgemsintomas que impedem as aprendiza-gens infantis de seguirem seu cursoque se abre um terreno fértil para oreconhecimento da associação entrea capacidade de aprender conteúdose o saber pessoal.

É no acento às modalidades deaprendizagem, constituídas nos vín-culos iniciais ensinantes-aprendentes,que a Psicopedagogia oferece sua ori-ginalidade e especificidade como cam-po de compreensão do sintoma noaprender. Quando uma criança seencontra conflituada com suas apren-dizagens é sua capacidade de argu-mentar, mostrar, ou seja, a elabora-ção objetivante, que fica impedida dese desenvolver, mas por impedimen-tos oriundos das significações incons-cientes, que conformam a elaboraçãosubjetivante. E é trabalhando perma-nentemente com a elaboração objeti-vante, contribuindo para o seu apare-cimento, que a Psicopedagogiaencontra o terreno fértil para ressig-nificar aquele sintoma que congelouas possibilidades aprendentes.

Se vamos a fundo à investigaçãodos sintomas na aprendizagem,deparamo-nos com que as represen-tações que os pais têm a respeito dosmesmos estão amplamente ancoradasa fatos há muito ocorridos. Não rara-mente vemos explicações do tipo “ah,acho que não consegue aprender porque anota aquela [apgar] que eles [os médi-cos] dão no parto não foi 10 ... foi 9”, ou

mesmo aquelas em que a problemáti-ca da aprendizagem está vinculada aum evento traumático que impedeque a criança elabore o conflito e ace-da ao saber: “o médico me disse que elenão junta as letras porque o pai dele morreuquando ele tava na 1º série ... mas ele é muitointeligente, só não consegue juntar as letras”.

Fernandez (1991) refere que acapacidade para pensar resulta doentramado entre a inteligência e odesejo. Quando surge um problemana aprendizagem é porque o pensa-mento se submeteu ao desejo, ele foiaprisionado. Nesse sentido, Pain(1988) e Fernandez (1991) acreditamque o conteúdo ensinado na escolaconstitui um cenário simbólico quepode ser privilegiado para represen-tar um conflito de ordem psíquica. Adiferenciação entre estrutura afetivae cognitiva, entre psique e soma, épossível somente pela estrutura depensamento forjada no mundo oci-dental. Temos a tendência de pensarde forma segmentada. O privilégiohumano de relacionar-se, preferen-cialmente, a partir e através da lingua-gem teve como custo a impossibilida-de de se apropriar do fenômeno total– para ser compartilhado com outro,ele precisa ser falado e, consequente-mente, representado, acentuando al-guns aspectos em detrimento de ou-tros. O problema é que o surgimentode um sintoma nos confronta comessa dissociação, sendo necessário umnovo entendimento por parte dospais, das crianças e dos terapeutas quedeem conta da falha do ideal.

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A tentativa de entender a constituição do corpo, como sendoum dos principais lugares de inscrição do ideal, dá conta da necessi-dade de repensar o peso das interações iniciais o bebê com o outroprimordial e o futuro surgimento de um sintoma de aprendizagem.Nesse sentido, poder pensar as modalidades de aprendizagem quese estabelecem entre o ensinante e o aprendente possibilita-nos re-cuar até as primeiras interações da mãe e a criança como sendo oprotótipo do tipo de aprendizagens e ensinamentos futuros.

THE BODY DIMENSION IN LEARNING

ABSTRACT

Considering the importance of former interactions between the baby and the primordial otherthis paper aims to discuss the relationship between the constitution of body representation andthe construction of the subject of learning. The authors base their ideas on the contributions ofPain (1973) and Fernández (1991;2001) about symptom formation in learning and corporaldimension and some psychoanalytic developments about the constitutive aspect of body imagesuch as Dolto (1984) and Aulagnier (1989), as well as the freudian (1905) discussion aboutthe drive for knowing. The authors discuss the importance of the constitution of bodyrepresentation as participating in the construction of learning modalities.

Index terms: body constitution; former relationships; learning symptom.

LA DIMENSIÓN DEL CUERPO EN EL APRENDIZAJE

RESUMEN

Considerando la importancia de las interacciones iniciales del bebé con el otro primordial, eseartículo objetiva discutir las relaciones entre la constitución de la representación del cuerpo y laconstrucción del sujeto del aprendizaje. Las autoras basan sus ideas en las contribuciones dePaín (1973) y Fernández (1991; 2001) sobre la formación del síntoma en el aprendizaje y ladimensión corporal y en algunos teóricos del psicoanálisis que trabajan con el aspecto constitutivode la imagen corporal, así como el aporte freudiano (1905) sobre la pulsión del saber. Discutenla importancia de la constitución de la representación corporal como partícipe de la construcciónde modalidades de aprendizaje.

Palabras clave: constitución del cuerpo, primeras relaciones, síntoma en el aprendizaje.

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[email protected]@terra.com.br

Recebido em março/2009.Aceito em julho/2009.

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